Acórdão 107/2003/T. Const. - Processo 543/02. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - A Câmara Municipal de Faro interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de fls. 88 e seguintes.
No pertinente requerimento de interposição de recurso, a recorrente pede a apreciação da "inconstitucionalidade da norma constante do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei 588/70, de 27 de Setembro, quando interpretada no sentido adoptado no douto acórdão recorrido, isto é, quando interpretada no sentido segundo o qual a medida de encerramento dos parques de campismo prevista na referida norma se aplica às autarquias locais", e entende que a referida interpretação normativa ofende o disposto nos artigos 6.º e 242.º, n.º 1, da Constituição.
Nas suas alegações, a recorrente formula as seguintes conclusões:
"I - O acto recorrido traduz-se numa intervenção tutelar da autoridade recorrida relativamente a uma autarquia local, porquanto, ao ordenar o encerramento do Parque de Campismo Municipal da Ilha de Faro, a autoridade recorrida pratica um acto que é da exclusiva competência da recorrente, conforme resulta dos citados artigos 3.º e 8.º, alínea f), n.º 3, do Decreto-Lei 77/84 e 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 100/84.
Mas, ainda que tal não se entenda, nem por isso deixa de existir uma acção tutelar, uma vez que sempre que o Governo faz uma intervenção que incide sobre o comportamento de uma autarquia local, com a finalidade de assegurar o respeito pela legalidade, que a própria autarquia devia respeitar e não respeitou, estamos perante uma típica intervenção tutelar.
II - Tal intervenção tutelar é inconstitucional, porquanto viola o disposto nos artigos 6.º (princípio da autonomia local), 237.º, n.º 2 (a prossecução de interesses próprios das populações respectivas é atribuição das autarquias locais), e 243.º, n.º 1 (a tutela sobre as autarquias locais é meramente inspectiva e de legalidade), da Constituição da República Portuguesa.
III - Assim sendo, a interpretação do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei 588/70, segundo a medida nele prevista aplicável aos parques municipais de campismo, é inconstitucional por violar os citados preceitos da Constituição da República Portuguesa."
A entidade recorrida contra-alegou, sustentando o improvimento do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - O presente recurso emerge de um recurso contencioso interposto pela ora recorrente que tem como objecto um despacho da então directora-geral do Turismo que intimou a recorrente a encerrar o Parque de Campismo Municipal da Ilha de Faro, ao abrigo do estabelecido no artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei 588/70, de 27 de Novembro, por desrespeito ao previsto no n.º 1 do mesmo artigo 14.º - funcionamento do referido Parque não autorizado pela Direcção-Geral do Turismo.
O acórdão recorrido interpreta o regime legal de instalação e funcionamento de parques de campismo de acordo com o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, 7.º e 14.º do Decreto-Lei 588/70, 1.º e 2.º do Decreto-Lei 307/80, de 14 de Agosto, e 1.º e 62.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar 38/80, de 19 de Agosto.
Conclui o mesmo acórdão que às câmaras municipais passou a competir, a partir do Decreto-Lei 307/80, organizar os processos de instalação (localização e projecto) e proceder à respectiva autorização (de localização e instalação) dos parques de campismo, mantendo-se na competência da Direcção-Geral do Turismo a autorização de funcionamento dos parques de campismo e, juntamente com a Direcção-Geral da Saúde e as autoridades administrativas e policiais, a fiscalização do cumprimento do disposto no Decreto-Lei 588/70 (por manifesto lapso, escreveu-se no acórdão "588/80"); e daí que se não verificasse ilegalidade na ordem de encerramento do referido Parque, por falta de autorização de funcionamento.
Como se deixou relatado, a recorrente indicou como objecto do presente recurso, expressamente, apenas a norma do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei 588/70, que dispõe como segue:
"Independentemente da aplicação de qualquer sanção a que haja lugar, a Direcção-Geral do Turismo mandará encerrar qualquer parque de campismo que inicie a sua exploração sem a autorização prevista no último número."
