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Acórdão 590/2004/T, de 3 de Dezembro

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Texto do documento

Acórdão 590/2004/T. Const. - Processo 944/2003. - Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - Um grupo de deputados do PS à Assembleia da República requer a este Tribunal a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 305/2003, de 9 de Dezembro, que são do seguinte teor:

"Artigo 1.º

Crédito bonificado para habitação

São revogados os regimes de crédito bonificado e crédito jovem bonificado, relativamente à contratação de novas operações de crédito, destinadas à aquisição, construção e realização de obras de conservação ordinária, extraordinária e de beneficiação de habitação própria permanente, regulado pelo Decreto-Lei 349/98, de 11 de Novembro, na sua actual redacção.

Artigo 2.º

Entrada em vigor

O presente diploma entra em vigor em 1 de Janeiro de 2004."

Como fundamentos do seu pedido, alegou, em síntese, o grupo de deputados requerente:

O Decreto-Lei 349/98, de 11 de Novembro, regula a concessão de crédito à aquisição, construção, conservação e beneficiação de habitação, quer em regime geral quer em regime bonificado ou jovem bonificado;

O Decreto-Lei 16-A/2002, de 31 de Maio, vedou a contratação de novas operações de crédito nos regimes bonificados e o Decreto-Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro, renovou aquela determinação para o ano 2003;

O Decreto-Lei 305/2003, de 9 de Dezembro, transformou num dispositivo de aplicação permanente as determinações anuais dos dois diplomas acima referidos;

O artigo 1.º do Decreto-Lei 305/2003, ao revogar os regimes de crédito bonificado e crédito jovem bonificado Relativamente à contratação de novas operações de crédito destinadas à aquisição, construção e realização de obras de conservação ordinária, extraordinária e de beneficiação de habitação própria permanente, suscita dúvidas de conformidade com a Constituição por, desde logo, não ser compatível com o disposto na alínea d) [o pedido refere a alínea a), o que constitui, certamente, um lapso] do artigo 9.º da Constituição, que estabelece como função do Estado "promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os Portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais [...]";

A norma acima identificada incorre também em violação do disposto no n.º 3 do artigo 65.º da Constituição, que explicitamente determina o apoio do Estado ao "acesso à habitação", uma vez que, por um lado, a protecção do direito à habitação implica a criação, em favor dos cidadãos, de regimes que facilitem o acesso à aquisição de casa própria e, por outro lado, o crédito bonificado desempenha um papel crucial neste campo (cf. Jorge Miranda e Bacelar Gouveia, "O crédito bonificado à habitação e a Região Autónoma dos Açores", in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XXXVII, n.º 1, 1996, p. 304);

Efectivamente, o direito à habitação, tal como está consagrado na Constituição, não terá um mínimo de garantia se as pessoas não tiverem a possibilidade de conseguir habitação própria em condições compatíveis com os rendimentos das famílias, cumprindo ao Estado - enquanto sujeito passivo do direito à habitação - adoptar os necessários instrumentos de satisfação ou de concretização do direito em questão, entre os quais está a criação de um regime de facilitação do acesso à habitação própria, designadamente a criação de créditos bonificados (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., revista, Coimbra, Almedina, p. 345);

Numa outra perspectiva, a norma em questão põe em causa a concretização do direito fundamental consagrado no n.º 1 do artigo 36.º da Constituição, pois esta norma constitucional determina que todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade, sendo que a aquisição de casa própria reveste especial importância neste âmbito, facilitando a decisão de contrair casamento e constituir família por parte dos jovens;

Por outro lado, a norma acima mencionada contradiz o princípio da diferenciação positiva consagrado na alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da Constituição, que refere que "os jovens gozam de protecção especial para a efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente [...] no acesso à habitação". Efectivamente, a existência de um regime bonificado para a aquisição de casa própria por parte dos jovens constitui um mecanismo fundamental de afirmação de tal princípio;

Finalmente, o diploma em questão afasta do sistema jurídico normas legais destinadas a conferir exequibilidade às normas constitucionais impostas ao Estado em matéria de direitos fundamentais sem as substituir por outras, incorrendo em inconstitucionalidade na medida em que o Estado não só está obrigado a criar esses mecanismos de exequibilidade como também a não abolir os já existentes (note-se que, praticamente desde a entrada em vigor da lei fundamental, o legislador ordinário vem publicando sucessivos diplomas legais consagrando o crédito bonificado para habitação com o objectivo de dar cumprimento à referida imposição constitucional de facilitar o acesso à aquisição de habitação própria).

Conclui o grupo de deputados do PS à Assembleia da República no sentido de as normas constantes do Decreto-Lei 305/2003 serem inconstitucionais por desconformidade com o disposto na alínea d) do artigo 9.º, no n.º 1 do artigo 36.º, no n.º 3 do artigo 65.º e na alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º, todos da Constituição.

Notificado do pedido, veio o Primeiro-Ministro responder, alegando, fundamentalmente, o seguinte:

As normas impugnadas nos autos em nada afectam o "direito de acesso à habitação" constitucionalmente previsto, nem tão-pouco se mostram incompatíveis com o disposto na alínea d) do artigo 9.º da Constituição, que estabelece como função do Estado promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os Portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais;

O que resulta revogado é o sistema de bonificação ou incentivos ao crédito para habitação, não o crédito em si. Além disso, não estão abrangidos pela revogação os contratos que já se tinham iniciado à data da entrada em vigor da Lei 16-A/2002, de 31 de Maio, ou que se encontravam em fase de contratação e cujas escrituras públicas ou contratos de compra e venda titulados por documento particular, nos termos legais, foram celebrados até 30 de Setembro de 2002, preservando-se, deste modo, as "legítimas expectativas" dos cidadãos;

O que está em causa no pedido é o direito de acesso a habitação própria, sendo certo que o direito à habitação, na sua complexidade e multidiversidade, não se esgota nessa única dimensão. De facto, ele implica uma política urbana global que tem directamente a ver com a gestão do território e do ambiente, o que é confirmado pela alteração, introduzida pela revisão constitucional de 1997, na epígrafe do artigo 65.º de "habitação" tout court para "habitação e urbanismo";

Noutro plano, a promoção do direito à habitação não compete unicamente ao Estado. Nos termos da Constituição, a "política de habitação e urbanismo" implica a colaboração das autarquias locais, quanto à construção de habitações económicas e sociais, para os sectores mais carenciados da sociedade, o estímulo e incentivo à construção privada, bem como o incentivo e apoio a iniciativas das comunidades locais e populações, com vista à resolução dos respectivos problemas habitacionais, fomentando a criação de cooperativas de habitação e autoconstrução. É, pois, no quadro de uma actividade de estímulo e incentivo à construção privada que o Estado, através de uma política social adequada, deverá criar condições de acesso a habitação própria ou arrendada;

Ao Estado cumpre garantir os meios que facilitem o acesso à habitação em número e configuração igualmente diversificados. Ora, o sistema de crédito bonificado apresenta-se como um dos meios de acesso a habitação própria, destinando-se a beneficiar tão-só os titulares de rendimentos mais carenciados, já que assume a natureza de um incentivo, que se traduz, quanto à generalidade dos cidadãos que a ele não recorram, num encargo ou desvantagem. O que o Estado deverá promover não é uma igualdade universal de acesso à habitação, mas uma igualdade de oportunidades, tendo em conta os titulares de rendimentos mais carenciados;

