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Acórdão 298/2005/T, de 28 de Julho

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Texto do documento

Acórdão 298/2005/T. Const. - Processo 842/2004. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Relatório. - Por sentença proferida em 24 de Outubro de 2001 no Tribunal Judicial da Comarca de Lamego, foi o arguido António Manuel Ferreira Monteiro condenado, pela autoria material de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, por factos ocorridos em 25 de Março de 1999, na pena de 8 meses de prisão, a qual foi declarada totalmente perdoada ao abrigo do artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, sob a condição resolutiva constante do artigo 4.º da citada lei - "O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa [nos] três anos subsequentes à data da entrada em vigor da presente lei, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acrescerá a pena ou parte da pena perdoada" -, sentença essa confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de Setembro de 2002, transitado em julgado.

Tendo sido junto aos autos o certificado do registo criminal do arguido, do qual resultou ter o mesmo sido condenado, por sentença de 22 de Março de 2001 do Tribunal Judicial da Comarca de Lamego, como autor de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, previsto e punido pelo artigo 6.º, com referência ao artigo 1.º, alínea b), da Lei 22/97, de 27 de Junho, por factos ocorridos em 26 de Fevereiro de 2001, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 700$, perfazendo a quantia global de 70 000$, o representante do Ministério Público junto do mesmo Tribunal promoveu, em 15 de Janeiro de 2003, que fosse revogado o perdão concedido, "ressurgindo a pena de 8 meses de prisão, que o arguido deverá cumprir".

Na sequência desta promoção, e sem prévia audição do arguido, o juiz do referido Tribunal proferiu despacho, em 27 de Janeiro de 2003, no qual, considerando ter-se verificado a condição resolutiva sob a qual fora perdoada a pena de prisão em que o arguido fora condenado nestes autos, revogou este perdão, com ressurgimento dessa pena de prisão.

Deste despacho interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação do Porto, onde, para além de arguir a nulidade do despacho por ter sido proferido sem sua prévia audição e de sustentar a inaplicabilidade da condição resolutiva do perdão da pena de prisão, quer por o crime e a condenação invocados para o efeito serem anteriores à sentença que concedeu o perdão quer por a correspondente pena ter sido de multa, desde logo, para a hipótese de as anteriores teses não lograrem vencimento, suscitou as questões da inconstitucionalidade das interpretações: i) das normas dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal (CPP) e 4.º da Lei 29/99, no sentido de permitirem a revogação do perdão sem a prévia audiência do arguido, por violação dos n.os 1, 5 e 7 do artigo 32.º da CRP; ii) da norma do artigo 4.º da Lei 9/99, no sentido de considerar "infracção superveniente", determinante da revogação do perdão, um crime cometido e objecto de condenação após a entrada em vigor dessa lei mas antes da prolação da sentença que concedeu o perdão, por violação do princípio da culpa, indissociável da dignidade da pessoa humana, e do disposto nos artigos 1.º, 13.º e 25.º da CRP; e iii) da mesma norma, no sentido de que a condenação em pena de multa pode determinar a revogação do perdão de pena de prisão, por violação do princípio da proporcionalidade e adequação das penas, protegido, entre outros, pelos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP.

A esse recurso foi negado provimento por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Fevereiro de 2004, que considerou que: i) não resultando inequivocamente do artigo 4.º da Lei 29/99 que a revogação do perdão tenha de ser precedida de audição do arguido, consentindo expressamente o artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do CPP a existência de excepções à regra de o arguido dever ser ouvido pelo tribunal quando haja de ser tomada qualquer decisão que pessoalmente o afecte, e não restando dúvidas, face à interpretação literal daquele artigo 4.º, de que, verificada a condição resolutiva, ocorre ope legis a revogação do perdão, o despacho recorrido não enferma de qualquer nulidade nem de qualquer interpretação inconstitucional; ii) face ao disposto no artigo 4.º da Lei 29/99, para a revogação do perdão o que conta é a data da prática dos factos no prazo de três anos a partir da entrada em vigor da lei, sendo irrelevante a data em que a sentença que concedeu o perdão foi proferida; e iii) nos termos do mesmo preceito - e sendo certo que os preceitos constantes de leis de amnistia e perdão, atenta a sua natureza de providências excepcionais, devem ser interpretados nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nessas leis não venham expressas -, o determinante é que se trate de infracção dolosa, como no caso ocorreu, sendo irrelevante que seja punida com pena de prisão ou de multa.

Deste acórdão vem interposto, pelo arguido, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), tendo, neste Tribunal, apresentado alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:

"1 - A norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal, conjugada com a norma do artigo 4.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, na interpretação, adoptada pelo douto acórdão recorrido, que permite a revogação do perdão sem a prévia audiência do arguido, é inconstitucional porque ofende o disposto, entre outros, nos n.os 1, 5 e 7 do artigo 32.º da CRP.

