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Acórdão 388/2005/T, de 20 de Dezembro

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Texto do documento

Acórdão 388/2005/T. Const. - Processo 98/2003. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório. - 1 - A Sociedade de Construções Tomás Fonseca, Lda., recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 19 de Setembro de 2002, "completado pelo Acórdão de 9 de Janeiro de 2003", que negou a revista pedida do Acórdão da Relação de Coimbra de 22 de Janeiro de 2002, acórdão este que, por seu lado, negara a apelação interposta da sentença de 1.ª instância que, sob requerimento da credora Caixa Geral de Depósitos, declarara a recorrente em estado de falência.

2 - Tal como foi fixado no acórdão que deferiu a reclamação da recorrente contra a decisão sumária de não conhecimento do recurso proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional, este tem por objecto a norma contida no artigo 8.º, n.os 1 e 3, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei 315/98, de 20 de Outubro, "segundo a qual o processo de falência pode ser instaurado quando outros processos, nomeadamente, de execução [fiscal] foram instaurados [contra o devedor declarado falido]".

3 - Sempre que dispôs de uma oportunidade processual (articulado de oposição ao pedido de declaração de falência; recurso de agravo do despacho judicial que ordenou o prosseguimento do processo de falência a que alude o artigo 25.º do CPEREF; articulado de embargos à sentença de decretação da falência; alegações de recurso para a Relação da sentença que julgou improcedentes os embargos; requerimento de reacção à junção ao processo de falência do processo de execução fiscal anteriormente instaurado para a cobrança da dívida da Caixa Geral de Depósitos - CGD - cuja falta de pagamento foi alegada como causa de pedir da falência; alegações apresentadas no recurso de revista para o STJ do acórdão da Relação que negou provimento ao recurso de apelação interposto da decisão de improcedência dos embargos; pedido de reforma do acórdão do STJ que negou tal revista, pedido esse baseado na não aplicação dessa legislação especial invocada - fl. 268), a recorrente sustentou as teses de que estavam em vigor, no momento da instauração de execução fiscal que diz ter ocorrido em 31 de Março de 1993 (fl. 215), os artigos 6.º do Decreto 16 899, de 27 de Maio de 1929, e 3.º do Decreto 20 879, de 13 de Fevereiro de 1932, por o seu regime ter sido mantido pelo Decreto-Lei 48 953, de 5 de Abril de 1969 (artigo 75.º), pelo Decreto-Lei 693/70, de 31 de Dezembro (artigos 18.º e 25.º), e pelo Decreto 694/70, de 31 de Dezembro (artigo 161.º), e ainda por o mesmo ter sido ressalvado pelo artigo 9.º, n.º 5, do Decreto-Lei 287/93, de 20 de Agosto (diploma este que aprovou os actuais Estatutos da CGD), e de que da regulação neles estabelecida resultava a impossibilidade de a CGD "abandonar a acção executiva (fiscal) e instaurar por sua iniciativa, e com base no mesmo crédito exequendo, acção de falência contra a executada", pelo que não lhe era aplicável o disposto (relativamente a essa matéria) no artigo 8.º, n.os 1 e 3, do CPEREF, e, finalmente, de que essas normas "excluíam a aplicação a estas execuções da norma de remessa e junção a eventual processo de falência contra a mesma entidade".

4 - Apreciando esta questão, o acórdão recorrido discreteou do seguinte jeito:

"O facto de estarem pendentes execuções promovidas pela embargada não impedia que esta requeresse a falência.

A embargante está equivocada nesta parte.

O artigo 870.º do CPC apenas reconhece a qualquer credor a faculdade de obter a suspensão de execução pendente desde que tenha sido requerido processo de falência do executado.

Por seu lado, o artigo 4.º do Decreto-Lei 132/93 alterou o artigo 264.º do Código de Processo Tributário, mandando este sustar os processos de execução fiscal desde que seja declarada a falência.

Nem vem ao caso o artigo 80.º da CR.

Como credora, a embargada tinha o direito de requerer a falência, o que terá feito certamente por se convencer de que assim mais rapidamente poderia reaver pelo menos parte do que emprestou à embargante.

Dos interesses da embargada é ela própria quem está em melhores condições para fazer uma avaliação correcta.

