Acórdão 232/2002/T. Const. - Processo 232/2002. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Os arguidos Orlando Mafra e Miguel Fernandes Mafra, identificados nos autos, foram julgados no 1.º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Leiria e condenados, por Acórdão do tribunal colectivo de 18 de Janeiro de 2000, como co-autores de um crime de burla agravada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão cada um, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.
Inconformados, ambos os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por Acórdão de 21 de Junho de 2000, confirmou integralmente a decisão recorrida, negando provimento aos recursos.
2 - Notificado deste aresto, veio o arguido Orlando Mafra dele recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), pretendendo "ver aplicada [sic] a inconstitucionalidade da interpretação efectuada pelo acórdão recorrido, que para o efeito do preenchimento do tipo 'valor consideravelmente elevado', se limitou única e exclusivamente a referir ser o valor em causa superior a 200 UC, interpretação essa violadora das garantias constitucionais que aos particulares são reconhecidas pelo artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP".
E acrescenta:
"Pretende-se ver declarada a inconstitucionalidade deste sistema, por violação do princípio da reserva de lei [artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP], sendo certo que à data dos factos em causa não se encontrava ainda em vigor o citado artigo 3.º da Lei 65/98, do acórdão recorrido.
Tal interpretação constitui clara violação do princípio da reserva de lei, consagrado no artigo 27.º, n.os 2 e 3, da CRP."
Por sua vez, o arguido Miguel Fernandes Mafra, notificado do Acórdão da Relação de 15 de Novembro de 2000, que indeferiu o pedido de aclaração por si apresentado do referido Acórdão de 21 de Junho do mesmo ano, veio também interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com vista à apreciação da "inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a exposição dos motivos de facto e de direito na fundamentação das decisões da matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais, previsto no n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º, por violação do direito ao recurso, previsto no n.º 1 do artigo 32.º [...]".
Neste Tribunal, o relator proferiu despacho, ao abrigo do artigo 75.º-A da Lei 28/82, convidando o recorrente Orlando Mafra a completar o seu requerimento de interposição de recurso, no sentido de esclarecer qual a norma ou princípio constitucional que considera violado, bem como a peça processual em que suscitou a questão de constitucionalidade, tendo este apresentado o requerimento de fls. 135-136, no qual refere que: "[...] suscitou a inconstitucionalidade da interpretação realizada no acórdão recorrido da expressão 'valor consideravelmente elevado' constante do artigo 218.º, n.º 2, alínea a), que foi pelo tribunal a quo integrada através da definição do artigo 202.º, alínea b), que remete para o Decreto-Lei 212/89, de 30 de Junho, a definição de unidade de conta, não existindo à data dos factos autorização legislativa que legitime nos termos do artigo 165.º, n.º 1, da CRP, a sua elaboração; esta inconstitucionalidade foi suscitada na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça [refere-se ao recurso decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra] em 8 de Março de 2000."
3 - Em sede de alegações, o recorrente Orlando Mafra apresentou as seguintes conclusões:
"1.º A norma constante do artigo 218.º, n.º 2, alínea a), foi pelo acórdão recorrido integrada através da definição constante do artigo 202.º, alínea b).
2.º Refere o acórdão recorrido, aquando do enquadramento legal dos factos '[...] com a actuação descrita, os arguidos preencheram o tipo legal [...] na forma qualificada, pois o valor das mercadorias de que desapossaram o queixoso é superior a 200 UC [...], que, de harmonia com o disposto no artigo 202.º, alínea b), corresponde a valor consideravelmente elevado, o que faz subsumir o crime [...] no artigo 218.º, n.º 2, alínea a) [...]'.
3.º Logo, a norma constante do artigo 218.º, n.º 2, alínea a), foi pelo acórdão recorrido integrada através da definição constante do artigo 202.º, alínea b).
4.º Mas a norma constante do 202.º, alínea b), do CP, só fica verdadeiramente integrada depois de o legislador, através de um outro diploma, definir o quantitativo concreto de cada unidade de conta.
5.º Definição esta que, de acordo com a interpretação do acórdão recorrido, passa a fazer parte do conteúdo típico das referidas normas jurídico-penais e que, por isso, está dependente da autorização legislativa nos termos do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP.
6.º Estamos assim perante uma manifesta inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio da reserva de lei relativamente à definição dos pressupostos de privação da liberdade que a todos são garantidos pelo artigo 27.º, n.os 2 e 3, da CRP.
7.º Como nem num caso nem noutro foram os referidos diplomas preenchidos [precedidos] da autorização que legitimasse, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, da CRP, a sua elaboração.
