Esta deliberação tinha decidido desfavoravelmente um pedido de informação prévia, anteriormente apresentado pelo Autor, em 5 de Junho de 2001, sobre a viabilidade de reconstrução e ampliação da sua casa de habitação, inserida em área incluída na Reserva Ecológica Nacional - nomeadamente por confrontar com o rio Vouga - , tendo em vista a respectiva utilização e exploração como casa de hóspedes.
Após recurso interposto pelo Autor a referida sentença viria a ser integralmente confirmada por acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido em 28 de Fevereiro de 2008, com a seguinte fundamentação, na parte que ora releva:
"[...] O acto impugnado nos presentes autos é a deliberação tomada pela CMSPS na sua reunião de 13 de Abril de 2004, com fundamento num parecer jurídico, que reconheceu o deferimento tácito do pedido formulado pelo recorrente, e simultaneamente declarou nulo tal deferimento por violação do artigo 68.º alínea a) do Regulamento do Plano Director Municipal de S. Pedro do Sul, já que o mesmo consistia em alterar o uso da habitação.
A decisão recorrida julgou improcedente a acção interposta e é contra esta que o recorrente se insurge, imputando-lhe vários vícios de violação de lei, todos eles tendo por essência o facto de "casa de hóspedes" não significar "alteração ao uso" em relação a casa de habitação - artigos 2.º, alínea b) do Regulamento Municipal de S. Pedro do Sul, 9.º do Cód. Civil, 68.º, alínea a) do RPDM, 61.º, 62.º e 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP.
Mas antes de mais, importa referir que é o próprio recorrente no pedido de informação prévia para construção de "casa de hóspedes" apresentado ao Presidente da Câmara Municipal de S. Pedro do Sul, na memória descritiva e justificativa apresentada que classifica o seu prédio urbano, como inserido em zona de Reserva Ecológica Nacional, facto relevante para a decisão a proferir.
Assim a delimitação do objecto do recurso consiste propriamente em saber se no caso concreto estamos perante uma alteração ao uso, nos termos previstos no artigo 68.º do PDM de S. Pedro do Sul.
Pretende o recorrente, no essencial, que se equiparem duas noções semânticas:
casa de habitação e casa de hóspedes.
Porém, sem êxito.
Na verdade encontrando-se o seu prédio inserido em zona de REN há que ter em conta o que a este respeito consagra o regulamento do PDM de S. Pedro do Sul (que em conjunto com a carta de ordenamento constituem o conjunto de normas que definem a utilização do espaço do Concelho, "nele se definindo de forma genérica os diversos tipos de espaços e as funções que lhe estão atribuídas, condicionando os usos de forma a proporcionar um desenvolvimento equilibrado do Concelho").Dispõe o artigo 2.º deste Regulamento que o mesmo é "aplicável a todas as acções de informação, aprovação ou licenciamento de construções, reconstruções, recuperações, ampliações, alterações de uso, destaque de parcelas, loteamentos, obras de urbanização e qualquer outra acção que tenha como objectivo ou consequência a transformação do revestimento ou do relevo do solo".
E, determina o artigo 68.º, alínea a) da Resolução do Conselho de Ministros, que ratificou o Plano Director Municipal de S. Pedro do Sul que "as construções existentes em áreas de RAN ou REN poderão ser objecto de obras de reparação, reconstrução e ampliação desde que não haja alteração de uso".
Assim temos por assente que as construções existentes em áreas de RAN ou REN poderão ser objecto de obras de reparação, reconstrução e ampliação desde que:
a) Não haja alteração do uso;
b) A área coberta não seja ampliada mais de 30 %, incluindo anexo e garagens.Por seu turno, o artigo 4.º, n.º 1 do DL n.º 93/90, de 19/03, que revê o regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional estabelecido pelo Decreto-Lei 321/83 de 05/07, dispõe que "nas áreas incluídas na REN são proibidas acções de iniciativa pública ou privada que se traduzam em operações de loteamento obras de urbanização, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação, aterros, escavações e destruição do coberto vegetal".
E, o artigo 15.º do mesmo diploma legal prevê que "são nulos e nenhum efeito os actos administrativos que violem os artigos 4.º e 17.º".
Com efeito, resultava já do preâmbulo do DL n.º 312/83 de 05/07 diploma que regulamentava a REN que "a expansão de áreas urbanas, afecta[ndo] gravemente a estabilidade ecológica das regiões".
E do preâmbulo do DL 93/90 de 19/03, que regulamenta actualmente a mesma Reserva, resulta que se visa "possibilitar a exploração dos recursos e a utilização do território com salvaguarda de determinadas funções e potencialidades, de que dependem o equilíbrio ecológico e a estrutura biofísica das regiões, bem como a permanência de muitos dos seus valores ecológicos, sociais e culturais.
