Acórdão doutrinário
Processo 31911. - Autos de recurso extraordinário para tribunal pleno, vindos do Tribunal da Relação de Lourenço Marques. Recorrente, Ministério Público.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em tribunal pleno:
Ao abrigo do disposto nos artigos 669.º do Código de Processo Penal e 764.º do Código de Processo Civil, o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lourenço Marques recorreu para o tribunal pleno do Acórdão da mesma Relação de 7 de Maio de 1965, alegando que não admite recurso ordinário para este Supremo Tribunal e que está em oposição com o de 13 de Abril de 1962, também da Relação de Lourenço Marques.
O recurso foi admitido para subir «em separado e sem efeito suspensivo», nos termos do artigo 765.º, n.os 1.º e 5.º, do Código de Processo Civil, ex vi do § único do artigo 669.º do Código de Processo Penal, que remete para o seu artigo 668.º, § único.
Remetido o processo a este Supremo Tribunal e devidamente distribuído, o ilustre ajudante do procurador-geral da República pronunciou-se no sentido de que se verificam os pressupostos formais e de fundo que condicionam o seguimento do recurso.
E, efectivamente, o acórdão a fl. 16 da secção criminal determinou que seguisse para o tribunal pleno.
O magistrado do Ministério Público apresentou a alegação junta a fls. 21 a 25. Nela desenvolve doutas considerações que rematam com a indicação do texto de dois assentos.
Obtidos os vistos legais, cumpre decidir:
1.º O disposto no n.º 3.º do artigo 766.º do Código de Processo Civil obriga o tribunal pleno a conhecer também da viabilidade do recurso.
Vejamos, pois:
O acórdão recorrido foi lavrado num processo que se iniciou em 1 de Janeiro de 1957 no extinto tribunal municipal de Nampula.
Ora nos processos dos julgados não era admissível recurso ordinário dos acórdãos do Tribunal da Relação, por força do disposto no artigo 21.º do Decreto 39817, de 15 de Setembro de 1954.
O Decreto 43898, de 6 de Setembro de 1961, revogou esse artigo, mas o seu artigo 71.º estabeleceu que o novo diploma só se aplica «aos processos ainda não distribuídos à data da sua entrada em vigor».
É assim indubitável que não era admissível recurso ordinário do Acórdão da Relação de Lourenço Marques de 7 de Maio de 1965.
Nele decidiu-se que depois da extinção do Estatuto dos Indígenas pelo Decreto-Lei 43893, de 6 de Setembro de 1961, e do começo da vigência dos Decretos n.os 43897 e 43898, da mesma data, era de converter a pena de trabalhos públicos aplicada a um indígena - no caso a Amisse Chapuche - em prisão maior, mas só a partir da vigência daqueles diplomas, devendo descontar-se por inteiro a prisão preventiva sofrida, como prescrevia a anterior legislação.
Diferentemente no Acórdão de 13 de Abril de 1962, transitado em julgado, interpretando os mesmos diplomas, decidiu-se que a reconversão da pena de trabalhos públicos em pena maior com redução de um terço devia efectuar-se desde o início, e não só a partir da revogação do Estatuto dos Indígenas, e que o desconto da prisão preventiva se devia fazer por metade, conforme a regra 3.ª do artigo 99.º do Código Penal.
Nítido que o acórdão recorrido está em oposição com o de 1962 sobre a mesma matéria de direito e que dele se não podia interpor recurso ordinário para este Supremo Tribunal.
Verificam-se, portanto, os pressupostos descritos no artigo 669.º do Código de Processo Penal.
Há, pois, que resolver o conflito de jurisprudência que os dois acórdãos suscitam.
2.º O § 1.º do artigo 16.º do 26643, de 28 de Maio de 1936 e 39688, de 5 de Junho de 1954, que, respectivamente, promulga a reorganização dos serviços prisionais e substitui várias disposições do Código Penal.">Decreto-Lei 39997, de 29 de Dezembro de 1954, dispunha:
Para os indígenas as penas maiores serão sempre substituídas pela pena de trabalhos públicos pelo período correspondente acrescido de um terço.
Em evidente justificação desta norma, escreveu-se no relatório do diploma que a contém:
Acolhendo as recomendações da experiência própria e alheia, estabelece-se a rigorosa separação de indígenas e não indígenas, suprimindo para os primeiros o regime celular, excessivamente cruel para o seu modo de ser e ineficaz como instrumento de reabilitação.
