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Acórdão 270/2009, de 7 de Julho

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Sumário

Decide julgar inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, quando interpretada no sentido de a circulação na via pública de motocultivadores com atrelado não estar dependente da celebração do contrato de seguro obrigatório previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal.

Texto do documento

Acórdão 270/2009

Processo 641/08

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1 - António Manuel Ribeiro da Costa propôs, no Tribunal da Comarca de Leiria, acção declarativa contra David de Jesus Rodrigues e o Fundo de Garantia Automóvel, alegando que, enquanto conduzia um motociclo na via pública, fora vítima de um acidente de viação exclusivamente causado pelo primeiro réu, que na altura circulava, sem beneficiar de qualquer seguro válido e eficaz, com um motocultivador com reboque; pediu, em consequência, que os réus fossem condenados a pagar solidariamente a quantia de 9.265.005$00 acrescida dos juros legais que se vencessem após a citação, a título de indemnização pelos danos por si sofridos, entre os quais se incluía a amputação traumática pelo terço superior da perna direita e a incapacidade

permanente global de 70 %.

Por sentença de 24 de Abril de 2007, foi a acção julgada parcialmente procedente.

Para tanto, a sentença recusou aplicação, por violação do princípio da igualdade, à norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, interpretada no sentido de que exclui a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não sujeita a matrícula, cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.

Desta sentença interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 571).

Pelo acórdão 202/2008, o Tribunal Constitucional concedeu provimento ao recurso, não julgando inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, na referida interpretação, determinando-se a reformulação da decisão recorrida de acordo com o juízo de não inconstitucionalidade.

2. Foi, então, proferida nova sentença (fls. 650 e segs. - em 17/6/2008), na qual se manteve o julgamento de procedência parcial da acção e a consequente condenação dos réus, incluindo o Fundo de Garantia Automóvel.

Desta vez, o tribunal a quo recusou aplicação à norma do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do princípio da igualdade,

com a seguinte fundamentação:

"Nos casos de acidente de viação, aquilo que está coberto pelo seguro é a obrigação de indemnização que, em virtude do acidente, possa recair sobre o segurado (até ao limite do valor convencionado entre as partes).

Ora, no caso vertente o Réu David não tinha a responsabilidade por acidentes de viação, em que o seu motocultivador interviesse, transferida para qualquer C de Seguros, pelo que, em caso de responsabilidade sua, é nossa humilde opinião, intervém o Fundo de Garantia Automóvel, apesar da redacção literal do art 21.º do DL 522/85,

de 3 1-12 que se transcreve:

1- Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer... as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes nacionais.

2- O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por:

a) morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da seguradora;

b) lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro

válido ou eficaz.

3- Nos casos previstos na alínea b) do número anterior haverá uma franquia de (euro) 299,28 a deduzir no montante a cargo do Fundo.

Com efeito, exigia-se, na altura do acidente, cumulativamente, para que o FGA fosse responsabilizado que o veículo causador do acidente fosse:

1.º: sujeito ao seguro obrigatório

2.º e que fosse matriculado...

O motocultivador; à altura, como máquina agrícola, não estava sujeito a seguro obrigatório nem a matrícula uma vez que tal situação não tinha, ainda, sido regulamentada, conforme o impunha o artigo 117.º n.º 3 do CE, vigente à altura.

Com efeito, preceituava-se no art 1.º do DL 522/85 de 31 de Dezembro: "Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade." (n.º 1); "A obrigação referida no número anterior não se aplica aos responsáveis pela circulação de veículos de caminho de ferro, bem como das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula" (n.º 2).

Ora, os motocultivadores circulam, frequentemente, nas vias públicas, com os riscos inerentes à própria "perigosidade" de veículo desta natureza.

A dispensa da obrigação de celebrar seguro de responsabilidade civil (imposta à generalidade dos veículos) implica uma desprotecção dos utentes da via pública que sejam intervenientes em acidente de viação provocado por aqueles, uma vez que se isentaria o FGA de responsabilidade pela indemnização devida aos lesados, obrigando estes a accionar exclusivamente o responsável directo pelo acidente, com a possibilidade da "insolvabilidade" do mesmo, o que conduziria à não reparação dos

danos sofridos.

