Acórdão 413/2002/T. Const. - Processo 250/2002. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - SEQUEIROTEX - Fábrica de Tinturaria, Estamparia e Acabamentos, Lda., arguida nos autos à margem identificados, foi condenada, por decisão da Inspecção-Geral do Ambiente e confirmada no Tribunal de Comarca de Santo Tirso, pela prática da contra-ordenação prevista e punida nos termos dos artigos 41.º e 49.º, n.º 2, do Decreto-Lei 74/90, de 7 de Março, e 36.º e 86.º, n.os 1, alínea v), e 2, alínea c), do Decreto-Lei 46/94, de 22 de Fevereiro, na coima de 500 000$.
Não se conformando com tal decisão, a ora recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual não foi admitido por despacho da juíza do tribunal de 1.ª instância, por extemporaneidade.
Desse despacho reclamou a recorrente para o presidente do Tribunal da Relação do Porto.
Sobre a reclamação recaiu o despacho de fl. 28, que decidiu no sentido do não conhecimento da reclamação e do qual se extrai o seguinte trecho:
"No livro IX, título I, que é reservado aos 'Recursos', depois de se estabelecer, como é natural, o que pode e não pode ser objecto de recurso, concede-se a 'reclamação' para o presidente da Relação, quando o despacho, que se pronuncia sobre o pedido de interposição do recurso, consiste em o 'não admitir' ou que o 'retiver' - artigo 405.º do Código de Processo Penal.
Qual o seu sentido? É esta a única via de reacção? Pode sustentar-se a alternativa com o próprio recurso do despacho de não admissão pela circunstância de se utilizar a terminologia do 'pode'. Constitui argumento de natureza literal. Mas que nos quer parecer com força suficiente. Na verdade, quando a lei cria a 'reclamação', tem, necessariamente, de falar em 'pode', enquanto é um acto de que a parte 'pode' prescindir, prosseguindo os autos os seus respectivos termos, ainda que tenha de se sujeitar a consequências imanentes ao despacho: trânsito do despacho de que se interpusera recurso, ou subida do recurso em momento ulterior. O que pode nem sequer ter a ver com o fundo da questão.
Se o legislador impusesse a reclamação pelo 'deve', a reclamação teria que ser sempre deduzida. O que não goza de lógica alguma.
Todavia, a reclamação é uma via de natureza intermediária. E é-o enquanto, por um processo simplificado e com as garantias duma espécie de duplo grau de jurisdição, pode obstar a que tenha de ser o tribunal de recurso a pronunciar-se sobre o despacho que foi proferido previamente ao recurso. Depois, a própria decisão, a nível da 'reclamação', só é definitiva quando não tem que ser reapreciada pelo tribunal de recurso - artigo 405.º, n.º 4.
Enquanto o legislador coloca no mesmo prato, sem reservas, a não admissão e a retenção e não sendo legítimas grandes dúvidas de que jamais poderá ser por recurso a reacção à retenção, parece que a reclamação será a única via para reagir à não admissão.
Contudo, o que aqui está em causa são questões mais profundas. Na verdade, o recorrente questiona uma questão que gera controvérsia, ou seja, a contagem do prazo no direito adjectivo contra-ordenacional. E em vários segmentos: relevar a data do 'registo', ao apresentar-se o requerimento de interposição de recurso pela via postal registada e sua aplicação ao procedimento contra-ordenacional, concluindo que foi apresentado em 19 de Março de 2001; por força da Lei 59/98, de 25 de Outubro, e do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, o prazo de interposição de recurso suspende-se aos sábados e domingos; por força destes diplomas e ainda do Decreto-Lei 180/96, de 25 de Setembro, nomeadamente do seu artigo 4.º, o prazo do artigo 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei 294/95, de 14 de Setembro, passou a ser de 15 dias e contínuo, ou seja, teria terminado em 19 de Março, por ser segunda-feira, e tendo em conta que a leitura da sentença em 1.ª instância ocorrera em 2 de Março; finalmente, por força da inconstitucionalidade do artigo 74.º, n.º 1, o prazo de interposição de recurso teria sempre de ser de 15 dias, por virtude do artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, enquanto concede ao sujeito processual com direito a 'resposta' um prazo com aquele medida.
