Acórdão n.º62/2003/T. Const. - Processo 351/02. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Por decisão do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho (IDICT) - Delegação de Coimbra - de 5 de Julho de 2001, o Banco de Investimento Imobiliário, S. A., foi condenado como autor de uma contra-ordenação laboral (artigo 10.º do Decreto-Lei 421/83, na redacção dada pelo artigo 14.º da Lei 118/99, em conjugação com o despacho publicado no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Novembro de 1992, punível nos termos dos artigos 7.º, n.º 4, e 9.º, n.º 1, alínea d), da Lei 116/99), a pagar uma coima de 1 500 000$, considerando a gravidade da infracção e o grau de culpa do arguido.
Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal do Trabalho de Coimbra, tendo arguido inconstitucionalidades, à semelhança do que fizera na contestação ao auto de notícia lavrado nos autos pelo IDICT.
O Tribunal do Trabalho de Coimbra, por sentença de 23 de Outubro de 2001, manteve a condenação e a coima aplicada pelo IDICT (cf. fls. 238 a 248).
O acoimado interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo concluído a sua alegação nestes termos:
"1 - O artigo 125.º do CPA não é aplicável ao caso dos autos pois o direito contra-ordenacional é um ramo do direito penal - é um direito especial - e não direito administrativo.
2 - O Governo foi autorizado a legislar ao abrigo da alínea u) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP, e não da alínea d) daquela disposição da lei fundamental.
3 - Assim, o artigo 125.º do CPA é inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP, se, e na exacta medida em que, a sua previsão incluir o caso dos autos.
4 - A decisão do Sr. Delegado do IDICT deve ser considerada nula por lhe ser aplicada o artigo 379.º do Código Penal por remissão do artigo 41.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, ou serem tais disposições consideradas inconstitucionais por violação dos direitos de defesa do arguido previstos no artigo 32.º, n.º 10, da CRP.
5 - É por isso nula ou inexistente a decisão proferida nos autos pelo Sr. Delegado do IDICT de Coimbra.
6 - À data em que foi proferida a decisão recorrida, bem como actualmente, a competência para aplicação de coimas correspondentes às contra-ordenações laborais é exclusiva do inspector-geral do Trabalho, de harmonia com o disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei 102/2000, de 2 de Junho.
7 - O Decreto-Lei 102/2000, de 2 de Junho, é material, orgânica e formalmente inconstitucional na parte em que atribui ao Sr. Inspector-Geral do Trabalho competência para aplicação de coimas, cf. artigo 4.º, n.º 2, alínea c), e à Inspecção-Geral do Trabalho o desenvolvimento da acção sancionatória, cf. artigos 6.º a 13.º do citado diploma.
8 - Tais inconstitucionalidades advêm do facto de a matéria neles vertida integrar regime geral de actos ilícitos de ordenação social e respectivo processo, sendo que por isso teria de ser objecto de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei do Governo se este para tal estivesse autorizado, conforme resulta da conjugação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea d), e 198.º, ambos da CRP.
9 - O despacho de delegação de poderes n.º 8616/2001, de 2 de Abril, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Abril de 2001, por ter como norma habilitante o artigo 4.º, n.os 2, alínea c), e 3, do Decreto-Lei 102/2000, é consequentemente inconstitucional, não podendo ter efeito qualquer decisão proferida ao seu abrigo.
10 - A falta de registo do fundamento de trabalho suplementar antes de terminada a sua prestação não constitui qualquer contra-ordenação porquanto não está tipificada na lei.
11 - Considerar que o artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 421/83 tipifica a falta de registo de trabalho suplementar antes do seu término como contra-ordenação é manifestamente inconstitucional e viola o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.
12 - O fundamento encontrava-se registado no registo informático do trabalho suplementar, pelo que, ainda que a sua omissão integrasse contra-ordenação, não foi cometida qualquer infracção.
13 - A recorrente não podia registar o descanso compensatório gozado pelo trabalhador porquanto o mesmo efectivamente ainda não gozou qualquer descanso compensatório.