As zonas costeiras e ribeirinhas, onde se verifica a existência de situações de interface entre ecossistemas contíguos mas distintos, são caracterizadas por uma maior diversidade e raridade de factores ecológicos presentes e, simultaneamente, por uma maior fragilidade em relação à manutenção do seu equilíbrio. Estas características, que, em conjunto, conferem àquelas zonas um ambiente de excepcional riqueza, são, também por isso, responsáveis por um maior procura pelas diversas actividades, o que está na origem de enormes pressões a têm vindo a estar sujeitas".
Daí que se perceba agora a redacção do artigo 4.º, n.º 1, e 15.º deste diploma legal.
Por seu turno, o artigo 103.º do DL n.º 380/99 de 22/09, que estabeleceu o regime dos instrumentos de gestão territorial, determina que "são nulos os actos praticados, em violação de qualquer instrumento de gestão territorial aplicável".
O artigo 79.º do DL n.º 55/02, de 11/03, que alterou o DL n.º 167/97 de 04/07, que aprovou o regime jurídico da instalação e funcionamento dos empreendimentos turísticos destinados à actividade de alojamento turístico, estabelece que é da competência das assembleias municipais sob proposta do presidente da Câmara a regulamentação da instalação, exploração e funcionamento dos estabelecimentos de hospedagem, designados por hospedarias e casas de hóspedes e por quartos particulares.
O Regulamento Municipal de Instalação e Funcionamento dos Estabelecimentos de Hospedagem do Concelho de S. Pedro do Sul, encontra-se publicado no apêndice n.º 51 da 2.ª série do Diário da República de 04/04/2000.
No artigo 2.º, alínea b), do mencionado regulamento, um dos tipos de estabelecimento de hospedagem expressamente previsto é a "casa de hóspedes".
São casas de hóspedes os estabelecimentos integrados em edifícios de habitação familiar, que disponham de quatro até oito unidades de alojamento, e que se destinem a proporcionar, mediante remuneração, alojamento e outros serviços complementares e de apoio a utentes" (artigo 4.º).
E é à luz do DL n.º 55/02, de 11/03 que alterou o DL n.º 167/97, de 04/07 (supra referido) que aprovou o regime jurídico da instalação e funcionamento dos empreendimentos turísticos destinados à actividade de alojamento turístico, que se irá decidir a questão trazida a juízo, para se concluir que estamos perante realidades distintas quando falamos de casa de habitação ou casa de hóspedes, independentemente de ambas servirem para habitar.
Mas, as casas de hóspedes estão intimamente ligadas ao turismo de habitação, que desde há uns anos atrás pretendeu fazer concorrência a outras unidades hoteleiras, precisamente pelo facto de permitirem um contacto mais próximo com a natureza, vegetação, animais e cursos de água, e com determinado aglomerado populacional, inserido em meios rurais ou pelo menos no interior do país, funcionando o seu incremento como um dos incentivos financeiros (quer nacional quer comunitário) para impedir a desertificação de algumas zonas do interior do país, beneficiando por isso de subsídios financeiros ou créditos a baixo custo.
No entanto, é evidente que um hotel, uma residencial, uma hospedaria, estalagem ou casa de hóspedes, visam todos, numa primeira linha, a habitação daqueles que procuram estas unidades hoteleiras, variando depois os serviços, instalações e actividades, em função das aptidões que cada uma destas unidades pode oferecer, quer pela sua localização, quer pela sua qualidade e finalidade de prestação de serviços.
Ou seja: não é correcto pretender como faz o recorrente equiparar casa de habitação a casa de hóspedes, pois esta caracteriza-se como uma verdadeira unidade hoteleira de prestação de serviços e não como uma mera casa de habitação, independentemente do n.º do agregado familiar e das actividades que cada membro da família lá desenvolve, ou até de eventual remuneração se o dono da casa assim o entender no seio familiar ou nos termos legalmente previstos na Lei do Arrendamento Urbano.
Há, pois, que ter em consideração que uma coisa é construir, reconstruir ou, ampliar uma habitação unifamiliar e, outra bem distinta é a construção, reconstrução ou ampliação de uma casa unifamiliar a que se pretende dar um uso hoteleiro, com aptidão para receber hóspedes em contrapartida de um serviço complementar de alimentação e actividades lúdicas/lazer remuneradas; e nem se diga que numa habitação unifamiliar também se recebem pessoas, familiares, amigos ou não, a quem igualmente são servidas refeições e a quem se permite a utilização de todos os espaços e actividades que o dono da casa puder proporcionar, uma vez que, falar assim é tentar confundir conceitos linguísticos que neste caso concreto, são bem distintos.
Uma coisa é uma habitação unifamiliar, outra é uma indústria ou empreendimento de cariz turístico/hoteleiro.
E a "casa de hóspedes" que o recorrente pretendia ver construída, inserida num terreno abrangido por REN significa efectivamente alteração ao uso (até porque resulta da matéria de facto provada que a casa. cuja ampliação se pretende, nem estava sequer a ser habitada).
Deste modo, a sentença recorrida não incorreu em nenhum erro de julgamento, nem se mostram violadas as disposições legais alegadas pelo recorrente, pois, outra não podia ser a interpretação e, deste modo, o enquadramento jurídico.