8.º Acresce que a Lei 65/98 não é aplicável ao caso concreto nos termos do artigo 1.º, n.os 1 e 3, do CP, pois é posterior à data da prática dos factos que remontam a Janeiro de 1996 e é manifestamente prejudicial aos arguidos.
9.º Sendo que, no caso dos autos, a qualificação ou não do tipo legal em causa assume-se como uma questão da maior importância.
10.º Visto que, tendo o queixoso, cf. resulta de fl. 131 dos autos, desistido, nos termos do artigo 116.º, n.º 2, da queixa que havia apresentado.
11.º A convolação do ilícito num crime de burla simples implica, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 217.º, o arquivamento puro e simples dos autos, dada a natureza semipública do mesmo.
12.º Pelo que uma tal interpretação não pode deixar de ser tida como inconstitucional, desqualificando o tipo de ilícito em causa.
13.º Pelo exposto, deve assim ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação das normas do acórdão recorrido, com as legais consequências."
O recorrente Miguel Fernandes Mafra também apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões:
"A - As decisões recorridas, particularmente o acórdão do Tribunal da Relação que julgou improcedente o recurso, interpretaram e aplicaram o artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal no sentido de tal norma considerar suficiente para a exposição dos motivos, de facto e de direito na fundamentação das decisões da matéria, a simples enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal;
B - Não obstante tal interpretação não ser expressa e frontalmente assumida no douto acórdão, a forma como ela é evidenciada - no acórdão que julgou improcedente o recurso e no acórdão que o aclarou - justifica a interposição deste recurso para o Tribunal Constitucional e o seu conhecimento e cabal julgamento.
C - Em tal interpretação, referida na conclusão A precedente, a norma citada do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, é inconstitucional, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais, previsto no n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa e ainda, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º, por violação do direito ao recurso, previsto no n.º 1 do artigo 32.º da lei fundamental, como logo foi invocado pelo recorrente na motivação do recurso da decisão da primeira instância.
Isto mesmo já foi decidido no Acórdão 680/98 do Tribunal Constitucional, no processo 456/95 da 2.ª Secção."
Por sua vez, as contra-alegações apresentadas pelo procurador-geral-adjunto contêm as seguintes conclusões:
"1.º Não tendo a decisão recorrida interpretado a norma constante do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com o sentido, alegadamente inconstitucional, especificado pelo recorrente, não deverá conhecer-se do objecto do recurso interposto.
2.º A norma constante do artigo 202.º alínea b) do Código Penal, ao densificar e concretizar (com referência ao crime de burla agravada), o conceito de 'valor consideravelmente elevado', em função da figura e do valor da unidade de conta, avaliada no momento da prática do acto, não ofende os princípios da tipicidade e da legalidade vigentes em direito penal, pelo que deverá improceder, nesta parte, o recurso interposto."
Ouvido sobre a questão prévia do não conhecimento do recurso quanto à alegada inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, suscitada pela entidade recorrida, respondeu o recorrente Miguel Fernandes Mafra, pugnando pelo conhecimento da questão, referindo, em síntese, que "apenas pretende sindicar o critério normativo acolhido na interpretação que se fez do citado artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, naquela parte do acórdão em que a decisão sobre um determinado facto dado como provado - o valor dos sapatos - não aparece minimamente fundamentada".
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - 1 - Da delimitação do objecto dos recursos.
1.1 - Os presentes recursos de constitucionalidade foram interpostos ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o que implica, para que possa ser admitido e conhecer-se dos seus objectos, a congregação de vários pressupostos, entre os quais a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, de norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, considerada esta norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, mediatizada pela decisão recorrida.
No exercício deste controlo normativo escapa à competência cogniscitiva do Tribunal Constitucional - de acordo com o nosso orde namento jurídico qualquer forma de fiscalização sempre que a questão de constitucionalidade seja dirigida à decisão judicial, em si mesma considerada.
Assim, competindo ao recorrente o ónus de suscitação, deverá este cumpri-lo, referenciando-o normativamente, desse modo pondo em causa, por alegada violação de preceito ou de princípio constitucional, o critério jurídico utilizado na decisão ao aplicar a norma jurídica questionada.
E, nesta medida, quando, nomeadamente, se discuta uma dimensão interpretativa, deverá fazê-lo não só atempadamente mas de forma clara e perceptível, em termos de o Tribunal recorrido saber que tem essa questão para resolver e não subsistam dúvidas quanto ao sentido da mesma - até porque, frequentemente, não se revela tarefa fácil traçar com nitidez a linha de demarcação entre a interpretação discutida e a decisão qua tale, cuja reapreciação não pode, nesta sede, ser reaberta.
Neste enquadramento importará aludir às normas objecto dos recursos, nas interpretações que lhes foram atribuídas pelos recorrentes, e por ele tidas como constitucionalmente censuráveis.