14 - O registo do descanso compensatório não faria qualquer sentido e por não ter existido faria a recorrente incorrer na comissão de crime de falsas declarações.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, ordenando-se o arquivamento dos autos como é de inteira justiça."
A Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra proferiu Acórdão em 28 de Fevereiro de 2002, em que, remetendo para reiterada e firme jurisprudência ali fixada, negou provimento ao recurso de impugnação, mantendo a decisão recorrida (cf. fls. 275 a 282 dos autos).
Veio de novo o arguido recorrer, agora para o Tribunal Constitucional, tendo dito no requerimento de interposição de recurso:
"I - Aplicou ao processo contra-ordenacional o artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo, admitindo, por conseguinte, que a decisão administrativa estava devidamente fundamentada.
A interpretação dada àquele preceito, aplicando-o ao processo contra-ordenacional, inclui na sua previsão matéria contra-ordenacional.
Ao incluir tal matéria na previsão daquela disposição, torna-se a mesma, e nessa medida, inconstitucional por violação do direito de defesa concedido ao arguido em processo contra-ordenacional pelo artigo 82.º, n.º 10, da Constituição da República e por violação da reserva relativa de competência da Assembleia da República consagrada no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República.
II - Não considerou inconstitucionais os artigos 4.º, n.º 2, alínea c), e 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º e 13.º do Decreto-Lei 102/2000, que estabelecem respectivamente a competência do inspector-geral do Trabalho para aplicar coimas correspondentes às contra-ordenações laborais e actividade sancionatória e inspectiva da Inspecção-Geral do Trabalho. Por esse motivo, julgou competentes os intervenientes processuais.
Aquelas normas respeitam ao processo de ilícito de mera ordenação social e por consequência são da competência da Assembleia da República - reserva relativa - , porém, constam de um decreto-lei sem autorização legislativa, pelo que foi violado o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.
III - Aplicou o artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 421/83, de 2 de Dezembro, considerando, consequentemente, que o fundamento da prestação do trabalho suplementar tem de ser registado antes do início da mesma prestação.
No entanto, ou a omissão de registo do fundamento antes do termo do trabalho suplementar não integra qualquer contra-ordenação, por não ser essa a interpretação correcta da referida disposição legal, Ou a interpretação dada pela sentença ora recorrida é conforme ao espírito e letra da lei, pelo que sofre o artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 421/83, de 2 de Dezembro, do vício de inconstitucionalidade, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, porquanto permite que a omissão de registo do fundamento do trabalho suplementar antes do início do mesmo seja uma infracção tipificada pela Administração Pública, e não pela Assembleia da República ou pelo Governo, em sede de decreto-lei autorizado.
IV - O supra-referido acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra é recorrível, por ter aplicado normas inconstitucionais, artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro.
O recorrente tem legitimidade para recorrer, nos termos do n.º 1, alínea b), e do n.º 2 do artigo 72.º da citada Lei 28/82.
Pretende-se pois que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade dos artigos 125.º do CPA, 4.º, n.º 2, alínea c), 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º e 13.º do Decreto-Lei 102/2000, de 2 de Junho, e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 421/83 de 2 de Dezembro.
O recorrente considera que foram violados os artigos 32.º, n.º 10, e 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição da República.
Para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 75.º-A da Lei 28/82, de 15 de Novembro, diz-se ainda que as questões de inconstitucionalidade, a cuja apreciação ora se pretende sujeitar, foram anteriormente suscitadas nas seguintes peças processuais:
a) Aplicação do artigo 125.º do CPA, violando os artigos 32.º, n.º 10, e 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP: recurso para a Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra;
b) Aplicação dos artigos 4.º, n.º 2, alínea c), e 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º e 13.º do Decreto-Lei 102/2000, violando o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP: recurso para a Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra;
c) Aplicação do artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 421/83, de 2 de Dezembro, violando o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP: recurso para o Tribunal do Trabalho de Coimbra e recurso para a Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra."