No âmbito de uma "política de saneamento e rigor das finanças públicas" e de "desenvolvimento da economia", o Governo propõe-se levar a cabo uma política de adopção gradual de estímulos de natureza fiscal ao investimento privado e à poupança, aí se incluindo o sistema de poupança-habitação, que devem ser vistos, na sua globalidade, como meio idóneo de acesso à habitação e, designadamente, fomentando uma "revisão integrada da tributação do património imobiliário";

Nesta ordem de considerações, e tendo em conta que cerca de 80 % das verbas se destinam a apoios à aquisição de habitação própria, o Governo propõe-se orientar a sua política de habitação e de juventude, tendencialmente, no sentido de favorecer outro tipo de intervenções, nomeadamente as que estimulem a reconstrução e manutenção de edifícios, potenciando o aproveitamento do património existente e contrariando a pressão de cariz especulativo para o consumo contínuo de novos solos. Na execução dessa política, o Governo levará a cabo uma revisão da legislação do arrendamento e, em simultâneo, oferecerá à população e aos jovens soluções de habitação com versatilidade e qualidade. Adoptar-se-á uma política efectiva de renovação urbana dos bairros sociais, melhorando o espaço envolvente no que respeita a infra-estruturas diversas, nomeadamente áreas de educação e de lazer, unidades geradoras de emprego local, acessibilidades e arranjos;

Esta decisão do Governo está em conformidade com o seu "Programa", visando privilegiar o arrendamento face à aquisição de habitação própria, preservando o urbanismo, o ordenamento do território, o ambiente e a qualidade de vida, todos estes objectivos constitucionais. Esta filosofia e estes objectivos prendem-se com a necessidade de reequacionar, numa perspectiva de racionalização de afectação de recursos financeiros do Estado, o sistema de concessão de bonificações de crédito para habitação e de prevenir a fraude, o que obriga a uma disciplina mais rigorosa na concessão da bonificação do crédito;

Não há, de igual modo, violação do disposto no n.º 1 do artigo 36.º da Constituição. Este artigo consagra um direito individual das pessoas a constituir família pelo recurso (ou não) ao casamento. Trata-se de um direito de carácter pessoal, de autonomia, privacidade e personalidade, onde o Estado não deverá penetrar sem autorização do respectivo titular;

O facto de o preceito constitucional putativamente violado se referir ao disposto no artigo 36.º, n.º 1, só pode ter o sentido, na óptica do requerente, de fazer reverter em seu favor o regime jurídico dos "direitos, liberdades e garantias", manifestamente desadequado, quer quanto ao conteúdo quer quanto à natureza e dimensão do direito em causa, não devendo por isso ser tido em conta pelo Tribunal Constitucional;

No que concerne à violação do preceito constitucional consagrado na alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da Constituição, também não colhe a argumentação expendida pelo autor do pedido. O direito de acesso à habitação tanto pode ser a habitação própria como arrendada, o que significa que pode não ter nada a ver com o sistema de crédito jovem bonificado. A prossecução de uma política de juventude por parte do Governo, para além de respeitar os objectivos constitucionais, deverá ter especialmente em conta um conjunto de outros factores e objectivos, e não unicamente aquele individualizado no pedido. Também aqui não poderá o Tribunal Constitucional descortinar a violação de um "dever de protecção" ou de uma "tarefa público-estadual";

O conjunto das tarefas público-estaduais, por outro lado, não deverá ser interpretado a partir do postulado da sua optimização, isto é, da defesa de uma justiça social cuja realização cai no domínio das competências do legislador, antes a partir de um standard mínimo decorrente da necessidade de protecção do Estado à luz de um princípio de liberdade fundamental. Ora, as normas impugnadas nos autos não põem em causa nem colidem com esse standard mínimo, tal como tem vindo a ser definido na jurisprudência do Tribunal Constitucional;

O Governo, enquanto órgão de condução da política geral do País, encontra-se constitucionalmente autorizado a prosseguir uma política pública no domínio da justiça social, habitação e juventude de acordo com a sua definição de "interesse nacional" e em harmonia com as suas concepções de política económica e social. O Tribunal Constitucional, no quadro dos seus poderes de cognição, terá de ter especialmente em consideração o princípio da autonomia constitucional do Governo, estabelecido no título IV da parte III da Constituição, bem como o princípio da separação e interdependência dos poderes do Estado (artigo 111.º, n.º 1, da Constituição);

Alega ainda o requerente, embora não o afirmando expressamente, a violação do princípio da proibição do retrocesso social. Em termos breves, a tese da "irreversibilidade" dos direitos fundamentais sociais, não aceite unanimemente pela doutrina, garante o nível legalmente concretizado dos direitos sociais;

Também aqui deverá o Tribunal proceder a um distinguo. O Governo não procedeu a uma eliminação desse nível legal concretizado do direito de acesso à habitação sem uma alternativa ou compensação. Bastará recordar que o fez por imperativos de justiça social, reequacionando e recentrando a sua política de habitação não na aquisição mas numa política coerente de arrendamento e de preservação do património habitacional existente. E fê-lo tendo em conta a deferência devida ao princípio geral de igualdade e ao princípio da protecção da confiança, respeitando direitos adquiridos e sem tocar no núcleo essencial irredutível de existência social mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana;

A reforma da tributação do património deve ser vista como alternativa ou compensação quanto à revogação do sistema de crédito bonificado à habitação, tanto mais que a sua entrada em vigor coincide em parte com a revogação deste último.

II - Fundamentação:

A) O direito à habitação. - Como se sublinhou nos Acórdãos n.os 130/92, 131/92 e 32/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., de p. 495 a p. 512, e 36.º vol., de p. 203 a p. 208), o direito à habitação consiste no "direito a ter uma morada condigna", que a Constituição consagra como direito fundamental no artigo 65.º, dentro do capítulo dedicado aos direitos e deveres sociais (capítulo II do título III da parte I).

O direito em questão é de inegável importância, por si só (v. a sua consagração, de entre outros, no artigo 25.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem - como elemento do direito a um nível de vida suficiente, ao nível do direito à alimentação, ao vestuário, aos cuidados médicos e aos serviços sociais básicos - e no artigo 11.º, n.º 1, do PIDESC) e na medida em que constitui uma decorrência da dignidade da pessoa humana, afigurando-se indispensável para a efectivação de outros direitos fundamentais, tais como a reserva da intimidade da vida privada. Na expressão do Conselho Constitucional francês (decisão n.º 94-359 DC, de 19 de Janeiro de 1995, mencionada por Pierre Lambert em "Le Droit de l'Homme à un logement décent", Revue trimestrielle des Droits de l'Homme, ano 12, n.º 45, Janeiro de 2001, p. 49), a possibilidade de todas as pessoas disporem de uma habitação condigna constitui um objectivo constitucional que prolonga e reforça o princípio da dignidade da pessoa humana.

Como se esclareceu no referido Acórdão 32/97, o principal destinatário (sujeito passivo) das imposições constitucionais em matéria de promoção do direito à habitação é o Estado (n.os 2, 3, e 4 do artigo 65.º). Contudo, também as Regiões Autónomas e os municípios deverão ter um papel activo neste domínio, como resulta do n.º 4 do mesmo artigo. O requerente considera que as normas do Decreto-Lei 305/2003 põem em causa o direito à habitação, por incumprimento do Estado dos deveres que para ele decorrem do artigo 65.º, em concreto, do dever de promoção do acesso à habitação.

A Constituição prevê diversas formas de prossecução daquele objectivo (n.os 2, 3 e 4 do artigo 65.º). Importa-nos, sobretudo, abordar as tarefas que o n.º 3 do artigo 65.º impõe ao Estado: a adopção de uma política de estabelecimento de um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de uma política de acesso à habitação própria. Trata-se de duas políticas distintas e necessariamente complementares, pelo que a prossecução de uma delas não pode dispensar nem substituir a outra.

