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Acórdão 380/2005/T, de 17 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 380/2005/T. Const. - Processo 439/2005. - 1 - Em 6 de Junho de 2005, o relator proferiu decisão com o seguinte teor:

"1 - Pelo 9.º Juízo Cível do Porto, intentou em 18 de Setembro de 1996 Transportes de Mercadorias Remédios, Lda., contra a Companhia de Seguros Mundial Confiança, S. A. (posteriormente, por fusão com a Companhia de Seguros Fidelidade, S. A., vindo a adoptar a sociedade assim constituída a firma Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S. A.), acção, seguindo a forma de processo ordinário, na qual solicitou a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 12 939 624$ relativos a determinados sinistros de furto que foram por esta participados àquela, pois que, segundo invocou, não obstante esta última, por contrato de seguro firmado entre ambas, ter assumido o pagamento dos prejuízos decorrentes de eventos tais como roubo e falta de entrega de mercadorias, recusou-se a ré a pagar os montantes referentes àqueles sinistros, invocando que o contrato de seguro se encontrava anulado.

Em 27 de Novembro de 2000 foi proferida sentença pelo juiz do 1.º Juízo do Tribunal da Comarca da Maia (para onde os autos foram remetidos após se ter declarado territorialmente incompetente aquele 9.º Juízo Cível), sentença essa que julgou improcedente, por não provada, a acção, em consequência absolvendo a ré do pedido.

Do assim decidido apelou a autora para o Tribunal da Relação do Porto.

Na sequência de requerimento formulado pela autora, o juiz do 2.º Juízo do Tribunal da Comarca da Maia, por despacho de 12 de Julho de 2001, declarou nulo o julgamento na parte relativa à recolha de depoimentos de sete testemunhas, cuja gravação áudio era inaudível.

Desse despacho agravou a ré para o Tribunal da Relação do Porto.

O desembargador relator deste tribunal de 2.ª instância, por despacho de 23 de Abril de 2003, proferido ao abrigo do artigo 705.º do Código de Processo Civil, concedeu provimento ao recurso de agravo e negou-o quanto à apelação.

Desse despacho arguiu a autora a respectiva nulidade, do mesmo passo que interpôs recursos de agravo em 2.ª instância e de revista.

O Tribunal da Relação do Porto, em face da circunstância de ter sido arguida a nulidade do despacho prolatado em 23 de Abril de 2003 pelo desembargador relator, proferiu, em 19 de Janeiro de 2004, acórdão no qual, conquanto reconhecesse que naquele despacho se não enfrentaram directamente as questões atinentes à 'interpretação funcional da nova lei' (queria reportar-se ao Decreto-Lei 105/94, de 23 de Abril) e à 'conformidade à Constituição do entendimento' que foi nele foi sufragado, manteve 'todavia a solução final do litígio'.

Tendo o conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 18 de Março de 2004, convertido o recurso em reclamação para a conferência no tribunal da 2.ª instância, o Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 4 de Julho de 2005, decidiu revogar a sentença proferida na 1.ª instância, condenando a ré no pagamento à autora da quantia de Euro 64 542,58 e juros.

Desse acórdão pediu a ré revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

Na resposta à alegação, a autora formulou as seguintes 'conclusões':

"1.ª A formalidade do envio do aviso previsto no artigo 4.º do Decreto-Lei 105/94, de 23 de Abril, tem a natureza de documento ad substanciam, insubstituível por outro meio de prova ou por documento que não seja de força probatória superior (artigos 364.º, n.º 1, e 294.º, do CC), por ser imprescindível para determinar a certeza do dies a quo do prazo de resolução do contrato, na esteira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Março de 2002, in Colectânea de Jurisprudência, 2002, t. 1, p. 142, e do Acórdão da Relação de Lisboa de 6 de Março de 1996, in Colectânea de Jurisprudência, 1996, t. 2, pp. 161/2, pelo que o quesito 7.º não podia ser dado como provado com base num depoimento testemunhal;

