Decreto-Lei 43893
O problema do Estatuto dos Indígenas assume grande relevância na conjuntura política actual, e porque tal diploma nem sempre tem sido entendido de modo a fazer-se justiça às razões e intenções que o determinarem, há vantagem nalgumas considerações sobre os motivos que deram origem à já tradicional existência, no direito português, de um diploma que especialmente se ocupasse da situação jurídica dos chamados indígenas.
Em primeiro lugar deve salientar-se a tradição portuguesa de respeito pelo direito privado das populações que foram incorporadas no Estado a partir do movimento das descobertas e a quem demos o quadro nacional e estadual que desconheciam e foi elemento decisivo da sua evolução e valorização no conjunto geral da humanidade.
A permanente atitude respeitadora do direito privado corresponde à convicção de que tal direito exprime os valores fundamentais de qualquer comunidade e nunca lhe pusemos outros limites que não fossem os derivados dos princípios superiores da moral que mais tarde foram reconhecidos pelas Declarações Universais dos Direitos do Homem. Nesta orientação, que é parte valiosa do nosso património histórico e antecedeu de muitos séculos as proclamações das organizações internacionais dos nossos dias, se filiam as codificações veneráveis do nosso Estado da Índia e o princípio em vigor no direito português actual que manda codificar, por preocupação da certeza de direito, os usos e costumes em vigor nas regedorias.
Mas foi sobretudo a implantação do conceito de Estado, a que eram alheios os territórios aonde, sem violência, se estendeu a soberania portuguesa, que levou a formular lentamente um conjunto de disposições que depois viriam a ser sistematizadas no Estatuto dos Índigenas. Dispersa a Nação por todos os continentes, entrando em contacto com as mais variadas gentes e culturas, acolhendo a todos com igual fraternidade, foi necessário estabelecer um conjunto de preceitos que traduzissem a ética missionária que nos conduziu em toda a parte com fidelidade à particular maneira portuguesa de estar no Mundo. Os imperativos legais destinados a proteger as populações que entravam no povo português vieram a constituir um todo harmonioso, onde o respeito pela dignidade do homem, expressa nas formas tradicionais da propriedade, da família e das sucessões, se tornou um imperativo para todos os agentes, públicos ou privados, da acção ultramarina portuguesa.
Ainda na data em que foi promulgado o nosso Código Civil, tornado extensivo ao ultramar pelo Decreto de 18 de Novembro de 1869, nenhum equívoco se revelou possível sobre o alcance destas normas jurídicas, inspiradas pela ética mais inatacável, nem existia qualquer dúvida sobre a cidadania de todos os que prestavam obediência à soberania portuguesa, porque a cidadania tinha o significado de nacionalidade, e esta sempre foi adquirida por todos segundo as mesmas regras. Todavia, o racionalismo do direito público da época, que por todo o Mundo ocidental foi estabelecendo fórmulas equivalentes de organização política, suscitou um problema de fundo - o de proteger a estrutura dos agregados tradicionais nas regiões tropicais e subtropicais, - e suscitou um problema de técnica jurídica, que se traduziu na confusão do conceito de cidadania com a capacidade de gozo e exercício de direitos políticos relacionados com as novas formas dos órgãos de soberania.
O predomínio do espírito de missão, o sentido do essencial em prejuízo das fórmulas, o imperativo sempre observado de não fazer violência aos povos, levou entre nós a relacionar formalmente o estatuto de direito privado com o estatuto político e a fazer depender este da espécie de lei privada a que cada português estivesse subordinado, tudo sem prejuízo da nacionalidade comum, a todos atribuída segundo as mesmas regras jurídicas. Feito isto com intenção não susceptível de qualquer crítica válida, é, todavia, certo que se deu ocasião aos nossos adversários para sustentarem, com base no restrito conceito de cidadania antes referido, que o povo português estava submetido a duas leis políticas, e por isso dividido em duas classes pràticamente não comunicantes. Foram mesmo mais longe algumas vezes, sustentando que não eram considerados portugueses todos os que viviam à sombra da nossa bandeira, porque a lei só a alguns conferia os direitos políticos relacionados com os órgãos da soberania.