Dentro das medidas de acesso à habitação própria encontra-se o crédito bonificado à habitação. O crédito à habitação constitui um contrato de mútuo (artigo 1142.º do Código Civil) vinculado a um fim (aquisição de habitação). Desde muito cedo se consagrou no nosso ordenamento jurídico o apoio estadual à celebração dos contratos em questão por via de bonificações. Veja-se a resolução do Conselho de Ministros de 24 de Fevereiro de 1976 (Diário do Governo, 1.ª série, de 19 de Março de 1976), que, considerando "que uma política mais favorável de financiamento ao comprador é condição indispensável em ordem a proporcionar a muitos agregados familiares a possibilidade de adquirirem a sua própria casa", instituiu um regime de bonificação das taxas de juros a cargo do Estado. Esta medida de apoio à aquisição de casa própria foi mantida até à entrada em vigor do Decreto-Lei 305/2003, embora tendo sido objecto de diversas alterações durante esse período. Destaca-se apenas que antes da revogação operada pelo referido diploma existiam dois regimes especiais de crédito que beneficiavam do apoio estadual: o regime de crédito bonificado e o regime de crédito jovem bonificado (este último destinado a agregados familiares cujos membros tivessem idade inferior a 30 anos).

É inegável a importância que o crédito à habitação tem assumido ao longo das últimas décadas, enquanto medida de incentivo à aquisição de casa própria. Como mostra o estudo de Maria Manuel Leitão Marques e outros, O Endividamento dos Consumidores (Almedina, 2000, p. 81):

"As necessidades habitacionais não satisfeitas no nosso país são ainda consideráveis, uma situação agravada pelas pressões decorrentes dos acentuados desequilíbrios regionais, marcados pela grande concentração demográfica e económica nas áreas urbanas do litoral, em particular nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

[...]

Com um mercado de arrendamento privado em crise desde meados da década de 70 e um sector de habitação social quase inexistente, as famílias portuguesas têm sido constrangidas a tornarem-se proprietárias do seu alojamento. Mais do que uma opção, a casa própria tem sido verdadeiramente quase a única alternativa para aceder a uma habitação, mesmo em contextos conjunturais desfavoráveis, marcados por elevadas taxas de inflação e de juro.

[...]

Desde 1976, os sucessivos governos, incapazes de fazer face à paralisia do mercado de arrendamento privado e inverter a tendência para o declínio deste sector, têm centrado a política habitacional no apoio à compra e construção de casa própria, basicamente através de um sistema de crédito bonificado."

Ora, o crédito à habitação bonificado e bonificado jovem adquiriram especial importância em face da situação macroeconómica das décadas de 70 e 80. Explicam os autores acima citados que:

"O crédito à habitação esteve sempre fortemente dependente das condições e políticas macroeconómicas. Nos anos 70 e 80 estas foram particularmente adversas, sendo de destacar: i) a política de apertados limites de crédito, em vigor entre 1978 e 1990; e ii) as elevadas taxas de inflação e de juro, com reflexos importantes nos elevados níveis das prestações mensais [...] Além disso, o próprio sistema financeiro encontrava-se fortemente regulado e a concorrência interbancária era extremamente limitada."

Embora seja inquestionável o relevo da medida em questão, a revogação da mesma não implica automaticamente inconstitucionalidade por violação do direito à habitação. Para se aferir a existência de tal vício, importa descortinar o papel do crédito à habitação bonificado no quadro das políticas de acesso à habitação constitucionalmente impostas ao Estado.

É certo que a adopção de políticas por parte do Estado especialmente dirigidas ao acesso à habitação própria é condição de efectivação do direito à habitação. De facto, como o Tribunal Constitucional teve já ocasião de referir, o direito contido no artigo 65.º da Constituição configura-se como um direito a prestações, exigindo a intervenção do Estado no sentido de concretizar as determinações constitucionais contidas nessa norma. Neste sentido, v. o Acórdão 32/97:

"Como se sublinhou nos Acórdãos n.os 130/92 e 131/92, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Julho de 1992, o 'direito à habitação' [...] é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos n.os 2 a 4 do artigo 65.º da Constituição (cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, de p. 680 a p. 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada 'reserva do possível' (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais. [...]

O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cf. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 205 e 209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável nem exequível por si mesmo [...] ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei."

No sentido da compreensão do direito à habitação como um direito aplicável apenas pela mediação do legislador, deixando a este uma larga margem de conformação, se têm também pronunciado a doutrina e a jurisprudência estrangeiras.

É o caso de Jean-Claude Oderzo, que afirma que o direito à habitação nos ordenamentos italiano, espanhol e português constitui uma norma constitucional prescritiva, um mandato constitucional atribuído ao legislador para que este satisfaça um determinado interesse. No entender deste autor, o direito em questão não tem uma eficácia imediata, estando condicionado pelo desenvolvimento legislativo, e só pela mediação da lei é invocável perante os tribunais ("Le Droit au logement dans les Constitutions des États membres", Revue internationale de droit comparé, ano 54, n.º 4, Outubro-Dezembro de 2001, p. 923).

Encontramos posição semelhante na jurisprudência constitucional francesa (v. a decisão do Conselho Constitucional francês n.º 94-359 DC, de 19 de Janeiro de 1995, em AJDA, n.º 6, de 20 de Junho de 1995, pp. 455 e segs.). Nesta se sustentou que incumbe tanto ao legislador como ao executivo determinar, nos termos das respectivas competências, as modalidades de prossecução do direito à habitação enquanto objectivo constitucionalmente previsto. Afirmou-se ainda que os direitos em matéria social são, por excelência, direitos programáticos, objectivos cuja não realização não pode ser sancionada.

De forma semelhante, embora sem ir tão longe, se pronunciou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Mellacher e outros contra Áustria, de 19 de Dezembro de 1989 (mencionado por Pierre Lambert, ob. cit., p. 53). O Tribunal reconheceu então que, nas sociedades modernas, a habitação ocupa um lugar central nas políticas sociais e económicas, mas que, na prossecução de tais políticas, o legislador deve gozar de uma grande margem para se pronunciar, tanto sobre a existência de um problema de interesse público a exigir regulação como também sobre a escolha das modalidades de aplicação desta última. O Tribunal acrescentou ainda que respeita a maneira como o legislador nacional realiza o interesse público, salvo se as suas escolhas se revelarem manifestamente desprovidas de base racional.

A caracterização do direito à habitação, nos termos expostos, também é aplicável no quadro do ordenamento jurídico nacional, onde a Constituição dá ao legislador uma margem de conformação para a prossecução das políticas de habitação. Existem, de facto, diversos meios de concretizar os objectivos constitucionais, competindo ao poder legislativo escolher, de entre eles, aqueles que considerar mais adequados. A intervenção legislativa pode verificar-se, por exemplo, ao nível da orientação do funcionamento do mercado de habitação (construção e acesso à propriedade e ao arrendamento), do aumento do parque habitacional disponível, designadamente em benefício dos grupos sociais mais desfavorecidos, e ainda do apoio financeiro a determinadas categorias de cidadãos no acesso à habitação (v., neste sentido, Robert Lafore, "Le Droit au logement", em Droits et libertés en Grande-Bretagne et en France, Éditions l'Harmattan, 1999, p. 169).