2.ª À seguradora cabe o ónus de provar que o segurado foi avisado por carta registada (comunicação formal) e in casu não foi feita essa prova nem apresentado o registo do envio do aviso escrito, pelo que a falta de observância das formalidades prescritas na lei quanto à resolução do contrato é a prevista no artigo 220.º do CC e determina a manutenção da sua vigência;

3.ª O Decreto-Lei 162/84 é o antecessor do Decreto-Lei 105/94, aplicável in casu, e este diploma apenas veio substituir ou 'alterar o regime vigente por forma a diminuir os prazos', como resulta do seu preâmbulo. Em nada mais alterou o regime do Decreto-Lei 162/84, mormente em termos de reduzir as garantias dos segurados quanto ao regime do envio e de prova das formalidades de rescisão do contrato de seguro até porque nem o poderia fazer, sob pena de inconstitucionalidade, por reduzir as garantias de defesa dos cidadãos (artigos 2.º e 20.º, n.º 1, da CRP) e os direitos dos consumidores (artigo 60.º, n.º 1, da CRP), matérias que são da competência da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP];

4.ª Mantendo-se o seguro vigente e tendo a recorrida feito prova perante a recorrente dos sinistros, com o envio dos competentes justificativos, devia a recorrente satisfazer a indemnização do respectivo valor, pois que os sinistros estão cobertos pela apólice contratada;

5.ª O douto acórdão recorrido fez correcta apreciação dos factos e aplicação das normas jurídicas citadas nas conclusões anteriores."

O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 1 de Fevereiro de 2005, concedeu a revista, por forma a ficar prevalecente a decisão da 'improcedência da acção decretada na 1.ª instância'.

Em síntese, nesse aresto foi considerado:

Que os Decretos-Leis n.os 105/94 (seus artigos 1.º, n.º 1, 4.º, 5.º, 11.º e 12.º) e 142/2000, de 15 de Julho (seus artigos 7.º e 8.º), estabeleceram clara diferença, referentemente ao Decreto-Lei 162/84, de 18 de Maio, na regulamentação da matéria ligada:

À obrigação das seguradoras em avisar por escrito os tomadores do seguro da data em que os prémios de seguro ou as fracções eram devidos;

À obrigatoriedade de dos 'avisos' constarem as consequências da falta de pagamento dos prémios, nomeadamente a data a partir da qual o contrato era automaticamente resolvido;

Ao estabelecimento do ónus, a cargo das seguradoras, de, em caso de dúvida, provarem o envio do 'aviso';

Ao estabelecimento, no caso de falta de pagamento dos prémios ou fracções nas datas indicadas, da constituição em mora dos tomadores do seguro e da automática resolução dos contratos de seguro, sem possibilidade de reposição em vigor, nas situações em que hajam decorrido 60 dias desde a constituição em mora;

Que se, perante o Decreto-Lei 162/84, se poderia defender a natureza da formalidade ad substanciam do aviso de recepção da carta registada que comunicava a suspensão da garantia decorrente do seguro, isso já não era defensável no domínio do Decreto-Lei 105/84, pelo que as seguradoras podem agora demonstrar o ónus de envio do 'aviso' por qualquer forma, nomeadamente por intermédio de prova testemunhal;

Que, como pelo Decreto-Lei 105/94 foi revogada toda a anterior legislação que contrariasse o disposto nesse diploma, não se podia sustentar que ele apenas veio alterar os prazos, mantendo o anterior regime de 'avisos' e seu registo;

Que se não via como podia 'afrontar o estado de direito democrático e o princípio da confiança que nele está ínsito, impedir o acesso ao direito e aos tribunais ou atentar contra os interesses e direitos dos consumidores', 'a exigência, ou não, de um aviso de recepção na indicação da data do pagamento do prémio de seguro - data já fixada na apólice'.