Com efeito, só a interpretação que supra se deixou exposta, se enquadra no disposto no artigo 9.º do Cód. Civil que prevê expressamente que se tenha em conta, na reconstituição do pensamento legislativo, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Refira-se inclusive, que a "troca" de vocábulos de que o recorrente se socorre, é que levaria a uma interpretação descontextualizada e sem um mínimo de correspondência na letra e espírito da lei.
Na verdade se o legislador não quisesse distinguir habitação unifamiliar de casa de hóspedes, não teria procedido à definição desta e à sua autonomização no âmbito do regulamento do PDM.
Igualmente não se verifica violação do direito de propriedade privada e da iniciativa económica, nem violação dos princípios da confiança, nos termos alegados pelo recorrente, dado que, o seu direito de propriedade continua inatacável no seu conteúdo mais específico, sem qualquer restrição; o que já não sucede quando se pretende fazer uso deste direito de propriedade para pôr em causa normas de ordenamento do território, de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, que visam um desenvolvimento equilibrado em termos paisagísticos e socio-económicos.
A tudo isto acresce que a consagração de que o direito constitucional da propriedade privada e suas decorrências como sejam o direito à habitação que preserve a utilização e uso da mesma garantido pela Constituição não têm natureza de um direito absoluto, devendo, antes, sofrer as restrições necessárias para assegurar a satisfação de outros direitos ou interesses também constitucionalmente garantidos, como sejam o direito a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado que o direito urbanístico visa salvaguardar.
E, não sendo o direito de propriedade absoluto e irrestrito, podendo estes sofrer condicionamentos, designadamente, em matéria de urbanismo e construção, resulta evidente que não assiste razão ao recorrente nos vícios que imputa à decisão recorrida, improcedendo por isso o recurso, em todas as suas vertentes - cf. entre muitos outros, os Acs. do STA de 02-07-2002, in rec. n.º 048390, de 03-12-2002, in rec. no 047859, de 11-01-2005, in rec. n.º 0528/03, de 02-03-2004, in rec. n.º 048296, referindo-se neste último expressamente: "O direito de propriedade não é um direito absoluto, podendo comportar limitações, restrições ou condicionamentos, particularmente importantes no domínio do urbanismo e do ordenamento do território, em que o interesse da comunidade tem é sobrelevar o do indivíduo". [...]».
O Autor interpôs então recurso desta última decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), requerendo - após ter havido lugar a convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso - , a fiscalização concreta da constitucionalidade da norma constante do artigo 68.º, alínea a), do Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul, aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro, na interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação, existente em área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes, consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de obras de reconstrução e ampliação na casa em questão.
Posteriormente, o Recorrente apresentou as respectivas alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
"[...] 1/ A norma do artigo 68.º alínea a) do Regulamento do PDM de S. Pedro do Sul é inconstitucional por violação dos artigos 165.º n.º 1 alínea b) e g) e 198.º n.º 1 alínea c), ambos da CRP dado que compete à Assembleia ou ao Governo, conforme os casos, legislar sobre as restrições ou proibições impostas aos imóveis situados em área da REN e da RAN.
2/ A entender-se que era legítimo ao Município de S. Pedro do Sul a aprovação de tal norma sempre a mesma seria inconstitucional por violação dos artigos 18.º, 61.º e 62.º da CRP por restringir de forma desproporcionada a faculdade de fruição do edifício que faz parte integrante do conteúdo do direito de propriedade deste.
3/ Seria, ainda, inconstitucional por violação das mesmas normas constitucionais, a norma do artigo 68.º alínea a) do mesmo regulamento na interpretação dada pelo Tribunal Central Administrativo do Norte no sentido de que não é permitido efectuar obras de reparação e ampliação em edifício quando destas resulte a alteração de uso de habitação unifamiliar para habitação de hóspedes."
O Recorrido apresentou contra-alegações, concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente, por não se verificar qualquer violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alíneas b), e g), 198.º, n.º 1, alínea c), 18.º, 61.º e 62.º da CRP.
Fundamentação. - 1 - Da delimitação do objecto do recurso. - O presente recurso de constitucionalidade versa a matéria delicada das restrições existentes em sede de construção imobiliária nas áreas incluídas na Reserva Ecológica Nacional, nomeadamente as restrições existente nessa matéria que derivam do poder regulamentar autárquico.
A alínea a), do artigo 68.º, do Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul, aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro, dispõe que "as construções existentes em áreas de RAN ou REN poderão ser objecto de obras de reparação, reconstrução e ampliação desde que não haja alteração de uso".
Esta norma foi aplicada como ratio decidendi pelo tribunal a quo na interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação, existente em área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes, consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de obras de reconstrução na casa em questão.
No requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, o Recorrente requereu a fiscalização concreta da constitucionalidade material da referida norma na sua dimensão total, isto é, sem quaisquer restrições de ordem hermenêutica.
Contudo, como o Recorrente tinha anteriormente suscitado, nas alegações oferecidas junto do tribunal a quo, a inconstitucionalidade material da aludida dimensão interpretativa da mesma norma, e apenas dessa interpretação normativa, houve lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso com vista à concretização inequívoca do objecto normativo a fiscalizar em sede de recurso de constitucionalidade.