1.2 - O recurso interposto pelo arguido Orlando Mafra, tal como o recorrente o delimitou no seu requerimento de aperfeiçoamento, de fls. 535-536, visa a "interpretação realizada no acórdão recorrido da expressão 'valor consideravelmente elevado' constante do artigo 218.º, n.º 2, alínea a), que foi pelo tribunal a quo integrada através da definição do artigo 202.º, alínea b), que remete para o Decreto-Lei 212/89, de 30 de Junho, a definição de unidade de conta, não existindo à data dos factos autorização legislativa que legitime nos termos do artigo 165.º, n.º 1 da CRP".
1.3 - Quanto ao recurso interposto pelo arguido Miguel Fernandes Mafra, este tem por objecto a "norma do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a exposição dos motivos de facto e de direito na fundamentação das decisões da matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais, previsto no n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º, por violação do direito ao recurso, previsto no n.º 1 do artigo 32.º [...]".
2 - Do não conhecimento do objecto do recurso interposto pelo arguido Miguel Fernandes Mafra.
2.1 - Defende o Ministério Público, no que à norma do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal respeita, não ser de conhecer do objecto do recurso, uma vez que o tribunal a quo não a terá aplicado com o sentido que o recorrente sustenta, pois considerou que "o tribunal não se limitou a indicar as provas que serviram para formar a sua convicção", tendo aduzido "os elementos destas provas que serviram criticamente de suporte às respectivas conclusões" e explicitando "o processo de formação da sua vontade".
Conforme se consignou no Acórdão 288/99 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Outubro de 1999), o Tribunal Constitucional vem entendendo que os tribunais, após enunciarem os factos provados e os não provados, têm de alinhar as razões que estão na base da convicção formada pelos mesmos de que a versão dos acontecimentos por si acolhida é a correcta, indicando, para esse efeito, os factos que a fundamentam e os motivos por que não atende as provas em sentido contrário.
Para esse efeito, o Tribunal deverá considerar os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional conducente à formação da convicção do tribunal em determinado sentido ou à valoração de determinada forma dos diversos meios de prova apresentados em audiência, como observa Marques Ferreira (in "Meios de prova", Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1992, pp. 228 e segs.).
A lógica deste fio argumentativo tem igualmente obtido acolhimento na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ao entender só estar cumprido o dever de fundamentação da sentença quando esta, para além de mencionar a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova, contiver os "elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação", como é o caso do Acórdão desse alto tribunal de 13 de Fevereiro de 1992, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, 1992, t. I, pp. 36 e 37.
O mesmo eco se encontra na jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Leia-se, a propósito, esta passagem do Acórdão 102/99, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Abril de 1999:
"A este mesmo propósito, disse-se, no Acórdão 322/93 deste Tribunal (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 29 de Outubro de 1993), que, "estando em causa uma decisão de um tribunal colectivo e tendo a fundamentação, por isso - como se assinalou no Acórdão 61/88 -, que traduzir ou reflectir o 'mínimo de acordo ou convergência consensual maioritariamente apurada no seio do tribunal' (onde pode ser diverso, de juiz para juiz, o fundamento da resposta num dado sentido ou 'oferecer entre todos cambiantes significativos'), há-de ela (a fundamentação) permitir, no entanto (e sempre), avaliar cabalmente o porquê da decisão. Ou seja: no dizer de Michelle Taruffo ('Note sulla garanzia costituzionale della motivazione', in Boletim da Faculdade de Direito, vol. IV, pp. 29 e segs.), a fundamentação da sentença há-de permitir a 'transparência' do processo e da decisão." Posteriormente, no Acórdão 172/94 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Julho de 1994), o tribunal insistiu em que 'a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão, e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo'. E, mais recentemente, no Acórdão 573/98 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 13 de Novembro de 1998), o Tribunal sublinhou que a decisão, sobre a matéria de facto tem de 'estar substancialmente fundamentada ou motivada - não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado'."
Na sequência deste entendimento (salientou-se no Acórdão 288/99), não se estará perante uma interpretação inconstitucional da norma em causa - n.º 2 do artigo 374.º do CPP - quando entendida a decisão da 1.ª instância pelo Supremo como exigindo uma fundamentação idónea, com análise crítica das provas, que permita reconstituir o iter que conduziu à convicção do tribunal (citado Acórdão 102/99). Contrariamente, verificar-se-ia uma interpretação constitucionalmente censurável se se considerasse suficiente uma fundamentação que não fosse susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos, e não outros, "sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão concretamente proferida", como se ponderou no Acórdão 680/98 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 5 de Março de 1999), ao considerar atingido, in casu, o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais.