Notificada deste aresto, veio a autora interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, o que fez por intermédio de requerimento onde disse:

"O recurso visa a apreciação do regime do Decreto-Lei 105/94, de 23 de Abril (máxime dos seus artigos 4.º e 5.º), que sucedeu ao Decreto-Lei 162/84, de 18 de Maio.

A questão foi suscitada na resposta à alegação do recurso de revista nos seguintes termos:

O Decreto-Lei 162/84 é o antecessor do Decreto-Lei 105/94, aplicável in casu. E o Decreto-Lei 105/94 apenas veio substituir ou 'alterar o regime vigente por forma a diminuir os prazos', como resulta do seu preâmbulo. Era essa a sua preocupação: 'que as garantias do seguro sejam válidas sem que o prémio tenha sido pago, para além de um determinado período de tempo considerado razoável'. Em nada mais alterou o regime do Decreto-Lei 162/84, mormente em termos de reduzir as garantias dos segurados quanto ao regime do envio e de prova das formalidades de rescisão do contrato de seguro.

E nem o poderia fazer, sob pena de inconstitucionalidade, por reduzir as garantias de defesa dos cidadãos (artigos 2.º e 20.º, n.º 1, da CRP) e os direitos dos consumidores (artigo 60.º, n.º 1, da CRP), matérias que são da competência da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP]. É um caso paralelo ao da citação postal simples implantada pelo Decreto-Lei 183/2000, só que muito mais frágil e perigoso (no caso do Decreto-Lei 105/94), porque a expedição ou envio do aviso não está sequer rodeado das cautelas mínimas que o legislador colocou na citação (artigo 236.º-A).

Conclusão 3.ª O Decreto-Lei 162/84 é o antecessor do Decreto-Lei 105/94, aplicável in casu, e este diploma apenas veio substituir ou 'alterar o regime vigente por forma a diminuir os prazos', como resulta do seu preâmbulo. Em nada mais alterou o regime do Decreto-Lei 162/84, mormente em termos de reduzir as garantias dos segurados quanto ao regime do envio e de prova das formalidades de rescisão do contrato de seguro até porque nem o poderia fazer, sob pena de inconstitucionalidade, por reduzir as garantias de defesa dos cidadãos (artigos 2.º e 20.º, n.º 1, da CRP) e os direitos dos consumidores (artigo 60.º, n.º 1, da CRP), matérias que são da competência da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP].

O STJ, conhecendo da questão, entendeu não ver laivo de inconstitucionalidade.

O problema tinha sido levantado em termos idênticos na apelação."

O conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 3 de Maio de 2005, admitiu o recurso, tendo os autos sido remetidos ao Tribunal Constitucional em 23 seguinte.

2 - Entende-se ser de proferir decisão ex vi do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei 28/82.

Como se viu, pretende a ora recorrente que este Tribunal aprecie o 'regime' do Decreto-Lei 195/94, nomeadamente os seus artigos 4.º e 5.º

Em primeiro lugar, não pode, de todo em todo, ser considerado como objecto adequado de um recurso de fiscalização concreta a apreciação da globalidade de um regime constante de um dado diploma legal se, como na situação sub specie acontece, a ratio juris da decisão pretendida impugnar se esteou tão-só em determinado ou determinados preceitos desse diploma.

É certo que, no requerimento de interposição do recurso, a impugnante utilizou a menção '(máxime artigos 4.º e 5.º)', reportados ao Decreto-Lei 105/94.

Todavia, como resulta do resumo da fundamentação carreada pelo aresto ora querido colocar sob a censura deste Tribunal, a questão por ele decidida prendeu-se com a de saber se, em face do que se consagra naqueles preceitos, conexionadamente com o artigo 1.º e com a revogação, operada pelo artigo 11.º, este como aquele, ainda do mesmo diploma, de toda a legislação anterior sobre a matéria e que contrariasse o nele disposto, era de considerar que ainda era de exigir que o 'aviso', por escrito, da seguradora ao tomador (e esse 'aviso' unicamente se podia consubstanciar naquele a que se refere o n.º 1 do artigo 4.º), havia de ser expedido por correio registado com aviso de recepção.