Todavia, no que respeita especificamente ao acesso à habitação própria, que aqui nos interessa, para além de um sistema de crédito bonificado para aquisição de habitação, pode optar-se, por exemplo, pelo fomento da criação de cooperativas de habitação e outros estímulos à construção privada, pela atribuição de um direito de preferência na aquisição de casa arrendada, pelo aumento do parque habitacional disponível através de um sector público de financiamento e construção, pela cedência de habitações de propriedade estatal, pela criação de mecanismos de incentivo à poupança destinada à aquisição de casa própria ou pela instituição de benefícios fiscais tais como a dedutibilidade em sede de imposto sobre o rendimento das quantias despendidas com a aquisição de habitação.

Por outro lado, não deve esquecer-se que, como resulta da alínea d) do artigo 9.º da Constituição, incumbe ao Estado (como tarefa fundamental) promover a efectivação de todos os direitos económicos, sociais e culturais. Para tal, é necessário articular os diferentes direitos e objectivos constitucionais. No domínio de que ora nos ocupamos, é, pois, indispensável conciliar o direito à habitação com os restantes direitos sociais e com interesses públicos igualmente relevantes como a protecção do ambiente, o urbanismo e um ordenamento adequado do território. Nas palavras de Jean-Claude Oderzo (ob. cit., p. 925), o legislador encontra-se confrontado não apenas com o direito à habitação mas também com a necessidade de satisfazer outros direitos sociais, tais como a saúde, o ensino e a segurança social, que exigem a alocação de recursos públicos consideráveis. Assim sendo, impõe-se ao legislador realizar uma tarefa de concordância prática para concretizar, pelo menos, o núcleo essencial de todos os direitos sociais e económicos.

Como entendem Jorge Miranda e Bacelar Gouveia ("O crédito bonificado à habitação e a Região Autónoma dos Açores", in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano XXXVII, n.º 1, 1996, pp. 304 e segs.), a satisfação dos direitos económicos e sociais está interligada quer com a constituição económica (dependendo da aplicação das normas constitucionais respeitantes à organização económica do País) quer com condicionalismos económicos e institucionais (por exemplo, o modo de organização e funcionamento da Administração Pública e a disponibilidade de recursos financeiros). Nas palavras destes autores:

"Sendo copiosas as normas e escassos os recursos, dessa apreciação [dos factores económicos] poderá resultar a necessidade de estabelecer diferentes tempos, graus e modos de efectivação dos direitos. Se nem todos os direitos económicos, sociais e culturais puderem ser tornados plenamente operativos em certo momento, então haverá que determinar com que prioridade e em que medida o deverão ser."

Todas estas considerações levam, pois, a concluir que o crédito bonificado não é uma medida de acesso à habitação própria constitucionalmente exigida, nem mesmo uma medida indispensável para assegurar o cumprimento por parte do Estado das políticas que, neste domínio, a lei fundamental lhe impõe, quer por via do artigo 65.º quer por via do artigo 9.º, alínea d).

Como já se deu conta, existem diversas outras medidas à disposição do legislador para concretizar a tarefa de promoção do acesso à habitação própria por parte dos cidadãos. Quer-se com isto dizer que a Constituição obriga à existência de uma política de acesso à habitação própria, que tem de traduzir-se na adopção de medidas concretas, mas cuja escolha compete exclusivamente ao legislador. Os únicos condicionalismos constitucionais são, neste campo, o facto de ter de haver algumas medidas, independentemente da sua configuração (não constituindo opção constitucionalmente admissível a sua inexistência), e a necessidade de tais medidas de promoção de aquisição de casa própria serem distintas dos incentivos ao arrendamento (v. que o n.º 3 do artigo 65.º impõe tais medidas cumulativa e não alternativamente).

Ora, no ordenamento jurídico nacional encontramos, pelo menos, duas medidas que cumprem a função assinalada. Por um lado, em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, pode ser deduzida à colecta uma parte do montante despendido com os juros e a amortização das dívidas contraídas com a banca, bem como das resultantes de contratos celebrados com cooperativas de habitação ou no âmbito do regime de compras em grupo, para aquisição de imóveis para habitação própria e permanente [artigos 78.º, n.º 1, alínea g), e 85.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código do IRS]. Por outro lado, no âmbito dos benefícios fiscais, é também dedutível à colecta do IRS uma percentagem das quantias depositadas anualmente em contas poupança-habitação [artigos 78.º, n.º 1, alínea j), e 88.º do Código do IRS e 18.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais].

Por outro lado, há que ter em conta que o quadro macroeconómico sofreu, nos últimos anos, alterações consideráveis. Como sintetizam Maria Manuel Leitão Marques e outros, ob. cit., pp. 92 e 93:

"Em 1991 todos os bancos passaram a ser autorizados a actuar em todos os regimes de crédito. Em 1989 as taxas de juro do crédito à habitação, até então fixadas administrativamente, foram liberalizadas, sendo actualmente livremente negociadas entre as instituições financeiras e os seus clientes. Os limites de crédito foram também completamente abolidos em 1990. [...] Por tudo isto, a concorrência interbancária tem sido fortíssima e generalizada a todo o sistema bancário, com cada instituição financeira a procurar alargar a sua quota de mercado. Daí resultou uma importante redução das margens bancárias e o fim dos longos prazos de espera para obtenção de um empréstimo.

Por outro lado, o processo de ajustamento visando a participação de Portugal, primeiro no mecanismo de câmbios do sistema monetário europeu e depois na zona euro, desencadeou uma forte trajectória de descida das taxas de inflação e de juro ao longo de praticamente toda a década de 90. Esta descida é em grande parte irreversível e as subidas de taxas no futuro, em princípio, controladas. [...]

O processo continuado de significativas reduções das taxas de juro, nominais e reais, resultou numa maior acessibilidade das famílias ao crédito bancário à habitação."

À evolução das taxas de juro e ao desenvolvimento verificado no mercado do crédito à habitação (tornando menos premente a necessidade de intervenção estadual) junta-se ainda a circunstância de o regime do crédito à habitação bonificado ter sido, eventualmente, objecto de utilização abusiva, como alega o órgão autor da norma na sua resposta, à semelhança do sustentando pelo legislador na exposição de motivos do Decreto-Lei 349/98, de 11 de Novembro, onde se afirma a necessidade de consagrar soluções tendentes a uma disciplina mais rigorosa na concessão do crédito bonificado, dando satisfação a exigências de moralização e de prevenção da fraude.

Tendo em conta todos os factores enunciados (liberdade do legislador na escolha das medidas concretizadoras de uma política de promoção do acesso à habitação; necessidade de concordância prática do direito à habitação com outros direitos e valores fundamentais; alteração do quadro macroeconómico; evolução das taxas de juro; desenvolvimento do mercado do crédito à habitação; deficiente funcionamento do sistema de atribuição de crédito bonificado, e, decisivamente, a existência de outros instrumentos de prossecução da referida política), conclui-se que as normas questionadas não padecem de inconstitucionalidade por violação do disposto nos artigos 65.º, n.º 3, e 9.º, alínea d), da lei fundamental.

B) O direito de constituir família. - Invoca o requerente que as normas do Decreto-Lei 305/2003 padecem de inconstitucionalidade, por violação do direito de constituir família e de contrair casamento em condições de igualdade, consagrado no artigo 36.º, n.º 1, da Constituição. Tal entendimento baseia-se na circunstância de a aquisição de casa própria ser factor relevante para a tomada de decisão de casar e de constituir família.