2 - A norma contida no mesmo artigo 4.º da Lei 29/99, na interpretação, subscrita pelo douto acórdão recorrido, que considera relevantes, para efeitos de determinar a revogação do perdão nela previsto, delitos cometidos após a entrada em vigor dessa lei, mas anteriores à sentença que concedeu o perdão revogando, é inconstitucional, porque ofende o princípio da culpa, indissociável da [dignidade da] pessoa humana, e o disposto, entre outros, nos artigos 1.º, 13.º e 25.º da CRP.

3 - A norma contida ainda nesse artigo 4.º da Lei 29/99, na interpretação adoptada pelo douto acórdão recorrido, que considera relevante para a aplicação da mesma qualquer infracção, ainda que punida com simples multa, é inconstitucional porque ofende o princípio da proporcionalidade e adequação das penas, protegido, entre outros, pelos artigos 1.º, 13.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP."

Pelo representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional foram apresentadas contra-alegações, concluindo:

"1 - Goza o legislador ordinário de significativa margem de discricionariedade para decretar medidas de clemência e fixar o seu quadro de aplicação, não sendo inconstitucional uma interpretação da norma do artigo 4.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, que admita como relevante para revogar o perdão concedido que a infracção dolosa superveniente tenha sido cometida anteriormente à decisão que o havia decretado, nem que àquela tenha correspondido como sanção pena de multa.

2 - É inconstitucional, por violação dos n.os 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição, uma interpretação do bloco normativo formado pelo artigo 4.º da Lei 29/99 e pelo artigo 61.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, que entenda não ser obrigatório ouvir previamente o arguido, face à possibilidade efectiva de lhe ser revogado o perdão concedido e ter que vir a cumprir pena efectiva de prisão.

3 - Termos em que deverá o presente recurso proceder parcialmente."

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

2 - Fundamentação.

2.1 - Resulta de vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional o reconhecimento, mesmo fora do domínio processual penal, de que "a garantia da via judiciária - ínsita no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos - envolve não apenas a atribuição aos interessados legítimos do direito de acção judicial, destinado a efectivar todas as situações juridicamente relevantes que o direito substantivo lhes outorgue, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão constitucional de 1997) a regra do "processo equitativo", expressamente consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional" (Carlos Lopes do Rego, "Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil", em Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, p. 835, Coimbra, 2003). Centrando-nos no princípio do contraditório - "do qual decorre, em primeira linha, a regra fundamental da proibição da indefesa" (autor e loc. cits.) -, dele deriva, como a jurisprudência constitucional sempre tem afirmado, desde o Parecer da Comissão Constitucional n.º 18/81 (Pareceres da Comissão Constitucional, 16.º vol., p. 147, e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 310, p. 159), que "nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve aí [no processo penal] ser tomada, pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade, ao sujeito processual contra o qual ela é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar".

No Acórdão 499/97 (Diário da República, 2.ª série, n.º 244, de 21 de Outubro de 1997, p. 12 983, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 37.º vol., p. 499) - em que o Tribunal Constitucional julgou "inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição, as normas dos artigos 409.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal e 9.º, n.º 3, alínea a), da Lei 15/94, de 11 de Maio, conjugadamente, na interpretação segundo a qual a revogação pelo Supremo Tribunal de Justiça do perdão concedido na 1.ª instância por aplicação da Lei 15/94, de 11 de Maio [artigo 8.º, n.º 1, alínea d)], fundamentada no artigo 9.º, n.º 3, alínea a), do mesmo diploma, não se encontra subordinada à proibição da reformatio in pejus consagrada no artigo 409.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal", num caso em que o Supremo Tribunal de Justiça havia, em recurso interposto pela defesa, oficiosamente revogado perdão de penas decretado pelas instâncias, sem prévia audição dos arguidos recorrentes sobre essa questão [o Acórdão 498/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40.º vol., p. 517) também julgou inconstitucional a norma do artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a proibição da reformatio in pejus não abrange a revogação pelo tribunal superior do perdão de pena concedido pela 1.ª instância, mas na sua fundamentação não foi encarada a questão da violação do princípio do contraditório] -, consignou-se o seguinte, com especial relevância para o exacto entendimento do princípio do contraditório em matéria de revogação de medidas de clemência:

"12 - Perguntar-se-á, então, se a norma que admite a revogação pelo tribunal de recurso do perdão concedido pelo tribunal de 1.ª instância, havendo apenas recurso da defesa, afectará as razões constitucionais de proibição de reformatio in pejus?

A resposta negativa só se poderia basear em que a aplicação de perdões ou de amnistias, pela sua excepcionalidade, se sobreporia aos mecanismos do recurso e não estaria submetida, enquanto mera alteração da qualificação jurídica de certas situações, ao contraditório e à estrutura acusatória do processo penal nem suscitaria um direito a um benefício invocável pelo arguido.