Filipe Albuquerque Matos, in "O contrato de seguro obrigatório de Responsabilidade Automóvel" (BDF 78, 2002, pág 336, nota 6), doutamente citado pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional nas alegações que apresentou, refere o seguinte (perdoe-se-nos o plágio): "Parece ter sido propósito do legislador no artigo 1.º, n.º 1, impor a obrigatoriedade sempre que estiverem em causa veículos terrestres susceptíveis, dada a sua necessária e frequente utilização na via pública bem como a sua perigosidade, de provocar perturbações na circulação no espaço público. Assim sendo, e no tocante às máquinas agrícolas, que apesar de serem veículos de tracção mecânica, se destinam a habitualmente circular na via pública (para, por exemplo, efectuarem o transporte dos produtos agrícolas), não vemos razão para não integrar as pessoas eventualmente responsáveis pelos danos causados pela sua circulação no círculo de sujeitos sobre que recai a obrigação de realizar o seguro. Na verdade, em relação a estas máquinas agrícolas colhem as mesmas razões justificativas da obrigatoriedade do seguro subjacentes ao art 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei 522/85.".

Assim, a unidade do ordenamento jurídico português e razões de justiça material implicavam que tivesse sido estendida a estes veículos agrícolas que circulam na via

pública a obrigação de seguro.

Esta situação está salvaguardada, neste momento, pelo disposto no art 48.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, que responsabiliza o FGA pelas obrigações decorrentes de acidentes rodoviários originados por veículos cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em

si mesmo.

Portanto, e concluindo estas considerações, entendemos que a norma do art 1.º n.º 2 do Decreto-Lei 522/85 está ferida de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade consagrado na Constituição da República Portuguesa, pelo que, por arrastamento (ou efeito dominó) está também o FGA obrigado a indemnizar os danos causados por veículos agrícolas que circulem na via pública.

O princípio constitucional da igualdade, consagrado na CRP no seu artigo 13.º n.º 1, é um princípio estruturante do sistema constitucional global e inerente ao conceito de Estado de Direito Democrático e Social, pelo que, com base na sua violação pela redacção do art supra citado, que exclui da obrigatoriedade do seguro os veículos agrícolas, se nega a aplicação do regime previsto no preceito citado.

Só esta interpretação obedece ao princípio da eliminação das desigualdades fácticas, no sentido de que se atinja, sempre que possível, uma igualdade e protecção reais de

todos os cidadãos.

Entender-se o contrário seria tratar diferentemente situações facticamente iguais e retirar protecção ao lesado que tivesse "a desventura" de sofrer acidente de viação causado por veículo não sujeito a seguro obrigatório e a matrícula.

Alias, podemos aqui considerar até, que o Estado Português ao não ter regulamentado a situação relativa aos motocultivadores, como já o impunha o art 117.º n.º 3 do CE vigente à altura, cometeu omissão grave do seu dever de legislar neste campo, como lhe era imposto pela Directiva 84/9/CEE do Conselho de 30-12-1983 no que toca a estas situações, pelo que até o próprio Estado pode incorrer em responsabilidade."

3. O Ministério Público interpôs recurso desta sentença para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, na medida em que "recusou aplicação aos ditames do artigo 1.º n.º 2 do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do artigo 13.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa".

Admitido o recurso, sustentou o representante do Ministério Público junto do Tribunal

Constitucional o seguinte:

"1.2. Neste processo, e na sequência de anterior recurso interposto pelo Ministério Público, foi proferido o Acórdão 202/2008 que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, interpretada como excluindo a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não sujeita a matricula, e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação de celebrar contrato de seguro de

responsabilidade civil automóvel.

Ora, quando no âmbito desse recurso foram apresentadas as alegações, a abordagem da questão da exclusão de responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel foi feita na sua globalilidade, não se tendo cingido exclusivamente à análise do artigo 21.º, n.º 1, sendo, inclusive, e por várias vezes referido o artigo 1.º, n.º 2.

Deste modo, o que então se disse é, com as inevitáveis adaptações, perfeitamente transponível para os presentes autos, pelo que nos limitaremos a transcrever essas

alegações:

[Omitido por já reproduzido no acórdão 202/2008].

Acresce que o próprio Tribunal Constitucional (Acórdão 202/2008) parece apontar no sentido da inconstitucionalidade da norma objecto do recurso, quando, após concluir pela não inconstitucionalidade do n 1 do artigo 21º, afirma expressamente o

seguinte:

"Questão diversa é a de saber se a não sujeição a matrícula do veículo causador do acidente dos autos, e a sua consequente não sujeição a seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é constitucionalmente justificável ".