Ora, como é evidente, são-nos apresentadas as mais variadas e complexas questões, pelo que jamais podem ser apreciadas em sede de 'reclamação'. Na verdade, esta, quando é decidida, tem de ter presente essa mesma questão e as circunstâncias precárias em que o presidente da Relação é chamado a intervir, não só enquanto funciona como juiz singular, com a agravante de que a sua decisão pode revestir-se com carácter definitivo ou não, de acordo com o disposto no artigo 405.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Daí que a pessoa lesada queira ver apreciada uma de todas ou mesmo todas as questões e de uma vez só. O que, de forma alguma, pode ver satisfeito pela via da 'reclamação'.
E tanto a reclamação é uma de duas vias que o normativo faz equivaler a reclamação ao despacho de não admissão ao despacho de retenção.
Com o que não se concorda é com a aplicação do artigo 668.º, n.º 5, do Código de Processo Civil. Desde logo, porque se trata de uma inovação no processo civil, sem paralelo, portanto, no penal, pelo que deve ser específica daquele. Depois, só se aplica aquele regime quando o penal goza de lacuna. Mas 'lacuna' não é o processo penal não conter norma idêntica ao processo civil. Para tal, então, haveria que nos reger um diploma só. O artigo 4.º do Código de Processo Penal admite que nos socorramos do processo civil quando nos encontramos perante uma situação, fáctica ou processual, que o diploma não contempla. Ora, não é o caso, porquanto o processo penal contém uma regulamentação suficiente e capaz. O que ela não contempla é a requerida correcção. Mas, se a não contém, é porque entendeu que não deveria gozar da possibilidade de aconselhamento. Como já o entendeu - até à última reforma - o legislador civil. É um benefício que o legislador oferece mas apenas e quando o entendeu - no processo civil.
Neste sentido, recorda-se o parecer do Ministério Público, junto do Tribunal de Contas, no recurso n.º 766/96-2.ª: 'Não ofende o direito de acesso aos tribunais e o princípio constitucional das garantias de defesa um entendimento rigoroso do princípio da auto-responsabilidade das partes, patrocinada por mandatário judicial próprio, traduzido em considerar insuprível o erro na forma ou tipo de procedimento utilizado', em consequência de lapso ou erro na interpretação da lei adjectiva - no caso, a interposição de reclamação para o presidente de tribunal superior, com vista a obter a revogação da decisão do relator que julgou deserto o recurso, que havia sido admitido em 1.ª instância, por se considerar que de tal decisão cabia recurso, nos termos do n.º 1 do artigo 405.º do Código de Processo Penal. De qualquer maneira, sempre se dirá que não é a situação que aqui ocorre, porquanto aquele normativo só permite a correcção quando a parte se socorre, originariamente, do recurso, quando o deveria fazer através da 'reclamação' - ora aqui socorreu-se, desde logo, da 'reclamação'.
Portanto, ainda que por fundamento diverso, o despacho que considerou extemporânea a interposição de recurso não pode ser substituído por outro, no sentido de admitir o recurso que contra ele foi entretanto interposto, mas porque nem sequer nos podemos pronunciar sobre ele pelas razões sobreditas.
Por esta via, fica prejudicada a apreciação - a sua aplicação dependeria ainda não só da nossa adesão, como também de considerarmos que, no caso vertente, há um sujeito processual com direito a 'resposta' e que, efectivamente, goza de um tratamento 'privilegiado' e 'em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social' - da solução propugnada pelo Acórdão 1229/96, de 5 de Dezembro, do Tribunal Constitucional, proferido no processo 169/95-2.ª e publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 462, a pp. 154 a 159, nomeadamente, quando conclui: 'O artigo 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, quando dele decorre, conjugado com o artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso, está ferido de inconstitucionalidade, por violação do artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.'
