Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 457/2001/T, de 27 de Novembro

Partilhar:

Texto do documento

Acórdão 457/2001/T. Const. - Processo 189/97. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - O Estado, representado pelo Ministério Público, interpôs no Tribunal Judicial de Setúbal, contra Cláudio Artur Merelo e Ana Maria de Morais Pereira Merelo, acção com processo ordinário pedindo que se declarasse que certa construção que estes implantaram, sem licença, em prédio situado no Parque Nacional da Arrábida não poderia aí permanecer e que, em consequência, fosse ordenada a sua demolição.

2 - O Tribunal Judicial de Setúbal, por Acórdão de 15 de Março de 1991, julgou a acção improcedente.

3 - Inconformado, o Ministério Público, em representação do Estado Português, recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, que, por Acórdão de 10 de Outubro de 1995, julgou o recurso procedente e, em consequência, revogou a decisão recorrida, condenando os réus a demolirem, no prazo de 30 dias, a expensas suas, a dita construção.

4 - Desta decisão recorreu a ré Ana Maria de Morais Pereira Merelo para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por Acórdão de 6 de Fevereiro de 1997, decidiu negar provimento ao recurso. Escudou-se, para tanto, designadamente, na seguinte fundamentação:

"II - Vejamos antes de mais, se estará em vigor e é eficaz a Portaria 261/80, de 9 de Janeiro.

O artigo 3.º do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho, prescreve, no seu artigo 1.º, que 'no prazo de seis meses, a contar da sua publicação, será elaborado o projecto de ordenamento do Parque Natural da Arrábida por um grupo de trabalho nomeado pelo Secretário de Estado do Ambiente'.

O artigo 4.º dispõe, por sua vez, que, 'até à entrada em vigor da portaria que regulamentará a orgânica e funcionamento do Parque, este será administrado por uma comissão instaladora'.

Nos seis meses que se seguiram à publicação do Decreto-Lei 622/76 não foi elaborado o projecto de ordenamento do Parque nem publicada portaria que regulamentasse a sua orgânica e funcionamento.

Em 11 de Janeiro de 1978 foi, porém, publicado o Decreto 4/78, em cujo artigo 9.º, n.º 1, se dispõe que 'o Secretário de Estado do Ambiente poderá constituir grupos de ordenamento e elaboração dos regulamentos dos parques, reservas e outras áreas classificadas'.

E dispõe no seu n.º 2 que 'os planos de ordenamento referidos no n.º 1 serão aprovados por despacho do Secretário de Estado do Ambiente'.

Os regulamentos de funcionamento, esses, serão, segundo o n.º 3 do mesmo artigo, aprovados por portaria conjunta dos Secretários de Estado do Ambiente e da Administração Pública.

Enquanto não forem aprovados os planos de ordenamento e os regulamentos respectivos, diz o n.º 4 do citado artigo 9.º que os parques, reservas e outras áreas classificadas serão administrados e dirigidos por comissões instaladoras, cuja composição, atribuições e competência dos seus membros serão definidas por despacho do Secretário de Estado do Ambiente, sob proposta do Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico.

Entretanto, foi publicada a Portaria 26-F/80, de 9 de Janeiro, que aprovou normas provisórias para dotar o Parque de meios que possibilitem a sua administração e funcionamento.

Segundo se lê no preâmbulo da portaria, foi concluído o regulamento geral do Parque, de acordo com o plano de ordenamento preliminar, os quais dotarão o Parque Natural com os seus órgãos definitivos. Anexo àquela portaria, e por ela aprovado, foi publicado o Regulamento do Parque Nacional da Arrábida, sendo aquela aprovada pelos Secretários de Estado da Administração Pública e do Urbanismo e do Ambiente.

O artigo 18.º dispõe no seu n.º 1 que o 'presente Regulamento Geral entra em vigor com o plano preliminar de ordenamento e será complementado com regulamentos específicos à medida que forem sendo oportunos, como sejam os regulamentos de caça, de pesca, de ocupação dos apoios para campismo, de utilização de postos de venda de artesanato, etc.'.

Tal plano preliminar foi aprovado com o Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80 e é um plano com vista a permitir a entrada em funcionamento dos órgãos regulamentares previstos para a organização do Parque Natural (artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento anexo à portaria).