Admitido o recurso neste Tribunal, apresentou o recorrente as suas alegações, concluindo como segue:
"1 - O artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo é inconstitucional se interpretado no sentido de que a sua previsão inclui matéria contra-ordenacional. Naquela interpretação, o artigo 125.º, concebido ao abrigo de uma autorização legislativa que não abrange o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP, viola-o, porquanto a autorização legislativa ao abrigo do qual foi feito não abrange a alínea d) do citado n.º 1 do artigo 165.º, mas sim a alínea u) do mesmo número e artigo da lei fundamental.
2 - O Decreto-Lei 102/2002, de 2 de Junho, é material, orgânica e formalmente inconstitucional na parte em que atribui ao inspector-geral do Trabalho competência para aplicação de coimas, cf. artigo 4.º, n.º 2, alínea c), e à Inspecção-Geral do Trabalho o desenvolvimento da acção sancionatória, cf. artigos 6.º a 13.º do citado diploma.
3 - Tais inconstitucionalidades advêm do facto de a matéria neles vertida integrar regime geral de actos ilícitos de ordenação social e respectivo processo, sendo que por isso teria de ser objecto de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei do Governo se este para tal estivesse autorizado, conforme resulta da conjugação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea d), e 198.º, ambos da CRP.
4 - O artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 421/83, de 2 de Dezembro, é inconstitucional na interpretação que dele fez o venerando Tribunal da Relação, porquanto viola o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exmas., devem ser julgados inconstitucionais o artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo, quando interpretado no sentido de que é aplicável ao processo contra-ordenacional, os artigos 4.º, n.º 2, alínea c), e 6.º a 13.º do Decreto-Lei 102/2000, de 2 de Junho, por estatuírem matéria contra-ordenacional e não terem sido concebidos com a competente lei de autorização, e o artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 421/83, enquanto interpretado no sentido de que a sua previsão tipifica uma contra-ordenação."
O ora recorrente juntou parecer neste Tribunal.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, pugnando pela improcedência do presente recurso, tendo concluído:
"1 - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República em sede de contra-ordenações apenas envolve a definição do 'regime geral' vigente, não implicando a tipificação de cada infracção ou a definição de quais as entidades administrativas competentes para intervir no processo contra-ordenacional.
2 - Não implica qualquer violação dos direitos de audiência e defesa do arguido em processo contra-ordenacional a interpretação normativa que considera subsidiariamente aplicável à fundamentação da decisão da autoridade administrativa o preceituado no artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo, não havendo razão para considerar, do ponto de vista jurídico-constitucional, obrigatória a aplicação subsidiária da norma constante do artigo 374.º do Código de Processo Penal, relativo ao dever de fundamentação das decisões judiciais tomadas no âmbito penal.
3 - Termos em que deverá improceder o presente recurso."
Cumpre apreciar e decidir.
2 - O Banco recorrente interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro.
No caso dos autos, o recorrente limita a questão de constitucionalidade à apreciação da "norma do artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo" quando aplicada em sede de contra-ordenações laborais e ainda das "normas dos artigos 4.º, n.º 2, alínea c), e 6.º a 13.º do Decreto-Lei 102/2000, de 2 de Junho," e "artigo 10.º, n.º 2, do Decreto Lei 421/83, de 2 de Dezembro", por alegada violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição.
3 - Vejamos a primeira questão suscitada.
O recorrente defende nas alegações e nas cinco primeiras conclusões do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que o artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo "não é aplicável ao caso dos autos" e "é inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP, se, e na exacta medida em que, a sua previsão incluir o caso dos autos".
Disse-se, a propósito, na decisão recorrida:
"Na tese da motivação são apontadas de inconstitucionais praticamente todas as disposições normativas a que se faz referência.
Desde logo o seria e entramos já na consideração da temática a que respeitam as três primeiras conclusões - o artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo, por violação do artigo 165.º da CRP, que não se aplicará sequer ao caso dos autos [...]
Não se contesta que o direito contra-ordenacional constitui um género do direito penal, um direito penal especial.
Não é um direito administrativo ou direito penal administrativo (nas palavras de um excerto de argumentação do citado assento/acórdão para fixação de jurisprudência 1/2001, in Diário da República, n.º 93, de 20 de Abril 2001, a p. 2325), convindo igualmente que o seu natural direito subsidiário é o direito penal e o direito processual penal [...] e não o direito administrativo.