Em consequência e em conclusão, não se conhece da reclamação, apresentada na C.º 27/99-1.º Criminal, do Tribunal Judicial de Santo Tirso, pela arguida, SEQUEIROTEX - Fábrica de Tinturaria, Estamparia e Acabamentos, Lda., por não admissão do recurso, por extemporâneo, da decisão da autoridade administrativa que a condenou na coima de 500 000$."
Pedida a aclaração deste despacho, o presidente da Relação do Porto proferiu o despacho de fls. 38 e seguintes, de onde se extracta:
"Mas uma coisa é certa - e é aí que reside o cerne da questão: é que, tal como foi equacionado o problema, não poderia ser objecto de apreciação nossa. Porque, como se disse, a decisão da 1.ª instância - a decisão de 'não admissão' do recurso - deveria ser objecto de um novo recurso. Pelas razões que aduzimos na reclamação."
A arguida interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
"SEQUEIROTEX - Fábrica de Tinturaria, Estamparia e Acabamentos, Lda., reclamante nos autos à margem referenciados, vem:
a) Interpor recurso para o Tribunal Constitucional;
b) O recurso é interposto ao abrigo das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, na redacção dada pela Lei 85/89;
c) Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da douta decisão que não conhece da reclamação, ou da interpretação do artigo 405.º do Código de Processo Penal que foi dada na douta decisão;
d) Bem como apreciar a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 74.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, quando, na conjugação com o artigo 413.º do Código de Processo Penal, configura um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso;
e) Tal decisão ou a interpretação dada à norma referida violam os artigos 13.º, 32.º, n.os 1 e 10, 202.º, n.º 2, e 204.º da Constituição da República Portuguesa;
f) A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos aquando da reclamação, bem como aquando do pedido de esclarecimento;
g) O recurso deve subir de imediato e com efeitos suspensivos."
Distribuído o processo, o relator emitiu o seguinte despacho:
"Para alegações, devendo a recorrente ter em conta que o recurso é admitido apenas ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) e para apreciação da constitucionalidade da norma ínsita no artigo 405.º do Código de Processo Penal (CPP). Isto porque:
a) Não há no despacho recorrido qualquer recusa de aplicação de norma com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado e só aquela justificaria o recurso ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da LTC;
b) O recurso de constitucionalidade é um recurso de normas, pelo que o TC não pode apreciar a 'inconstitucionalidade da douta decisão que não conhece da reclamação [...]';
c) Não foi aplicada no despacho recorrido a norma do artigo 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, em conjugação com o disposto no artigo 413.º do CPP."
A recorrente apresentou as alegações de fls. 54 e seguintes, concluindo do seguinte modo:
"1 - Na decisão proferida refere-se que atenta a terminologia da norma, com a expressão 'pode', a reclamação seria uma via de natureza intermédia.
2 - A única questão, no nosso entender, colocada na reclamação foi a de saber se o recurso interposto era ou não extemporâneo - e era e é essa a pretensão - tão só.
3 - O n.º 3 do artigo 405.º do Código de Processo Penal refere que 'no requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação'.
4 - Tentou-se elencar todas as razões que justificariam a admissão do recurso, sempre tendo por escopo a única pretensão aferir se o recurso tinha sido tempestivamente apresentado.
5 - Ora, o não conhecimento da reclamação é inconstitucional já que é a manifestação clara do que se costuma chamar prevalência da forma, entendida como forma de 'denegar' a própria justiça.
6 - Na medida em que viola o dever de julgar e é susceptível de afectar o direito ao recurso constitucionalmente consagrado.
7 - A reclamação é uma possibilidade que este tem de 'esgrimir' contra uma decisão que entende errada.
8 - Da decisão em crise resulta que a posição defendida pelo Exmo. Sr. Juiz Presidente da Relação do Porto é de que não é tecnicamente possível reclamar do despacho de 'não admissão' do recurso, ao abrigo do preceituado no artigo 405.º do Código de Processo Penal.