Normalmente os bancos estão bem informados sobre a solvabilidade das empresas.

Se o 'estrangulamento e impasse que ainda se mantém' da embargante (expressão por ela utilizada na oposição à declaração de falência, segundo a sentença a fl. 136 e seguintes) é devida, como afirma, ao facto de a embargada se ter recusado a conceder mais crédito, não pode por aí censurar-se a CGD, que se terá convencido da inutilidade de maior espera no cumprimento da empresa.

Esta reconheceu nessa oposição a sua impossibilidade para já de pagar o que deve à CGD.

Na mesma sentença (fl. 140) se afirma não dispor a embargante de crédito bancário.

Não vêm também ao caso os diplomas relativos à CGD.

Eles nada têm que ver com o direito de aquela requerer a falência.

Não pode assim pôr-se em dúvida o direito de a CGD requerer a falência."

5 - E tendo a mesma recorrente requerido a aclaração desta decisão, o Supremo Tribunal de Justiça veio ainda a dizer no acórdão em que concluiu pelo indeferimento de tal pedido:

"A recorrente continua a não entender que a legislação especial da CGD não afasta as regras da falência.

Esses diplomas conferiram à CGD direitos que outros credores não têm, mas não lhe retiraram por esse facto os direitos comuns de qualquer credor.

Nada mais há que dizer a este respeito.

A citação do artigo 80.º da CR tem um intuito demasiado transparente ...

Desatende-se o requerido.

Custas do incidente pela recorrente."

6 - Alegando no Tribunal Constitucional sobre o objecto do recurso de constitucionalidade, a recorrente sintetizou o seu discurso argumentativo nas seguintes conclusões:

"1.ª O douto acórdão recorrido manteve as decisões das instâncias que haviam decretado a falência da recorrente, com base em requerimento apresentado pela Caixa Geral de Depósitos, nos termos do artigo 8.º, n.os 1, alínea a), e 3, do CPEREF, aprovado pelo Decreto-Lei 315/98, de 20 de Outubro, então em vigor, com fundamento num crédito para cuja cobrança coerciva havia também instaurado, e estava pendente acção de execução fiscal.

2.ª A Caixa Geral de Depósitos, então qualificada como instituto de crédito do Estado, gozava de determinadas prerrogativas e, de acordo com legislação especial (designadamente o artigo 1.º, parágrafo único, do Decreto 16 899, de 27 de Maio de 1929, substituído pelo artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei 48 953, de 5 de Abril de 1969), podia recorrer à acção de execução fiscal para cobrança coerciva dos seus créditos, sendo representada pelo Ministério Público e pelo chefe de repartição de finanças.

3.ª Essa legislação especial foi mantida em vigor pelos diplomas subsequentes, relativamente às execuções fiscais já instauradas.

4.ª No uso dessa prerrogativa, a Caixa Geral de Depósitos instaurou em 31 de Março de 1993, na Repartição de Finanças de Alcobaça, acção de execução fiscal para cobrança daquele mesmo crédito, emergente de financiamento à construção concedido, tendo sido penhorados nesse processo os imóveis a que se destinou o financiamento, os quais aí foram avaliados em valor que, segundo despacho de 16 de Junho de 1999, exarado nos autos pelo próprio chefe da Repartição de Finanças era suficiente para a liquidação do crédito exequendo e legais acréscimos.

5.ª Encontrando-se devidamente acautelada a pretensão daquela entidade, podendo obter nesse processo a satisfação do seu crédito através da venda do bem penhorado, revela-se desnecessário, desproporcional e mesmo arbitrário o pedido para declaração de falência da executada que a mesma entidade apresentou em 8 de Outubro de 1999.

6.ª Dispondo, segundo lei especial, de um meio eficaz e seguro para realizar o seu interesse, e que causaria menor dano à ora recorrente, a Caixa Geral de Depósitos recorreu a um meio mais lesivo e gravoso, conducente à eliminação de uma outra entidade do mundo jurídico.

7.ª A falência constitui o meio mais lesivo ao alcance dos credores, que só deve ser utilizado como última ratio e caso os meios coercivos menos lesivos se revelem insuficientes, em nome do princípio da proporcionalidade, da razoabilidade e da proibição de excesso, de modo a garantir a sobrevivência das empresas e da economia em geral.