2 - Conclusão

Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:

1.º A norma do n.º 1, do artigo 1.º, do Decreto-Lei 525/85, de 31 de Dezembro, na medida em que não sujeita a matricula as máquinas agrícolas que podem legal e livremente circular nas vias públicas, o que implica a sua não sujeição a seguro obrigatório, - levando à exclusão da responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros - é inconstitucional por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).

2.º Termos em que deverá improceder o presente recurso."

Os recorridos não contra-alegaram.

II. Fundamentação

4 - O acidente consistiu numa colisão entre um motociclo conduzido pelo autor, e um motocultivador sem matrícula, tripulado pelo réu David de Jesus Rodrigues. Em resultado do embate, o autor sofreu lesões corporais, bem como danos materiais.

A sentença recorrida deu como assente que o acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do motocultivador, que, com negligência, violou as regras estradais, nomeadamente a obrigação de cedência de passagem imposta pelo artigo 31.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada, então vigente.

Tendo considerado inconstitucional a norma do artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a obrigação de cobrir com um contrato de seguro a responsabilidade civil por danos causados a terceiros por veículo terrestre a motor não se aplica às máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula mas admitidas a circular na via pública, a sentença recorrida concluiu que, por arrastamento, o Fundo de Garantia Automóvel está também obrigado a indemnizar pelos danos causados por tais máquinas quando circulem na via pública, ao abrigo do n.º 2 do artigo 21.º do citado diploma legal (Salienta-se que no presente recurso não cabe apreciar o modo como foi dada execução ao anterior julgamento de constitucionalidade, mas apenas decidir a nova questão de constitucionalidade

suscitada).

5 - O Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, entretanto substituído pelo Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, disciplinava o chamado seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, num sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação assente em dois pilares principais: 1.º) a obrigação de efectuar seguro de responsabilidade para que o veículo pudesse circular na via pública; 2.º) e a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel quando essa obrigação não fosse cumprida (o seguro inexistisse, fosse inválido ou ineficaz) ou o responsável fosse

desconhecido.

Quanto ao primeiro aspecto, dispunha o artigo 1.º deste diploma, o seguinte:

"Artigo 1.º

(Da obrigação de segurar)

1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade.

2 - A obrigação referida no número anterior não se aplica aos responsáveis pela circulação dos veículos de caminho de ferro, bem como das máquinas agrícolas não

sujeitas a matrícula."

E, quanto ao segundo, o artigo 21.º do mesmo diploma legal, inserido nas disposições gerais relativas ao Fundo de Garantia Automóvel e possuindo como epígrafe "Âmbito do Fundo", dispunha no seu n.º 1, o seguinte:

"1 - Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre

Gabinetes Nacionais".

O veículo cujo condutor e proprietário a sentença considerou responsável pelo acidente era um motocultivador, espécie de veículo agrícola que o n.º 3 do artigo 108.º do Código da Estrada (ao tempo do acidente, na versão resultante do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro) definia como "o veículo com motor de propulsão, de um só eixo, destinado à execução de trabalhos agrícolas ligeiros, que pode ser dirigido por um condutor a pé ou em semi-reboque ou retrotrem atrelado ao referido veículo".

À obrigatoriedade de matrícula deste tipo de veículo se referia o artigo 117.º, n.º 3, do

Código da Estrada que estatuía o seguinte:

"3 - Os casos em que as máquinas agrícolas e industriais, os motocultivadores e os tractocarros estão sujeitos a matrícula são fixados em regulamento" (itálico

acrescentado)."

Este regulamento não chegou a ser publicado, pelo que nada foi determinado quanto à necessidade de as máquinas agrícolas (lato sensu), incluindo os motocultivadores, ficarem sujeitas a matrícula para serem admitidos à circulação na via pública.

Deste modo, face à excepção constante do citado artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 522/85, os motocultivadores poderiam circular na via pública, ainda que o respectivo proprietário não tivesse coberto por um contrato de seguro a responsabilidade civil por danos que pudessem resultar para terceiros de acidentes em que o veículo estivesse envolvido. Com a consequência de, por efeito do já mencionado artigo 21.º, n.º 1, do mesmo diploma, as indemnizações por acidentes causados por esse tipo de veículos não se encontrarem garantidas pelo Fundo de Garantia Automóvel, que, como se viu, apenas está obrigado a satisfazer as «indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório».