Importa, desde já, precisar o sentido da norma constitucional invocada. O artigo 36.º reconhece e garante diversos direitos relativos à família, ao casamento e à filiação. Seguindo de perto o ensinamento de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., p. 220):

"São de quatro ordens esses direitos: a) direito das pessoas a constituírem família e a casarem-se (n.os 1 e 2); b) direitos dos cônjuges no âmbito familiar e extrafamiliar (n.º 3); c) direitos dos pais, em relação aos filhos (n.º 2, in fine, e n.os 5 e 6); d) direitos dos filhos (n.os 4 e 5, segunda parte)."

Interessam-nos em particular os direitos mencionados na alínea a). Quanto ao direito a casar, pode dizer-se que este comporta duas dimensões. Por um lado, consagra um direito fundamental, por outro, é uma verdadeira norma de garantia institucional. Como explicam Pereira Coelho e Guilherme Oliveira (Curso de Direito da Família, vol. I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2001, p. 137):

"Merece referência [...] a questão de saber se o artigo 36.º, n.º 1, segunda parte, concede apenas um direito fundamental a contrair casamento ou, mais do que isso, é uma norma de garantia institucional. Embora a Constituição não formule de modo explícito um princípio de 'protecção do casamento' (só a família é protegida no artigo 67.º), temos entendido que a instituição do casamento está constitucionalmente garantida, pois não faria sentido que a Constituição concedesse o direito a contrair casamento e, ao mesmo tempo, permitisse ao legislador suprimir a instituição ou desfigurar o seu 'núcleo essencial'."

Face à caracterização dos direitos em causa, podemos desde já adiantar que a argumentação do requerente se afigura improcedente. De facto, a norma constitucional em análise não impõe ao Estado o dever de facilitar o acesso à habitação própria como medida de efectivação dos direitos fundamentais em questão, tal como não impõe a adopção de quaisquer outras medidas concretas. Isto compreende-se atendendo a que aquilo que a Constituição garante é a liberdade individual de constituir família e de contrair casamento, bem como a existência da figura jurídica do casamento. Ou seja, a norma invocada como parâmetro prescreve apenas que o Estado deve garantir a existência do instituto jurídico do casamento e, ao mesmo tempo, abster-se de quaisquer comportamentos que impeçam ou dificultem o exercício dos referidos direitos por parte dos cidadãos.

O que se disse não obsta a que o Estado deva prosseguir uma política de promoção e protecção da família, enquanto estrutura fun damental da sociedade. Aliás, tal política é necessária em face do disposto no artigo 67.º da lei fundamental. Todavia, a Constituição deixa ao Estado ampla margem de manobra na escolha das medidas concretas de prossecução daquele fim, indicando apenas, a título exemplificativo, alguns aspectos que não devem ser descurados (n.º 2 do artigo 67.º). Entre estes não figura qualquer referência ao acesso à habitação própria por parte das famílias.

Não se vê, de acordo com o exposto, que a revogação do regime do crédito bonificado à habitação afecte, de algum modo, os direitos constitucionalmente protegidos de constituir família e contrair casamento.

C) A protecção especial dos jovens. - Importa agora tratar do problema da eventual inconstitucionalidade das normas questionadas, por violação do artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da lei fundamental. Esta disposição constitucional garante aos jovens uma protecção especial para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente o direito de acesso à habitação. Note-se que, quanto a este parâmetro de controlo, está apenas em causa a revogação do crédito jovem bonificado, crédito este que pode caracterizar-se como um subsídio indirecto aos seus destinatários.

A norma constitucional em questão impõe uma verdadeira discriminação positiva a favor dos jovens no que respeita ao acesso à habitação, ou seja, obriga à adopção de medidas mais favoráveis àqueles para efectivação do direito de acesso à habitação.

Ao contrário do que sustenta o órgão autor das normas questionadas, a lei fundamental impõe ao Estado a adopção de uma política de juventude especificamente direccionada para o acesso à habitação, para além de prever a necessidade de prossecução de políticas de favorecimento dos jovens noutras áreas, como a formação profissional, o ensino, o trabalho e a segurança social [alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do artigo 70.º], não se encontrando estas últimas numa relação de alternatividade para com a habitação. Assim, o Estado não está dispensado de prosseguir uma política específica no campo do acesso à habitação, ainda que tenha adoptado medidas de discriminação positiva dos jovens nas restantes áreas.

A concretização da referida política de favorecimento dos jovens pode ser levada a cabo por medidas de diversa natureza. Para a resolução do presente problema importa então averiguar da existência no nosso ordenamento jurídico de instrumentos - quaisquer que eles sejam - que possam assegurar, com um mínimo de eficácia jurídica, a protecção especial dos jovens exigida pela Constituição. Isto porque a revogação de uma medida concretizadora do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da lei fundamental só colocará um problema de constitucionalidade se não subsistirem quaisquer outras medidas neste domínio, originando uma situação de total incumprimento da determinação constitucional, equivalente, nos seus pressupostos, a uma inconstitucionalidade por omissão.

Tais instrumentos poderão respeitar quer ao acesso à habitação própria quer ao arrendamento, uma vez que, diferentemente do n.º 3 do artigo 65.º, a lei fundamental refere-se, no n.º 1 do artigo 70.º, tão-só ao acesso à habitação. Não se diferenciam nesta última disposição constitucional as duas políticas mencionadas, pelo que, nesta específica perspectiva, o legislador poderá optar, na sua concretização, por qualquer uma delas ou pela conjugação de ambas - nesta conformidade poderá afirmar-se a fungibilidade das medidas a adoptar.

Ora, uma análise do ordenamento jurídico nacional mostra que existe, pelo menos, uma medida legislativa de discriminação positiva dos jovens no acesso à habitação. Trata-se do regime instituído pelo Decreto-Lei 162/92, de 5 de Agosto, que estabelece um "incentivo ao arrendamento por jovens" (v. o artigo 1.º). Este mecanismo de apoio abrange os jovens com menos de 30 anos, arrendatários de imóveis destinados a habitação própria permanente, e consiste na atribuição de um subsídio mensal pelo IGAPHE (Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado), que pode ir até 75% do valor da renda efectivamente paga.

Outro exemplo de apoio aos jovens no acesso à habitação é o que resulta do Decreto Legislativo Regional 14/95/A, de 22 de Agosto. Embora este regime tenha um âmbito de aplicação restrito à Região Autónoma dos Açores, não deixa de consubstanciar uma medida de discriminação positiva concretizadora do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da Constituição a ter em conta. O diploma regional em questão prevê diversas modalidades de apoio à habitação (artigo 2.º) e um mecanismo de apoio supletivo aos jovens e aos jovens deficientes (artigos 31.º e 31.º-A, na redacção dada pelo Decreto Legislativo Regional 8/98/A, de 13 de Abril).

Em face destas circunstâncias, não se vislumbra que a revogação do regime de crédito bonificado jovem seja inconstitucional. Não pode, efectivamente, afirmar-se que estejamos perante a ausência total de instrumentos jurídicos de protecção especial dos jovens no acesso à habitação.

D) A proibição do retrocesso social. - Finalmente, o requerente coloca a questão da inconstitucionalidade da revogação dos regimes de crédito à habitação bonificado e bonificado jovem, devido a tais normas conferirem exequibilidade a determinações constitucionais impostas ao Estado em matéria de direitos fundamentais sem as substituir por outras. Sustenta o requerente que o Estado não só está obrigado a criar esses mecanismos de exequibilidade mas também a não abolir os já existentes, como é o caso do crédito à habitação bonificado. Esta questão enquadra-se na problemática do retrocesso social, embora o pedido não o refira expressamente.

Nos Acórdãos n.os 39/84 e 509/2002 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., pp. 95 e segs., e 54.º vol., pp. 19 e segs., respectivamente) afirmou-se o seguinte:

"[...] a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de constituir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social."