2.2 - Entende o recorrente que a norma do n.º 2 do artigo 374.º do CPP foi interpretada pelo acórdão recorrido no sentido de ser suficiente para a exposição dos motivos, de facto e de direito, da fundamentação das decisões da matéria, a simples enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal.
Confrontado com a questão prévia suscitada pelo Ministério Público do não conhecimento do recurso, veio, então, o recorrente referir que "apenas pretende sindicar o critério normativo acolhido na interpretação que se fez do citado artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, naquela parte do acórdão em que a decisão sobre um determinado facto dado como provado - o valor dos sapatos - não aparece minimamente fundamentada".
Ora, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Junho de 2000, após transcrever os factos provados e os não provados dados por assentes pelo acórdão do colectivo, baseou-se na motivação de facto que fundamentou este aresto, que igualmente transcreveu:
"8 - Motivação de facto assim fundamentada:
A prova dos factos fez-se essencialmente a partir das declarações do queixoso conjugadas com as dos arguidos que no que toca aos contactos que levaram à entrega dos sapatos bem como ao local de entrega aqui em Leiria e à ida a Coimbra não divergiram substancialmente.
A convicção do tribunal acerca da intenção dos arguidos, tomada logo de início, de se apropriarem da mercadoria sem pagarem o preço, foi extraída das declarações do ofendido conjugadas com o depoimento do subinspector da PJ José Marques Gonçalves, que no âmbito de outro processo procedeu à busca à residência do arguido Orlando na Nazaré, onde viu os sapatos, que não lhe chamaram à atenção dada a actividade de vendedor ambulante do buscado, e que mais tarde quando soube da queixa do ofendido relacionou uma coisa com a outra.
Neste particular teve-se também em atenção o depoimento da agente da PJ Maria Paula, que participou nas buscas quer à casa da Nazaré (tinham em vista uma investigação relacionada com moeda falsa), quer a S. Fipo, para onde os sapatos foram transportados, por ordem do arguido Orlando, pouco depois de terem sido vistos na Nazaré.
Revelou ainda o depoimento de Maria José Fernandes, dona da casa de S. Fipo e de António Paixão, que permitiram concluir que o calçado foi transportado da Nazaré para S. Fipo, Condeixa, por iniciativa do arguido Orlando Mafra.
Estes depoimentos conjugados com o facto de os sapatos terem sido transportados de Leiria para a Nazaré, logo no mesmo dia o ofendido quando regressou de Coimbra onde se deslocou, em vão, para receber o preço do calçado, constatou que eles já não se encontravam na portaria de um prédio na Quinta da Alçada, onde tinham sido descarregados -, e depois da Nazaré, onde os sapatos foram vistos pela polícia, para Condeixa, para a residência de um terceiro, conjugado com o facto de os arguidos nunca terem revelado a verdadeira identidade do alegado comprador, Orlando Mafra, não deixaram dúvidas ao tribunal acerca dos intentos que os moviam.
No que toca ao valor dos sapatos, atendeu-se à factura junta a fl. 30 e às declarações do ofendido.
No que tange ao calçado recuperado, atendeu-se ainda ao auto de busca de fl. 14 e ao termo de entrega de fl. 15.
Na parte que se reporta à actividade profissional dos arguidos, à sua etnia, relações de parentesco que os unem, bem como às suas habilitações literárias, atendeu-se às declarações dos próprios e também às declarações do subinspector da PJ já referido, que, à excepção das habilitações literárias, estava a par destes factos.
No que concerne à ausência de passado criminal do arguido Orlando atendeu-se ao certificado junto a fl. 177.
Os factos não provados tiveram esta resposta porque se não fez prova sobre os mesmos ou a que se fez não foi suficiente para alicerçar a convicção do Tribunal."
E, apreciando da arguida nulidade do acórdão por deficiente explicitação da motivação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ponderou-se, neste domínio, no mesmo aresto:
"9 - É evidente à luz do descrito em supra n.º 8 - que o tribunal não se limitou a indicar as provas que serviram para formar a sua convicção.
Para além disso, aduziu os elementos destas provas que serviram criticamente de suporte às respectivas conclusões e explicitou o processo de formação da sua vontade, mormente quanto ao valor atribuído aos sapatos (9 000 342$), em estrita observância de uma leitura do disposto no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, consentânea com os ditames constitucionais: na afirmação no que toca ao valor dos sapatos atendeu-se à factura junta a fl. 30 e às declarações do ofendido está implícito ter o tribunal considerado que tal factura titulou o 'negócio' em causa, bem como que as declarações do ofendido corroboraram tal facto."