Na sequência desse convite, o Recorrente veio oportunamente esclarecer que pretendia apenas a fiscalização da norma constante do artigo 68.º, alínea a), do Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul, aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro, na interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação, existente em área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes, consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de obras de reconstrução e ampliação na casa em questão.
As dúvidas existentes ficaram esclarecidas e os autos prosseguiram para a fase de produção das pertinentes alegações.
Todavia, ao concluir as respectivas alegações, nos precisos termos acima transcritos, a verdade é que o Recorrente viria a ampliar o objecto do presente recurso de constitucionalidade, ao recuperar o pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade material da referida norma na sua dimensão total.
Esta ampliação, obviamente, não será conhecida na medida em que o objecto do recurso cristaliza-se no requerimento de interposição ou no de correcção deste, ficando, assim, aquele objecto circunscrito à apreciação da constitucionalidade da referida interpretação normativa, isto é, da norma constante do artigo 68.º, alínea a), do Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul, aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro, na interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação, existente em área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes, consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de obras de reconstrução e ampliação na casa em questão.
2 - Do conhecimento das questões de constitucionalidade
2.1 - Da inconstitucionalidade orgânica
Conforme acabou de se escrever, a alínea a), do artigo 68.º, do Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul (RPDM/SPS), aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro, dispõe que "as construções existentes em áreas de RAN ou REN poderão ser objecto de obras de reparação, reconstrução e ampliação desde que não haja alteração de uso".Esta norma foi aplicada como ratio decidendi pelo tribunal a quo, na interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação, existente em área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes, consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de obras de reconstrução e ampliação na casa em questão.
O recorrente entende que a referida norma constante do RPDM/SPS - e, por consequência, a respectiva interpretação, que aqui é directamente posta em crise - se encontra ferida de inconstitucionalidade orgânica na medida em que estão em causa matérias que integram a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nomeadamente as previstas nas alíneas b) e g), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), ou, pelo menos, a reserva de competência legislativa dependente do Governo, desta feita a prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 198.º, da C.R.P.
A alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P., dispõe que, salvo autorização ao Governo, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre direitos, liberdades e garantias.
A alínea g), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P., dispõe que, salvo autorização ao Governo, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural.
Por seu turno, a alínea c), do n.º 1, do artigo 198.º, da C.R.P., dispõe que compete ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes contidos em leis que a eles se circunscrevam.
Quando o regulamento em apreço foi ratificado pelo Governo, estava em vigor a Constituição da República Portuguesa com a redacção introduzida pela Lei Constitucional 1/92, e as referidas normas constitucionais constavam, respectivamente, com a mesma redacção, da alínea b), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P. (renumerado para artigo 165.º com a Revisão Constitucional de 1997), da alínea g), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P. (renumerado para artigo 165.º com a Revisão Constitucional de 1997) e da alínea c), do n.º 1, do artigo 201.º da CRP (renumerado para artigo 198.º com a Revisão Constitucional de 1997).
Assim sendo, e devendo a inconstitucionalidade orgânica ser aferida em função das normas constitucionais em vigor ao tempo em que foram editadas as normas que, porventura, padeçam desse vício (princípio do tempus regit actum), importará apreciar a inconstitucionalidade orgânica das normas questionadas à luz do regime constante da Constituição da República Portuguesa com a redacção introduzida pela Lei Constitucional 1/92.
Todavia, note-se que não se está propriamente perante um problema de inconstitucionalidade pretérita pós-constitucional na medida em que os parâmetros constitucionais não chegaram a ser revogados e mantiveram-se na Constituição com a mesmíssima redacção não obstante a alteração da numeração dos artigos em questão.
Antes de apreender o alcance das referidas normas constitucionais sobre reserva de competência legislativa e mesmo de outras que o caso concreto convoque, importa começar por recuperar o contexto normativo infraconstitucional em que emergiu a norma fiscalizada.
A norma sob apreciação consta do Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul, aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro.
O regime legal então vigente sobre elaboração, aprovação e ratificação dos planos municipais de ordenamento do território constava essencialmente do Decreto-Lei 69/90, de 2 de Março, na redacção dada pelo Decreto-Lei 211/92, de 8 de Outubro (posteriormente revogado pelo Decreto-Lei 380/99, de 22 de Setembro, actual regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial).
Nos termos do referido diploma legal, os planos directores municipais, que devem abranger todo o território municipal, são elaborados pela Câmara Municipal, aprovados pela assembleia municipal e ratificados pelo Governo mediante resolução do Conselho de Ministros (artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 3.º, n.º 1, 2 e 3).
A elaboração, aprovação e execução dos planos municipais em geral são operadas por forma a garantir, inter alia, a aplicação das disposições legais e regulamentares vigentes e dos princípios gerais de disciplina urbanística e de ordenamento do território (artigo 5.º, n.º 1, alínea a)), a compatibilização da protecção e valorização das zonas agrícolas e florestais e do património natural e edificado, com a previsão de zonas destinadas a habitação, indústria e serviços (artigo 5.º, n.º 1, alínea c) e a salvaguarda dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (artigo 5.º, n.º 1, alínea e)).