6 - Convirá começar por lembrar o enquadramento histórico da solução legislativa em presença, repetindo o que se disse no acórdão 202/2008.

O Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro, que instituiu o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, determinou no seu artigo 20.º que «[o]s direitos dos lesados por acidentes ocorridos com veículos sujeitos ao seguro obrigatório poderão ser efectivados, nos termos que legalmente vierem a ser estabelecidos, contra o fundo de garantia automóvel, a instituir no âmbito do Instituto Nacional de Seguros, nos seguintes casos: a) quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz; b) quando for declarada a falência do segurador».

O Fundo de Garantia Automóvel - reconhecendo-se ter constituído um contributo importante no sentido da socialização do risco (cf. Filipe Albuquerque Matos, ob. cit., pág. 361) - foi instituído pelo Decreto Regulamentar 58/79, de 25 de Setembro, que, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, lhe atribuiu a competência para «satisfazer as indemnizações de morte ou lesões corporais consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, nos casos previstos no artigo 20.º do

Decreto-Lei 408/79».

Nem todos os danos se encontravam, no entanto, cobertos pelo Fundo de Garantia:

para além das limitações inerentes ao âmbito objectivo de protecção (indemnizações por morte ou lesões corporais em acidentes em que fossem intervenientes veículos sujeitos ao seguro obrigatório), o diploma também previa a existência de certos limites às indemnizações a satisfazer pelo Fundo (artigo 2.º, n.º 3); estipulava diversas exclusões, como, por exemplo, a referente ao condutor do veículo titular da apólice e aos danos causados às pessoas dos autores, cúmplices e encobridores de roubo, furto ou furto de uso de qualquer veículo que intervenha no acidente (artigo 3.º); e determinava que só aproveitavam do benefício do Fundo os lesados por acidentes

ocorridos em Portugal (artigo 4.º).

À delimitação do âmbito de protecção do Fundo (circunscrito como estava aos acidentes provocados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório) não será alheio o próprio regime de financiamento, sabendo-se que constituía receita do Fundo «o montante, a liquidar por cada seguradora, resultante da aplicação de uma percentagem sobre os prémios simples (líquidos de adicionais) de seguros directos automóvel processados no ano anterior, líquidos de estornos e anulações», para o que ficavam «as seguradoras autorizadas a cobrar dos seus segurados do ramo "Automóvel" um adicional, calculado sobre os prémios simples (líquidos de adicionais) [...]» (artigo 6.º, n.º s 1 e 4). E só em situações excepcionais, devidamente comprovadas, o Estado podia assegurar uma dotação correspondente ao montante dos encargos que excedessem as receitas previstas do Fundo" (n.º 5 do mesmo artigo).

A articulação do funcionamento do Fundo de Garantia Automóvel com a actividade seguradora era também revelada pelo estabelecido no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar 58/79, de 25 de Setembro, que habilitava o Fundo a solver eventuais compromissos superiores às suas disponibilidades de tesouraria mediante o recurso às seguradoras, permitindo-lhe arrecadar até ao limite de 0,25 % da carteira de prémios de seguro directo automóvel processados no ano anterior.

O regime jurídico Fundo de Garantia Automóvel viria a ser alterado pelo Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro - o diploma que agora está particularmente em foco - , que, através do seu artigo 40.º, revogou os mencionados Decreto-Lei 408/79 e Decreto Regulamentar 58/79, de 25 de Setembro.

O Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, procedeu ao alargamento do âmbito de responsabilidade civil do Fundo, passando a assegurar também o ressarcimento de danos materiais em relação a acidentes em que o responsável, sendo conhecido, não seja portador de seguro válido e eficaz (cf. o preâmbulo do diploma e o seu artigo 21.º,

n.º 2, alínea b).

Já depois do acidente em causa, mediante o Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, o legislador aproveitou o ensejo proporcionado pela necessidade de transposição da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade resultante da circulação de veículos automóveis (a chamada "5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel") para proceder à actualização do regime de protecção dos lesados por acidentes de viação baseado neste seguro.