8.ª Ao contrário, a utilização desse meio em casos em que, por via de um privilégio executivo específico, se mostra assegurado o interesse da credora, representa uma acumulação de prerrogativas e um abuso da posição de supremacia económica, neste caso de uma instituição de crédito do Estado, susceptível de aniquilar o equilíbrio que deve presidir à economia e de atentar contra a preservação da vida das empresas.

9.ª Permitindo que uma entidade financiadora pública possa provocar a extinção da entidade financiada, mesmo não estando em perigo a satisfação do seu crédito, num evidente abuso de uma posição hegemónica ofensiva da coexistência do sector público e do sector privado.

10.ª A utilização desproporcional e desnecessária do requerimento de falência ofende os princípios fundamentais da organização económico-social estabelecidos no artigo 80.º da Constituição da República Portuguesa, designadamente nas alíneas a) e b), que enformam a constituição económica democrática e que emanam do princípio mais geral do Estado de direito democrático, estabelecido no artigo 2.º da lei fundamental.

11.ª A possibilidade conferida ao credor pelo artigo 8.º, n.os 1, alínea a), e 3, do CPEREF, de requerer a falência de empresa que considere em situação de inviabilidade económica em caso de incumprimento que indicie a impossibilidade de satisfação das obrigações, numa interpretação que abranja hipóteses em que o crédito se mostra devidamente garantido em execução fiscal a que a mesma credora por força de lei especial podia recorrer, viola aquele preceito constitucional.

12.ª Ao considerar que a requerente Caixa Geral de Depósitos tinha, não obstante verificar-se essa situação, o direito de requerer a falência da recorrente, com fundamento no citado artigo 8.º, n.º 3, conjugado com o n.º 1, alínea a), do CPEREF, e ao decretar a falência com base nesse requerimento e nesse crédito, o douto acórdão recorrido violou o citado artigo 80.º da Constituição.

Nestes termos, deverá ser julgada inconstitucional a norma do artigo 8.º, n.º 3, conjugado com o n.º 1, alínea a), do CPEREF, aprovado pelo Decreto-lei 315/98, de 20 de Outubro, na dimensão normativa com que foi aplicada pelo douto acórdão recorrido, por ofender o artigo 80.º, alíneas a) e b), da Constituição, que contém os princípios da constituição económica democrática e que constituem emanação do princípio mais geral do Estado de direito democrático, daí se extraindo as devidas consequências."

7 - A recorrida Caixa Geral de Depósitos, S. A., contra-alegou, defendendo o julgamento de não inconstitucionalidade, até porque as normas do CPEREF foram já "sobejamente sindicadas" neste sentido pelo Tribunal e não se vê qual seja "a relação lógico-jurídica" entre a natureza da CGD e a previsão das normas que integram o artigo 80.º da Constituição.

Tudo visto cumpre decidir.

B - Fundamentação. - 8 - O artigo 8.º, n.os 1, alínea a), e 3, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei 315/98, de 20 de Outubro (transcreve-se a totalidade do preceito para facilidade de apreensão do seu sentido), dispõe do seguinte modo:

"Artigo 8.º

Iniciativa dos credores ou do Ministério Público

1 - Qualquer credor, seja qual for a natureza do seu crédito, pode requerer, em relação à empresa que considere economicamente viável, a aplicação da providência de recuperação adequada, desde que se verifique algum dos seguintes factos reveladores da situação de insolvência do devedor:

a) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;

b) Fuga do titular da empresa ou dos titulares do seu órgão de gestão, relacionada com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo, ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade;

c) Dissipação ou extravio de bens, constituição fictícia de créditos ou qualquer outro procedimento anómalo que revele o propósito de o devedor se colocar em situação que o impossibilite de cumprir pontualmente as suas obrigações.

2 - O Ministério Público pode requerer a adopção da providência de recuperação adequada, em representação dos interesses que lhe estão legalmente confiados, podendo requerê-la também quando a empresa tenha sido declarada em situação económica difícil e haja interesse económico e social na manutenção da sua actividade.

3 - Sempre que se verifique algum dos factos referidos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1, pode a falência da empresa ser requerida por qualquer credor, ainda que preferente e seja qual for a natureza do seu crédito, quando a não considere economicamente viável, e também pelo Ministério Público, nos termos do disposto na primeira parte do número anterior.