Segundo tal lógica, seria apenas uma emanação da obrigação dos tribunais de aplicar correctamente o direito - e que eles próprios controlariam oficiosa e inquisitoriamente (cf., sobre esta questão, Giorgio Spengher, Enciclopedia del Diritto, loc. cit., enunciando, muito claramente, a hipótese de uma declaração ope legis de uma revogação de benefícios, mas concluindo que é o Código do Processo Penal italiano que impõe que a reformatio in pejus e a regra tantum devolutum quantum appelatum operem em sede de procedimento constitutivo e não valham em sede de mero acto declarativo do tribunal, e referindo que, mesmo que os benefícios concedidos tenham violado as disposições substantivas que os atribuem, a revogação não pode ser ordenada pelo juiz superior, prevalecendo o garantismo sobre a prevenção).

Todavia, a protecção do exercício do contraditório como condição de uma justiça comunicacional, profundamente humana, não abrange apenas a discussão conducente à prova dos factos e da culpa ou à infirmação da presunção de inocência, mas atinge ainda todos os aspectos de qualificação jurídica com repercussão na situação do arguido. É a esta luz que se compreende a decisão do Tribunal Constitucional, segundo a qual a possibilidade de diferente qualificação jurídico-penal dos factos que conduzem à condenação do arguido em pena mais grave, retirada da interpretação conjugada dos artigos 1.º, n.º 1, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.os 1 e 2, e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal é inconstitucional, na medida em que não se preveja que o arguido seja prevenido da nova qualificação e não se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa (cf. Acórdão 279/95, Diário da República, 2.ª série, de 28 de Julho de 1995).

13 - Deste modo, o contraditório surge como regra orientadora da produção pelo tribunal de um juízo que interfira com o arguido, para além de se justificar pela defesa de direitos. Em processo penal, o contraditório visa, antes de mais, assegurar decisões fundamentadas na discussão de argumentos, subordinando todas as decisões (ainda que recorríveis) em que os arguidos sejam pessoalmente afectados [cf. artigo 65.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal], como emanação de uma racionalidade dialéctica, comunicacional e democrática. É, assim, o princípio do contraditório expressão do Estado de direito democrático e, nessa medida, igualmente das garantias de defesa. A sua absoluta derrogação pela permissão de uma reformatio in pejus oficiosa (sobre a fundamentação da proibição da reformatio in pejus no direito ao contraditório, v. Giorgio Spengher, Enciclopedia del Diritto, loc. cit., p. 297, nota 134, referindo a progressiva conexão entre a proibição da reformatio in pejus e o direito de defesa, numa lógica não inquisitória) torna-se, assim, clara violação do próprio princípio do contraditório, na sua justificação última."

Como resulta desta transcrição, o respeito do princípio do contraditório, como emanação das garantias de defesa em processo criminal, impunha que, perante a promoção de revogação da perdão de pena, fosse dada ao arguido a possibilidade de se pronunciar, possibilidade que não lhe podia ser negada com base numa pretensa automaticidade ou operatividade ope legis daquela revogação.

Acresce que esta revogação dependia da verificação da ocorrência de determinadas circunstâncias e ao arguido assistia o direito de, logo perante o juiz de 1.ª instância, aduzir as suas razões no sentido do não preenchimento dessas condições, quer propugnando uma interpretação normativa diversa da que veio a ser acolhida quer arguindo a inconstitucionalidade desta última.