Merece referência o facto de o novo regime manter a exclusão da obrigatoriedade do seguro quanto às máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula (artigo 4.º, n.º 2). Mas sobretudo importa destacar que o diploma instituiu, no seu artigo 48.º, n.º 1, alínea c), a regra segundo a qual o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados «[p]or veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo [...]». Essa é uma solução centrada no aumento de protecção dos lesados, que é acompanhada de outras medidas de reforço da responsabilização do Fundo, como seja a extensão da cobertura dos danos materiais nos sinistros causados por responsável desconhecido ou quando tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente (artigo 49.º, alínea c), e que se integra num mais amplo conjunto de alterações justificadas pela necessidade da transposição da Directiva

n.º 2005/14/CE (cf. preâmbulo do diploma).

7. No acórdão 202/2008, o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, interpretada como excluindo a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola não sujeita a matrícula, cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel. Na delimitação do objecto do recurso o Tribunal sublinhou que não estava em causa a norma que dispensa o proprietário de máquinas deste tipo da celebração de contrato de seguro para poder circular na via pública.

Agora, a norma que constitui objecto do recurso de constitucionalidade passou a ser essa mesmo que o Tribunal expressamente salientara estar excluída do âmbito do recurso anterior: a norma do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 522/85, na medida em que excepciona as máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula da obrigação de

segurar.

Mais propriamente, considerando a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade e que existem diversos tipos de máquinas agrícolas, susceptíveis de diferir entre si na aptidão para circular na via pública e na frequência com que aí são habitualmente utilizadas, a questão que agora se coloca é a de saber se é constitucionalmente conforme a própria dispensa da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel em relação a motocultivadores com atrelado. Note-se que o isolamento deste segmento normativo ideal para efeito da delimitação do recurso se justifica também sistematicamente pelo facto de no Código da Estrada, dentro da classe dos veículos agrícolas, os motocultivadores serem objecto

de normação específica.

Sublinhe-se que é a dispensa objectiva da obrigação de segurar a responsabilidade civil emergente de acidentes de circulação em que o veículo esteja envolvido e não o facto de a máquina não estar sujeita a matrícula que fundamentalmente interessa à questão de constitucionalidade. A matrícula (ou a sua não exigência) é apenas o pressuposto ou o elemento que a lei utiliza para delimitar no conjunto das máquinas agrícolas ou industriais aquelas cujo proprietário está obrigado ao seguro (matrícula - > obrigação de seguro - > responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel). Mas o nó do problema de constitucionalidade agora colocado, a deficiência ou a desigualdade de protecção dos lesados em acidentes de viação que envolvam máquinas nesta situação, é a falta do pilar de socialização do risco que o seguro obrigatório constitui.

8. Importa, portanto, saber se a exclusão da obrigação de cobrir por contrato de seguro a responsabilidade que possa advir da circulação na via pública de motocultivadores com atrelado viola o princípio da igualdade, o que implica que se averigúe se essa exclusão da obrigação de segurar poderá ser entendida como medida razoável, racional ou objectivamente fundada.

Como logo se salientou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95 (disponível

em www.tribunalconstitucional.pt):

«O princípio da igualdade reconduz-se [...] a uma proibição de arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais.

A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio

negativo de controle.

Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por ausência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.

Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente imprópria (cf. sobre a matéria, por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República, 2.ª série, de, respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988, e 1.ª série, de, respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, pp. 127 e segs; Jorge Miranda, «O regime dos direitos, liberdades e garantias», Estudos sobre a Constituição, vol. iii, pp. 50 e segs., e Manual de Direito Constitucional, tomo iv, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória Ferreira Pinto, «Princípio da Igualdade - Fórmula Vazia ou Fórmula Consagrada de Sentido?», Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987; Lívio Paladin, Il Princípio costituzionale d'equaglianza, Milão, 1965).» Nesta ordem de considerações tem-se entendido que a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pertencendo-lhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a

tratar igual ou desigualmente.

E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete verdadeiramente «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução «razoável», «justa» e «oportuna» (do que seria a solução ideal do caso); compete-lhes, sim «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de se credenciarem racionalmente» (acórdão da Comissão Constitucional, n.º 458, apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983, pág. 120, também citado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95, que vimos acompanhando).

À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico (nestes precisos termos o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2007 (disponível no mesmo sítio).

Vejamos, então, se a norma em causa passa este teste.