4 - A falência pode ainda ser oficiosamente decretada pelo tribunal nos casos especialmente previstos na lei.

5 - O disposto na primeira parte do n.º 2 e na parte final do n.º 3 não prejudica a possibilidade de representação das entidades públicas nos termos do n.º 2 do artigo 22.º"

Com interesse para a compreensão da questão de constitucionalidade - e até porque foi com base em tais normas que o acórdão recorrido manteve a decisão de declaração de falência da recorrente - importa notar o que dispõem os n.os 1 e 2 do artigo 1.º do CPEREF.

Rezam tais preceitos:

"1 - Toda a empresa em situação económica difícil ou em situação de falência pode ser objecto de uma medida ou de uma ou mais providências de recuperação ou ser declarada em regime de falência.

2 - Só deve ser decretada a falência da empresa insolvente quando ela se mostre inviável ou se não considere possível, em face das circunstâncias, a sua recuperação financeira."

A recorrente defende que a norma constante daquele n.º 1, alínea a), e n.º 3 do artigo 8.º do CPEREF afronta o disposto nas alíneas a) e b) do artigo 80.º da Constituição da República Portuguesa, que têm o seguinte teor:

"Artigo 80.º

Princípios fundamentais

A organização económico-social assenta nos seguintes princípios:

a) Subordinação do poder económico ao poder político democrático;

b) Coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção;

c) ...

d) ...

e) ...

f) ...

g) ..."

9 - Antes de se avançar, convém deixar precisado que não cabe nos poderes do Tribunal Constitucional aferir da correcção do juízo subsuntivo que foi efectuado pelo tribunal a quo, no sentido de considerar que o quadro factual averiguado nos autos integrava os pressupostos normativamente definidos para que pudesse ser decretada a falência da recorrente.

Nesta perspectiva, não pode o Tribunal pronunciar-se nem sobre a correspondência à verdade dos factos estabelecidos nem sobre a relevância normativa que lhes foi conferida.

Do mesmo passo - e independentemente de poder sustentar-se que o valor da avaliação, atribuído pela autoridade exequente aquando da realização da penhora, dificilmente será igual ou superior àquele que virá a obter-se efectivamente através da sua venda, como pressupõe a recorrente, e que mal se entende que algum credor utilize meios processuais que vão contra os interesses de rápida cobrança dos créditos, como aconteceria se a CGD, podendo obter o integral pagamento do seu crédito através de um processo, lançasse mão de outro processo bem mais complexo como é o de falência - , não cabe nos seus poderes (que, no caso, são de apreciação da alegada inconstitucionalidade normativa) saber se é correcta a afirmação da recorrente de que o pagamento da dívida da CGD se achava devidamente acautelada porquanto o chefe de repartição de Finanças de Alcobaça havia considerado suficiente para a liquidação do crédito a penhora efectuada contra a ora recorrente de certos imóveis.

A este respeito, poderá pensar-se que a atitude da CGD de requerer a falência da ora recorrente, depois de haver lançado mão do processo de execução fiscal, possa ter ficado a dever-se, como hipotizou o acórdão recorrido, ao facto de "[a credora] se convencer de que assim mais rapidamente poderia reaver pelo menos parte do que emprestou à embargante", sendo que "dos interesses da embargada é ela própria quem está em melhores condições para fazer uma avaliação correcta", como também, ou até prevalentemente, a outras razões, designadamente a de uma eventual intenção de poder beneficiar, em caso de verificação da por si pressuposta insuficiência do produto de liquidação de todos os bens da falida para solver as suas dívidas, do regime de extinção dos privilégios creditórios de que gozam certos créditos do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, que está previsto no artigo 152.º do CPEREF apenas para a hipótese de declaração de falência.

Em causa está, pois, apenas a questão de saber se a norma contida no artigo 8.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do CPEREF, aprovado pelo Decreto-Lei 315/98, de 20 de Outubro, "segundo a qual o processo de falência pode ser instaurado quando outros processos, nomeadamente, de execução [fiscal] foram instaurados [contra o devedor declarado falido]", afronta o disposto nas alíneas a) e b) do artigo 80.º da Constituição.