9 - Em bom rigor, ao não considerar tecnicamente possível a reclamação ao abrigo do preceituado no artigo 405.º do Código de Processo Penal, estaremos perante uma violação do direito ao recurso.
10 - E não se diga que a reclamação apresentada, embora bastante extensa (mas aí a culpa é nossa) tem várias questões que se pretendem ver resolvidas.
11 - A única questão é tão só saber se o recurso foi apresentado tempestivamente.
12 - Deve assim ser reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 405.º do Código de Processo Penal quando entendida que não sendo possível ao cidadão usar o regime aí previsto, ou pelo menos, declarada inconstitucional a interpretação que o tribunal fez de tal norma."
Por seu turno, o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal produziu contra-alegações, concluindo:
"1 - É inconstitucional, por violação da regra do processo equitativo, consagrada no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, a interpretação normativa do artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o meio idóneo para impugnar o despacho do juiz a quo que não admitiu, por intempestivo, certo recurso interposto pelo arguido para a Relação, é a via do recurso - e não a da reclamação para o presidente daquele tribunal.
2 - Na verdade, tal interpretação normativa, ao condicionar, em termos inovatórios e objectivamente surpreendentes, a admissibilidade da reclamação a um juízo (discricionário) acerca da variedade e complexidade das questões suscitadas em torno da questão da tempestividade do recurso não admitido - sem facultar à parte qualquer oportunidade processual de 'convolar' para o meio procedimental considerado idóneo - afecta desproporcionadamente a 'confiança' que deve necessariamente estar subjacente a um due process of law.
3 - Termos em que deverá proceder o presente recurso."
Cumpre decidir.
2 - A norma do Código de Processo Penal cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada é do seguinte teor:
"Artigo 405.º
Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso."
No caso em apreço, a norma aplicada é apenas a que se contém no n.º 1 do transcrito preceito, interpretada em determinado sentido que importa desde já dilucidar.
Para o despacho recorrido - que não conheceu da reclamação apresentada - a reclamação prevista no artigo 405.º do Código de Processo Penal é, desde logo, facultativa quando está em causa um despacho que não admite determinado recurso; por outro lado, o presidente do tribunal para que se recorre não deve conhecer da reclamação apresentada quando a resolução das questões suscitadas pelo reclamante, tendentes a demonstrar que o recurso deveria ter sido admitido em contrário do decidido no despacho reclamado, oferece particular complexidade - neste caso, o meio apropriado de impugnação é o recurso.
Esta interpretação resulta evidente do despacho impugnado e do esclarecimento ulterior prestado a requerimento da ora recorrente.
É, assim, com a aludida interpretação, que a norma em causa será apreciada sub specie constitucionis por este Tribunal.
3 - Uma primeira observação se impõe.
E ela é a de que, numa primeira leitura, a norma, tal como foi interpretada - e independentemente do acerto da interpretação no estrito âmbito do direito infraconstitucional - não deixaria a reclamante sem meios de defesa contra o despacho de não admissão de recurso que a agravou.
Com efeito, em bom rigor, o que no despacho recorrido se quer dizer é que, reclamando nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal, a recorrente usa um meio processual de impugnação impróprio; e o meio apropriado seria, considerando a invocada complexidade das questões suscitadas para demonstrar a tempestividade do recurso interposto, o recurso do despacho que não admitiu o recurso para a 2.ª instância.
Nesta medida - repete-se - não pareceria invocável qualquer situação de indefesa, ofensiva das garantias constitucionais de tutela jurisdicional efectiva dos direitos ofendidos, sendo, ainda, certo que o meio processual que o despacho recorrido indica como ade quado - o recurso - não se configura como mais oneroso para a recorrente.
A situação é, porém, diversa, se analisada com outra profundidade.
A interpretação que é feita da norma do artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que faz depender o conhecimento da reclamação da complexidade das questões a resolver, surge, no panorama jurisprudencial dos nossos tribunais superiores, com assinalado ineditismo.
Não conhece, de facto, este Tribunal qualquer corrente jurisprudencial que acolha uma tal interpretação.