O plano tem carácter provisório e, com a aprovação superior do Plano Oficial do Ordenamento do Parque, o respectivo regulamento revogará o que agora entra em vigor (artigo 18.º, n.º 2, do Regulamento anexo à portaria).

Consta do plano preliminar de ordenamento do capítulo II do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80. Nada inova em relação ao Decreto-Lei 622/76, e para todas as questões nele não mencionadas ou susceptíveis de criar dúvidas, bem como para as disposições relativas a autorizações, fiscalizações, contravenções e multas, será aplicado o disposto naquele decreto-lei (artigo 17.º do Regulamento anexo à Portaria 26-F/80).

Tal como acontecia com o Decreto-Lei 622/76, o Regulamento exige, quanto a obras, autorização dos órgãos directivos do Parque. Proíbe a execução de quaisquer trabalhos ou obras sem a referida autorização. De tudo o exposto resulta que existe um plano preliminar de ordenamento do Parque e que tal plano está inserido no Regulamento Geral aprovado em anexo à Portaria 26-F/80.

A portaria em causa foi, como dela consta, aprovada pelos Secretários de Estado da Administração Pública e do Urbanismo e do Ambiente e o Regulamento pelo Secretário de Estado do Ambiente. Está tudo conforme o previsto no artigo 9.º do Decreto 4/78, de 11 de Janeiro. Estão em vigor e são eficazes tanto a portaria como o Regulamento, embora a duração deste seja limitada, conforme atrás se referiu.

O Conselho de Ministros só terá de intervir na aprovação do projecto final (artigo 3.º, n.º 3, do Decreto-Lei 622/76).

O prédio em questão é uma casa de habitação e, conforme está provado, foi construída em pleno Parque Natural da Arrábida e numa área classificada de paisagem protegida.

Nesta área são proibidos quaisquer trabalhos, obras ou actividades sem autorização da direcção do Parque (artigo 12.º, n.º 3, do Regulamento anexo à portaria).

A construção foi iniciada cerca de um ano antes da propositura da acção e prosseguida sem autorização da direcção do Parque.

Daí que estivesse sujeita a demolição.

III - Mas se a demolição não pudesse ser ordenada ao abrigo do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, poderia sê-lo ao abrigo do Decreto-Lei 622/76.

O artigo 5.º deste decreto-lei estatui que a realização de quaisquer trabalhos, obras ou actividades em terrenos abrangidos pelo Parque sem autorização da comissão instaladora constitui contravenção. E o n.º 2 do artigo seguinte prescreve que a aplicação da multa não prejudica a obrigação de o infractor demolir as obras ou trabalhos efectuados quando não possam ser autorizados.

O n.º 3 dispõe, por sua vez, que se o infractor se recusar a demolir as obras ou trabalhos efectuados para que tivesse sido intimado, a comissão instaladora ou, de futuro, a direcção do Parque mandaria proceder à demolição apresentando a relação das despesas para cobrança ao infractor e recorrendo aos tribunais sempre que necessário.

Conforme já se referiu, a realização de quaisquer trabalhos em terrenos abrangidos pelo Parque sem autorização da comissão instaladora (hoje direcção do Parque) constitui contravenção, e a aplicação da multa não prejudica a obrigação de o infractor demolir as obras ou trabalhos efectuados quando não possam ser autorizados.

A serra da Arrábida contém em si um alto valor nacional que urge preservar. E foi por isso que se reconheceu a necessidade de se tomarem medidas eficazes de protecção, restringindo-se, na medida do necessário, os direitos dos cidadãos que ali têm interesses. Daí que só excepcionalmente e com a autorização da direcção do Parque nele possam ser levadas a efeito construções.

Não está provado que a obra levada a efeito pelos réus tenha algo a ver com o prosseguimento das actividades tradicionais do Parque.

E a prova de que qualquer obra levada a efeito em zona de paisagem protegida pode ser autorizada cabe ao infractor, ou seja, no caso presente, aos réus. Tendo feito as obras sem licença da direcção do Parque, cabia-lhes provar que ela pode ser concedida.

A eles cabia, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código de Processo Civil, a prova dos factos impeditivos do direito invocado pelo autor.

De tudo o exposto resulta que, quer ao abrigo do regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80 quer ao abrigo do Decreto-Lei 622/76, a demolição da obra podia ter lugar.

IV - O artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa dispõe, no seu n.º 1, que 'a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão por vida ou por morte, nos termos da Constituição'.