Não cabendo, como é óbvio, ao Tribunal Constitucional, nesta sede, pronunciar-se quanto à correcção da interpretação do direito ordinário efectuado pelas instâncias, não pode deixar de registar-se, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 1984, processo 37 403 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 338, p. 233), em que, face ao artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei 758/76, de 22 de Outubro, que condicionava o perdão por ele concedido ao não cometimento pelo beneficiário de infracção dolosa nos três anos subsequentes à data desse diploma, se discutiu se a prática de crime doloso na noite de 25 para 26 de Outubro de 1976 impedia a manutenção da concessão de perdão, em 20 de Novembro de 1976, da pena a que fora condenado, por sentença de 23 de Março de 1971 (de que só foi notificado em Fevereiro de 1982), por crimes cometidos em 1967. O Supremo Tribunal de Justiça, nesse aresto, entendeu que "com a sujeição da aplicação em definitivo do perdão concedido no acima citado artigo 5.º do Decreto-Lei 758/76 à verificação da condição exigida no seu n.º 2 (preceito este que vem sendo sistematicamente inserido em todos os diplomas de concessão de perdões de pena), tem a lei em vista motivar os beneficiados para o não cometimento de novos crimes, pelo menos durante um certo período de tempo, só assim os considerando merecedores do perdão inicialmente concedido", pelo que, "desde logo, e muito logicamente, só ao condenado que de tanto tenha tido conhecimento é legítimo, para o efeito, exigir um comportamento merecedor da efectiva aplicação do perdão", pois "antes disso, e não obstante os termos em que a lei se mostra redigida, relativamente ao réu antes condenado mas que ignora que o foi, não é exigível, para o efeito em causa, entenda-se, o comportamento que condiciona a efectiva aplicação do perdão". Considerou, assim, o Supremo Tribunal de Justiça que, "face ao condicionalismo acima relatado, isto é, por o réu não conhecer na altura em que cometeu o crime da noite de 25 para 26 de Outubro de 1976 a condenação que dias antes lhe fora imposta e, mais, o perdão a que em princípio tinha direito (que, aliás, só lhe foi concedido mais tarde, em 20 de Novembro de 1976), se não concretizou a situação, como seria necessário ter-se verificado, que faria perder o aludido benefício", "situação essa que era a de ele, com o seu comportamento posterior, se ter mostrado indiferente ao motivo determinante da concessão de tal benefício". Sintetizando o seu entendimento, afirmou o Supremo Tribunal de Justiça: "Com o entendimento que fica expresso, pretende-se significar que a perda do benefício do perdão condicionalmente concedido (porque dependente, para produzir definitivamente o seu efeito, da exigência do n.º 2 do artigo 5.º) só se dá quando: a) o beneficiário tenha conhecimento da condenação em pena sobre a qual pode incidir o perdão, quando não mesmo do benefício que lhe foi concedido e condição de que ficou dependente o seu efectivo efeito; e, ainda, b), que o mesmo mostre, com a prática de um novo crime doloso dentro do prazo fixado no acima citado preceito legal, que lhe foi indiferente a advertência ou chamada de atenção para o seu comportamento futuro no sentido de se abster de incorrer em nova responsabilidade criminal."

Repete-se que não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre qual das interpretações expostas da regra em causa será a mais correcta, mas a exemplificação da existência de interpretações divergentes mais reforça a conclusão da não dispensabilidade da audição do arguido sobre a promovida revogação do perdão, a pretexto do carácter automático e pretensamente indiscutível desta revogação.

Conclui-se, assim, que são inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 4.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, e 61.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de não ser obrigatória a audição do arguido antes de ser proferida decisão de revogação do perdão de pena de que beneficiara.

2.2 - Quanto à segunda questão de constitucionalidade suscitada - a da interpretação do artigo 4.º da Lei 29/99, que considera relevantes, para efeitos de determinar a revogação do perdão nela previsto, delitos cometidos após a entrada em vigor dessa lei, mas anteriores à sentença que concedeu o perdão revogando - , interessará recordar que o Tribunal já apreciou a conformidade constitucional de interpretação similar feito a propósito da correspondente norma de anterior lei de amnistia e de perdão de penas (artigo 11.º da Lei 15/94, de 11 de Maio), mas tomando então por parâmetros de aferição os princípios da irretroactividade da lei penal e da igualdade. Fê-lo no Acórdão 25/2000 (Diário da República, 2.ª série, n.º 71, de 24 de Março de 2000, p. 5609; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 493, p. 110; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º vol., p. 235), onde se ponderou:

"11 - Para o recorrente, é uma intenção dissuasora a que informa o artigo 11.º da Lei 15/94 (alegações, n.º 15, fl. 471).

Por esse motivo, e ainda porque o perdão não produziria os seus 'efeitos de forma imediata e automática, sendo necessária uma decisão judicial que aprecie as circunstâncias do caso concreto para determinar a aplicação desse perdão' (idem, n.º 16, ibidem), o prazo de três anos deveria contar-se a partir da publicação da lei, 'mas tendo em conta, como limite temporal mínimo, o trânsito em julgado da decisão em que se aplicou o perdão' (idem, n.º 18, ibidem).

Interpretar o artigo 11.º de modo a permitir que opere a condição resolutiva em função do cometimento de infracções anterior ao 'momento em que foi proferida a decisão aplicadora do perdão' 'conduziria a uma aplicação retroactiva da lei e, desta forma, à manifesta violação do artigo 18.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa' (idem, n.º 21, a fl. 472).

12 - Afigura-se como evidente que não resulta da norma aplicada pelo tribunal a quo qualquer retroactividade da lei penal (cuja proibição decorre do artigo 29.º da Constituição, e não do n.º 3 do artigo 18.º).

Na verdade, o que estabelece a norma do artigo 11.º - de resto, interpretada declarativamente pela decisão recorrida - é a resolução do perdão se vier a ser praticada uma infracção dolosa durante um período de tempo de três anos, que é posterior à publicação da lei, e que tem início no momento da sua entrada em vigor.

A revogação do perdão não implica qualquer retroactividade da lei, pela simples e linear razão de que a lei é anterior à prática dos factos que fazem operar a condição resolutiva.