Por seu turno, o n.º 1 do mesmo artigo estabelece o seguinte:
"Nenhum parque poderá ser instalado e iniciar a sua exploração sem prévia autorização da Direcção-Geral do Turismo."
Da indicação exclusiva da norma do artigo 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei 588/70 no requerimento de interposição de recurso, bem como nas conclusões das alegações do recurso, poderia concluir-se que a recorrente põe em causa apenas a constitucionalidade da ordem de encerramento do parque municipal de campismo sem questionar sub specie constitutionis a interpretação normativa adoptada no acórdão recorrido, no sentido de que à Direcção-Geral do Turismo compete a autorização de funcionamento dos parques municipais.
Mas não é assim.
Com efeito, do texto das alegações do presente recurso (como já do recurso para o Supremo Tribunal Administrativo) retira-se, sem margem para dúvidas, que a recorrente entende que a competência dos municípios respeitante aos parques de campismo municipais situados nos respectivos territórios, nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei 77/84, abrange os poderes de "identificar, elaborar e aprovar os projectos e, bem assim, assumir o funcionamento e a execução dos empreendimentos, a respectiva manutenção, a gestão e o funcionamento dos equipamentos".
Nesta conformidade, porque o funcionamento dos parques municipais competiria aos municípios respectivos, no âmbito da gestão dos interesses próprios, comuns e específicos das populações, seria constitucionalmente ilegítima a intervenção "sancionatória" da Direcção-Geral do Turismo.
O objecto do recurso acaba, assim, por ser mais vasto, constituído por um complexo normativo que abrange, para além do n.º 2 do artigo 14.º do Decreto-Lei 588/70, o n.º 1 do mesmo artigo (a que o n.º 2 se reporta) e o artigo 2.º do Decreto-Lei 307/80.
A questão que o Tribunal terá de resolver é, deste modo, a de saber se ofende os artigos 6.º (princípio da autonomia local), 237.º, n.º 1 (princípio da descentralização administrativa, que aqui - e não n.º 2 do mesmo artigo - se consagra), e 243.º, n.º 1 (limites da tutela administrativa sobre as autarquias locais), da Constituição a atribuição a um órgão da administração central (Direcção-Geral do Turismo) da competência para autorizar o funcionamento de parques de campismo municipais e para determinar o encerramento dos mesmos parques quando o seu funcionamento não foi precedido daquela autorização.
3 - Desde logo é de afastar qualquer violação dos limites constitucionais da tutela sobre as autarquias locais.
É que a norma (ou complexo normativo) que confere à Direcção-Geral do Turismo o poder de mandar encerrar um parque de campismo municipal por funcionar sem a sua autorização prévia, se tem como pressuposto um comportamento da autarquia - que aqui assume a mesma posição de qualquer outro ente privado obrigado pela norma que impõe a prévia autorização de funcionamento dos parques de campismo -, limita-se a regular uma competência do próprio Estado, que não é de mero controlo da legalidade de decisões administrativas da autarquia (próprio dos poderes de tutela) e reclama um poder de decisão.
A administração central não intervém aqui no uso de um poder de controlo da gestão do ente autárquico mas no uso da competência que lhe é atribuída pelo Decreto-Lei 588/70, como, aliás, se decidiu - e bem - no acórdão recorrido.
A questão é assim alheia a uma relação tutelar, pelo que não tem qualquer sentido a invocação de violação do preceito constitucional que dispõe sobre a tutela das autarquias locais.
4 - No parecer 3/82, da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 18.º vol., p. 141, entendeu-se que a administração local está constitucionalmente circunscrita "àquelas tarefas que se relacionam específica e directamente com uma certa comunidade local e por esta podem ser executadas em auto-responsabilidade e autonomia", pelo que "excederia o seu âmbito de competência jurídico-constitucionalmente fixado quando pretendesse definir um interesse que ultrapassa a respectiva comunidade para se encarnar como interesse geral, supra-local".