Ora, não se vê, seguramente, em que possa a possibilidade de a ora recorrida CGD poder lançar mão sucessivamente dos meios processuais da execução fiscal e do processo de falência a fim de poder obter o pagamento, na medida do possível, do montante do seu crédito violar os referidos preceitos das alíneas a) e b) do artigo 80.º da Constituição.

Escrevendo sobre o seu sentido, dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, p. 394):

"II - A subordinação do poder económico ao poder político democrático [alínea a)] significa, essencialmente, fazer prevalecer o poder democraticamente legitimado sobre o poder fáctico proporcionado pela riqueza ou pelas posições de domínio económico. É esta a chave de toda a constituição económica, a começar por alguns dos restantes princípios aqui definidos, que a este podem ser reconduzidos ou nele encontram explicação [por exemplo, os das alíneas b), c) e f)]. O poder económico só é subordinável ao poder político democrático desde que este o possa controlar, o que depende quer da dimensão que aquele assuma quer das posições que ocupe na organização económica. Para impedir preventivamente que o poder económico venha a tornar-se incontrolável, a CRP, entre outras coisas, estabelece a exigência de eliminação dos monopólios e dos latifúndios [artigos 81.º, alínea e), e 97.º], incumbindo o Estado de assegurar uma equilibrada concorrência entre as empresas [artigo 81.º, alínea f)], e veda o acesso do capital privado a sectores básicos da economia [artigo 87.º, n.º 3].

III - A coexistência de diversos sectores de propriedade de meios de produção [alínea b)] é também, em alguma medida, um princípio que vai ao encontro da mesma preocupação de controlo do poder económico, através da sua diversificação. Garantindo a existência de três sectores de propriedade e de organização económica (v. especialmente artigo 82.º), a Constituição procura gerar também uma espécie de policentrismo económico ou de divisão de poderes ao nível da constituição económica, que, de algum modo, contribui para prevenir a emergência de poderes económicos hegemónicos."

Entende a recorrente que essa violação decorreria do facto de a CGD poder lançar mão de um processo de execução especial, como é o processo de execução fiscal, e de, nele, poder ser representada pelo Ministério Público e pelo chefe de repartição de finanças.

Mas, independentemente de saber-se se o que a recorrente designa por "representação" da exequente pelo chefe de repartição de finanças não corresponde, na economia do processo de execução fiscal, a uma mera oficiosidade de actuação do órgão administrativo-fiscal a quem compete a prática dos actos executivos de natureza não jurisdicional (já que os que tenham esta natureza são da competência dos tribunais tributários, como sempre se tem entendido no respectivo contencioso), que encontra a sua razão de ser em razões de celeridade e simplificação processuais, e se o Ministério Público tinha legitimidade para representar a exequente CGD (o que é mais do que duvidoso e nem o acórdão recorrido o considera), sempre essa possibilidade de "representação" não exime a exequente do cuidado de, em vista dos ganhos de celeridade processual que enforma este tipo de processo, dar conhecimento a tal órgão de todos os elementos de facto úteis ao prosseguimento do processo de execução e de, para tanto, se poder fazer representar por mandatário judicial no processo.

Note-se, no entanto, que os princípios da celeridade e da simplificação processuais não constituem princípios específicos do processo de execução fiscal, sendo antes princípios gerais de todas as formas de processo, cuja fonte se localiza no próprio direito fundamental de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e que a recente reforma da acção executiva levada a cabo pela mão do Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, se baseou, em grande medida, na sua afirmação, tendo para tanto desjurisdicionalizado, paralelamente ao que sucedia no processo de execução fiscal, o processo de execução comum no que tange aos actos de natureza não jurisdicional. Assim, para obter esses ganhos, o legislador não deixou cometer a prática desses actos não jurisdicionais ou aos funcionários judiciais ou aos solicitadores de execução.

O que seguramente não se vê é que a possibilidade daquela intervenção, de cariz estritamente processual, tenha o condão de colocar a CDG numa situação de supremacia jurídica perante a recorrente, diferente daquela de que usufruiria, como qualquer credor no processo de execução comum, relativamente à possibilidade de realização do seu direito de crédito sobre a mesma recorrente.