Tal direito está, porém, sujeito a restrições de uso, fruição e disposição, quer a favor do Estado ou da colectividade quer a favor de terceiros.

Assim, o legislador ordinário pode estabelecer restrições ao direito de propriedade. E pode a intervenção estatal limitar-se a condicionar a utilização normal dos bens e condicionar a utilização normal dos bens ou excluir essa utilização normal.

Foi o que aconteceu quer no Decreto-Lei 622/76, de 27 de Julho, quer no Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, de 11 de Janeiro.

Assim, ao ordenar-se a demolição do prédio que os réus erigiram em zona de paisagem protegida, a da serra da Arrábida, sem qualquer licença da direcção do Parque, e cuja construção prosseguiram mesmo depois de a obra ter sido embargada, não foi infringido o disposto no artigo 62.º da Constituição da República.

E não se infringiu também o disposto no artigo 65.º, em cujo n.º 1 se dispõe que 'todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar'.

Desta disposição não resulta que cada cidadão possa construir a sua habitação onde quiser e da forma que lhe convenha.

Todos os cidadãos estão sujeitos à lei e têm de agir dentro dos limites que ela impõe.

Justifica, apenas, aquele artigo 65.º a pretensão dos cidadãos à prestação do Estado, nos termos que do mesmo artigo constam.

Não os dispensa de observar o que a lei ordinária dispõe quanto às obras de construção civil, de reconstrução, ampliação, alteração ou reparação das edificações.

Não se violou, também, no acórdão recorrido o artigo 1.º do Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos do Homem."

5 - É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende a recorrente que este Tribunal aprecie a constitucionalidade das normas contidas na Portaria 26-F/80, de 11 de Janeiro, e nos n.os 2 e 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho, por alegada violação "das normas e princípios constitucionais consagrados nos artigos 20.º, 122.º, n.º 2, 62.º, 65.º e 266.º, n.º 2, da Constituição".

6 - Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, que concluiu da seguinte forma:

"A) O entendimento do acórdão recorrido sobre as normas constantes da Portaria 26-F/80, máxime dos artigos 12.º e 18.º do Regulamento que aprova, segundo o qual o plano deveria considerar-se em vigor com a aprovação do Regulamento, mesmo sem publicação do plano, viola o princípio constitucional da publicidade dos actos de conteúdo genérico dos órgãos de soberania, que o artigo 122.º da Constituição da República Portuguesa consagra [neste caso, particularmente, o artigo 122.º, n.os 1, alínea h), 2].

B) Na verdade, se o Regulamento só entra em vigor com o plano e se o plano, mesmo que não publicado na sua parte mais substancial, se considera aprovado sem que essa publicação tenha ocorrido, então é porque se está a aceitar a existência de um acto de conteúdo regulamentar e genérico - o plano - sem que se tenham cumprido as garantias constitucionais de publicidade acima referidas.

C) A interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 6.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 622/76, bem como ao artigo 12.º, n.º 2, do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, no sentido de que hoje - 21 anos depois de continuar sem aprovação e publicação o plano de ordenamento que devia estar pronto ao fim de seis meses - podem sustentar a demolição de qualquer obra não autorizada construída no Parque Nacional da Arrábida, é inconstitucional por restringir de forma desproporcionada o direito à propriedade privada e o direito à habitação, que a Constituição consagra, tal como, de resto, o artigo 1.º do Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos do Homem.

D) Por outro lado, mesmo que outra argumentação não procedesse, não se concebe que os n.os 2 e 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 622/76, bem como o artigo 12.º, n.º 2, do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, possam ser interpretados no sentido de não exigirem ao Parque, para que este possa exigir a demolição de uma construção, o ónus de demonstrar que a obra não pode ser autorizada à luz dos princípios e critérios que fundaram o Parque Nacional da Arrábida.

E) O Supremo Tribunal de Justiça, ao efectuar a interpretação intolerável referida na conclusão anterior, relativa aos preceitos referidos, por si só ou conjugados com o artigo 342.º do Código Civil, está a violar o princípio geral da proporcionalidade, bem como a restringir desproporcionadamente e, por isso, inconstitucionalmente, os artigos 62.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa."

7 - O recorrido, da sua parte, formulou as seguintes conclusões:

"1.º Carece de interesse a apreciação da constitucionalidade das normas regulamentares invocadas pela recorrente, já que a condenação constante da decisão recorrida assenta, em termos decisivos e só por si suficientes, na invocação do regime constante do artigo 6.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 622/76.