Ao invés, é constante a jurisprudência no sentido de que do despacho que não admite um recurso, em processo penal, cabe reclamação para o presidente do tribunal para que se recorre, sem qualquer ressalva em caso de complexidade das questões a resolver.
A mero título de exemplo, citam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 12 de Fevereiro de 1997, da Relação de Lisboa de 4 de Outubro de 1994, 20 de Março de 1996, 13 de Março de 2000 e 17 de Maio de 2000, e da Relação do Porto de 5 de Abril de 2000, todos nas bases jurídico-documentais da DGSI (www.dgsi.pt).
Também, em processo civil e em lugar paralelo (artigo 688.º, n.º 12, do CPC), a mesma orientação é pacífica (cf., ainda, a título de mero exemplo, os Acõrdãos do STJ de 2 de Maio de 1991, 29 de Novembro de 1996 e 20 de Fevereiro de 1997, da Relação de Lisboa de 17 de Outubro de 1992 e 20 de Fevereiro de 1997 e da Relação de Coimbra de 24 de Maio de 2001, todos, igualmente, nas bases jurídico-documentais da DGSI).
Na doutrina não se encontra, também, qualquer voz que sufrague a tese do despacho recorrido.
É esta unanimidade que faz certamente com que o Ministério Público considere, nas suas contra-alegações, a "total imprevisibilidade" da interpretação normativa em causa e os "termos perfeitamente inovatários no nosso ordenamaneto adjectivo" da mesma interpretação.
E é também ela que justifica concluir-se que, a seguir o entendimento do despacho recorrido, a parte "se iria confrontar com um mais que provável juízo de rejeição pelo Tribunal por manifesto 'erro na forma do processo'".
Ora, se é certo que ao Tribunal Constitucional não compete sindicar o modo como o direito infraconstitucional - e neste estrito âmbito - é interpretado, não pode deixar de ponderar, na apreciação da constitucionalidade de uma determinada interpretação normativa e para efeitos de determinar as consequências que advêm para a parte que ela afecta, o entendimento comum, ou mesmo pacífico, na jurisprudência sobre a questão.
Assim, não pode o Tribunal Constitucional deixar de ponderar, no caso, que, de acordo com esse entendimento, a norma do artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada nos termos em que o foi, implicaria, seguramente, para o recorrente uma situação de indefesa, com a rejeição do recurso que viesse a interpor do despacho de não admissão, recurso esse que constituía para o despacho recorrido a única via de impugnação do mesmo despacho.
Tal consequência não a permite a Constituição.
Com efeito, admitindo a lei (artigo 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82), em matéria contra-ordenacional, recurso para a relação da sentença de 1.ª instância, ficaria o recorrente desprovido deste meio de impugnação que o legislador, ao prevê-lo, entendeu necessário para a defesa dos direitos dos arguidos.
Mas tem razão o Exmo. Magistrado do Ministério Público quando, nas suas contra-alegações, entende que não é, de todo o modo, posto assim em causa um direito ao recurso que a Constituição não assegura no processo contra-ordenacional.
A situação de indefesa em que surpreendentemente é colocado o recorrente afecta, contudo, a confiança que a parte deposita no ordenamento jurídico regulador dos meios de defesa dos seus direitos, confiança essa que é tutelada pelo princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Do mesmo passo, com a mesma surpreendente interpretação, que impede o uso de um meio pacificamente considerado adequado ao fim para que a recorrente o usou, sem alternativa credível (o recurso) atendendo à unanimidade da jurisprudência sobre a matéria, ofendido fica o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.
Não pode, assim, deixar de merecer provimento o recurso, embora por fundamentos diversos dos alegados pela recorrente.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portugesa, a norma ínsita no artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a reclamação aí prevista não é meio adequado de impugnação do despacho de não admissão do recurso quando nela se suscitam questões complexas;
b) Conceder, consequentemente, provimento ao recurso, devendo o despacho recorrido ser reformado de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Outubro de 2002. - Artur Maurício - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.