E diz-se isto porque nem a exequente, atenta a dimensão económico-financeira da sua empresa, teria quaisquer dificuldades adicionais relativamente aos demais credores, de cuja existência pudessem beneficiar directamente os seus devedores em geral e a recorrente em particular, em poder socorrer-se de mandatários judiciais que requeressem as pertinentes diligências processuais, nem o seu direito de crédito beneficia de qualquer modificação no que respeita ao regime de garantia de cumprimento da respectiva obrigação (garantia geral ou garantias especiais de que porventura goze) pelo facto de vir a ser cobrado coercivamente em processo de execução fiscal (cf., neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo proferidos nos processos n.os 20 174, 24 128, 22 019, 25 236 e 24 879, respectivamente de 13 de Novembro de 1996, 12 de Janeiro de 2000, 10 de Maio de 2000, 31 de Janeiro de 2001 e 16 de Janeiro de 2002, todos disponíveis, alguns em texto completo, em www.dgsi.pt/jsta).

Dentro da mesma linha importa, ainda, acentuar que a impossibilidade de a falência do executado poder ser decretada em processo de execução fiscal tem apenas que ver, essencialmente, com as circunstâncias de o processo de falência constituir uma execução universal a favor de todos os credores do património do falido e de o legislador considerar que a sede mais adequada para tal execução será a forma de processo civil de declaração de falência, em virtude de, eventualmente, poderem suscitar-se e haverem que decidir-se, a título principal, diversas questões de direito privado, relacionadas não só com a existência dos créditos e as suas garantias mas também com a propriedade dos bens ou direitos apreendidos para a massa falida e de, ainda, em regra, a maioria dos créditos e dos seus titulares estar sujeita ao regime de direito comum.

Note-se, no entanto, que no que tange à impossibilidade de o credor poder requerer a declaração de falência do devedor nem sequer existe qualquer diferença entre as duas formas de processo (fiscal ou comum).

É que, não obstante o credor comum haver instaurado processo de execução comum, não fica ele, também, impedido de requerer a declaração de falência do devedor, mediante pedido autónomo a ser efectuado em processo especial de recuperação de empresa e de falência (cf. artigo 870.º do Código de Processo Civil, na versão anterior e posterior à reforma do Código de Processo Civil de 1995), ou seja, fora do processo de execução civil.

E a tudo isto acresce que, declarada que seja a falência, tanto o credor que haja de demandar o devedor em processo de execução fiscal como aquele que tenha de utilizar o processo comum ficam, exactamente, na mesma situação de apenas poderem reclamar o pagamento dos seus créditos na execução universal.

A opção do legislador de atribuir aos tribunais fiscais, desde o artigo 1.º do Decreto 16 899, de 27 de Maio de 1929, e sempre mantida nas subsequentes alterações que o Estatuto da mesma Caixa sofreu até à entrada em vigor (mas com ressalva das execuções pendentes) do Decreto-Lei 287/93, de 20 de Agosto, a competência para conhecer da execução coerciva de dívidas da CGD e de a sujeitar ao processo de execução fiscal deveu-se ao seu entendimento de que a cobrança dos créditos que visavam prosseguir ou satisfazer finalidades de interesse público devia ser cometida a tais tribunais e ser efectuada mediante tal processo, em virtude de este estar estruturado, comparativamente ao homónimo de processo civil, em termos de exigir uma menor intervenção das partes durante o seu desenvolvimento (cf. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado, 3.ª ed., revista e aumentada, 2002, p. 755).

Na verdade, a CGD, até ao referido Decreto-Lei 287/93 diploma este que procedeu à sua conversão em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos e à cisão dos serviços de seguida mencionados -, foi um instituto público a quem a lei atribuía deveres de ordem pública, como, entre outros, os de administrar a Caixa Geral de Aposentações e o Montepio dos Servidores do Estado (artigo 4.º do Decreto-Lei 48 953, de 5 de Abril de 1969), "colaborar na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento económico e social, na acção reguladora dos mercados monetário e financeiro e na distribuição selectiva do crédito" (artigo 3.º do mesmo diploma), e "cooperar na resolução do problema habitacional, mediante o crédito para construção ou aquisição de residência própria, o financiamento à construção civil para edificação de habitações destinadas à venda ou arrendamento em condições acessíveis e a aplicação de fundos da Caixa Nacional de Previdência na construção ou aquisição de casas para funcionários do Estado e dos corpos administrativos" (artigo 7.º, n.º 16, do mesmo diploma) (cf. Jorge Lopes de Sousa, op. cit., p. 755).