9. O princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, tem ínsito um princípio jurídico fundamental, historicamente objectivado e claramente enraizado na consciência jurídica geral segundo o qual todo e qualquer autor de acto ilícito gerador de danos para terceiros se constitui na obrigação de ressarcir o prejuízo que causou (Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, pág. 442). E o lesado tem o direito correspondente, a exercer contra o autor do facto lesivo ou contra aquele a quem a responsabilidade seja juridicamente

imputável.

Porém, em muitos casos, este direito à reparação dos danos depara-se com uma inultrapassável dificuldade de concretização prática: a inexistência de património do obrigado à reparação susceptível de execução. É, por isso, frequente que o legislador institua o dever de cobrir com um seguro de responsabilidade civil a obrigação de indemnizar que possa estar ligada ao exercício de determinadas actividades potencialmente geradoras de danos para terceiros de modo a que, verificado o evento que obriga à reparação, os lesados possam ter perante si uma entidade cuja solvabilidade esteja, em princípio, garantida (a seguradora) e não (ou não apenas) o lesante cujos acasos de fortuna podem esvaziar de conteúdo prático o direito à

indemnização.

O seguro automóvel obrigatório é precisamente um destes institutos. As regras gerais da responsabilidade civil tornaram-se inidóneas para dar resposta, prática, equitativa e economicamente equilibrada, ao problema da reparação dos danos emergentes de acidentes de viação. Sendo a circulação rodoviária uma das actividades em cujo desenvolvimento mais frequentemente ocorrem acidentes susceptíveis de causar danos pessoais ou patrimoniais a terceiros, ao estabelecer a obrigação de cobrir a responsabilidade civil emergente da circulação de veículos, não deixando a sua sorte ao acaso da previdência dos responsáveis, o legislador protege de modo genérico as potenciais vítimas e futuros titulares do direito à reparação. Protecção que se não resume à mera instituição legal da obrigação de segurar, mas que é reforçada através dos instrumentos destinados a tornar efectivo o cumprimento dessa obrigação, designadamente a acção de fiscalização a cargo das autoridades de fiscalização do trânsito e as correspondentes sanções e medidas cautelares quando o dever é infringido. E que é rematada com a colectivização ou socialização do risco que se obtém mediante a intervenção substitutiva do Fundo de Garantia Automóvel, quando falhe ou não possa funcionar a protecção através do contrato de seguro (Reduzimos a atenção ao essencial. A protecção dos lesados envolve outros aspectos, tais como a "acção directa" contra a seguradora ou o "fundo de garantia", a inoponibilidade de excepções ou cláusulas limitadoras de responsabilidade e a instituição de meios céleres de composição ou de efectivação do direito à indemnização).

Ora, como se refere nas alegações do Ministério Público e na sentença recorrida, embora primacialmente destinadas a trabalhos agrícolas, as máquinas do tipo que originou o acidente a que a acção se reporta circulam frequentemente e sem restrições na via pública, a caminho dos locais onde essa actividade se desenvolve ou, até, como meio de transporte de cargas ou produtos agrícolas, constituindo-se em gravosos obstáculos à segurança e fluidez do tráfego, podendo gerar acidentes com lesões graves e danos avultados, como o caso demonstra. Não será assim quando o motocultivador é conduzido a pé pelo seu manobrador, situação que a lei equipara ao trânsito de peões (artigo 104.º, alínea e) do actual Código da Estrada). Mas já o é quando o veículo é ligado a semi-reboque ou retrotrem, composição que a lei faz equivaler, para efeitos de circulação, a tractor agrícola (cf. artigo 108.º, n.º 4, do mesmo Código). Assim utilizada, a máquina torna-se, pelas suas características intrínsecas de veículo motorizado e pelas contingências de quem a conduz, potencialmente geradora de danos para terceiros que tem um direito igual à utilização

da via pública.

Nestas condições a dispensa da obrigação de celebrar contrato de seguro para que tais máquinas possam circular na via pública deixa os lesados por acidentes decorrentes da utilização desses veículos sem a protecção jurídica que o legislador entendeu conceder aos restantes lesados por acidentes de viação contra as insuficiências de fortuna do

lesante.