Sem perder de vista esses princípios legais norteadores, os planos municipais têm de definir e estabelecer os princípios e regras para a ocupação, uso e transformação do solo na área abrangida (artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 9.º, n.º 1).
Em especial, o plano director municipal, enquanto regulamento administrativo, estabelece uma estrutura espacial para o território do município, a classificação dos solos, os perímetros urbanos e os indicadores urbanísticos, tendo em conta os objectivos de desenvolvimento, a distribuição racional das actividades económicas, as carências habitacionais, os equipamentos, as redes de transportes e de comunicações e as infra-estruturas (artigos 4.º e 9.º, n.º 2).
A norma do RPDM/SPS sob apreciação respeita à construção imobiliária em áreas de RAN ou REN, o que, desde logo, coloca em evidência a questão da necessidade da conformidade formal desse plano municipal com as disposições legais e regulamentares das Reservas Agrícolas e Ecológica Nacionais, recaindo, obviamente, neste momento, a atenção deste Tribunal exclusivamente no regime jurídico da REN.
Quando o plano municipal dos autos foi aprovado, o regime jurídico da REN constava do Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, na redacção dada pelos Decretos-Lei 316/90, de 13 de Outubro, e n.º 213/92, de 12 de Outubro.
Nos termos do referido diploma legal, a REN constitui uma estrutura biofísica básica e diversificada que, através do condicionamento à utilização de áreas com características ecológicas específicas, garante a protecção de ecossistemas e a permanência e intensificação dos processos biológicos indispensáveis ao enquadramento equilibrado das actividades humanas (artigo 1.º).
Com relevância para o caso concreto, importa ter presente que a REN abrange as zonas costeiras e ribeirinhas, águas interiores, áreas de infiltração máxima e zonas declivosas, competindo a determinados membros do Governo a aprovação, por portaria conjunta, das áreas a integrar e a excluir da REN (artigos 2.º e 3.º, n. 1). Posteriormente, as áreas integradas na REN são especificamente demarcadas em todos os instrumentos de planeamento que definam ou determinem a ocupação física do solo, designadamente planos regionais e municipais de ordenamento do território (artigo 10.º).
A integração de certa área na REN é acompanhada de consequências jurídicas nada despiciendas no plano da ocupação, uso e transformação do solo na área abrangida.
Na verdade, nas áreas incluídas na REN são proibidas as acções de iniciativa pública ou privada que se traduzam em operações de loteamento, obras de urbanização, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação, aterros, escavações e destruição do coberto vegetal (artigo 4.º, n.º 1).
Todavia, esta proibição não é absoluta na medida em que o regime jurídico da REN continua a permitir nas aludidas áreas: a) a realização de acções já previstas ou autorizadas à data da entrada em vigor da portaria conjunta de delimitação das áreas a integrar na REN; b) as instalações de interesse para a defesa nacional como tal reconhecidas pelos membros do Governo competentes; c) e a realização de acções de interesse público como tal reconhecidas pelos membros do Governo competentes (artigo 4.º, n.º 2).
Após este breve excurso pelo quadro legal infraconstitucional existente no momento da aprovação do RPDM/SPS, interessa agora verificar se o Município de São Pedro do Sul invadiu a esfera de reserva de competência legislativa de qualquer órgão de soberania.
A norma sobre a qual recaiu a interpretação a fiscalizar, aprovada pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul, dispõe que "as construções existentes em áreas de RAN ou REN poderão ser objecto de obras de reparação, reconstrução e ampliação desde que não haja alteração de uso".
Não restam dúvidas de que quando o referido órgão autárquico emitiu a referida norma, fê-lo ao abrigo das normas de competência previstas na Lei 69/90, que atribuem competência à assembleia municipal para definir e estabelecer os princípios e as regras para a ocupação, uso e transformação do solo na área do município (artigos 3.º, n.º 2, 5.º, n.º 2, alínea a), e 9.º, n.º 1).
Contudo, não obstante o aludido regime jurídico ditado pela lei ordinária, o problema situa-se precisamente no plano constitucional, devendo a questão a resolver ser formulada nos seguintes termos: as assembleias municipais têm competência, à luz da Constituição, para definir e estabelecer regras para a ocupação, uso e transformação do solo na área dos respectivos municípios, como efectuou a Assembleia Municipal de São Pedro do Sul no caso sub iudice? As matérias respeitantes ao poder local e ao urbanismo são obviamente merecedoras de tratamento constitucional.
De acordo com a Lei Fundamental, a organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais, as quais visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (artigo 237.º, da C.R.P./92).
Efectivamente, não obstante ser unitário, o Estado não pode deixar de respeitar na sua organização o princípio da autonomia das autarquias locais (artigo 6.º, n.º 1, da C.R.P./92).
As atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa (artigo 239.º, da C.R.P./92).