Esta verificação permite, só por si, afastar a alegação de retroactividade, sem necessidade de demonstrar a falta de fundamento da tese, aduzida pelo recorrente, da natureza constitutiva da decisão que declara o perdão. Com efeito, o condenado não é surpreendido com a revogação do perdão, já que praticara os factos dolosos em causa em momento posterior à publicação e à entrada em vigor da lei que concede, sob condição resolutiva, o perdão em causa.

É assim irrelevante, para o efeito de saber se há ou não lesão do princípio da irretroactividade da lei penal, a circunstância de os crimes dolosos terem sido praticados antes ou depois da decisão que declarou perdoada a pena relativa ao crime praticado em 1992.

13 - De acordo com o disposto no artigo 79.º-C da Lei do Tribunal Constitucional, este Tribunal pode julgar inconstitucional uma norma cuja constitucionalidade foi questionada pelo recorrente, embora com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais por este não invocados.

Coloca-se o problema de saber se o regime previsto no artigo 11.º da Lei 15/94, de 11 de Maio, não virá a reservar um tratamento igual para situações fundamentalmente diferentes.

De acordo com a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional, as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência não estão subtraídas ao crivo do princípio da igualdade. Como se afirmou no Acórdão 444/97 (Diário da República, 2.ª série, de 22 de Julho de 1997), sobre a Lei 9/96, de 23 de Março, 'o princípio de igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados - como são restringidos pela aplicação das sanções - impede desigualdades de tratamento'.

A diferenciação de tratamento que por elas seja estabelecida não deve ser arbitrária, materialmente infundada ou irrazoável (cf. o Acórdão 42/95, Diário da República, 2.ª série, de 27 de Abril de 1995, a propósito da exclusão de certas infracções do âmbito do perdão de penas concedido pela Lei 15/94; v., também, os Acórdãos n.os 152/95, Diário da República, 2.ª série, de 20 de Junho de 1995, e 160/96, não publicado, ambos sobre normas extraídas da mesma lei).

Por outro lado, situações substancialmente diferentes exigem um regime diverso. A desigualdade de tratamento para diferentes situações é ainda uma dimensão essencial do princípio da igualdade.

14 - Ao conceder um perdão sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes à data da entrada em vigor da lei, a norma impugnada estatui a resolução da medida de graça em função da prática de infracção dolosa, independentemente de esta prática ser ou não anterior à decisão judicial de aplicação do perdão.

São, pois, colocados em igualdade de circunstâncias os agentes que praticam factos dolosos após a aplicação judicial da lei que concede o perdão e aqueles outros que tinham já praticado factos dolosos em momento anterior à decisão judicial.

Na linha do que defende o recorrente, seria possível afirmar que a aplicação da condição resolutiva legalmente prevista aos casos em que os factos dolosos que a fazem operar são anteriores à decisão judicial faz esquecer a função preventiva, decorrente da ratio do artigo 11.º E tal esquecimento redundaria, afinal, no estabelecimento de um tratamento igual para situações substancialmente desiguais, com lesão do princípio da igualdade.

Todavia, tal linha de raciocínio não se afigura fundada. Na verdade, parece correcto descobrir no artigo 11.º a manifestação de uma ideia de prevenção. Mas não é correcto defender que a função preventiva da condição resolutiva só pode razoavelmente ser desempenhada a partir da decisão judicial. Bem ao contrário, a Lei 15/94, de 11 de Maio, ao declarar condicionalmente perdoadas determinadas penas, estabelece logo, com a publicidade inerente à sua publicação, que só poderá beneficiar do perdão quem se abstiver da prática ulterior de factos dolosos.

A finalidade preventiva obtém-se, pois, a partir da publicação e da entrada em vigor da lei. Deste modo, não sendo decisiva para este efeito a decisão judicial que declara perdoada a pena, é plenamente justificado o igual tratamento concedido aos agentes que vierem a praticar factos dolosos em momento anterior ou posterior à referida decisão judicial.

Consequentemente, conclui-se que a norma impugnada também não viola o princípio constitucional da igualdade."

No presente caso, o recorrente invoca a violação do princípio da culpa, questão não apreciada no Acórdão 25/2000.

José de Sousa e Brito ["A lei penal na Constituição", em Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., Lisboa, 1978, pp. 197-254], elencando como "princípios constitucionais de política criminal o princípio da culpa, o princípio da necessidade da pena e das medidas de segurança, os princípios da legalidade e da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, o princípio da humanidade e o princípio da igualdade", referia então, quanto ao princípio da culpa (sobre a relevância da culpa na determinação da medida da pena, cf., do mesmo autor, "A medida da pena no novo Código Penal", em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, número especial do Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 1984, pp. 555-587):

"O princípio da culpa deduz-se da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º) e do direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1). Significa que a pena se funda na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo. A culpa pressupõe a consciência ética e a liberdade do agente, sem admissão das quais não se respeita a pessoa nem se entende o seu direito à liberdade. Implica que não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, nem medida da pena que exceda a da culpa. Mas já não significa que toda a culpa seja punida."