Mas a questão não é essa!
Como é sabido, o processo contra-ordenacional assume estruturalmente uma especial natureza mista, com uma clara feição de procedimento administrativo até à fase judicial, de que é clara evidência, v. g., a circunstância de a apresentação dos autos [...] ao juiz, pelo Ministério Público, valer como acusação e a impossibilidade de recurso hierárquico da decisão cominatória v. artigos 59.º, n.º 1, 62.º, 66.º e 74.º, n.º 4, do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro.
Assim, afigura-se-nos que em todas as circunstâncias não expressamente previstas (e não havendo disposição normativa que a tal se oponha) terá de admitir-se o recurso à disciplina e princípios que genericamente regem esse tipo de procedimento.
Na fase em que o processo se desenvolve, no âmbito puramente administrativo (até ao envio dos autos ao Ministério Público), nada obstará à observância e aplicação supletiva das regras do CPA.
É aplicável ao caso a disciplina do seu artigo 125.º, que enquanto tal nada tem evidentemente de inconstitucional, nomeadamente por não afrontar o referido artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP, como facilmente se alcança do acima exposto."
Foi deste modo aplicada, como ratio decidendi, a norma contida no artigo 125.º do CPA, que respeita aos requisitos de fundamentação dos actos administrativos em geral.
Mais concretamente, a norma aplicada foi a que se contém no n.º 1 daquele preceito legal, uma vez que a questão suscitada pelo recorrente se reportava à fundamentação por remissão da referida decisão punitiva, precisamente a que é admitida, no âmbito dos actos administrativos em geral, por aquela norma.
A tese do recorrente pode sintetizar-se assim: aos requisitos das decisões administrativas punitivas no âmbito de um processo contra-ordenacional só podem ser aplicadas normas editadas ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, ou seja, aquele que inclui na reserva relativa de competência da Assembleia da República legislar em matéria de "regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo", o que não seria o caso.
Sobre esta específica competência da Assembleia da República escreveu-se no Acórdão 56/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., pp. 153 e segs.:
"12 - Salvo autorização ao Governo, igualmente pertence à Assembleia da República - artigo 168.º, n.º 1, alínea d) - a competência para legislar sobre o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo. A competência exclusiva do Parlamento limita-se, neste caso, ao regime geral. Razões de ordem histórica e razões de sistema confirmam esta interpretação, de imediato deduzível da letra do preceito.
Na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional discutiu-se a nova formulação proposta para a alínea c) do n.º 1 do artigo 168.º: 'definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos e regime geral de punição das infracções disciplinares e dos actos ilícitos de mera ordenação social, bem como do processo criminal'. Como entremostra a discussão travada - Diário da Assembleia da República, 2.ª sessão legislativa, 2.ª série, n.º 44, suplemento, pp. 904(1) e 904(2) -, acabou por se assentar na sua desmultiplicação em duas alíneas, as actuais alíneas c) e d), ficando, segundo esta última alínea, no domínio da reserva legislativa da Assembleia da República o regime geral do ilícito de mera ordenação social e, pela mesma lógica, o regime geral do respectivo processo ou as suas grandes normas adjectivas.
Esta interpretação é ainda confirmada sistematicamente a dois níveis. Por um lado, é significativo que a alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º, ao invés do que sucede com a alínea c) do mesmo n.º 1, se refira expressamente a regime geral. Por outro lado, o artigo 229.º, alínea m), da Constituição atribui às Regiões Autónomas o poder de definir actos ilícitos de mera ordenação social e respectiva punição, pelo que ao Governo, e com referência a todo o território do Estado, se não pode deixar de reconhecer igual competência. Mais exactamente, ao Governo, dentro da lei quadro (Decreto-Lei 433/82, emitido no uso da autorização conferida pela Lei 24/82, de 23 de Agosto), pertence, no exercício de competência legislativa concorrente com a da Assembleia da República, delinear ilícitos contra-ordenacionais, estabelecer a concernente punição e moldar regras secundárias do processo contra-ordenacional.