Para assegurar a prossecução das atribuições das autarquias locais, a Lei Fundamental atribuiu-lhes poder regulamentar próprio nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar (artigo 242.º, da C.R.P./92).
Vejamos, sucessivamente, cada um dos alegados fundamentos de inconstitucionalidade orgânica.
Nos termos da alínea g), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P./92, salvo autorização ao Governo, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural.
É verdade que a matéria respeitante à "definição e estabelecimento de regras para a ocupação, uso e transformação do solo" pode integrar a referida competência legislativa parlamentar, na parte em que aquele sistema de protecção ambiental e cultural necessite de introduzir constrangimentos aos poderes inerentes ao direito de propriedade sobre imóveis.
Porém, nesta situação de reserva de lei está apenas em causa uma reserva de densificação parcial, na medida em que a lei apenas tem de definir as "bases", daquele sistema de protecção, consentindo o seu desenvolvimento quer através de Decreto-Lei, quer através de actos regulamentares (vide J. Gomes Canotilho, em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pág. 728, da 7.ª Edição, da Almedina).
Apenas está reservado à Assembleia da República estabelecer as opções político-legislativas fundamentais, o quadro dos princípios básicos que presidirão à disciplina jurídica daquela matéria, cuja conformação e desenvolvimento competirá a outros órgãos constitucionais.
A norma do RPDM/SPS sob apreciação no presente recurso estabelece uma determinada limitação para a realização de obras em construções existentes nas áreas de RAN e REN situadas no território do município de São Pedro do Sul, pelo que tem um tal nível de concretização que manifestamente a exclui do campo dos grandes princípios e das directrizes fundamentais das políticas de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural, pelo que não apresenta vocação para constar da lei de bases do ambiente.
Assim sendo, torna-se evidente que a Assembleia Municipal de São Pedro do Sul não invadiu nesta parte a reserva relativa de competência legislativa prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P./92.
Importa agora verificar se a Assembleia Municipal de São Pedro do Sul aprovou uma norma em matéria de direitos, liberdades e garantias, em termos de ofender a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República imposta na alínea b), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P./92.
O tipo de prescrições em que se insere a norma aqui em análise coloca necessariamente em evidência a função de conformação do direito à propriedade do solo que é associada por alguns autores aos planos territoriais quando estes apresentam suficiente especificidade para conterem indicações sobre o destino das áreas singulares, como sucede no caso dos planos municipais, nos quais se encontra a resposta à questão de saber se, numa concreta parcela de terreno, é possível construir (vide Alves Correia, em Manual de Direito do Urbanismo, pág. 330-331, do volume I, 3.ª Edição, da Almedina).
O artigo 62.º, n.º 1, da C.R.P., consagra precisamente a garantia da propriedade privada, ao estabelecer que "a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte nos termos da Constituição".
Apesar do direito à propriedade privada ser considerado um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nos termos do artigo 17.º, da C.R.P., mesmo admitindo que esta equiparação abrange as regras orgânicas (vide, negando essa possibilidade, Jorge Miranda, em Constituição Portuguesa Anotada, t. I, pág. 146, da ed. de 2005, da Coimbra Editora) e ainda que o ius aedificandi, incluindo o direito de realizar obras de alteração em construção já existente, constitui parte componente do direito constitucional à propriedade privada por ser um dos poderes em que tal direito se desdobra (vide, opinando em sentido contrário, Rogério Soares, em "Direito Administrativo (Lições ao Curso Complementar de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito de Coimbra no ano lectivo de 1977/1978), pág. 116-117, Alves Correia, em "O plano urbanístico e o princípio da igualdade", pág. 348 e seg., da ed. de 1989, da Almedina, e em "Manual de direito do urbanismo", vol. I, pág. 697, da 3ª ed., da Almedina, Gomes Canotilho e Vital Moreira, em "Constituição da República Portuguesa anotada", vol. 1.º, pág. 804, da 4ª ed., da Coimbra Editora, e Jorge Miranda, na ob. cit., pág. 627-628), daí não resulta que toda a normação reguladora do direito de propriedade haja de ser produzida ou autorizada pela Assembleia da República.
Na verdade, só se justifica que integrem a reserva parlamentar as intervenções legislativas que respeitem às dimensões do direito de propriedade que tiverem uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pois só nessas matérias tem pertinência a aplicação do regime destes.
Ora, conforme se afirmou nos acórdãos deste Tribunal n.º 329/99 e 544/2001 (publicados, respectivamente, no B.M.J. n.º 488, pág. 57, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51.º vol., pág. 561), se o direito duma pessoa não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública e mediante o pagamento de uma justa indemnização, integra essa dimensão nuclear do direito de propriedade, já as diversas faculdades integrantes do chamado ius aedificandi, por não serem essenciais à realização do Homem como pessoa, não têm uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias.
Por isso a norma aqui em questão, limitativa do direito do proprietário em realizar obras de alteração em construções que lhe pertencem, não se pode considerar abrangida pela reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República imposta na alínea b), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P./92.