E, em resposta ao pedido apresentado pelo arguido Miguel Fernandes para que o tribunal clarificasse a sua asserção inserta no acórdão, de que "o tribunal não se limitou a indicar as provas que serviram para formar a sua convicção. Para além disso, aduziu os elementos destas provas que serviram criticamente de suporte às respectivas conclusões e explicitou o processo de formação da sua vontade, mormente quanto ao valor atribuído aos sapatos", a Relação, através do acórdão de 15 de Novembro de 2000, concluiu que:
"Com a asserção de que se pede agora o esclarecimento quis-se dizer que a fundamentação factual do acórdão recorrido não se bastou com o mero enunciado dos meios de prova utilizados no julgamento (com suficiência só por si para o aferir da legalidade dessa utilização), mas que também deles se fez uma apreciação que, embora sucinta, se teve por suficiente para se poder concluir deles não ter o tribunal recorrido feito uma apreciação irracional ou arbitrária.
Nomeadamente quanto ao valor do calçado, ponto que determinou o recorrente ao pedido de esclarecimento, o tribunal da 1.ª instância optou por se fundamentar na factura junta a fl. 30, em detrimento de uma outra (junta muito posteriormente e com a menção dum valor muito inferior ao indicado na primeira), justificando esta opção nas declarações prestadas pelo ofendido, cuja razão de ciência era óbvia.
[...]"
Ora, do texto dos acórdãos acima transcritos verifica-se que a Relação não acolheu o critério normativo invocado pelo recorrente: a interpretação normativa feita nos arestos recorridos, não foi, manifestamente, a tese minimalista, redutora e selectiva que o recorrente imputa à dimensão da modelação decisória, como se se tivesse contentado com um mero arrolamento dos meios de prova, bastante para a fundamentação sobre a matéria de facto.
Na verdade, o Tribunal da Relação de Coimbra entendeu, no Acórdão de 21 de Junho de 2000, que a decisão da 1.ª instância não se limitou a indicar as provas que serviram para formar a sua convicção, mas que, para além disso, aduziu os elementos destas trovas que serviram criticamente de suporte às respectivas conclusões e explicitou o processo de formação da sua vontade, mormente quanto ao valor atribuído aos sapatos.
E, este entendimento foi reafirmado no Acórdão de 15 de Novembro de 2000, onde se esclareceu que a fundamentação factual do acórdão recorrido não se bastou com o mero enunciado dos meios de prova utilizados no julgamento, mas que, também deles fez uma apreciação que, embora sucinta, se teve por suficiente para se poder concluir deles não ter o tribunal recorrido feito um apreciação irracional ou arbitrária.
Questão diferente é a de saber se as provas indicadas nos autos, ou se os critérios de valorização utilizados, são suficientes para dar como provado o valor dos sapatos que se consignou na matéria de facto.
Porém, tal questão, dirigida à fiscalização da decisão judicial, em si mesma considerara, escapa à competência cogniscitiva deste tribunal.
Por outras palavras, como refere o Ministério Público nas sua alegações, no âmbito do sistema de fiscalização da constitucionalidade normativa, só é possível sindicar o critério normativo seguido na decisão recorrida, mas já não verificar se ele foi plena, adequada e integralmente aplicado à especifica e concreta situação dos autos pelas instâncias, em termos de discutir e apurar, como parece pretender o recorrente, a razão que as levou a considerar (ou desconsiderar) determinados documentos constantes dos autos.
Não pode, pois, conhecer-se do objecto do recurso.
3 - Do recurso interposto pelo arguido Orlando Mafra.
3.1 - Invoca o recorrente ser inconstitucional a "interpretação realizada no acórdão recorrido da expressão 'valor consideravelmente elevado' constante do artigo 218.º, n.º 2, alínea a), que foi pelo tribunal a quo integrada através da definição do artigo 202.º, alínea b), que remete para o Decreto-Lei 212/89, de 30 de Junho, a definição de unidade de conta, não existindo à data dos factos autorização legislativa que legitime nos termos do artigo 165.º, n.º 1, da CRP".
Pretende, assim, sustentar a tese da inconstitucionalidade da norma do artigo 202.º, alínea b), do Código Penal - convocada pela norma incriminatória do artigo 218.º, n.º 2, alínea a), para efeitos de agravamento da pena do crime de burla qualificada -, enquanto considera relevante para aferir do elemento típico "valor consideravelmente elevado" o montante da UC, definido (sem precedência de autorização legislativa) pela lei que rege em matéria de custas.
3.2 - Vejamos o quadro legal em que se enquadra a questão em apreço nos autos e que foi convocado pela decisão recorrida.
A norma do artigo 218.º, n.º 2, alínea a), pela qual o arguido foi condenado pune o crime de burla qualificada, nos seguintes termos:
"Artigo 218.º
Burla qualificada
1 - ...