Qualquer destas alegações traduz injúria grave à acção de Portugal no Mundo, e ignora que no direito português contemporâneo já nem sequer é regra geral a relação de dependência entre os estatutos de direito privado e o estatuto político. Sempre o Estado da Índia, Macau e Cabo Verde constituíram excepção a essa regra e, depois da Lei Orgânica do Ultramar, promulgada em 27 de Junho de 1953, tal dependência deixou de existir nas províncias de S. Tome e Príncipe e Timor. De modo que o nosso direito tem revelado uma tendência firme no sentido de submeter toda a população ao mesmo estatuto político, de acordo com uma evolução só condicionada pelos nossos deveres missionários.
A composição heterogénea do povo português, a sua estrutura tradicional comunitária e patriarcal e o ideal cristão de fraternidade que sempre esteve na base da obra de expansão cedo definiram a nossa acção perante outras sociedades e culturas e impregnaram-na, desde logo, de um acentuado respeito pelos usos e costumes das populações que se nos depararam. Onde nos estabelecemos adaptámo-nos perfeitamente aos ambientes próprios e estilos de vida tradicionais, procurando que o exemplo e o convívio fossem os meios mais destacados da assimilação que se pretendia e nunca esquecidos de que "não ordenou o Senhor Deus tão maravilhosa coisa como é esta navegação para ser sòmente servido nos tratos e proveitos temporais de entre nós, mas também nos espirituais e salvação das almas que mais devemos estimar e de que ele é mais servido ...».(Mensagem do rei D. Manuel para o samorim de Calecute, 1500). A mensagem com que, de súbito, iluminámos o Mundo até aos seus recantos mais longínquos proclamou ao mesmo tempo a igualdade do género humano e a dignidade do homem independentemente da sua cor, raça ou civilização, e impôs-nos uma maneira de estar no Mundo em que o respeito pelas culturas alheias foi traço característico que sempre prevaleceu.
A política da Nação foi, neste aspecto como em muitos outros, admiràvelmente secundada pelo comportamento dos indivíduos que a serviram - marinheiros, soldados, missionários, colonos e, até, simples aventureiros - e as relações de boa amizade imediatamente estabelecidas com os povos das terras descobertas ou abordadas asseguraram o ambiente de fraternal convívio que tão decisivamente viria a influenciar a organização jurídica e política portuguesa. A exigência da nossa actual Constituição, no que toca à contemporização com os usos e costumes locais, é regra que sempre se incluiu nos alvarás e provisões régias que acompanharam os nossos capitães-mores e governadores e foi expressamente incluída no Decreto de 18 de Novembro de 1869, que mandou aplicar no ultramar o Código Civil.
A consideração do homem, de cada homem, como fenómeno único levou a admitir um conjunto de direitos públicos em harmonia com o direito privado que se reconhecia e protegia, e pode-se dizer que foi a tradição portuguesa de reconhecer as culturas e instituições políticas tradicionais, de estender a todos os homens as garantias efectivas, e não aquelas que seriam inúteis pela diversidade dos esquemas políticos, que fez das garantias fundamentais a expressão da dignidade de todos, e das garantias instrumentais, estas adaptadas em função do pluralismo cultural, um sistema diversificado conforme a estrutura de cada sociedade tradicional. A esta inquebrantável linha de conduta se deve que seja antes de mais uma contribuição portuguesa a concepção dos Direitos do Homem como poderes efectivos, e não como simples faculdades abstractas. Deve-se-lhe realmente a formulação do único humanismo que até hoje se mostrou capaz de implantar a democracia humana no Mundo para onde se expandiu o Ocidente.
Esta, no entanto, não foi a única contribuição que os Portugueses deram na matéria, e a orientação por eles definida nos contactos que tiveram de manter com os povos mais diversos e de maior contraste cultural ou étnico serviu de guia a outros governos e instituições que, confrontados com problemas de ordem idêntica ou semelhante, buscaram na legislação portuguesa as fontes mais evidentes da sua própria legislação. As nossas fórmulas e soluções - ainda que, por vezes, mal aplicadas - são as que se adoptam em todos os países livres onde existe um problema de integração de populações (nomeadamente nos países da América do Sul), e, recentemente, a Organização Internacional do Trabalho, chamada a aprovar uma convenção sobre a protecção e integração das populações aborígenes nos países independentes, não fez mais do que seguir a par e passo, e apenas com algumas variantes de pormenor, o que entre nós estava legislado.