Como assinala Jorge de Figueiredo Dias, "um [...] princípio de relevo político-constitucional incontestável é o princípio da culpa: o princípio segundo o qual [...] em caso algum pode haver pena sem culpa ou a medida da pena ultrapassar a medida da culpa", princípio que vai buscar o seu fundamento axiológico "ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia de Estado de direito democrático" (Direito Penal Português, parte geral, II, "As consequências jurídicas do crime", p. 73, Lisboa, 1993; cf. também Direito Penal, parte geral, t. I, "Questões fundamentais. A doutrina geral do crime", p. 471, Coimbra, 2004).

Também a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado a relevância constitucional do princípio da culpa, apesar de não consagrado de forma autónoma e expressa no texto constitucional.

No Acórdão 426/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20.º vol., p. 423) considerou-se que o princípio da culpa "está consagrado, conjugadamente, nos artigos 1.º e 25.º, n.º 1, da Constituição: deriva da essencial dignidade da pessoa humana, que não pode ser tomada como simples meio para a prossecução de fins preventivos, e articula-se com o direito à integridade moral e física". E segundo o mesmo aresto: "este princípio exprime-se, em direito penal, a diversos níveis: a) veda a incriminação de condutas destituídas de qualquer ressonância ética; b) impede a responsabilização objectiva, obrigando ao estabelecimento de um nexo subjectivo - a título de dolo ou de negligência entre o agente e o facto [...] ; c) obsta à punição sem culpa e à punição que exceda a medida da culpa [...]".

Esse princípio foi recentemente invocado a propósito da previsão de penas fixas, em jurisprudência que culminou com a prolação do Acórdão 124/2004 (Diário da República, 1.ª série-A, n.º 77, de 31 de Março de 2004, p. 2035), que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, da norma constante da parte final do § único do artigo 67.º do Decreto 44 623, de 10 de Outubro de 1962, enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64.º do mesmo diploma para o crime de pesca em época de defeso quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada. Nesse acórdão reproduziram-se as considerações desenvolvidas a propósito do princípio da culpa, como o primeiro dos princípios constitucionais criminais, no Acórdão 95/2001 (Diário da República, 2.ª série, de 24 de Abril de 2002, p. 7629, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49.º vol., p. 365), onde se lê:

"5.1 - Como este Tribunal sublinhou no Acórdão 83/95 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 30.º, p. 521), o direito penal, no Estado de direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre - do homem que, sendo responsável pelos seus actos, é capaz de se decidir pelo direito ou contra o direito. Há-de ser, por isso, um direito penal ancorado na dignidade da pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível pena sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa. Ou seja: há-de ser um direito penal de culpa [cf., sobre isto, embora em termos não inteiramente coincidentes, Jorge de Figueiredo Dias ('Sobre o estado actual da doutrina do crime', in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, pp. 28 e segs.) e José de Sousa e Brito ('A lei penal na Constituição', in Estudos sobre a Constituição, vol. 2.º, Lisboa, 1978, p. 218)]. É um direito penal que só pode intervir para a protecção de bens jurídicos, mas de bens jurídicos com dignidade penal (é dizer: com ressonância ética), sendo que a danosidade social capaz de justificar a imposição de uma puni ção - como adverte Eduardo Correia (Estudos sobre a reforma do direito penal depois de 1974', in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 119.º, p. 6) - há-de ser ajuizada no plano ético-jurídico, e não num plano meramente sociológico.

O direito penal, enquanto direito de protecção, cumpre, por isso, uma função de ultima ratio, pois só se justifica que intervenha se a protecção dos bens jurídicos não puder ser assegurada com eficácia mediante o recurso a outras medidas de política social menos violentas e gravosas do que as sanções criminais [cf. também Jorge de Figueiredo Dias ('O sistema sancionatório no direito penal português', in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, 1984, p. 807) e José de Sousa e Brito (ob. e loc. cit.)].

A necessidade da pena - que, repete-se, há-de ser uma pena de culpa - limita, pois, o âmbito de intervenção do direito penal, sendo mesmo o critério decisivo dessa intervenção (cf. Eduardo Correia, loc. cit.).

O legislador, que deve observar também um princípio de humanidade na previsão das penas (cf. artigo 25.º, n.os 1 e 2, da Constituição), há-de ainda ter em conta que a ideia de necessidade da pena leva implicada a da sua adequação e proporcionalidade. Ou seja: na previsão das penas, deve ele procurar uma justa medida - uma adequada proporção - entre as penas e os factos a que elas se aplicam: a gravidade das penas deve ser proporcional à gravidade das infracções.