Tendo o legislador cometido à CGD a satisfação destas necessidades públicas, não se mostra, de modo algum, abusivo, arbitrário ou manifestamente desproporcionado que, simultânea e diferentemente do que se passa relativamente às outras entidades bancárias, a tenha aliviado de certos encargos processuais com a cobrança dos créditos com que, pelo menos em parte, satisfazia essas necessidades públicas.

De resto, a atribuição dessas prerrogativas processuais não deixa de constituir, precisamente, uma expressão de afirmação da subordinação constitucional do poder económico ao poder político, na medida em que elas representam uma contrapartida pelo prosseguimento por parte da CGD dos interesses públicos que são predeterminadamente definidos pelo legislador, em concretização de valores que a Constituição de 1976 não deixou de igualmente assumir como direitos sociais ou como injunções constitucionais (cf. artigos 65.º e 101.º da Constituição da República Portuguesa, na versão actual).

Por outro lado, não se descortina, na atribuição legislativa à CGD da possibilidade de poder requerer a execução coactiva dos seus créditos em processo de execução fiscal, qualquer posição de agravamento substantivo da situação do devedor, dado que este - no caso, a recorrente - continua apenas a estar obrigado a cumprir a obrigação nos mesmos termos em que o estaria se a execução houvesse de obedecer, como hoje acontece, ao regime do processo comum de execução.

Mesmo a admitir-se sem discussão a possibilidade de as entidades bancárias "poderem contribuir para a destruição de pequenas empresas que careçam de recorrer aos seus serviços" (para utilizar as palavras da recorrente), ela em nada se altera só porque a CGD tem a possibilidade de lançar mão do processo de execução fiscal e outras empresas têm de socorrer-se do processo comum.

O que poderia sair afectado, a não haver razões para atribuir um meio processual tido por menos oneroso para o credor, seriam os princípios constitucionais da igualdade e da concorrência salutar entre as entidades bancárias [artigos 13.º e 99.º, alínea a), da Constituição da República Portuguesa].

Todavia, um tal resultado hipotético será completamente estranho à situação jurídico-material dos devedores, como a da recorrente (lembre-se, a propósito, que o Tribunal Constitucional sempre se pronunciou pela negativa quanto àquela questão - cf., a título de exemplo, os Acórdãos n.os 371/94, 508/94, 509/94 e 579/94, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

A posição de o legislador subtrair à CGD a possibilidade de requerer a declaração de falência do devedor, no caso de se verificarem os pressupostos estabelecidos na lei respectiva, só pelo facto de ter direito de utilizar um processo de execução tendencialmente menos oneroso do que o processo de execução comum, seria, ao contrário do que sustenta a recorrente, querer colocá-la em uma posição mais gravosa do que a conferida aos outros credores, não obstante estes não estarem obrigados a prosseguir políticas públicas de satisfação de interesses colectivos, na medida em que se lhe retirava a possibilidade de poder usufruir do regime de extinção dos privilégios creditórios, de que acima se falou, e de, eventualmente, poder vir a ser paga do seu crédito com precedência aos credores munidos apenas desses privilégios.

Finalmente, não decorre dos parâmetros constitucionais invocados pela recorrente que o legislador ordinário haja de tolerar a existência de empresas que não cumprem as obrigações de pagamento das suas dívidas para com as outras empresas do tecido económico, pondo em risco a subsistência destas e, reflexamente, a de muitos outros interesses, alguns de natureza pública.

A posição defendida pela recorrente conduziria ao absurdo de, não obstante se considerar compatível com os parâmetros constitucionais, de acordo com a referida jurisprudência constitucional, a atitude legislativa de atribuir à CGD o direito de executar os seus créditos através do processo de execução fiscal para lhe propiciar a mais fácil arrecadação dos seus créditos e assim poder prosseguir os ditos fins públicos, se vir depois, por força da mesma lei fundamental, ao fim e ao cabo, a colocá-la em uma posição mais gravosa do que a dos demais credores obrigados a utilizarem o processo de execução comum para a cobrança dos seus créditos, ao vedar-lhe a possibilidade de não poder requerer a falência e aproveitar-se daquele regime de extinção dos privilégios creditórios.