2.º É ao particular que realizou ilegalmente obras sujeitas a licenciamento ou autorização administrativa que incumbe a iniciativa e o ónus de providenciar pelo suprimento ou sanação da falta de autorização e pela superveniente legalização das obras efectuadas, requerendo à entidade competente à prática do acto administrativo destinado à concessão a posteriori da licença ou autorização legalmente exigida.

3.º Sendo ilegalmente indeferida a concessão de tal licença ou autorização para construir, é obviamente lícito ao particular impugnar contenciosamente o acto administrativo lesivo dos seus direitos e interesses legítimos.

4.º E - se já estiver pendente acção visando a declaração ou efectivação da obrigação de demolir a obra ilegalmente efectuada - é manifesto que deve o juiz determinar a suspensão da instância por prejudicialidade, nos termos dos artigos 97.º e 279.º do Código de Processo Civil - até que se mostre definitivamente julgado o recurso contencioso e apurada a possibilidade ou não de sanação do vício de ilegalidade da construção efectuada.

5.º Não é viável discutir directamente, no âmbito de uma acção de demolição pendente nos tribunais comuns, a viabilidade de ser outorgada autorização superveniente para a construção efectuada, já que tal levaria a que fossem os tribunais judiciais a substituírem-se quer à Administração, na prática de um acto administrativo, quer aos tribunais administrativos, aos quais está constitucionalmente cometida a apreciação da legalidade dos actos da Administração lesivos de direitos e interesses legítimos dos particulares.

6.º Nesta perspectiva, não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a interpretação da norma constante dos n.os 2 e 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 622/76, em termos de incumbir ao particular que realizou ilegalmente obras sujeitas a licenciamento ou autorização o respectivo suprimento, funcionando como facto impeditivo da obrigação de demolir, peticionada na causa, a demonstração da sanação do vício decorrente da falta de autorização administrativa."

8 - Na sequência, foi a recorrente notificada para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o que fez, tendo concluído pela sua improcedência.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Fundamentação. - 9 - Questão prévia: delimitação do objecto do recurso. - Pretende a recorrente, em primeiro lugar, ver apreciada a constitucionalidade das normas - concretamente as que se extraem dos artigos 12.º e 18.º - contidas no Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, de 11 de Janeiro, referente ao plano preliminar de ordenamento do Parque Nacional da Arrábida.

Na sua contra-alegação, porém, o Ministério Público veio sustentar que não teria interesse a apreciação da constitucionalidade daquelas normas regulamentares, na medida em que a condenação constante da decisão recorrida assentou, "em termos decisivos e só por si suficientes", na invocação do regime constante do artigo 6.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho.

Vejamos.

O Tribunal Constitucional tem reiterada e uniformemente entendido que, por força da natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, só deve conhecer de uma questão de constitucionalidade normativa se a resolução de tal questão se repercutir de alguma forma no julgamento da questão substantiva apreciada na decisão recorrida.

Dessa forma, para decidir a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, decisivo é saber se, pronunciando-se o Tribunal pela inconstitucionalidade daquelas normas regulamentares, tal implicaria uma alteração do decidido quanto à questão substantiva que foi objecto da decisão recorrida.

Entende o Ministério Público que não, na medida em que, na lógica do acórdão recorrido, a decisão de ordenar a demolição do prédio da autora assenta num duplo fundamento alternativo - por um lado, nas normas constantes dos artigos 12.º e 18.º do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, por outro, nas normas constantes dos n.os 2 e 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho -, cada um deles considerado, por si só, suficiente para suportar normativamente a decisão.

É certo, como sustenta o Ministério Público, que a decisão recorrida entende - e di-lo expressamente - que "se a demolição do prédio não pudesse ser ordenada ao abrigo do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, poderia sê-lo ao abrigo do Decreto-Lei 622/76". É, portanto, certo que o acórdão recorrido considera que o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 622/76 é fundamento normativo suficiente do decidido: ordenar a demolição do prédio da autora.

Mas, significa isso que pode afirmar-se, desde já, que não tem interesse conhecer do objecto do recurso no que se refere àquelas normas regulamentares?

Cremos que não.