O Tribunal, quando teve de ajuizar uma norma penal à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, sublinhou sempre que o legislador goza de ampla liberdade na definição dos crimes e no estabelecimento das penas correspondentes. E sublinhou, bem assim, que, nessa matéria, ele só pode censurar, ratione constitutionis, as decisões legislativas que contenham incriminações arbitrárias ou punições excessivas: é que, no Estado de direito, o legislador está vinculado por concepções de justiça; ora, o princípio de justiça impede-o de actuar arbitrariamente ou de forma excessiva [cf. neste sentido, entre outros, o citado Acórdão 83/95 e os Acórdãos n.os 634/93 e 480/98 (publicados in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 26.º, p. 205, e 40.º, p. 507) e 108/99 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Janeiro de 1999)].

Em síntese: como sublinha Eduardo Correia (loc. cit.), 'o ponto de referência de um conceito material de crime supõe sempre que o agente seja merecedor da pena'. E esta ideia - sublinha o mesmo autor - tem de ser conjugada com a ideia de necessidade social. E citando Sax, acrescenta: 'necessidade da pena como o caminho mais humano para proteger certos bens jurídicos. Merecedor da pena como qualidade de alguém que a deva sofrer.'

O que se disse resulta, aliás, entre outros, dos seguintes artigos da Constituição: do artigo 1.º, que baseia a República na dignidade da pessoa humana; do artigo 18.º, n.º 2, que condiciona a legitimidade das restrições de direitos à necessidade, adequação e proporcionalidade das mesmas; do artigo 25.º, n.º 1, que sublinha a inviolabilidade da integridade pessoal; e do artigo 30.º, n.º 1, que proíbe penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.

5.2 - O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de direito, proíbe - já se disse - que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.

Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de José de Sousa e Brito (loc. cit., p. 199), se deduz da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (artigo 1.º da Constituição), e do direito de liberdade (artigo 27.º, n.º 1); e, nos dizeres de Jorge de Figueiredo Dias, vai buscar o seu fundamento axiológico 'ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de direito democrático' (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, p. 73)."

Recordados estes pronunciamentos doutrinais e jurisprudenciais, e apreciando o caso dos autos, constata-se que o fundamento da condenação do recorrente em pena de prisão foi a prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, relativamente à qual não vem suscitada nenhuma questão de violação do princípio da culpa, em qualquer das suas assinaladas dimensões. E mesmo não discutindo a operatividade deste princípio, para além da imputação do facto que fundamenta a condenação numa pena criminal, igualmente na perspectiva da prática de facto causador de perda de um benefício (o perdão da pena de prisão), que determinará o efectivo cumprimento daquela pena, também não se pode considerar violado o princípio da culpa, pois a lei que concedeu o perdão e estabeleceu a sua condição resolutiva é anterior à prática do segundo crime, exige-se que este crime tenha natureza dolosa e não se pode reputar desproporcionada a consequência da perda da graça concedida a quem, com a prática de crime doloso posterior à publicação da lei que concedeu o perdão de penas resolutivamente condicionado à omissão de novas condutas delinquentes no prazo de três anos, se mostrou, segundo o critério do legislador, não merecedor daquela medida de clemência. Nesta hipótese, que ocorre no presente caso, verifica-se o respeito do princípio da culpa, pois, na citada formulação de Sousa e Brito, se justifica um "juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo". Não se vislumbra, nesta solução legislativa, qualquer ofensa do princípio da dignidade da pessoa humana, de que se extrai o princípio da culpa.

2.3 - Por último, improcede a terceira questão de inconstitucionalidade: a que sustenta que a norma contida ainda nesse artigo 4.º da Lei 29/99, na interpretação que considera relevantes para a aplicação da mesma qualquer infracção, ainda que punida com simples multa, é inconstitucional porque ofende os princípios da proporcionalidade e da adequação das penas.

O segundo crime cometido pelo recorrente (crime de detenção ilegal de arma de defesa) é um crime doloso, punível com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias (artigo 6.º da Lei 22/97), tendo-lhe sido em concreto aplicada a pena de 100 dias de multa. Também neste caso não se discute a eventual violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação das penas quanto à condenação do recorrente por este crime, mas apenas o desrespeito desses princípios derivada da consequência que tal condenação provocou ao determinar a revogação do perdão de pena de prisão aplicada por crime anterior.

Porém, a perda de uma medida de clemência derivada da autoria, pelo arguido, de um crime doloso, praticado depois de publicada a lei que concedeu o perdão e logo previu a sua revogação nas condições que as instâncias deram por preenchidas, por entender que com essa actuação dolosa o arguido se mostrou não merecedor da graça concedida, não se mostra desproporcionada, mesmo que o segundo crime tenha sido, em concreto, punido com pena de multa. A liberdade de conformação do legislador, especialmente na concessão de medidas de clemência e na previsão das causas da sua revogação, não é obviamente arbitrária, sendo antes susceptível de controlo jurisdicional quanto ao respeito, designadamente, dos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Porém, o seu uso, não se mostra, no presente caso, merecedor de censura constitucional, não sendo intoleravelmente desproporcionado ou desadequado aos fins das penas a previsão da revogação do perdão de pena de prisão como consequência da prática, pelo arguido, dentro de um lapso de tempo relativamente curto após a publicação da lei de clemência, de novo crime doloso, independentemente da natureza da pena aplicável a este segundo crime.