2 - A pena é a de prisão de 2 a 8 anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
..."
No entanto, esta norma incriminadora não define o que se entende por "valor consideravelmente elevado", que tem que ser integrado pelo conceito do artigo 202.º do Código Penal:
"Artigo 202.º
Definições legais
Para efeito do disposto nos artigos seguintes, considera-se:
a) ...;
b) Valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.
..."
O texto deste artigo foi introduzido pela revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, editado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei 35/94, de 15 de Setembro (rectificada pela declaração de rectificação 17/94, de 13 de Dezembro).
Como resulta do preâmbulo daquele diploma, teve o legislador por intenção, relativamente aos crimes contra o património, abandonar o modelo da versão originária do Código Penal, que não ligava directamente a qualificação ou o privilégio a níveis quantificados e pré-fixados do valor pecuniário do objecto do crime servia-se, antes, para o efeito, de recurso a "conceitos indeterminados" ou a "cláusulas gerais" - e, sem regressar ao velho modelo de escalões de valor patrimonial do Código Penal de 1886, optou por uma definição quantificada de conceitos, como valor elevado, consideravelmente elevado e diminuto, enquanto fundamentos de qualificação ou privilégio, "de modo a obviar as dificuldades reveladas pela jurisprudência" e "potenciar uma maior segurança e justiça nas decisões" (refere-se).
Assim, como resulta das alíneas a), b) e c) do artigo 202.º, valor elevado é aquele que exceder 50 unidades de conta; valor consideravelmente elevado é o que exceder 200 unidades de conta; e valor diminuto é aquele que não exceder uma unidade de conta; tendo com referência a data da prática dos factos.
Porém, o Código Penal não define nem quantifica a unidade de conta (UC).
Por sua vez, o Código de Processo Penal de 1987, na versão original, continha na h) do n.º 1 do artigo 1.º, uma definição da unidade de conta processual penal (UC), como sendo a "quantia em dinheiro equivalente a um quarto do salário mínimo nacional mais elevado, garantido no momento da aplicação da sanção, arredondado, quando necessário, para a centena de escudos imediatamente superior".
Ora, este preceito veio a ser revogado pelo artigo 8.º, alínea b), do Decreto-Lei 212/89, de 30 de Julho, e substituído por um regime idêntico, a que se reportam os artigos 5.º e 6.º, n.º 1, deste diploma, cuja vigência foi mantida pelo n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei 224-A/96, de 26 de Novembro - diploma que aprovou o actual Código das Custas Judiciais.
São do seguinte teor as normas em causa do Decreto-Lei 212/89:
"Artigo 5.º - 1 - Em substituição da unidade de conta processual penal (UC) e da unidade de conta de custas (UCC), é criada a unidade de conta processual (UC), à qual passa a reportar-se qualquer referência legal às primeiras.
2 - Entende-se por unidade de conta processual (UC) a quantia em dinheiro equivalente a um quarto da remuneração mínima mensal mais elevada, garantida, no momento da condenação, aos trabalhadores por conta de outrem, arredondada, quando necessário, para o milhar de escudos mais próximo ou, se a proximidade for igual, para o milhar de escudos imediatamente inferior.
Artigo 6.º - 1 - Trienalmente, e com início em Janeiro de 1992, a UC considera-se automaticamente actualizada nos termos previstos no artigo anterior a partir de 1 de Janeiro de 1992, devendo, para o efeito, atender-se sempre à remuneração mínima que, sem arredondamento, tiver vigorado no dia 1 de Outubro anterior."
Mais recentemente, a Lei 65/98, de 2 de Setembro, diploma que alterou o Código Penal (mas que não estava ainda em vigor à data da prática dos factos em causa nos autos), veio manter este sistema, consignando, no seu artigo 3.º, que "para efeito do disposto nas alíneas a), b) e c) do artigo 202.º do Código Penal, o valor da unidade de conta é o estabelecido nos termos dos artigos 5.º e 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei 212/89, de 30 de Junho".
3.3 - Ora, na óptica do recorrente, a inconstitucionalidade radica, precisamente, no facto de a norma da alínea b) do artigo 202.º se ter limitado a referir que, para preenchimento do elemento típico "valor consideravelmente elevado", ser esse valor o que exceder 200 unidades de conta, avaliadas no momento da prática da infracção, sendo que o montante concreto da unidade de conta é definido em normas que não emanam nem são autorizadas pela Assembleia da República, salientando que, à data dos factos, não estava em vigor o artigo 3.º da Lei 65/98, de 2 de Setembro, que esclareceu que o valor da unidade de conta, para o efeito do disposto nas alíneas a), b) e c) do artigo 202.º do Código Penal, é o estabelecido nos termos dos artigos 5.º e 6.º, n.º 1, do Decreto Lei 212/89, de 30 de Junho.