Será na violação desse dever de abstenção que consistirá o retrocesso social constitucionalmente proibido. No caso ora em análise, o problema do retrocesso social reconduzir-se-ia, assim, à questão de saber se a medida legislativa constante do Decreto-Lei 305/2003 atentaria "contra a realização dada" aos direitos à habitação e à protecção especial dos jovens no acesso à habitação.

A conjugação da estabilidade da concretização legislativa já alcançada no domínio dos referidos direitos com a liberdade de conformação que já afirmámos assistir ao legislador passa, inevitavelmente, apenas pela manutenção da protecção do núcleo essencial desses mesmos direitos.

Assim conclui J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, p. 479):

"Os direitos derivados a prestações, naquilo em que constituem a densificação de direitos fundamentais, passam a desempenhar uma função de 'guarda de flanco' (J. P. Müller) desses direitos garantindo o grau de concretização já obtido. Consequentemente, eles radicam-se subjectivamente, não podendo os poderes públicos eliminar, sem compensação ou alternativa, o núcleo essencial já realizado desses direitos."

A argumentação aduzida pelo órgão autor da norma centra-se na existência de instrumentos jurídicos alternativos capazes de assegurar a protecção dos direitos em questão e conclui pela não inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei 305/2003, visto não ter o Governo procedido a uma eliminação do nível legal concretizado do direito de acesso à habitação sem consagrar uma compensação. Como exemplos de medidas compensatórias, apontam-se a prossecução de uma política de arrendamento e a reforma da tributação do património.

Todavia, as medidas referidas não constituem argumento decisivo para afastar a eventual inconstitucionalidade. Quanto à política de arrendamento, como já se referiu, não pode ser encarada como alternativa aos instrumentos de incentivo à aquisição de casa própria. Efectivamente, o artigo 65.º, n.º 3, da Constituição consagra a necessidade de prossecução cumulativa das duas políticas. Já quanto à reforma da tributação do património, nem sequer pode ser considerada como alternativa válida relativamente à revogação do regime do crédito bonificado, pois aquela prossegue objectivos diversos do incentivo à aquisição de habitação própria. Como decorre das disposições preambulares do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, aprovado pelo Decreto-Lei 287/2003, de 12 de Novembro (diploma concretizador da reforma da tributação do património), "os objectivos fundamentais das alterações propostas são, pois, o de criar um novo sistema de determinação do valor patrimonial dos imóveis, o de actualizar os seus valores e o de repartir de forma mais justa a tributação da propriedade imobiliária [...] a rápida melhoria do nível de equidade [...] a luta contra a fraude e evasão fiscal [...] e o reforço dos poderes tributários dos municípios". Neste contexto, o efeito desta reforma na facilitação do acesso à habitação é apenas indirecto (por via da eventual diminuição da carga fiscal sobre a propriedade imobiliária) e parcial (já que, reagindo contra a "situação de sobretributação dos prédios novos" relativamente à "desajustada subtributação dos prédios antigos", beneficia apenas os proprietários de prédios novos). Ou seja, não pode afirmar-se que estas medidas legislativas substituem, de alguma forma, o regime do crédito bonificado à habitação.

Para determinar se as normas sub iudice configuram um retrocesso social constitucionalmente proibido (para quem entenda que a Constituição não consagra um tal princípio, a questão fica desde logo resolvida), importa colocar o problema numa outra perspectiva, apontada no Acórdão 509/2002, não deixando de se salientar que, no aresto citado, aquele princípio sobre o qual foram expostas diversas concepções doutrinais acabou por não ser ponderado como parâmetro de constitucionalidade das normas então em causa.

Expressando o que constituiria, a este propósito, um ponto de convergência doutrinária - a "necessidade de harmonizar a estabilidade da concretização legislativa já alcançada no domínio dos direitos sociais com a liberdade de conformação do legislador", harmonização essa que implicaria a distinção de situações -, escreveu-se no Acórdão 509/2002:

"Onde a Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível 'determinar com segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade' (cf. o Acórdão 474/2002), a margem de liberdade de o legislador retroceder no grau de protecção já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá fazer na estrita medida em que a alteração legislativa pretendida não venha a consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão [...]

Noutras circunstâncias, porém, a proibição de retrocesso social apenas pode funcionar em casos limite, uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática, sob pena de se lhe reconhecer uma subsistência meramente formal, inculca a revisibilidade das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o carácter de opções legislativas fundamentais."

Nesta perspectiva, a questão que então se pode colocar é de saber se, no caso em presença, a Constituição contém uma ordem de legislar, concreta e precisa, de forma a permitir identificar os instrumentos de execução que o Estado deve utilizar na concretização dos preceitos constitucionais.

Como se disse já, as normas constitucionais relativas ao direito à habitação e à protecção especial dos jovens no acesso à habitação não contêm uma ordem de legislar nos termos acima descritos. O legislador goza, neste domínio, como também já se afirmou, de liberdade de escolha dos meios de prossecução das determinações constitucionais.

Configura-se, assim, a segunda das situações enunciadas, ou seja, aquela em que só existirá retrocesso social constitucionalmente proibido em casos limite - quando se deixe de assegurar o núcleo essencial de um direito fundamental consagrado na Constituição.

Ora, de tudo o que já se expôs e em face, designadamente, da subsistência de outros instrumentos jurídicos de concretização dos direitos à habitação e à protecção especial dos jovens, não pode deixar de se concluir que o "retrocesso social" que advém da revogação do regime de crédito bonificado não afecta o conteúdo essencial dos referidos direitos. A solução consagrada no Decreto-Lei 305/2003 deve, assim, ser entendida no contexto da revisibilidade das opções legislativas decorrente do princípio da alternância democrática, não constituindo violação da lei fundamental.

III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, decide-se não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 305/2003, de 9 de Dezembro, que revoga os regimes de crédito bonificado para contratação de novas operações de crédito destinadas à aquisição, construção e realização de obras de conservação ordinária e de beneficiação de habitação própria permanente.

Lisboa, 6 de Outubro de 2004. - Artur Maurício (relator) - Gil Galvão - Carlos Pamplona de Oliveira - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Maria Helena Brito - Benjamim Rodrigues - Vítor Gomes - Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) - Mário José de Araújo Torres (vencido nos termos da declaração de voto junta) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Votei vencida o presente acórdão desde logo por entender que a interpretação que faz dos artigos 65.º, n.º 3, e 70.º, n.º 1, da Constituição não tem sustentação sólida, apoiando-se aparentemente apenas no elemento literal: a disjunção entre habitação própria e arrendamento no artigo 65.º, n.º 3, ou a mera referência a habitação no artigo 70.º, n.º 1, alínea c).

No entanto, quer a disjunção prevista no artigo 65.º, n.º 3, quer a mera referência a habitação, sem se requerer que esta seja própria no artigo 70.º, n.º 1, alínea c), não podem significar que o Estado não tenha o dever de promover, através de medidas concretas, o acesso à habitação própria, discriminando positivamente as pessoas e famílias com mais dificuldades.

Se é certo que a um certo nível elementar o direito à habitação se satisfará com o direito ao abrigo, a poder partilhar com outras famílias uma casa ou realidades semelhantes, também é verdade que numa concepção moderna de Estado social e no contexto da realidade portuguesa contemporânea a habitação própria exprime mais adequadamente do que a habitação arrendada a estabilidade no exercício do direito à habitação.