Ora sobre esta questão, o alto tribunal a quo entendeu, num primeiro passo, que a regulação posterior à revogação do Decreto-Lei 162/84 apontava no sentido de o 'aviso' a expedir pelas seguradoras para os tomadores do seguro ('aviso' esse no qual se haveriam de dar as indicações da data em que os prémios ou fracções eram devidos e das consequências da falta do respectivo pagamento - que eram as de os tomadores, para além daquela data, se constituírem em mora e, decorridos 60 dias, ficarem os contratos de seguro automaticamente resolvidos sem possibilidade de serem repostos em vigor) não tinha de o ser por meio de correio registado com aviso de recepção. Num segundo passo, considerou o acórdão que com aquela regulação se eliminou qualquer prazo de suspensão tal como o previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei 162/84. E, num terceiro, ponderou que, atento o que se estipula no n.º 3 do artigo 4.º, a prova do mencionado 'aviso' (ainda que se entendesse que, no domínio do falado Decreto-Lei 162/84, era uma formalidade ad substanciam dever ser o 'aviso' remetido por correio registado com aviso de recepção) poderia ser feita pela seguradora por qualquer meio de prova, incluindo a prova testemunhal.

Foi, pois, com esta dimensão interpretativa que a questão foi decidida.

E, como deflui das cabidas pelas processuais elaboradas pela recorrente e de que acima se fizeram as pertinentes transcrições, um tal sentido interpretativo nunca por ela foi, qua tale, equacionado do ponto de vista da sua conformidade constitucional.

2.1 - Todavia, mesmo que, com benevolência, se entenda o contrário, ou seja, que, efectivamente, foi desiderato da impugnante suscitar a questão da inconstitucionalidade do já citado sentido, e que é a ele que se refere no requerimento de interposição do vertente recurso, então haverá de concluir-se que este é manifestamente infundado.

Anotando-se desde logo que não compete a este Tribunal sindicar se, a nível do direito ordinário, a interpretação sufragada na decisão recorrida é, ou não, a mais defensável - já que os seus poderes cognitivos se circunscrevem a saber se a interpretação concretamente prosseguida é constitucionalmente censurável -, o que é certo é que não é concebível que uma disposição de carácter meramente procedimental, tal como a estabelecida no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 162/84 (ou seja, a de o 'aviso' dever ser remetido por correio registado com aviso de recepção), possa ser visualizada como sendo inerente à consagração inarredável de qualquer direito ou garantia fundamentais dos cidadãos, inserindo-se essa matéria (e, note-se, o próprio Decreto-Lei 162/84, que prescreveu essa formalidade, não foi emitido pelo órgão parlamentar) na competência legislativa da Assembleia da República. Sequentemente, também a alteração de tal procedimento não se lobriga que houvesse de ser reservada a esse órgão legiferante.

E, mesmo tomando como parâmetro o n.º 1 do artigo 60.º da Constituição, na perspectiva de terem os consumidores direito à informação, igualmente se não divisa em que é que, com a regulação vigente após o Decreto-Lei 150/94 - e dado que nela se continua a exigir que as seguradoras informem por escrito os tomadores dos seguros com, pelo menos, 10 dias de antecedência das datas de pagamento dos prémios ou fracções e das consequências do não pagamento -, a alteração procedimental sobre a forma de expedição do 'aviso' haveria de ser incluída na reserva de competência relativa do Parlamento.

É que não existe nenhuma 'diminuição' da garantia dos 'consumidores/tomadores' dos seguros, pois que, como se viu, continua a exigir-se a dação de informação das datas de pagamento dos prémios e fracções e da totalidade das consequências do não pagamento. Aliás, o não pagamento não redunda numa imediata resolução dos contratos de seguro, mas sim, em primeiro lugar, na constituição em mora por banda dos tomadores e só passados 60 dias é que operará a automática resolução.

