de 23 de Setembro
O presente decreto-lei estabelece a regulamentação da assistência espiritual e religiosa nos hospitais e outros estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) concretizando o disposto no artigo 18.º da Concordata de 18 de Maio de 2004, celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa, e, quanto às demais confissões religiosas, o artigo 13.º da Lei da Liberdade Religiosa (Lei 16/2001, de 22 de Junho).Com efeito, nos termos da Concordata, a República Portuguesa garante à Igreja Católica o livre exercício da assistência religiosa às pessoas que, por motivo de internamento em estabelecimento de saúde, «estejam impedidas de exercer, em condições normais, o direito de liberdade religiosa e assim o solicitem».
Por seu turno, a Lei da Liberdade Religiosa estabelece que o internamento em hospitais ou estabelecimento de saúde não impede «o exercício da liberdade religiosa, nomeadamente do direito à assistência religiosa e à prática dos actos de culto», devendo o Estado, com respeito pelo princípio da separação e de acordo com o princípio da cooperação, criar «as condições adequadas ao exercício da assistência religiosa nas instituições públicas».
Neste contexto, volvidas quatro décadas sobre a aprovação do Estatuto Hospitalar de 1968, operada pelo Decreto-Lei 48 357, de 27 de Abril de 1968, impõe-se a actualização do enquadramento legal da assistência espiritual e religiosa nos estabelecimentos do SNS à luz das normas jurídico-constitucionais relevantes e das disposições da Concordata e da Lei da Liberdade Religiosa.
O presente decreto-lei tem também em consideração as recomendações do Plano Nacional de Saúde 2004-2010, no que respeita à especial importância do acesso à assistência espiritual e religiosa nos estabelecimentos de saúde.
A assistência espiritual e religiosa nas instituições do SNS permanece reconhecida como uma necessidade essencial, com efeitos relevantes na relação com o sofrimento e a doença, contribuindo para a qualidade dos cuidados prestados.
Particular atenção deve ser dada aos doentes em situações paliativas, com doença de foro oncológico, com imunodeficiência adquirida ou com severidade similar.
Naturalmente que o novo modelo de assistência espiritual e religiosa não poderá deixar de considerar, igualmente, a Lei 27/2002, de 8 de Novembro, que aprovou o novo regime de gestão hospitalar, bem como as alterações verificadas no regime de contratação de pessoal pela Administração Pública.
Além de adaptar o regime e condições do exercício da assistência espiritual e religiosa ao actual enquadramento legal dos hospitais do SNS, são ainda estabelecidas as convenientes regras de acesso, de modo a conciliar a assistência solicitada com o bem-estar físico e espiritual dos doentes.
Foi promovida a consulta da Santa Sé, em conformidade com o artigo 32.º da Concordata. Foram ouvidas a Conferência Episcopal Portuguesa, a Comissão Paritária, nos termos do artigo 29.º da Concordata, e a Comissão da Liberdade Religiosa, de acordo com a Lei da Liberdade Religiosa.
Assim:
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
Artigo 1.º
Regulamento da Assistência Espiritual e Religiosa
É aprovado o Regulamento da Assistência Espiritual e Religiosa no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que se publica em anexo ao presente decreto-lei e do qual faz parte integrante.
Artigo 2.º
Norma transitória
Aos capelães dos hospitais nomeados ao abrigo do Decreto Regulamentar 58/80, de 10 de Outubro, é garantida a manutenção do respectivo estatuto jurídico, designadamente para efeitos da aposentação e de contribuição para o financiamento da Caixa Geral de Aposentações, extinguindo-se, à medida que vagarem, os respectivos lugares no quadro.
Artigo 3.º
Norma revogatória
São revogados:a) O n.º 4 do artigo 56.º e os artigos 83.º e 84.º do Decreto-Lei 48 357, de 27 de Abril de 1968, alterado pelo Decreto-Lei 49 459, de 24 de Dezembro de 1969, pelo Decreto-Lei 498/70, de 24 de Outubro, pelo Decreto-Lei 301/79, de 18 de Agosto, e pelo Decreto-Lei 284/99, de 26 de Julho;
b) O Decreto Regulamentar 58/80, de 10 de Outubro;
c) O Decreto Regulamentar 22/90, de 3 de Agosto.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 30 de Julho de 2009. - José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa - Manuel Pedro Cunha da Silva Pereira - Ana Maria Teodoro Jorge.