Com tudo isto, se não quer significar que ao Governo seja ilícito revogar parcialmente o Decreto-Lei 433/82. Ponto é que estejam em equação normas desenquadradas do regime geral, substantivo ou adjectivo, do ilícito de mera ordenação social."
Esta doutrina veio a ser seguida por uma orientação jurisprudencial sempre uniforme deste Tribunal (cf. Acórdão 158/92 e outros aí citados, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., pp. 713 e segs.).
E dela resulta, como se viu, que, em matéria adjectiva, só a edição de normas ditas primárias, como fazendo parte do regime geral do ilícito de mera ordenação social, se insere na competência reservada da Assembleia da República.
O Decreto-Lei 433/82, editado pelo Governo, sob autorização legislativa, contém essas normas primárias, substantivas e adjectivas; mas não estará obviamente excluído que nesse diploma se contenham outras normas que não comunguem daquela natureza.
Entende-se, porém, que os requisitos das decisões condenatórias constantes do artigo 58.º daquele decreto-lei, com a redacção dada pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro (tal como do artigo 56.º do Decreto-Lei 421/85, de 26 de Novembro, então vigente, que, aprovado pelo Governo no uso de competência própria, estabelecia disposições relativas às contra-ordenações laborais), traduzem uma exigência fundamental em matéria de processo contra-ordenacional.
Com efeito, os direitos de defesa dos acoimados ali tutelados determinam seguramente a qualificação da norma como norma primária do processamento das contra-ordenações, assim integrando o regime geral de punição dos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo.
Isto não obstante a Lei 116/99, de 4 de Agosto, que aprova o regime geral das contra-ordenações laborais, nada dispor a este respeito, o que se deverá ao facto de, nos termos do artigo 2.º desse regime, ser subsidiariamente aplicável o regime geral das contra-ordenações.
A verdade, porém, é que se nesse regime geral se impõe que as decisões condenatórias obedeçam a determinados requisitos, já nele se não exige a forma por que eles devam ser preenchidos.
E tal como a exigência constitucional de fundamentação expressa dos actos administrativos se não deixa de cumprir com a remissão para peça do processo (v.g. parecer ou proposta) que contenha tal fundamentação, também se obedecerá ao disposto no artigo 58.º do Decreto-lei 433/82 se a decisão condenatória remeter para proposta que contenha os requisitos ali previstos.
Nesta medida, nada impediria que o Governo, no exercício de competência própria, editasse norma que previsse a forma remissiva para se cumprir o disposto no citado artigo 58.º do Decreto-Lei 433/82.
Mas, assim sendo, não se inserindo na competência reservada da Assembleia da República, ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição, legislar em tal matéria, nada impede que se lance mão do disposto no artigo 125.º do Código do Procedimento Administrativo respeitante à admissibilidade da fundamentação dos actos administrativos por remissão, razão por que a norma do artigo 125.º do CPA, interpretada no sentido de ela ser aplicável às decisões condenatórias em processo contra-ordenacional, não a faz incorrer em violação do citado preceito constitucional.
E também não viola os direitos de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 10, da CRP), uma vez que a aludida forma de fundamentação da decisão condenatória não impede - como aliás se vê que, no caso, não impediu - o exercício daqueles direitos, bem sabendo o acoimado os factos por que lhe é imposta uma coima e o direito aplicado.
4 - Sustenta, ainda, o recorrente que o Decreto-Lei 102/2000, de 2 de Dezembro, é inconstitucional material, orgânica e formalmente, considerando que "tais inconstitucionalidades advêm do facto de a matéria neles vertida integrar regime geral de actos ilícitos de ordenação social e respectivo processo, sendo que por isso teria de ser objecto de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei do Governo se este para tal estivesse autorizado, conforme resulta da conjugação dos artigos 165.º, n.º 1, alínea d), e 198.º, ambos da CRP.".
Sendo, para o recorrente, todo o diploma mencionado inconstitucional, não deixa ele de destacar as normas constantes dos artigos 4.º, n.º 2, alínea c), e 6.º a 13.º
Subjaz, deste modo, ao entendimento do recorrente a ideia de que as matérias, todas as matérias, que respeitem à punição dos ilícitos de mera ordenação social são da competência legislativa da Assembleia da República (salvo autorização ao Governo).