Não é, desta arte, 'tocado', 'constrito' ou restringido pela alteração 'adjectiva' em causa, qualquer 'núcleo' essencial do direito à informação dos 'consumidores/tomadores' dos seguros, sendo certo que (e independentemente de, como se assinalou, a formalidade consistente no envio do aviso por correio registado anteriormente constar de diploma também não emanado da Assembleia da República) o ónus de prova do envio do aviso recai sobre as seguradoras, não incumbindo, pois, aos tomadores efectuarem o que poderia, em abstracto, ser considerado como uma 'prova diabólica', no sentido de sobre eles incidir o ónus de demonstração de que não foram avisados das datas de pagamento dos prémios ou fracções e das consequências da conduta omissiva.

Por outro lado, não se lobriga minimamente em que é que - ainda que se admita que, no âmbito do Decreto-Lei 162/84, o envio do aviso por via de correio registado fosse considerado uma formalidade as substanciam - o diverso procedimento no tocante ao aviso (e mesmo a supressão da suspensão da garantia concedida pelos contratos de seguro) introduzido a partir da vigência do Decreto-Lei 105/94 vai, por qualquer forma, coarctar os 'consumidores/tomadores' dos seguros num direito de acesso aos tribunais (ilustrativo desta asserção é, aliás, a existência dos presentes autos), quando, como já se expôs, o ónus da prova do envio do aviso recai sobre as seguradoras.

2.1.1 - Esgrime ainda a recorrente com a ofensa do artigo 2.º da lei fundamental, pela circunstância de, com a nova regulamentação, serem 'reduzidas' 'as garantias de defesa dos cidadãos'.

Para além de já se ter visto que essa redução não operava, sempre se poderia impostar a questão de saber se, com a invocação do indicado artigo 2.º, não quereria a impugnante brandir com um argumento segundo o qual os tomadores de seguro foram 'surpreendidos' com a alteração da regulamentação no que se reporta à anterior exigência de o 'aviso' ser expedido por via de correio registado com aviso de recepção (e de ter desaparecido o período de suspensão do contrato de seguro), pelo que a sua confiança na manutenção do anterior satus quo, adveniente do pretérito regime, se mostraria abalada.

Ora, mesmo que fosse este o hipotético desiderato da recorrente, ao fazer a invocação do artigo 2.º do diploma básico, também neste particular a questão se mostraria manifestamente infundada.

Na realidade, como tem sido jurisprudência deste Tribunal, o princípio da confiança ínsito no Estado de direito democrático não aponta, sem mais, para que não seja permitido ao legislador ordinário proceder à alteração nos regimes jurídicos existentes, ainda que com repercussão nas situações jurídicas (ou nos efeitos das situações) constituídas à sombra do antecedente regime.

O que aquele princípio da protecção da confiança condensado no falado artigo 2.º postula é 'uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direitos das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas' (cf., por entre muitos outros, o Acórdão 303/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17.º vol., pp. 65 a 95).

E, para se continuarem a utilizar as palavras do citado aresto, em face daquela ideia, 'a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica'.

Também teve o Tribunal ocasião de dizer, no Acórdão 17/84 (citados Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º vol., p. 375 a p. 382), que 'o cidadão deve poder prever as intervenções que o Estado poderá levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas. Ele deve poder confiar em que a sua actuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as suas consequências jurídicas relevantes'.

Porém, porque a ordem jurídica não é, nem pode ser, imutável, há que reconhecer ao legislador uma ampla margem de liberdade conformadora, como será o caso da adopção de medidas que, no domínio procedimental ou adjectivo, tornem este mais eficaz e célere, com os inerentes benefícios para a prossecução do próprio interesse público geral, medidas essas que, sob pena de perder de vista a consecução desses objectivos, haverão de aplicar-se a situações já passadas ou em curso.