Este não foi, porém, o entendimento perfilhado na decisão recorrida - o Acórdão de 21 de Junho de 2000 - que afastou a tese da inconstitucionalidade, fundamentando-se no seguinte:
"12 - Na versão em vigor do Código Penal, a relevância jurídica do valor do objecto do crime - máxime para efeitos de qualificação é aferida em função de um critério objectivo referenciado à unidade de conta - cf. alíneas a), b) e c) do artigo 202.º do CP, artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei 212/89, de 30 de Junho, e artigo 3.º da Lei 65/98, de 2 de Setembro.
É um sistema que permite realizar, desde logo, dois objectivos de inegável relevância: limitação da desigualdade e arbitrariedade dos critérios judiciais; repercussão praticamente nula da erosão monetária nas incriminações.
Suscita o recorrente Orlando Mafra a questão da inconstitucionalidade deste sistema, por violação do princípio da reserva de lei [cf. artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP], sendo certo que à data dos factos em causa não se encontrava ainda em vigor o citado artigo 3.º, Lei 65/98, o qual veio, com força de lei, estabelecer que para efeitos do disposto nas alíneas a), b) e c) do artigo 202.º do CP, o valor da unidade de conta é o estabelecido nos termos dos artigos 5.º e 6.º, n.º 1, Decreto-Lei 212/89, de 30 de Junho.
Mas sem razão, uma vez que -sendo o Decreto-Lei 212/89 anterior às normas em causa do Código Penal-, é patente que este Código já acolhia (fazia seus) os critérios de determinação da UC constantes dos artigos 5.º e 6.º daquele decreto-lei e, consequentemente, que já se encontravam essencialmente acolhidos os ditames do princípio da reserva de lei (o artigo 3.º da Lei 65/98 apenas veio explicitar o que já era óbvio, para - definitivamente, espera-se - afastar quaisquer dúvidas no plano da conformidade constitucional das normas em causa)."
3.4 - A questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente reporta-se à violação do princípio da legalidade penal, na dimensão da reserva de lei quanto às normas incriminadoras consagrado, conjugadamente, nos artigos 29.º, n.º 1 [e não 27.º, como menciona o recorrente] e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.
Tal tese, como salienta o Ministério Público, assenta no pressuposto de que os princípios da tipicidade e da legalidade em direito penal implicam, sob pena de inconstitucionalidade, que todos os elementos que podem revelar - directa ou indirectamente - para a densificação e concretização do facto típico e penalmente ilícito teriam natureza "materialmente" penal, devendo, por isso, beneficiar da plenitude das garantias típicas deste ramo de direito (máxime da reserva de competência legislativa da Assembleia da República).
Porém, este pressuposto não se mostra correcto nem vem sendo acolhido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, como se conclui, entre outros, dos Acórdãos n.os 427/95 e 545/00 (publicados no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Novembro de 1995 e de 6 de Fevereiro de 2001, respectivamente).
Naquele primeiro aresto, que tinha por objecto a norma do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 192/89, de 8 definho, segundo a qual "os aditivos alimentares admissíveis nos géneros alimentícios, os respectivos critérios de pureza e as condições da sua utilização constarão de portaria conjunta", considerou o Tribunal, quanto à alegada violação do princípio da legalidade penal, que:
"12 - Mas, apesar da natureza meramente executiva da portaria, haverá, ainda assim, violação do princípio da legalidade pela norma remissiva do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 192/89, ante o disposto nos artigos 29.º, n.º 1, e 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição?
Também se prefigura, quanto a esta questão, uma resposta negativa, pelas seguintes razões:
a) O conteúdo da proibição legal de 'aditivos falsificados' não resulta da portaria, nem sequer do referido artigo 4.º do Decreto-Lei 192/89, mas das normas legais que fixam o conteúdo da proibição - no caso, os artigos 24.º, n.º 1, alínea a), e 82.º, n.º 2, alínea a), I, do Decreto-Lei 28/84O princípio da legalidade atinge nuclearmente a norma incriminadora, no sentido dos artigos 29.º da Constituição e 1.º do Código Penal e não contempla com o mesmo rigor as delimitações negativas ou excepções à incriminação;
b) A norma remissiva não é uma norma em branco que delegue na portaria o poder de definir o conteúdo da incriminação. Os critérios do ilícito penal - desvalor da acção proibida, desvalor do resultado lesivo e identificação do bem jurídico tutelado - encontram-se nas normas dos artigos 24.º, n.º 1, alínea a), e 82.º, n.º 2, alínea a), I, do Decreto-Lei 28/84 (aprovado mediante autorização legislativa da Assembleia da República). Tais critérios hão-de ser compreendidos a partir da ideia de utilização de aditivos que afectem a pureza dos produtos alimentares. A descrição, feita pela portaria, dos aditivos admissíveis é apenas uma concretização do critério legal, através da enumeração de substâncias que são insusceptíveis de afectar a pureza dos produtos, apesar de constituírem aditivos alimentares. Mas tal enumeração de substâncias não documenta nenhum critério autónomo de ilicitude - consiste apenas numa aplicação de conhecimentos técnicos.