Reitera-se que, para este efeito, o que é relevante é a circunstância de o recorrente ter cometido o segundo crime, de natureza dolosa, depois de ter sido publicada a lei que concedera perdão de pena de prisão condicionado à não prática de crime doloso nos três anos subsequentes à data da sua entrada em vigor.

3 - Decisão. - Em face do exposto, acordam em:

a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 4.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, e 61.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de não ser obrigatória a audição do arguido antes de ser proferida decisão de revogação do perdão de pena de que beneficiara;

b) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 4.º da Lei 29/99, interpretada como sendo relevante, para efeito de determinar a revogação do perdão, o cometimento de crime doloso em data posterior à entrada em vigor dessa lei, embora anterior à sentença que concedeu o perdão revogando, e ainda que punido com multa; e, consequentemente;

c) Conceder parcial provimento ao recurso, determinando a reformulação do acórdão recorrido em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade constante da precedente alínea a).

Sem custas.

Lisboa, 7 de Junho de 2005. - Mário José de Araújo Torres (relator) - Benjamim Silva Rodrigues - Paulo Mota Pinto - Maria Fernanda Palma - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2328924.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1962-10-10 - Decreto 44623 - Ministério da Economia - Secretaria de Estado da Agricultura - Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas

    Aprova o regulamento da Lei 2097, de 6 de Junho de 1959, que promulga as bases do fomento piscícola nas águas interiores do País.

  • Tem documento Em vigor 1976-10-22 - Decreto-Lei 758/76 - Presidência do Conselho de Ministros

    Amnistia os crimes políticos e as infracções disciplinares da mesma natureza cometidos desde 25 de Abril de 1974.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1994-05-11 - Lei 15/94 - Assembleia da República

    AMNISTIA DIVERSAS INFRACÇÕES, DESDE QUE PRATICADAS ATE 16 DE MARCO DE 1994, INCLUSIVE, E APROVA OUTRAS MEDIDAS DE CLEMENCIA. ESTA LEI ENTRA EM VIGOR NO DIA SEGUINTE AO DA SUA PUBLICAÇÃO.

  • Tem documento Em vigor 1996-03-23 - Lei 9/96 - Assembleia da República

    AMNISTIA AS INFRACÇÕES DISCIPLINARES E CRIMINAIS, INCLUINDO AS SUJEITAS AO FORO MILITAR, PRATICADAS POR ORGANIZAÇÕES E SEUS MEMBROS COMPREENDIDAS NA PREVISÃO DOS ARTIGOS 300 E 301 DO CODIGO PENAL VIGENTE, E NOS CORRESPONDENTES ARTIGOS 288 E 289 DA VERSÃO DO CODIGO PENAL APROVADO PELO DECRETO-LEI 400/82 DE 23 DE SETEMBRO, DESDE 27 DE JULHO DE 1976 ATE 21 DE JUNHO DE 1991. A CITADA AMINISTIA NAO ABRANGE OS CRIMES CONTRA A VIDA E A INTEGRIDADE FÍSICA PREVISTOS NOS ARTIGOS 131, 132, 133 E 144 DO CODIGO PENAL, B (...)

  • Tem documento Em vigor 1997-06-27 - Lei 22/97 - Assembleia da República

    Altera o regime jurídico de uso e porte de arma, estabelecido, nomeadamente pelos decretos leis nºs 37313 de 21 de Fevereiro de 1949 e 399/93 de 3 de Dezembro. Dispõe que a validade das licenças de uso e porte de quaisquer armas é de três anos, renovável, a requerimento dos interessados, por iguais períodos de tempo, sem prejuízo da sua cassação a todo o tempo por ordem do Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1999-03-04 - Lei 9/99 - Assembleia da República

    Procede a primeira alteração, por apreciação parlamentar, do Decreto Lei 217/98, de 17 de Julho, que reestruturou a carreira de técnico-adjunto de serviço social, no que respeita ás habilitações literárias.

  • Tem documento Em vigor 1999-05-12 - Lei 29/99 - Assembleia da República

    Decreta o perdão genérico e amnistia de pequenas infracções.

  • Tem documento Em vigor 2004-03-31 - Acórdão 124/2004 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante da parte final do § único do artigo 67.º do Decreto n.º 44623, de 10 de Outubro de 1962, (aprova o regulamento da Lei 2097, que promulga as bases do fomento piscícola nas águas interiores do País), enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64.º do mesmo diploma para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada - por violação dos princípios cons (...)

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