Logo, em caso de conflito entre o interesse geral e o local, os limites que a este devam ser postos em homenagem àquele podem ser definidos pelo legislador ordinário, sob condição de não destruir "o conteúdo essencial da garantia da administração autónoma", garantia que se traduz na circunstância de só o legislador poder limitar o interesse local "em função de um interesse geral por ele definido".
Por seu turno, no seu Acórdão 432/93, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25.º vol., p. 37, o Tribunal Constitucional deixa claro o seu entendimento sobre o enquadramento jurídico-constitucional das autarquias locais - entendimento que se tem mantido inalterado e aqui se sufraga -, dele se extraindo as seguintes considerações:
As autarquias locais, justificadas pelos valores da liberdade e da participação, concorrem para a organização democrática do Estado, conformando um "âmbito de democracia";
A Constituição não traça para as autarquias locais um "figurino de mera administração autónoma do Estado", pois elas constituem uma "estrutura do poder político", assumindo as normas que organizam o seu poder "uma justificação eminentemente democrática";
"O poder autárquico funda-se numa ideia de consideração e representação aproximada de interesses";
É o conjunto de interesses específicos das comunidades locais - os quais "entranham as razões de proximidade, responsabilidade e controlabilidade que proporcionam a auto-organização" - que justifica a autonomia e lhe delimita o conteúdo essencial;
O "espaço incomprimível da autonomia" é o dos "assuntos próprios do círculo local", sendo estes (e aqui cita-se expressamente a sentença do Tribunal Constitucional alemão n.º 15, de 30 de Julho de 1958, in Entscheidungen des Bundesverfassunggsgerichts, 8.º vol., p. 134) "aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria";
As autarquias têm legitimidade para uma actuação concorrente (com o Estado) na realização de tarefas constitucionais, não estando, no entanto, aqui presente a ideia de responsabilidade autónoma na gestão de um universo de interesses próprios.
Pois bem.
Destinados os parques de campismo a servir todos aqueles que procuram esta forma de lazer, não pode desde logo dizer-se que a sua instalação seja uma tarefa apenas relacionada com a comunidade local.
Com efeito, a criação de parques de campismo insere-se no sector do turismo que, como se sabe, é uma das principais fontes de riqueza do País.
E, seguramente, não é de todo estranha ao "ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado" (artigo 66.º da Constituição) a que todos têm direito e que ao Estado cumpre promover.
A intervenção do Estado, através da competência que, no caso, é atribuída à administração central, para autorizar o "funcionamento" dos parques de campismo (inclusive dos que são instalados por iniciativa dos municípios) é assim justificada por imperativo constitucional.
Trata-se aqui - como em tantos outros - de um campo de intervenção concorrencial do Estado, na prossecução de um interesse geral, e das autarquias, estas na gestão do que não deixa de constituir também um interesse local.
Na verdade, respeita ainda ao interesse das populações locais a promoção de actividades turísticas nas respectivas autarquias, como forma de atrair visitantes ao seu espaço territorial e criar pólos de desenvolvimento económico local.
Compreende-se, pois, que o legislador não afaste de todo o processo de criação de parques de campismo as respectivas autarquias - e, deste modo, se justifica que o Decreto-Lei 387/80 tenha transferido para as câmaras municipais dos respectivos concelhos "a competência para organizar os processos respeitantes à instalação de parques de campismo atribuída à Direcção-Geral do Turismo".
O regime legal respeitante aos parques de campismo no que respeita à competência para autorizar o funcionamento de parques de campismo municipais e determinar o seu encerramento quando aquele não é precedido da referida autorização, e tal como foi interpretado pelo acórdão impugnado, traduz, afinal, uma forma equilibrada de repartição de competências entre o poder central e o poder local na defesa de interesses gerais e locais.
Não é, assim, de modo algum afectado o conteúdo essencial da garantia da administração autónoma que se consubstancia na responsabilidade autónoma de gestão dos interesses que são próprios da comunidade local, não sendo assim violados os princípios plasmados nos artigos 6.º e 237.º, n.º 1, da Constituição.
5 - Decisão. - Pelo exposto, e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2003. - Artur Maurício (relator) - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.