Promulgado em 16 de Setembro de 2009.
Publique-se.O Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva.
Referendado em 16 de Setembro de 2009.
O Primeiro-Ministro, José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.
ANEXO
Regulamento da Assistência Espiritual e Religiosa no Serviço Nacional de
Saúde
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 1.º
Objecto
1 - O Regulamento da Assistência Espiritual e Religiosa no Serviço Nacional de Saúde (RAER) tem por objecto assegurar as condições que permitam a prestação de assistência espiritual e religiosa aos utentes internados em estabelecimentos de saúde do Serviço Nacional de Saúde.2 - A assistência espiritual e religiosa nas unidades do Serviço Nacional de Saúde é prestada no respeito pela liberdade de consciência, de religião e de culto garantidas pela lei.
Artigo 2.º
Âmbito
O RAER aplica-se aos hospitais, centros hospitalares e demais estabelecimentos de saúde com internamento que integrem o Serviço Nacional de Saúde, adiante designados por unidades.
Artigo 3.º
Universalidade
1 - Às igrejas ou comunidades religiosas, legalmente reconhecidas, são asseguradas condições que permitam o livre exercício da assistência espiritual e religiosa aos utentes internados em estabelecimentos de saúde do Serviço Nacional de Saúde que a solicitem.2 - Aos utentes internados em estabelecimentos de saúde do Serviço Nacional de Saúde, independentemente da sua confissão, é garantido o acesso à assistência espiritual e religiosa.
Assistência espiritual e religiosa
Artigo 4.º
Iniciativa da assistência
1 - A assistência espiritual e religiosa, adiante designada por assistência, é prestada ao utente a solicitação do próprio ou dos seus familiares ou outros cuja proximidade ao utente seja significativa, quando este não a possa solicitar e se presuma ser essa a sua vontade.2 - A assistência pode ser prestada por iniciativa do assistente espiritual ou religioso da igreja ou da comunidade religiosa a que o utente declarar pertencer após a entrada na unidade, desde que o utente consinta nesta prestação.
3 - Os profissionais de saúde, os demais funcionários e os voluntários que trabalhem ou prestem serviços nas unidades, bem como os assistentes espirituais ou religiosos não podem obrigar, pressionar nem, por qualquer forma, influenciar os utentes na escolha do assistente espiritual ou religioso.
Artigo 5.º
Forma
1 - A solicitação referida no n.º 1 do artigo anterior pode ser requerida por qualquer meio, desde que de forma expressa.2 - Sem prejuízo de poder ser requerida em qualquer momento do internamento, a assistência é solicitada preferencialmente no momento da admissão na unidade.
Artigo 6.º
Designação do assistente
1 - A assistência é prestada pelo assistente designado pelo utente, seus familiares ou outros cuja proximidade ao utente seja significativa, de entre os assistentes que prestem serviço regular na unidade, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 13.º 2 - Quando devidamente fundamentado, pode ainda ser designado, pelas pessoas referidas no número anterior, um assistente sem vínculo à unidade, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 13.º, desde que tal não implique custos para a unidade.3 - Se o utente solicitar a prestação de assistência sem designar pessoa concreta, esta é prestada pelo assistente da igreja ou comunidade religiosa a que o utente tenha declarado pertencer após a sua entrada na unidade.
Artigo 7.º
Horário
A assistência pode ser prestada a qualquer hora, de acordo com a vontade do utente e sem prejuízo do repouso dos demais utentes e da prestação dos cuidados de saúde.
Artigo 8.º
Local
1 - A assistência é prestada em local reservado para o efeito, excepto se o utente não puder locomover-se.2 - A unidade assegura o transporte dos utentes para os locais referidos no número anterior, salvo determinação clínica em contrário.