Embora haja quem entenda que a Constituição, numa certa leitura, se basta com o acesso à realização mínima do direito à habitação, exigindo apenas ao Estado a realização de prestações elementares, não é esse o sentido que a arquitectura dos bens e valores constitucionais determina.

O direito à habitação não poderá ser associado, como o acórdão o faz, num plano abstracto, à dignidade da pessoa humana sem que daí decorra uma exigência de maximização de direitos que, como este, constituem condições existenciais de desenvolvimento da pessoa e da família.

Não me parece, assim, aceitável uma leitura da Constituição que admita que, na situação real de grande desigualdade social, o Estado possa prescindir, em absoluto, de políticas directas de incentivo ao acesso à habitação própria, sobretudo no contexto de um mercado muito limitado de arrendamento, bem como da menor estabilidade que o arrendamento concede ao direito à habitação.

Por outro lado, não me parece que haja qualquer concordância prática de direitos que se exprima na pura subordinação do direito a uma habitação estável e realizadora de condições existenciais ao estímulo do mercado de arrendamento ou a outros interesses legítimos de ordem económica.

Não tem, aliás, qualquer significado neste contexto, constituindo apenas uma afirmação geral supérflua, a afirmação de que o direito à habitação tem de ser conciliado com os restantes direitos sociais e públicos, tais como a protecção do "ambiente, o urbanismo e um ordenamento adequado do território". Não é, obviamente, neste caso, esse tipo de conciliação que está em causa, mas sim a subordinação, inaceitável na minha leitura da Constituição, do direito de acesso a habitação própria como forma mais satisfatória de realizar estavelmente o direito à habitação a determinadas prioridades económicas e orçamentais do Estado.

Também o argumento de fraude no acesso ao crédito bonificado, como justificação para a supressão de políticas concretas de promoção directa do acesso a habitação própria, não me parece ser válido, pois o meio adequado é exactamente o controlo da fraude através de fiscalização.

Mas a minha discordância do discurso do acórdão baseia-se ainda e sobretudo - na supressão dos apoios directos a título de discriminação positiva ao acesso à habitação para jovens. Com efeito, o argumento de que o artigo 70.º, n.º 1, da Constituição, diferentemente do artigo 65.º, n.º 3, ao referir-se tão-só ao acesso à habitação sem qualquer referência à habitação própria, permite que os instrumentos de uma política de favorecimento dos jovens se bastem com medidas respeitantes ao arrendamento, alternativas às de promoção do acesso à habitação própria, assenta numa desarticulação injustificada dos dois preceitos constitucionais.

Admitir-se que muito embora o Estado não possa omitir no acesso a habitação, em geral, medidas de apoio ao acesso a habitação própria, porque isso é imposto pela Constituição como exigência do conteúdo do direito à habitação, e considerar simultaneamente que no favorecimento dos jovens quanto a esse direito bastará a discriminação positiva quanto ao arrendamento traduz-se numa fragmentação do conteúdo essencial do direito. A discriminação positiva prevista constitucionalmente respeita ao direito em si e não simplesmente a aspectos parcelares do seu conteúdo.

Por outro lado, dizer-se que o Decreto-Lei 162/95, de 5 de Agosto, é a medida legislativa que suporta a discriminação positiva dos jovens quanto ao direito à habitação exprime um juízo que esquece que esse diploma consagrava apenas uma medida alternativa ao crédito bonificado para jovens. Por isso, era instrumento de uma política global de promoção do direito à habitação, e não uma medida concebível, autonomamente, como todo o sistema de discriminação positiva dos jovens quanto a esse direito.

Os dados do Instituto Nacional da Habitação - que substitui, hoje, na gestão dos incentivos o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado - revelam, aliás, que tais incentivos não aumentaram após a entrada em vigor do diploma em crise. Na verdade, até diminuíram (sendo em 2004 menor o número de candidaturas a tais benefícios do que em qualquer dos anos compreendidos entre 1997 e 2003). Por outro lado, é praticamente idêntico o valor dos incentivos do pagamento previsto para 2004 relativamente a anos anteriores, não se tendo verificado, pois, qualquer aumento considerável de verbas.

Deste modo, qualquer juízo que admita a fungibilidade entre as medidas em causa ou é desfasado da realidade ou se baseia no entendimento de que uma medida menor, meramente complementar de outra, pode ser suficiente, no plano constitucional, para assegurar a promoção do direito a habitação.

Finalmente, a referência ao quadro legislativo açoriano, em que o Decreto Legislativo Regional 14/95/A, de 22 de Agosto, prevê medidas efectivas de apoio ao acesso à habitação para jovens e jovens deficientes, como argumento a favor da existência de medidas legislativas concretizadoras da protecção prevista no artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, é completamente inadequada, já que não é só nos Açores que existe um problema de igualdade de oportunidades dos jovens no acesso à habitação própria.

Em suma, é minha profunda convicção que uma interpretação da Constituição baseada numa percepção dos valores de acordo com a realidade e ciente de que certos direitos fundamentais constituem condições essenciais do desenvolvimento da pessoa reclama uma perspectiva incrementadora desses direitos, e não a leitura minimalista que o acórdão perfilha. Ora, parece-me que foi uma nivelação redutora e pelo conteúdo mínimo de tais direitos a que o acórdão de que divirjo efectuou. E essa leitura não me permite compartilhar o ponto de vista da maioria que subscreveu o presente acórdão. - Maria Fernanda Palma.

Declaração de voto

1 - Na apreciação da constitucionalidade das normas impugnadas face ao artigo 65.º, n.os 2, 3 e 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o precedente acórdão sublinhou - e bem - que o n.º 3 desse preceito impõe ao Estado a adopção de "duas políticas distintas e necessariamente complementares": "uma política de estabelecimento de um sistema de renda compatível com o rendimento familiar" e "uma política de acesso à habitação própria". Por isso, "a adopção de políticas por parte do Estado especialmente dirigidas ao acesso à habitação própria é condição de efectivação do direito à habitação", configurando-se "o direito contido no artigo 65.º da Constituição [...] como um direito a prestações, exigindo a intervenção do Estado no sentido de concretizar as determinações constitucionais contidas nessa norma".

Não negando que ao legislador cabe uma ampla liberdade na escolha das medidas que em cada momento repute mais adequadas à prossecução dessa imposição constitucional, não se me afigura, porém, que só se verificaria violação da Constituição no caso de inexistência de quaisquer medidas, e que basta a existência de "algumas medidas, independentemente da sua configuração", para afastar o juízo de inconstitucionalidade. Importaria ainda demonstrar a efectividade dessas medidas, em termos de se dar por adequadamente satisfeito esse objectivo constitucional, demonstração essa que o precedente acórdão nem sequer esboçou.

2 - Mas maiores divergências me suscita ainda a decisão do Tribunal na perspectiva da protecção especial dos jovens, imposta pelo artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da CRP.

Surge, desde logo, como extremamente frágil o argumento, estritamente literal, extraído da comparação da redacção dos artigos 65.º, n.º 3, e 70.º, n.º 1, alínea c), da CRP, com base no qual se entendeu que enquanto o primeiro preceito impõe que, para a generalidade dos cidadãos, o Estado adopte cumulativamente uma política de arrendamento compatível com o rendimento familiar e uma política de acesso à habitação própria, já para os jovens, uma vez que o preceito fala em "acesso à habitação", sem mais, o programa constitucional ficaria cumprido com a adopção ou de uma política de apoio ao arrendamento ou de uma política de apoio à aquisição de habitação própria - estas duas políticas seriam, no entender do acórdão, fungíveis.

Não acompanho esse entendimento.