Ponto é que, como se depara límpido e resulta da jurisprudência deste Tribunal, a normação posterior (cf., por exemplo, o Acórdão 86/84, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., p. 81 a p. 133) não venha, acentuada ou patentemente, a alterar o conteúdo das situações de facto já alcançadas como consequência do direito anterior.

E, por isso, em casos, quer de retroactividade quer de retrospectividade (e afora as situações em que, constitucionalmente, está vedada a retroactividade, como são os domínios penal e da proibição de criação de impostos retroactivos), o que o princípio de que curamos obstacula é que as alterações impostas represente algo de intolerável, arbitrário ou patentemente opressivo.

O que, seguramente, se não verifica com a mera supressão da formalidade de envio da comunicação por meio de correio registado com aviso de recepção, ficando a cargo das seguradoras o ónus de provar que tal comunicação foi efectuada.

Neste contexto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 6 unidades de conta."

Da transcrita decisão reclamou, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a Transportes de Mercadorias Remédios, Lda., fazendo-o nos seguintes termos:

"1 - Resulta evidente do recurso que o que se visa é a fiscalização concreta dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 105/94, de 23 de Abril, e não de todo um regime legal (fl. 552), e que o problema nada tem a ver com a alteração inesperada da legislação (fl. 555).

2 - A redução das garantias fundamentais dos cidadãos (fls. 553/4) resulta precisamente do facto de, não se exigindo o aviso de recepção para a prova das formalidades de rescisão do seguro, a prova poder ser feita por qualquer meio, nomeadamente testemunhal, como foi neste processo, por um qualquer funcionário da companhia de seguros, que nada teve a ver com o caso e que se baseou única e exclusivamente nas rotinas e no sistema informático (ver fundamentação de facto a fls. 314 e segs.).

E nem se diga o não pagamento não redunda numa imediata resolução dos contratos, mas apenas na constituição em mora (fl. 554), pois que o aviso é feito simultaneamente da mora e da resolução é feito simultaneamente no mesmo documento e por isso não se recebendo a resolução não deixa de ser automática (doc. de 16 de Junho de 1995, junto na 1.ª audiência de julgamento).

Não se trata, pois, de uma questão de informação dos consumidores, mas de prova do envio e da comunicação dessa informação.

Ora, como é óbvio, ao deixar de se exigir o envio registado do aviso, automaticamente são diminuídas as garantias de defesa do consumidor, seja quanto ao envio efectivo, seja quanto à própria prova de que essa formalidade foi cumprida.

Nessa medida se arguiu oportunamente a inconstitucionalidade."

Ouvida sobre a reclamação, a Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S. A., não veio a efectuar qualquer "pronúncia".

Cumpre decidir.

2 - Diz a reclamante que com o presente recurso se visa a fiscalização concreta da compatibilidade com a Constituição por parte dos artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei 105/94, de 23 de Abril, e não de todo o regime legal estabelecido por aquele diploma e que a questão "nada tem a ver com a alteração inesperada da legislação".

Ora, a decisão agora impugnada não deixou de se pronunciar quer sobre a disciplina introduzida pelos citados artigos 4.º e 5.º, com a projecção decorrente da revogação do Decreto-Lei 162/84, acarretando uma eventual violação do princípio da confiança, quer sobre a também eventual diminuição sobre os "direitos dos consumidores" que aquela disciplina poderia consequenciar, diminuição essa resultante de se ter deixado de exigir que o "aviso" fosse expedido por correio registado, ficando, porém, a cargo das seguradoras a prova do envio do aviso.

Entende o Tribunal que a decisão ora reclamada não merece censura, seja em relação ao seu teor decisório, seja em relação à fundamentação a ela carreada, não se vislumbrando que a peça reclamatória tenha aduzido qualquer argumento susceptível de infirmar aquela decisão, sendo evidente que, no tocante ao ónus da prova a cargo das seguradoras, é estranho à competência deste órgão de administração de justiça a questão da forma concreta e específica como foi, pela ordem dos tribunais judiciais, dado como provado o envio do "aviso" à tomadora do seguro.