E deixa-os sem essa protecção perante situações que em tudo correspondem, seja pela potencialidade de risco de o veículo ser gerador de acidentes, seja de possibilidade de insuficiência económica do responsável para fazer face à obrigação de indemnizar, àquelas que são cobertas pelo regime do seguro obrigatório ao abrigo da regra geral do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei 522/85. O factor escolhido para afastar a sujeição ao seguro obrigatório - não estar o veículo sujeito a matrícula - é estranho à aptidão do veículo para causar danos inerentes à circulação da via pública ou ao risco de o direito à indemnização não ter efectivação prática por insuficiência do património do responsável, pelo que tem de haver-se a excepção por arbitrária e a norma em causa como violadora do princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da

Constituição.

E, embora a matrícula do veículo desempenhe, para vários fins, um papel fundamental na configuração do regime jurídico do seguro obrigatório (no direito nacional e da União Europeia), não pode sequer invocar-se uma dificuldade prática insuperável ou uma ligação indissolúvel entre as duas realidades (o seguro e a matrícula) porque sempre é possível eleger outro sinal identificador que viabilize a celebração do contrato

e a individualização da responsabilidade.

9. Não se ignora que esta dispensa da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil surgiu no Decreto-Lei 165/75, de 28 de Março em cujo preâmbulo se dizia que "... a sujeição ao seguro das máquinas e tractores para serviço na agricultura iria onerar gravemente esta actividade económica". A ressalva passou para o Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro e a razão de ser dela veio a ser reafirmada no texto do preâmbulo do Decreto-Lei 110/80 (que alterou o Decreto-Lei 408/79) onde se alude à agricultura, como um sector produtivo de grande relevância, cujo desenvolvimento deve considerar-se prioritário, e, por isso, se passou a ressalvar também os reboques, semi-reboques e atrelados "quando destinados exclusivamente a fins agrícolas".

Estas razões poderiam legitimar uma solução como a que actualmente consta do Decreto-Lei 291/2007, em que o facto de a admissão do veículo à circulação na via pública não estar dependente da celebração de contrato de seguro obrigatório não exclui a protecção que resulta da possibilidade concedida ao lesado de chamar o Fundo de Garantia Automóvel a satisfazer a indemnização (artigo 48.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 291/2007). Mas, o factor de comparação é o âmbito de protecção concedido aos lesados por acidentes gerados na via pública pela utilização desse tipo de veículos por confronto com outras vítimas de acidentes de viação e, nesta perspectiva, a medida legislativa é desproporcionada no âmbito global do regime do DL 522/85, onde tem como consequência que o lesado também perde, por essa

mesma razão, a acção contra o Fundo.

III. Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 522/85, quando interpretada no sentido de a circulação na via pública de motocultivadores com atrelado não estar dependente da celebração do contrato de seguro obrigatório

previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal;

b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.

c) Sem custas.

Lisboa, 27 de Maio de 2009. - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Carlos Fernandes Cadilha (vencido de acordo com a declaração em anexo) - Gil Galvão (vencido conforme declaração junta).

Declaração de voto

Votei vencido pelas considerações a seguir sucintamente expostas.

A norma do artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, ao isentar de seguro obrigatório as «máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula» contém uma implícita remissão para o artigo 117.º, n.º 3, do Código da Estrada, onde se estabelece o regime de obrigatoriedade de matrícula nos seguintes termos: «[o]s casos em que as máquinas agrícolas e industriais, os motocultivadores e os tractocarros estão sujeitos a matrícula são fixados em regulamento».

O preceito não contém, em si, um critério normativo arbitrário, e tem antes como pressuposto que a dispensa da obrigação de segurar apenas opera em relação a máquinas agrícolas que não circulem na via pública ou não representem um potencial risco para a circulação, e que, por isso, se encontrem isentas de matrícula.

Neste contexto, a possível violação do princípio da igualdade, por diferenciação de tratamento sem justificação razoável, apenas poderia incidir sobre os dispositivos regulamentares que, em execução do disposto no artigo 117.º, n.º 3, do Código da Estrada, viessem afastar a exigência de matrícula (e, por via disso, a obrigação de segurar) em relação a máquinas que possuíssem normal aptidão para produzir danos em terceiros em resultado da sua circulação na via pública.

Na própria lógica do acórdão, a violação da proibição do arbítrio decorre de o legislador ter deixado sem protecção jurídica os lesados por acidentes de viação causados por máquinas não sujeitas a matrícula, quando estas, por circularem na via pública, possam potenciar um risco de lesão em igual medida à de qualquer outro veículo matriculado. A questão é que, no preceito em causa, o legislador se limitou a utilizar uma técnica legislativa de remissão intra-sistemática (que permite caracterizar o artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 522/85 como uma norma indirecta), de tal modo o défice de constitucionalidade que possa existir não é directamente imputável à própria norma remissiva, mas tão só, se for caso disso, à norma ad quam, isto é, à estatuição para que tenha sido reenviada a solução normativa do caso.