Bem claro, portanto, que o legislador quis favorecer os indígenas, subtraindo-os ao cumprimento de penas maiores excessivamente torturantes para o seu modo de ser.
O acréscimo do período de trabalho sobre o período que corresponderia à pena de prisão aplicável apenas reflecte o juízo de que o trabalho público constitui pena cujo cumprimento será presuntivamente mais suave do que o cumprimento de uma pena maior.
3.º Quanto à detenção ou prisão preventiva, o § 7.º - parte final - do artigo 16.º do já citado Decreto 39917, de 15 de Setembro de 1954, dispunha que a sofrida pelos indígenas seria «tomada em conta por inteiro na pena cominada».
Maior benefício do que aquele que concedia o § 1.º do artigo 628.º do Código de Processo Penal e do que veio a conceder o artigo 99.º do Código Penal, com a redacção do Decreto-Lei 39688, de 5 de Junho de 1954, só tornado extensivo ao ultramar pelo citado artigo 16.º do Decreto 39997, de 29 de Dezembro de 1954.
4.º O artigo único do Decreto-Lei 43893, de 6 de Setembro de 1961, revogou o Decreto-Lei 39666, de 20 de Maio de 1954, que tinha promulgado o Estatuto dos Indígenas Portugueses das províncias da Guiné, Angola e Moçambique.
Em sequência lógica desta revogação, foram simultâneamente publicados outros diplomas legais tendentes à uniformização de regimes jurídicos aplicáveis a todos os portugueses, mantendo-se, embora, o tradicional respeito pelo direito privado indígena - essencialmente revelado por meio de usos e costumes - na medida em que, sem contrariar os princípios superiores da moral que limitam o próprio poder do Estado (relatório do Decreto 43897), melhor tutele os interesses das populações onde vigora.
Ora precisamente naquele Decreto 43897 foi formulada a seguinte disposição:
As leis penais são iguais para todos, mas o juiz apreciará sempre as condutas e cominará as sanções considerando a influência que sobre o delinquente e os actos deste exerceram a sua condição social e estatuto de direito privado. O regime de execução das sanções obedecerá ao princípio da personalização.
E o artigo 72.º do mesmo diploma revogou expressamente o citado § 1.º do artigo 16.º do Decreto 39997 e o também citado Decreto 39817, com excepção da primeira parte do seu artigo 7.º, que aqui não interessa.
Criou-se assim um regime de igualdade, sem esquecer o fundamental interesse dos pressupostos da culpabilidade, ampliando, sem dúvida, o quadro do artigo 84.º do Código Penal, certamente ainda em favor dos indígenas.
5.º Em face do disposto do transcrito artigo 10.º e da revogação do § 1.º do artigo 16.º do Decreto 39997 e do § 7.º do artigo 16.º do Decreto 39817, é que surgiram os problemas agora em causa.
Para os resolver, basta considerar:
A máxima que nos adverte de que as leis regem para o futuro é-nos afinal imposta pelas normas que acolheram, como regra, o princípio da não retroactividade, válido, segundo a opinião dominante, tanto para o direito privado como para o direito público.
A lei ordinária formulou-o no artigo 8.º do Código de Processo Civil e no artigo 6.º do Código Penal.
A lei constitucional proclamou-o no n.º 9.º do artigo 8.º da Constituição Política de 1933, limitando-o embora às normas incriminadoras e, portanto, só aplicável às que descrevem os crimes e cominam as indispensáveis sanções.
A regra da lei penal admite excepções claramente tendentes a favorecer o delinquente.
E assim, se a lei nova eliminar uma incriminação constante da lei anterior, terá, em regra (exceptuam-se as leis de emergência), efeito retroactivo.
Assim também, se a lei nova estabelecer para a infracção já prevista em lei anterior uma pena mais leve, aplicar-se-á esta ao infractor «que ainda não estiver condenado por sentença passada em julgado».
Ainda terá efeito retroactivo a lei nova quanto aos seus efeitos - taxativamente indicados nos artigos 74.º a 83.º - em tudo o que favoreça os criminosos, desde que não sejam afectados direitos de terceiros.
Salvo estas excepções, tem de respeitar-se o princípio da regra da irretroactividade da lei, o que conduz, na lição da doutrina, a admitir que, na falta de declaração expressa em contrário, se deve considerar sempre implícito na nova lei este pensamento: «daqui para o futuro», ou «de ora avante».