O recorrente fundamenta ainda a invocada inconstitucionalidade orgânica numa reserva legislativa do Governo resultante do disposto no artigo 201.º, n.º 1, c), da C.R.P./92 (actual 198.º).
Estabelece este artigo que compete ao Governo, no exercício de funções legislativas fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam.
Estamos perante uma competência dependente, cujo exercício está condicionado pela existência duma lei de bases que careça de desenvolvimento legislativo, sendo certo que quando o RPDM/SPS foi aprovado, encontrava-se em vigor uma lei de bases do ambiente (a Lei 11/87, de 7 de Abril).
Nos termos da referida lei, "a defesa e valorização do solo como recurso natural determina a adopção de medidas conducentes à sua racional utilização, a evitar a sua degradação e a promover a melhoria da sua fertilidade e regeneração, incluindo o estabelecimento de uma política de gestão de recursos naturais que salvaguarde a estabilidade ecológica e os ecossistemas de produção" (artigo 13.º, n.º 1).
Mais ali se prescreve que "a utilização e a ocupação do solo para fins urbanos e industriais ou implantação de equipamentos e infra-estruturas serão condicionadas pela sua natureza, topografia e fertilidade" (artigo 13.º, n.º 5).
Para prosseguir esses fins, a reserva ecológica nacional e os planos directores municipais - acima descritos nos seus traços essenciais - constituem instrumentos da política de ambiente e do ordenamento do território, devendo o Governo e a administração regional e local articular entre si a implementação das medidas necessárias no âmbito das respectivas competências (artigo 27.º, n.º 1, alíneas d), e)).
Segundo o legislador constituinte, para além do Estado, compete também às regiões autónomas e às autarquias locais exercer o efectivo controlo do parque imobiliário, proceder às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definir o respectivo direito de utilização (artigo 65.º, n.º 4, da C.R.P./92).
A problemática da repartição de competências normativas entre os órgãos de soberania com competência legislativa e as autarquias locais é resolvida através da ideia da intervenção concorrente do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais (vide Alves Correia, em Manual de Direito do Urbanismo, volume I, pág. 131 e seg., da 3ª ed., da Almedina).
As razões para este condomínio de interesses estaduais e locais em matéria de urbanismo são fáceis de entender.
Como observa Alves Correia - inspirado nas reflexões de Vieira de Andrade (expostas em "Autonomia regulamentar e reserva de lei - Algumas reflexões acerca da admissibilidade de regulamentos das autarquias locais em matéria de direitos, liberdades e garantias", in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, vol. I, BFDUC, 1984, pp. 1 e ss.) sobre a autonomia regulamentar autárquica - , "um entendimento rígido de reserva de lei no campo da delimitação do direito de propriedade do solo, no sentido de aí ser proibida qualquer intervenção normativa da Administração, conduziria a resultados absurdos, dada a manifesta impossibilidade de a lei definir o destino, o uso e regime de transformação de todas as porções concretas do território nacional, tendo em conta os múltiplos condicionalismos e especificidades locais, relacionados com o desenvolvimento e expansão dos aglomerados urbanos, a necessidade da criação de zonas verdes, a definição de áreas destinadas a arruamentos e sistemas de saneamento básico, a tipologia das construções, etc.
Tudo isto significa que, pelo menos no domínio do direito de propriedade do solo, não pode aplicar-se um princípio rígido de reserva de lei e que a disciplina do destino e das formas de utilização do solo terá de caber inevitavelmente aos planos urbanísticos municipais" (em "O plano urbanístico e o princípio da igualdade", pág. 340-341).
É esta concepção dos interesses urbanísticos que está na base da confiança aos municípios da gestão urbanística no seu território, nomeadamente da elaboração e aprovação dos planos municipais, sujeita a ratificação do Governo de modo a assegurar a sua compatibilidade com planos, critérios e normas de natureza geral, conforme então determinava o Decreto-Lei 69/90, de 2 de Março.
Segundo o artigo 4.º deste diploma os planos municipais têm a natureza de regulamento administrativo.
Aprofundando a classificação legal do acto normativo em presença, a doutrina teve a oportunidade de concretizar que os planos urbanísticos municipais são "regulamentos autorizados das autarquias locais, produto de uma remissão legislativa, que visam completar ou integrar as leis respeitantes ao sistema de planificação urbanística", preenchendo, "assim, os requisitos que o n.º 7 do artigo 115.º da Constituição prescreve para este tipo de regulamentos: a precedência de uma lei definidora da competência subjectiva e objectiva para a sua emissão e o dever de citação da lei habilitante por parte daqueles instrumentos normativos" (Alves Correia, em "O plano urbanístico e o princípio da igualdade", pág. 342).
Ora, integrando a norma regulamentar autárquica sob apreciação o Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul (RPDM/SPS), aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro, ao abrigo de norma de competência especificamente habilitadora para esse efeito constante do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei 69/90, de 2 de Março, não há na emissão daquela norma qualquer invasão da competência legislativa do Governo.