O factor escolhido pelo artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 522/85 - não sujeição a matrícula - não comporta, em si, uma qualquer diferenciação entre situações que devam merecer um tratamento igualitário. Essa eventualidade apenas ocorreria caso a densificação do regime de obrigatoriedade de matrícula (a efectuar por norma contida noutro diploma legal) viesse a consagrar soluções jurídicas divergentes para veículos que pudessem potenciar, em iguais circunstâncias, o risco de acidente e de produção

de danos indemnizáveis.

E sublinhe-se que a invocação da remissão feita na referida norma para o direito estradal, não implica uma qualquer alteração do objecto do recurso. A questão de constitucionalidade não deixa de ser reportada à dispensa de obrigação de segurar que resulta do estabelecido no artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 522/85. O ponto é que, como se esclareceu, esta norma não contém um programa legislativo completo, e antes pretende concretizar o regime jurídico de não sujeição a seguro por remissão para um outro diploma legislativo que há-de definir as situações em que é obrigatória a matrícula para que os veículos a motor e os seus reboques sejam admitidos em circulação.

Por outro lado, nada permite concluir, no caso concreto, pela violação do princípio da responsabilidade patrimonial, que se extrai do princípio de Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição. Na verdade, a situação de indefinição relativamente à obrigação de segurar (e consequente intervenção do Fundo de Garantia Automóvel) no tocante a máquinas agrícolas que possam circular na via pública, como é o caso dos motocultivadores, deve-se à inércia regulamentar do Estado, que não deu ainda execução ao comando contido no artigo 117.º, n.º 3, do Código da Estrada. Por conseguinte, o dever indemnizatório é imputável, em última instância, à ilegalidade decorrente da omissão regulamentar. - Carlos Alberto Fernandes Cadilha.

Declaração de voto

Votei vencido quanto à decisão, no essencial, por duas ordens de razões: em primeiro lugar, por considerar que, não postulando a Constituição, necessariamente, a existência de um seguro obrigatório para todos os veículos que circulem na via pública, não me parecer possível considerar inconstitucional uma norma apenas por não fazer depender a «circulação na via pública de motocultivadores com atrelado» da celebração do contrato de seguro obrigatório; por outro, por considerar que, havendo boas razões para excluir esses motocultivadores do referido seguro obrigatório - como, aliás, sucede com o regime actualmente em vigor -, não se me afigurar arbitrária, e consequentemente violadora do princípio da igualdade, a não sujeição de tais motocultivadores ao mencionado seguro. - Gil Galvão.

201978478

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/07/07/plain-256321.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/256321.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1975-03-28 - Decreto-Lei 165/75 - Ministérios da Justiça e das Finanças

    Torna obrigatório o seguro de responsabilidade civil automóvel .

  • Tem documento Em vigor 1979-09-25 - Decreto-Lei 408/79 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Tesouro

    Institui o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

  • Tem documento Em vigor 1979-09-25 - Decreto Regulamentar 58/79 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Tesouro

    Institui o Fundo de Garantia Automóvel, integrado no Instinto Nacional de Seguros.

  • Tem documento Em vigor 1980-05-10 - Decreto-Lei 110/80 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Tesouro

    Dá nova redacção à alínea b) do n.º 6 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro (seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel).

  • Tem documento Em vigor 1985-12-31 - Decreto-Lei 522/85 - Ministério das Finanças

    Revê o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

  • Tem documento Em vigor 1985-12-31 - Decreto-Lei 525/85 - Ministério da Indústria e Comércio

    Adequa o regime petrolífero português às normas da Comunidade Económica Europeia.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-21 - Decreto-Lei 291/2007 - Ministério das Finanças e da Administração Pública

    Transpõe parcialmente para ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE (EUR-Lex), 84/5/CEE (EUR-Lex), 88/357/CEE (EUR-Lex) e 90/232/CEE (EUR-Lex), do Conselho, e a Directiva 2000/26/CE (EUR-Lex), relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis («5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel»).

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2021-07-06 - Acórdão do Tribunal Constitucional 272/2021 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rut (...)

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