Ora, como se disse e é jurisprudência firme deste Tribunal, só é da competência da Assembleia da República (ou do Governo com autorização legislativa) legislar em matéria de regime geral de punição de ilícitos de mera ordenação social e respectivo processo.
O Decreto-Lei 102/2000, de 2 de Dezembro, respeita ao desenvolvimento e à protecção das condições de trabalho, em que a Inspecção-Geral do Trabalho "desempenha uma função indispensável na regularização de aspectos essenciais do mercado de trabalho e contribui para realizar a responsabilidade do estado de assegurar a concorrência económica equilibrada entre as empresas" (cf. respectivo preâmbulo), não podendo assim afirmar-se que a matéria que ele (todo ele) regula se insira na competência da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição.
Mas ainda que centremos a nossa análise nas normas dos artigos 4.º, n.º 2, alínea c), e 6.º a 13.º do decreto-lei supra-referido, também aí não assiste razão ao recorrente.
O artigo 4.º, n.º 2, alínea c), confere ao inspector-geral do Trabalho competência para aplicar coimas, multas e sanções acessórias correspondentes às contra-ordenações e contravenções laborais.
Ora, sobre a competência em razão da matéria para aplicar coimas, o artigo 34.º, n.º 1, do Decreto-lei 433/82 limita-se a dispor que ela "pertencerá às autoridades determinadas pela lei que prevê e sanciona as contra-ordenações".
Remete-se, assim, para a lei que define um determinado tipo de contra-ordenação a competência para aplicar a respectiva coima, sendo certo que o Tribunal Constitucional, desde o seu citado Acórdão 56/84 (cf., ainda, Acórdão 110/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., pp. 627 e segs.), firmou já doutrina no sentido de que a criação ex novo de contra-ordenações se insere na competência concorrente da Assembleia da República e do Governo.
Não faz, pois, parte do regime geral de punição do ilícito de mera ordenação social a definição das entidades competentes para punir esse ilícito.
Acresce que já a Lei 116/99 atribuía, no seu artigo 17.º, à Inspecção-Geral do Trabalho a competência para o processamento das contra-ordenações laborais e ao inspector-geral do Trabalho a competência para aplicação das coimas correspondentes, competência esta que poderia ser delegada nos delegados ou subdelegados do IDICT.
Não se verifica, assim, qualquer inconstitucionalidade na norma do artigo 4.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei 102/2000.
No que concerne às normas constantes dos artigos 6.º a 13.º do Decreto-Lei 102/2000, de 2 de Dezembro, inseridas no capítulo II, reportam-se elas à acção inspectiva, matéria que igualmente nada tem que ver com a definição do regime geral das contra-ordenações laborais.
É certo que algumas dessas normas (artigos 6.º a 9.º ) se referem ao processamento das contra-ordenações.
A verdade, porém, é que nenhuma delas, que se possa considerar norma primária adjectiva, altera o que se dispõe no Decreto-Lei 433/82, sendo ainda evidente que algumas correspondem mesmo ao disposto nos artigos 19.º e 20.º da citada Lei 116/99 e a que consta do artigo 8.º, n.º 2, manda aplicar ao processamento iniciado com a participação "o regime geral das contra-ordenações".
Não se vislumbra, assim, qualquer inconstitucionalidade das citadas normas.
5 - Entende, por fim, o recorrente que "considerar que o artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei 421/83 tipifica a falta de registo de trabalho suplementar antes do seu término como contra-ordenação é manifestamente inconstitucional e viola o artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP".
Ora, o que atrás se disse sobre a competência do Governo para definir ex novo contra-ordenações basta para julgar improcedente a alegação de inconstitucionalidade, que, uma vez mais, assenta na tese de que a definição de qualquer ilícito contra-ordenacional se insere na reserva relativa de competência da Assembleia da República.
6 - Decisão.
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003. - Artur Maurício - Maria Helena Brito - Pamplona de Oliveira - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.