2.2 - Da inconstitucionalidade material
Questão diversa da inconstitucionalidade orgânica que se acabou de analisar, consiste em saber se o conteúdo da interpretação da referida norma regulamentar constitui uma limitação ou uma restrição inadmissível aos direitos fundamentais da livre iniciativa privada (artigo 61.º, da C.R.P.) e do direito à propriedade privada (artigo 62.º, da C.R.P.), tal como defende o recorrente.Será este exercício de análise que nos vai ocupar de seguida, desta feita à luz da redacção actualmente em vigor da Constituição, uma vez que a inconstitucionalidade material tem apenas por referência o momento da aplicação das normas infraconstitucionais, não estando, assim, sujeita ao princípio do tempus regit actum.
O disposto na alínea a), do artigo 68.º, do Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul (RPDM/SPS), foi aplicado como ratio decidendi pelo tribunal a quo na interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação, existente em área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes, consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de obras de reconstrução e ampliação na casa em questão.
Não compete ao Tribunal Constitucional aferir da bondade dessa interpretação adoptada pelo tribunal a quo, apresentando-se a mesma como um dado que apenas importa aqui apreciar no plano jurídico-constitucional.
O artigo 61.º, da C.R.P., ao falar da liberdade de iniciativa privada, refere-se, em primeira linha, ao direito de qualquer um iniciar uma actividade económica, individualmente ou em sociedade.
Este direito não é absoluto, estando sujeito aos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral (artigo 61.º, n.º 1, 2.ª parte, da C.R.P.) Também o direito constitucional à propriedade privada apenas é garantido nos termos da Constituição, pelo que o seu conteúdo pode ser comprimido por outros direitos com consagração constitucional (artigo 62.º, n.º 1, da C.R.P.) Sendo ambos direitos relativos, o seu conteúdo pode sofrer limitações resultantes da adopção de medidas de protecção do direito ao ambiente consagrado no artigo 66.º, da C.R.P. (vide, neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, na ob. cit., pág. 846-847), assim como da definição das regras de ocupação, uso e ocupação dos solos efectuada pelo Estado, regiões autónomas e autarquias locais, através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território, imposta pelo n.º 4, do artigo 65.º, da C.R.P. (vide, neste sentido, Alves Correia, em Manual de Direito do Urbanismo", vol. I, pág. 674-677, da 3ª ed.) A protecção do direito ao ambiente pode exigir limitações quer à liberdade de localização de estabelecimento (artigo 66.º, n.º 2, b), da C.R.P.), quer à liberdade de edificação, mesmo quando se admite que esta é uma componente do direito constitucional à propriedade privada, incluindo a realização de obras de alteração a edifício já construído (artigo 66.º, n.º 2, b) e c), da C.R.P.), o mesmo sucedendo com os instrumentos de planeamento elaborados no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território, cumprindo o ditame do n.º 4, do artigo 65.º, da C.R.P.
Daqui resulta que o legislador, quer no domínio da elaboração dos instrumentos de planeamento, quer no domínio da adopção de medidas de protecção do ambiente, tem liberdade de conformação dos direitos de iniciativa e propriedade privada, podendo estabelecer limites aos diferentes poderes componentes destes direitos, desde que não fira o seu núcleo essencial.
É precisamente neste âmbito conformador daqueles direitos, permitido pela Constituição, que se situa a interpretação normativa questionada, uma vez que procede à leitura de instrumento de planeamento elaborado no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e visa prosseguir política de preservação da paisagem natural.
Na verdade, por um lado, a proibição de realização de obras de alteração de construção existente em área REN, visando modificar a sua utilização de casa de habitação para casa de hóspedes, é extraída de dispositivo integrante de plano director municipal, que tem por objectivo a protecção das áreas REN, enquanto estrutura biofísica básica e diversificada, através da imposição de condicionamentos à sua utilização de forma a garantir a defesa de ecossistemas e a permanência e intensificação dos processos biológicos indispensáveis ao enquadramento equilibrado das actividades humanas (artigo 1.º, do Decreto-Lei 93/90).
Por outro lado, esta limitação apenas impede o estabelecimento da actividade económica de hospedagem em edifício situado em determinada área protegida e condiciona o poder de utilização do proprietário sobre esse edifício, não atingindo o núcleo essencial da liberdade de iniciativa privada (artigo 61.º, da C.R.P.) e do direito à propriedade (artigo 62.º, da C.R.P.), nem limitando de forma inadequada e excessiva tais direitos.
Deste modo, por integrar uma limitação constitucionalmente admissível à liberdade de iniciativa privada e ao direito à propriedade privada, a interpretação normativa questionada também não sofre do vício da inconstitucionalidade material, pelo que o recurso interposto deve ser julgado improcedente.
Decisão. - Pelo exposto julga-se improcedente o recurso interposto por Carlos Alberto Ramos de Araújo do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido nestes autos em 28 de Fevereiro de 2008.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/2008, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 13 de Janeiro de 2009. - João Cura Mariano - Benjamim Rodrigues - Mário José de Araújo Torres - Joaquim de Sousa Ribeiro - Rui Manuel Moura Ramos.