CAPÍTULO III
Organização da assistência espiritual e religiosa
Artigo 9.º
Forma de organização
1 - Em cada unidade do Serviço Nacional de Saúde deve existir uma forma de organização que garanta o regular funcionamento da assistência.2 - Cada unidade assegura o apoio administrativo e os meios logísticos necessários à prestação da assistência.
3 - As entidades responsáveis pela prestação da assistência espiritual e religiosa podem apresentar propostas quanto à forma de articulação com os diferentes serviços, unidades funcionais e departamentos da unidade.
4 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a organização da prestação da assistência deve ficar prevista no regulamento interno de cada unidade.
Artigo 10.º
Apoio administrativo e logístico
1 - O apoio administrativo garante a rápida referenciação do utente que solicite a assistência para o assistente da confissão religiosa respectiva.2 - A disponibilização de meios logísticos inclui a afectação de locais destinados à prestação de assistência e do equipamento não religioso necessário ao regular funcionamento da assistência.
3 - Em cada unidade deve existir:
a) Um ou mais locais com condições de privacidade para reuniões dos utentes, seus familiares ou outros cuja proximidade ao utente seja significativa, com os assistentes espirituais ou religiosos, sem símbolos religiosos específicos de qualquer confissão religiosa;
b) Um ou mais locais de culto, em termos que garantam o acesso ao culto a todos os utentes, independentemente da sua confissão religiosa, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
4 - Um dos locais de culto referidos no número anterior é atribuído, em permanência, à Igreja Católica e, se tal for necessário, é partilhado por esta e outras confissões cristãs.
5 - Os locais de culto católico existentes nas unidades à data da entrada em vigor do presente decreto-lei devem, sempre que possível, ser preservados, assegurando-se, nesse caso, pelo menos mais um local de culto destinado aos utentes de outras confissões religiosas.
Artigo 11.º
Número de assistentes religiosos
1 - Nas unidades do Serviço Nacional de Saúde que prestem cuidados de saúde em regime de internamento, o número de assistentes espirituais e religiosos deve ser ajustado às necessidades e respeitar a representatividade de cada confissão religiosa.2 - Sem prejuízo de eventuais ajustamentos em função do número efectivo de camas, o critério indicativo para a definição do número de assistentes em cada unidade tem como referência o rácio de 1 para cada 400 camas.
CAPÍTULO IV
Utentes
Artigo 12.º
Direitos dos utentes
Ao utente, independentemente da sua confissão, é reconhecido o direito a:a) Aceder ao serviço de assistência espiritual e religiosa;
b) Ser informado por escrito, no momento da admissão na unidade ou posteriormente, dos direitos relativos à assistência durante o internamento, incluindo o conteúdo do regulamento interno sobre a assistência;
c) Rejeitar a assistência não solicitada;
d) Ser assistido em tempo razoável;
e) Ser assistido com prioridade em caso de iminência de morte;
f) Praticar actos de culto espiritual e religioso;
g) Participar em reuniões privadas com o assistente;
h) Manter em seu poder publicações de conteúdo espiritual e religioso e objectos pessoais de culto espiritual e religioso, desde que não comprometam a funcionalidade do espaço de internamento, a ordem hospitalar, o bem-estar e o repouso dos demais utentes;
i) Ver respeitadas as suas convicções religiosas;
j) Optar por uma alimentação que respeite as suas convicções espirituais e religiosas, ainda que tenha que ser providenciada pelo utente.
CAPÍTULO V
Assistente espiritual e religioso
Artigo 13.º Definição
1 - Para efeitos do RAER, entende-se por assistente espiritual ou religioso o ministro de culto ou outra pessoa idónea que tenha sido indicada para prestar assistência por uma igreja ou comunidade religiosa inscrita no registo de pessoas colectivas religiosas que:a) Se encontre vinculada à unidade mediante contrato, nos termos do artigo 17.º; ou b) Não tendo vínculo à unidade, se apresente a prestar assistência devidamente identificado e credenciado.
2 - Os assistentes referidos no número anterior podem escolher auxiliares ou cidadãos voluntários que os assistam, incluindo na celebração de cultos, devendo ser previamente estabelecidas as suas funções específicas.