A fórmula usada no artigo 71.º ("Acesso à habitação") é suficientemente ampla para abarcar aqueles dois vectores de acesso à habitação (o arrendamento e a aquisição de habitação própria) e surge como ilógico que, impondo a Constituição, neste domínio, uma discriminação positiva a favor dos jovens, se entenda que para estes basta a existência de qualquer uma dessas duas políticas, enquanto para a generalidade dos cidadãos já é constitucionalmente exigida a existência cumulativa das duas políticas de promoção de acesso à habitação.

A eliminação, pelas normas questionadas, da única política de acesso à habitação por via de aquisição de casa própria de que beneficiavam os jovens acarreta, a meu ver, o incumprimento do comando constitucional, que não pode deixar de contemplar esse vector. Sendo manifestamente irrelevante para a solução da questão de constitucionalidade suscitada a vigência do Decreto Legislativo Regional 14/95/A, de 22 de Agosto, atenta a sua natureza regional, resta apenas o regime de incentivo ao arrendamento por jovens, instituído pelo Decreto-Lei 162/92, de 5 de Agosto, o qual, porém, como claramente resulta do respectivo preâmbulo, foi concebido como política complementar da de fomento de aquisição de habitação própria, e visando apenas o sector dos jovens que, por ainda sujeitos a mobilidade geográfica, optassem pela solução do arrendamento, diferindo para mais tarde a aquisição de casa própria.

A alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da CRP foi aditada pela revisão constitucional de 1997 e resultou de uma iniciativa do Grupo Parlamentar do PCP, tendo sido aprovada com os votos a favor do PSD, do PS, do PCP e do PEV e a abstenção do PP. Como resulta do respectivo debate parlamentar, ela visou consagrar, com especial ênfase, como protecção especial dos jovens, o que já resultava do n.º 3 do artigo 65.º para a generalidade dos cidadãos, pelo que carece de toda a lógica reduzir essa especial consagração em termos de a tornar menos abrangente do que a norma geral (cf. a intervenção do deputado Luís Marques Guedes, no Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 28 de Setembro de 1996, p. 883, col. 1.ª, e a sua anotação a essa alínea, em Uma Constituição Moderna para Portugal, edição do Grupo Parlamentar do PSD, Lisboa, 1997, p. 117: "Projecto do PCP. O PSD, responsável enquanto Governo pela criação de mecanismos especiais de apoio ao acesso à habitação por jovens, através de medidas de tão grande sucesso como o crédito jovem, naturalmente que se congratulou e reviu nesta consagração constitucional daquela que foi para si uma prática política [itálico acrescentado]."

Em suma: impondo a Constituição a adopção de uma política especial de acesso à habitação direccionada para os jovens e mais protectora do que a política geral de acesso à habitação, não violaria a Constituição apenas a verificação de uma situação de inexistência de quaisquer medidas, mas a Constituição também é desrespeitada por uma situação - como a criada pelas normas impugnadas - de eliminação das medidas visando uma das vias de acesso à habitação (a aquisição de casa própria), a que o legislador sempre deu maior importância, ficando o apoio estatal limitado, para a generalidade do território nacional, a uma medida de incentivo ao arrendamento para jovens.

É que repete-se a existência cumulativa de medidas de apoio ao arrendamento e de medidas de apoio à aquisição de casa própria são exigidas quer pelo artigo 65.º, n.º 3, para a generalidade dos cidadãos, quer pelo artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da CRP, especialmente para os jovens, nada justificando que para estes se afirme a fungibilidade das duas políticas, como o fez o precedente acórdão. - Mário José de Araújo Torres.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2264624.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1992-08-05 - Decreto-Lei 162/92 - Presidência do Conselho de Ministros

    Institui o incentivo ao arrendamento por jovens.

  • Tem documento Em vigor 1995-07-06 - Decreto-Lei 162/95 - Ministério das Finanças

    ALTERA O DECRETO LEI 353/89, DE 16 DE OUTUBRO, QUE APROVA A LEI ORGÂNICA DA INSPECÇÃO GERAL DE FINANÇAS, NO QUE SE REFERE A RESPECTIVA GESTÃO DOS RECURSOS HUMANOS.

  • Tem documento Em vigor 1995-08-22 - Decreto Legislativo Regional 14/95/A - Região Autónoma dos Açores - Assembleia Legislativa Regional

    CRIA UM CONJUNTO DE APOIOS A HABITAÇÃO A CONCEDER PELO GOVERNO REGIONAL DOS AÇORES. DISPOE SOBRE OS REFERIDOS APOIOS, TIPIFICADOS DA SEGUINTE FORMA: - CEDENCIA DE PROJECTO DE LOTEAMENTO, DE INFRA-ESTRUTURAS E PROJECTOS TIPO DE HABITAÇÃO, - COMPARTICIPACAO NA RECUPERAÇÃO DE HABITAÇÃO DEGRADADA, - CEDENCIA DE SOLOS, - COMPARTICIPACAO NA CONSTRUCAO, AMPLIAÇÃO E/OU REMODELAÇÃO DE HABITAÇÃO PRÓPRIA, - COMPARTICIPACAO NA AQUISIÇÃO DE HABITAÇÃO PRÓPRIA, - CONSTRUCAO E/OU AQUISIÇÃO DE HABITAÇÃO SOCIAL DESTINADA A R (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-04-13 - Decreto Legislativo Regional 8/98/A - Região Autónoma dos Açores - Assembleia Legislativa Regional

    Altera o Decreto Legislativo Regional nº14/95/A de 22 de Agosto, que cria um programa de apoio à habitação a conceder pelo Governo Regional dos Açores, introduzindo medidas de apoio à pessoas com deficiência.

  • Tem documento Em vigor 1998-11-11 - Decreto-Lei 349/98 - Ministérios das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território

    Estabelece o regime jurídico de concessão de crédito à habitação própria.

  • Tem documento Em vigor 2002-05-31 - Lei 16-A/2002 - Assembleia da República

    Altera a Lei 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que aprova o Orçamento do Estado para 2002, o Código do IVA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro, o Decreto-Lei 347/85, de 23 de Agosto, que fixa as taxas reduzidas para as operações sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado efectuadas nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, a lei geral tributária, aprovada pelo Decreto-Lei 398/98, de 17 de Dezembro, o Código do IRS, aprovado pelo Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de Novembro, o Código (...)

  • Tem documento Em vigor 2002-12-18 - Acórdão 474/2002 - Tribunal Constitucional

    Dá por verificado o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequível o direito previsto na alínea e) do n.º 1 do seu artigo 59.º relativamente a trabalhadores da Administração Pública ( direito à assistência material quando em situação involuntária de desemprego (Procº. 489/94).

  • Tem documento Em vigor 2003-02-12 - Acórdão 509/2002 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4º, nº 1, do decreto da Assembleia da República nº 18/IX (titulares do direito ao rendimento social de inserção). Proc. nº 768/2002.

  • Tem documento Em vigor 2003-11-12 - Decreto-Lei 287/2003 - Ministério das Finanças

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho, aprova o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, altera o Código do Imposto do Selo, altera o Estatuto dos Benefícios Fiscais e os Códigos do IRS e do IRC e revoga o Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, o Código da Contribuição Autárquica e o Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doaçõ (...)

  • Tem documento Em vigor 2003-12-09 - Decreto-Lei 305/2003 - Ministério das Finanças

    Revoga os regimes de crédito bonificado, regulados pelo Decreto-Lei n.º 349/98, de 11 de Novembro, relativamente à contratação de novas operações de crédito, destinados à aquisição, construção e realização de obras de conservação ordinária e de beneficiação de habitação própria permanente.

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