Por último, a solução defendida pela recorrente conduziria, igualmente, à situação paradoxal de ser conforme com os alegados parâmetros constitucionais a solução de a CGD ter, obrigatoriamente, de reclamar o seu crédito em processo de falência quando este fosse instaurado por outro credor, porventura titular de créditos incumpridos muitíssimo inferiores aos seus, com a possibilidade, então, do consequente aproveitamento do referido regime de extinção dos privilégios creditórios, mas já ser desconforme com os mesmos parâmetros constitucionais a regra de poder ela mesma requerer a declaração de falência do devedor quando entenda que essa declaração é a melhor solução para a defesa dos seus interesses, mesmo de natureza pública.

Temos de concluir, portanto, que a norma impugnada não afronta a Constituição.

C - Decisão. - 10 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea a), e do n.º 3 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresas e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei 315/98, de 20 de Outubro, no sentido segundo o qual o processo de falência pode ser instaurado quando a CGD tenha instaurado anteriormente processo de execução fiscal contra o devedor para cobrança do mesmo crédito;

b) Negar provimento ao recurso;

c) Condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 u. c.

13 de Julho de 2005. - Benjamim Rodrigues - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2361978.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1929-05-28 - Decreto 16899 - Ministério das Finanças - Secretaria Geral

    Regulamenta o processo de cobrança coerciva de todas as dívidas em que seja credora a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, seja qual for a sua origem, natureza ou título.

  • Tem documento Em vigor 1932-02-13 - Decreto 20879 - Ministério das Finanças - Direcção Geral das Contribuïções e Impostos

    Determina que nos processos de execução fiscal por dívidas à Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência e à Caixa Nacional de Crédito em que forem penhorados conjuntamente bens móveis e omóveis seja o juízo de direito respectivo em Lisboa e Porto o das execuções fiscais o juízo competente para proceder à venda, em hasta pública, de todos esses bens.

  • Tem documento Em vigor 1969-04-05 - Decreto-Lei 48953 - Ministério das Finanças - Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência

    Promulga a nova lei orgânica por que passa a reger-se a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, que pode chamar-se apenas Caixa Geral de Depósitos e é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, com património próprio, competindo-lhe o exercício das funções de instituto de crédito do Estado e a administração da Caixa Geral de Aposentações, do Montepio dos Servidores do Estado e da Agência Financial de Portugal no Rio de Janeiro.

  • Tem documento Em vigor 1970-12-31 - Decreto 694/70 - Ministério das Finanças - Secretaria de Estado do Tesouro - Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência

    Aprova o Regulamento da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência.

  • Tem documento Em vigor 1970-12-31 - Decreto-Lei 693/70 - Ministério das Finanças - Secretaria de Estado do Tesouro - Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência

    Insere disposições relativas ao regime jurídico da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1993-04-23 - Decreto-Lei 132/93 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, visando auxiliar as empresas nacionais em dificuldades financeiras, mas economicamente viáveis. Altera também o Código de Processo Civil, o Estatuto Judiciário, o Código das Custas Judiciais, o Código Penal e o Código de Processo Tributário, bem como demais legislação avulsa.

  • Tem documento Em vigor 1993-08-20 - Decreto-Lei 287/93 - Ministério das Finanças

    TRANSFORMA A CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, CRÉDITO E PREVIDÊNCIA EM SOCIEDADE ANÓNIMA DE CAPITAIS EXCLUSIVAMENTE PÚBLICOS, PASSANDO A DENOMINAR-SE CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. APROVA OS ESTATUTOS DA CAIXA, PUBLICADOS EM ANEXO AO PRESENTE DIPLOMA. O PRESENTE DIPLOMA ENTRA EM VIGOR NO DIA 1 DE SETEMBRO DE 1993.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-20 - Decreto-Lei 315/98 - Ministério da Justiça

    Altera o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPRREF) aprovado pelo Dec Lei 132/93, de 23-Abr. Republicado em anexo o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.

  • Tem documento Em vigor 2003-03-08 - Decreto-Lei 38/2003 - Ministério da Justiça

    Altera o Código de Processo Civil, o Código Civil, o Código do Registo Predial, o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o Código de Processo do Trabalho, o Código dos Valores Mobiliários e legislação conexa, alterando o regime jurídico da acção executiva.

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