6.º Ora, no caso dos autos discute-se se, em face da lei nova - que estabeleceu que «as leis penais são iguais para todos» e revogou preceitos que estabeleciam desigualdades entre indígenas e não indígenas -, devem ou não modificar-se as situações dos delinquentes indígenas, condenados por decisões transitadas em julgado e relativas à aplicação:
a) Do citado § 1.º do artigo 16.º do 26643, de 28 de Maio de 1936 e 39688, de 5 de Junho de 1954, que, respectivamente, promulga a reorganização dos serviços prisionais e substitui várias disposições do Código Penal.">Decreto-Lei 39997, de 29 de Dezembro de 1954, que obrigava a substituir a pena maior pela de trabalhos públicos pelo período correspondente acrescido de um terço;
b) Do também citado § 7.º - parte final - do artigo 16.º do Decreto 39817, de 15 de Setembro de 1954, que mandava tomar em conta por inteiro na pena cominada a detenção sofrida, com evidente benefício para os indígenas, uma vez que para os não indígenas vigorava então no ultramar o § 1.º do artigo 628.º do Código de Processo Penal.
Do que já dissemos, é seguro que às referidas situações se não podem ajustar as excepções do artigo 6.º do Código Penal.
Não houve eliminação de uma incriminação, estão em causa decisões transitadas em julgado e não se discutem efeitos dos taxativamente declarados nos artigos 75.º e seguintes daquele código.
Logo, tem de funcionar o princípio da não retroactividade, por virtude do qual só tem eficácia jurídica o que se praticar ou ocorrer depois da entrada em vigor da nova lei.
E como do que nela se dispõe surgem problemas de execução de pena, cujas normas, por sua própria natureza, são de aplicação imediata, temos de considerar imediatamente aplicável a nova lei.
Será ela que presuntivamente melhor servirá o interesse público tal como é considerado no momento da sua promulgação.
Mas o princípio da aplicação imediata, se, por um lado impõe que se aplique a lei nova a todos os actos que se praticarem, se produzirem ou ocorrerem posteriormente à sua vigência, não deixa de permitir que se respeitem os actos ou situações anteriores, para não invalidar ou mesmo violar a utilidade ou conveniência que lhes reconhecia e assegurava a lei sob cujo domínio se geraram.
Assim, quanto à detenção, uma vez que ocorreu toda na vigência da lei anterior, mantém-se o efeito jurídico que esta lei lhe atribuía: deve descontar-se por inteiro.
Na realidade, a detenção que a lei manda descontar equivale a cumprimento antecipado de pena de prisão. Tanto que, se for igual ou superior à prisão aplicada, esta deve ser dada por expiada na própria sentença condenatória.
Quanto à pena de trabalhos públicos:
A que se executou - ocorreu - enquanto vigorou a lei que a estabeleceu deve considerar-se cumprida. Era a que melhor servia os interesses que a lei de então quis acautelar. Só àquela que tenha de executar-se depois do início da vigência da nova lei se aplicará o princípio da igualdade que esta estabeleceu para realizar interesses idênticos, mas agora dominados por elementos diferentes.
Por isso só a parte da pena de trabalhos públicos cuja execução ainda estiver a decorrer se deve ajustar à nova lei, substituindo-a por prisão pelo período correspondente a essa parte, reduzido de um terço.
7.º Nestes termos, negam provimento ao recurso e formulam o seguinte assento:
I) A parte da pena de trabalhos públicos ainda não cumprida à data da entrada em vigor do Decreto-Lei 43893, de 6 de Setembro de 1961, deve ser substituída, com desconto de um terço, pela pena de prisão maior.
II) Desconta-se por inteiro a prisão preventiva sofrida pelos réus condenados na pena de trabalhos públicos.
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 8 de Março de 1967. - H. Dias Freire - Gonçalves Pereira - Albuquerque Rocha - Fernando Bernardes de Miranda - Oliveira Carvalho - Francisco Soares - Adriano Vera Jardim - J. Santos Carvalho Júnior - Eduardo Correia Guedes - Lopes Cardoso - Torres Paulo - Ludovico da Costa - José Cabral Ribeiro de Almeida - Joaquim de Melo.
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Março de 1967. - O Secretário, Joaquim Múrias Freitas.