13 - ...
Por outro lado, foi assegurada a chamada reserva de certeza (na expressão de Marco Siniscalco, texto cit., loc. cit.), isto é, a suficiente indicação pela norma remissiva dos limites e critérios da especificação regulamentar, através da definição de aditivo alimentar [artigos 1.º e 2.º, alínea b)] e dos critérios da sua utilização lícita (artigo 3.º do Decreto-Lei 192/89).
Finalmente, a segurança dos destinatários não é afectada pela indeterminação da norma legal remissiva, pois existe uma imediata possibilidade de orientar a consciência ética para o desvalor do direito quando se realiza a conduta prevista na norma legal incriminadora (a utilização de aditivos anormais). Mesmo que se entendesse que a possibilidade de agir com plena consciência da ilicitude dependeria do conhecimento do conteúdo da portaria, não se poderia confundir o problema que é suscitado pelo erro (artigo 16.º, n.º 1, parte final, do Código Penal) com a violação do princípio da legalidade.
14 - Consequentemente, a subtracção à reserva de lei da enumeração das substâncias permitidas não deixa a descoberto qualquer elemento essencial para a compreensão da conduta proibida ou para o controlo democrático da incriminação. A norma incriminadora é suficientemente indicativa da orientação que os destinatários da norma deverão seguir para agirem segundo o direito. O cerne do proibido, o ilícito típico (ou o 'núcleo essencial da conduta punível, o seu conteúdo de desvalor a respeito da lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos', segundo o Tribunal Constitucional espanhol, cf. STC n.º 3/1988, de 21 de Janeiro), é revelado na lei penal, fundamentando-se na sua violação a culpa do agente.
Não é, consequentemente, violada a reserva de lei, consagrada nos artigos 29.º, n.º 1, e 168.º, alínea a), da Constituição. A circunstância de a própria norma remissiva (artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei 192/89) não ter sido editada pelo Governo ao abrigo de autorização legislativa da Assembleia da República não afecta esta conclusão. A observância da reserva de lei é aqui assegurada pela norma incri minadora constante do Decreto-Lei 28/84 [artigos 24.º, n.º 1, alínea a), e 82.º, n.º 2, alínea a), I] - esse sim, aprovado mediante autorização parlamentar."
Do mesmo modo, no caso dos autos, a definição e a actualização do montante da UC, operada pela remissão da norma do artigo 202.º, alínea b), do Código Penal, não integra qualquer inovatória definição dos elementos relevantes do tipo legal do crime em causa - o crime de burla qualificada - não deixando a descoberto qualquer elemento essencial para a compreensão da conduta proibida ou para o controlo democrático da incriminação.
Ora, nem o conteúdo da proibição legal resulta das normas atinentes à determinação do montante da UC, nem a norma "remissiva" - do artigo 202.º, alínea b) - é uma norma em branco que delegue o poder de definir o conteúdo da incriminação.
Na verdade, são as normas relativas à previsão e punição do crime de burla qualificada que determinam o critério da ilicitude e orientam suficientemente os destinatários dessas normas quanto às condutas que são efectivamente proibidas.
Por outras palavras, que são ainda as do citado Acórdão 427/95, o cerne do proibido, o núcleo essencial da conduta punível, o seu conteúdo de desvalor a respeito da lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos, é revelado na lei penal, fundamentando-se na sua violação a culpa do agente.
Assim, é evidente que a norma de índole técnico-económica que, em concreto, define e actualiza o montante da UC não tem de estar subordinada ao princípio da reserva de lei que vigora no âmbito do direito penal.
A observância da reserva de lei é assegurada pelas normas incriminatórias do tipo legal de crime em causa.
3 - Nestes termos, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do recurso interposto pelo recorrente Miguel Fernandes Mafra;
b) Negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente Orlando Mafra, confirmando-se a decisão recorrida, quanto à questão de constitucionalidade suscitada;
c) Condenar os recorrentes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em, respectivamente, 8 e 15 unidades de conta.
Lisboa, 28 de Maio de 2002. - Alberto Tavares da Costa - Maria dos Prazeres Beleza - José de Sousa e Brito - Luís Nunes de Almeida.