Foi exactamente da sábia e oportuna conjugação desses dois factores - respeito pelos usos e costumes locais e vincado propósito de assimilação - que resultou a harmoniosa sociedade multirracial que se contém nos limites do território português e que, mau grado as fáceis e interessadas críticas dos nossos detractores de hoje, constitui um dos maiores serviços jamais prestados à dignificação do homem. Continuá-lo representa imperativo de consciência a que não sabemos furtar-nos, e daí que, embora naturalmente preocupados com os escolhos e dificuldades que abundantemente se colocam no nosso caminho, persistamos em seguir a mesma linha de rumo, certos de que nesta matéria muito poderíamos ensinar e pouco teríamos de aprender.
Com o presente decreto procura-se, portanto, dar um passo mais em direcção aos objectivos anteriormente fixados, extraindo da obra feita as suas mais directas consequências e situando-a dentro das suas verdadeiras dimensões no que toca à evolução e progresso das populações ultramarinas. Considerou-se, na verdade, que o condicionalismo político e social das nossas províncias da terra firme de África permite já hoje dispensar muitas das normas que definiam um mecanismo de protecção das populações inteiramente confiado ao Estado, e que haveria vantagem em generalizar o uso de mais latos meios para a gestão e defesa dos seus próprios interesses e, também, para a participação na administração dos interesses locais. Sob este último aspecto, as providências agora tomadas integram-se num conjunto de medidas já iniciadas com a publicação dos decretos referentes ao revigoramento das instituições municipais e organização das regedorias, e que visam a tirar as consequências do preceito constitucional que garante a "interferência de todos os elementos estruturais da Nação na vida administrativa e na feitura das leis». Aliás, essa interferência processa-se já hoje em termos e extensão que muitas vezes se situam para além das disposições legais em vigor, e a experiência colhida no conjunto das províncias demonstra que é oportuno encarar o problema. Esta não é de modo algum uma situação extraordinária ou anómala, e o próprio princípio constitucional que assegura a transitoriedade das medidas especiais de protecção e defesa como as que se consignaram no Decreto-Lei 39666 exige que frequentemente sejam revistas em ordem a harmonizá-las com as realidades que contemplam, tão certo é que a evolução das populações se faz em ritmo cada vez mais apressado por virtude das providências e recursos postos ao serviço dessa evolução. A decisão agora tomada baseia-se nas conclusões de trabalhos, alguns já publicados, dos centros de estudo especializados, e ainda no voto unânime do plenário do venerando Conselho Ultramarino, que, há muito, pelas suas secções, estudava atentamente o problema. A revogação do Decreto-Lei 39666 surge assim como consequência lógica do processo evolutivo por que tem passado a nossa legislação nesta matéria.
Nestes termos:
Usando da faculdade conferida pela 1 ª parte do n.º 2.º do artigo 109.º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:
Artigo único. É revogado o Decreto-Lei 39666, de 20 de Maio de 1954.
Publique-se e cumpra-se como nele se contém.
Paços do Governo da República, 6 de Setembro de 1961. - AMÉRICO DEUS RODRIGUES THOMAZ - António de Oliveira Salazar - José Gonçalo da Cunha Sottomayor Correia de Oliveira - Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior - João de Matos Antunes Varela - António Manuel Pinto Barbosa - Mário José Pereira da Silva - Fernando Quintanilha Mendonça Dias - Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira - Eduardo de Arantes e Oliveira - Adriano José Alves Moreira - Manuel Lopes de Almeida - José do Nascimento Ferreira Dias Júnior - Carlos Gomes da Silva Ribeiro - José João Gonçalves de Proença - Henrique de Miranda Vasconcelos Martins de Carvalho.
Para ser publicado no Boletim Oficial de todas as províncias ultramarinas. - A. Moreira.