Artigo 14.º
Identificação
1 - Os assistentes referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior devem estar devidamente identificados através de um cartão, a emitir pela administração da unidade, contendo a identificação da igreja ou da comunidade religiosa a que pertencem.2 - O acesso à unidade pelos assistentes referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo anterior é feito mediante a apresentação de documento de identificação e da credencial referida no n.º 2 do artigo 15.º da Lei da Liberdade Religiosa, nos casos em que esta disposição se aplique.
3 - Em casos de manifesta urgência, não pode a falta de documento de identificação ou de credencial ser motivo de objecção da assistência.
Artigo 15.º
Direitos dos assistentes
Os assistentes têm direito:a) Ao acesso livre aos utentes que solicitem ou para os quais seja solicitada assistência;
b) A obter as informações necessárias ao correcto desempenho das suas funções, desde que não confidenciais;
c) A participar em acções de formação;
d) Ao respeito pelos símbolos religiosos, alfaias do culto, textos sagrados e demais objectos próprios da assistência;
e) Ao uso de hábito religioso ou de outras vestes com sinais espirituais ou religiosos identificativos;
f) A serem remunerados, nos casos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 13.º
Artigo 16.º
Deveres dos assistentes
Os assistentes devem no âmbito da sua actividade:a) Prestar a atenção e os cuidados adequados ao utente que tenha solicitado assistência;
b) Guardar sigilo dos factos de que tomem conhecimento no exercício da sua actividade;
c) Proporcionar actos colectivos de culto, quando o número de utentes o justifique;
d) Limitar o seu contacto aos utentes que tenham solicitado ou consentido na assistência, de forma a não perturbar os demais;
e) Respeitar a liberdade de consciência, de religião e de culto dos utentes, dos profissionais de saúde, dos demais funcionários e dos voluntários da unidade;
f) Articular a assistência com os profissionais de saúde que assistam os utentes;
g) Respeitar as determinações clínicas;
h) Respeitar a não confessionalidade do Estado;
i) Respeitar as orientações da administração da unidade;
j) Promover a melhoria da prestação da assistência.
Artigo 17.º
Regime de trabalho e retribuição
1 - Os assistentes exercem as suas funções em regime de contrato de trabalho em funções públicas, a tempo completo ou parcial, ou em regime de contrato de prestação de serviços, consoante o tipo e a periodicidade da assistência prestada e as solicitações ocorridas.2 - Os contratos referidos no número anterior são celebrados pela administração da unidade de saúde, observado o referencial previsto no n.º 2 do artigo 11.º, e, salvo disposição expressa em contrário, incluem-se no âmbito de aplicação dos instrumentos de regulamentação colectiva e dos regulamentos internos subscritos ou aprovados pela unidade.
3 - Os assistentes são contratados mediante audição prévia da respectiva entidade religiosa.
4 - A retribuição dos assistentes com contrato de trabalho em funções públicas a tempo completo corresponde, na falta de acordo entre as partes, à posição remuneratória 12 da tabela de remuneração única da Administração Pública, valor de referência que, nos casos de contrato de trabalho a tempo parcial e de contrato em regime de prestação de serviços, é calculado proporcionalmente.
Artigo 18.º
Relatório anual
Os assistentes elaboram anualmente um relatório descritivo da actividade de assistência espiritual e religiosa prestada na unidade e das necessidades verificadas, que apresentam à administração da unidade para apreciação.
CAPÍTULO VI
Regulamento
Artigo 19.º
Regulamento de assistência
1 - Cada unidade, em articulação com os eventuais assistentes, deve elaborar e aprovar, no prazo de 120 dias, um regulamento interno sobre a assistência que regule, designadamente:a) O horário de atendimento dos assistentes;
b) O local de atendimento dos assistentes;
c) O horário de celebração de cultos;
d) O local de celebrações de cultos;
e) O funcionamento da assistência.
2 - A aprovação do regulamento é precedida de audição dos assistentes.
3 - O regulamento interno sobre a assistência deve ser disponibilizado aos utentes.