Em face do exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.

Lisboa, 13 de Julho de 2005. - Bravo Serra - Gil Galvão - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2345328.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-04-02 - Decreto-Lei 105/84 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios da Administração Interna e das Finanças e do Plano

    Actualiza os vencimentos do pessoal da Polícia de Segurança Pública (PSP).

  • Tem documento Em vigor 1984-05-18 - Decreto-Lei 162/84 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Tesouro

    Estabelece normas relativas ao pagamento dos prémios de seguros.

  • Tem documento Em vigor 1990-12-26 - Acórdão 303/90 - Tribunal Constitucional

    Declara inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do n.º 11 do artigo 14.º da Lei n.º 114/88, de 30 de Dezembro, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.(Processo n.º 129/89)

  • Tem documento Em vigor 1994-04-23 - Decreto-Lei 105/94 - Ministério das Finanças

    ESTABELECE NORMAS RELATIVAS AO PAGAMENTO DOS PRÉMIOS DOS SEGUROS. O DISPOSTO NESTE DIPLOMA APLICA-SE A TODOS OS CONTRATOS DE SEGUROS COM EXCEPÇÃO DOS RESPEITANTES AOS SEGUROS DE CRÉDITO E AO RAMO 'VIDA', BEM COMO AOS SEGUROS TEMPORÁRIOS CELEBRADOS POR PERIODOS INFERIORES A 90 DIAS. ESTE DIPLOMA ENTRA EM VIGOR NO PRIMEIRO DIA DO TERCEIRO MÊS SEGUINTE AO DA DATA DA SUA PUBLICAÇÃO, APLICANDO-SE A PARTIR DAQUELE MOMENTO, A TODOS OS CONTRATOS QUE VENHAM A SER CELEBRADOS, BEM COMO AOS CONTRATOS JÁ CELEBRADOS, NA (...)

  • Tem documento Em vigor 1994-05-25 - Decreto-Lei 150/94 - Ministério da Agricultura

    Estabelece as condições gerais de aplicação do Programa de Apoio à Modernização Agrícola e Florestal (PAMAF).

  • Tem documento Em vigor 1994-07-19 - Decreto-Lei 195/94 - Ministério da Indústria e Energia

    CRIA O PROGRAMA ENERGIA, NOS TERMOS DO DISPOSTO NA DECISÃO 94/366/CE (EUR-Lex), DA COMISSAO E SEM PREJUÍZO DO DISPOSTO NO DECRETO LEI 99/94, DE 19 DE ABRIL (QUADRO COMUNITARIO DE APOIO). O REFERIDO PROGRAMA TEM COMO OBJECTIVO PROPICIAR A DIVERSIFICAÇÃO EM MATERIAS-PRIMAS ENERGÉTICAS, VISANDO A DIMINUIÇÃO DA DEPENDENCIA DO PETRÓLEO, PELO FOMENTO DA UTILIZAÇÃO DOS RECURSOS ENERGÉTICOS ENDÓGENOS. DISPOE SOBRE O QUADRO INSTITUCIONAL DO PROGRAMA, APOIOS FINANCEIROS, INCENTIVOS, FINANCIAMENTO E ENTIDADES BENEFICI (...)

  • Tem documento Em vigor 2000-08-10 - Decreto-Lei 183/2000 - Ministério da Justiça

    Altera o Código de Processo Civil, estabelecendo nalgumas situações a possibilidade da citação por via postal simples; prevê um novo regime legal de prestação de depoimento pelo surdo, mudo ou surdo mudo; desonera as secretarias judiciais das tarefas de liquidação, emissão de guias e contabilidade da taxa de justiça inicial e subsequente ao longo do Processo, e dispõe também quanto ao adiamento da audiência por falta de testumunha, de advogado, de peritos ou consultores técnicos. Altera ainda o Decreto-Lei (...)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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