Questionando a recorrente, igualmente, a constitucionalidade do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 622/76, há que concluir que a utilidade/inutilidade do conhecimento da questão de constitucionalidade reportada àquelas normas regulamentares dependerá decisivamente do julgamento da questão de constitucionalidade reportada àquele artigo 6.º do Decreto-Lei 622/76.

Assim, se for de concluir que o artigo 6.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 622/76 não é inconstitucional, deixa efectivamente de ter utilidade o conhecimento da questão de constitucionalidade reportada àquelas normas regulamentares. Mas se, pelo contrário, o Tribunal Constitucional vier a considerar inconstitucional este artigo 6.º, já tem utilidade conhecer da questão de constitucionalidade reportada às normas do Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, que a decisão recorrida considerou igualmente um fundamento suficiente da decisão.

Em suma: a decisão quanto à utilidade/inutilidade do conhecimento da questão de constitucionalidade reportada àquelas normas regulamentares depende decisivamente do sentido do julgamento da questão de constitucionalidade reportada ao artigo 6.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho, pelo que começaremos por decidir esta questão.

10 - Apreciação da constitucionalidade dos n.os 2 e 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho.

É o seguinte o seu teor:

"Artigo 6.º

Multas

1 - ...

2 - A aplicação da multa pelas contravenções previstas nas alíneas a) e g) do artigo anterior não prejudica a obrigação de o infractor demolir as obras ou trabalhos efectuados, quando não possam ser autorizados.

3 - Se o infractor se recusar a demolir as obras ou trabalhos efectuados para que for intimado, a comissão instaladora ou, de futuro a direcção do Parque mandará proceder à demolição, apresentando a relação das despesas para cobrança ao infractor, recorrendo aos tribunais sempre que necessário."

Nos termos do artigo 5.º do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho, a realização de quaisquer trabalhos, obras ou actividades em terrenos abrangidos pelo Parque Natural da Arrábida sem autorização da direcção do Parque constitui contravenção. E, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do mesmo diploma, a aplicação da multa prevista para essa contravenção não prejudica a obrigação de o infractor demolir as obras ou trabalhos efectuados, quando não possam ser autorizados.

No caso dos autos, é certo que a recorrente realizou obra em prédio situado no Parque Natural da Arrábida sem que previamente tivesse obtido a necessária autorização da direcção do Parque - a qual, apesar de ter sido requerida, não lhe foi concedida.

Em função dessa matéria de facto, entendeu a decisão recorrida ordenar a demolição da obra que havia sido realizada. Para o efeito considerou que seria à ora recorrente que caberia provar, para efeitos de aplicação da parte final do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei 622/76, que a obra realizada estava em condições de ser aprovada.

Nesse sentido, pode ler-se na decisão recorrida: "[...] E a prova de que qualquer obra levada a efeito em zona de paisagem protegida pode ser autorizada cabe ao infractor, ou seja, no caso presente, aos réus. Tendo feito as obras sem licença da direcção do Parque, cabia-lhe provar que ela pode ser concedida. A eles cabia, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código de Processo Civil, a prova dos factos impeditivos do direito invocado pelo autor."

É, fundamentalmente, esta dimensão normativa daquele artigo 6.º, relacionada com a distribuição do ónus da prova da verificação da situação prevista na parte final do seu n.º 2, que a recorrente contesta.

Dessa forma, a questão de constitucionalidade que vem colocada ao Tribunal Constitucional pode, assim, formular-se nos seguintes termos: é inconstitucional a norma que se extrai do artigo 6.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho - designadamente por restringir desproporcionadamente o direito de propriedade privada e o direito à habitação, consagrados nos artigos 62.º e 65.º da Constituição quando interpretada em termos de atribuir ao particular que realizou ilegalmente obras sujeitas a autorização da direcção do Parque, sem previamente ter obtido essa autorização, o ónus de provar a verificação da situação prevista na parte final do n.º 2 daquele artigo 6.º - ou seja, que a obra poderia ser autorizada - configurando-se essa prova como facto impeditivo do direito à demolição?

A resposta a dar a esta questão é, como veremos já de seguida, negativa.

10.1 - Começaremos por confrontar aquela interpretação normativa com o direito de propriedade privada previsto no artigo 62.º da Constituição Portuguesa para decidir se ela implica uma sua restrição desproporcionada, como alega a recorrente.

Sobre o conteúdo do princípio da proporcionalidade e a relação entre este princípio e a limitação do ius aedificandi como parte integrante do direito de propriedade privada, escreveu-se recentemente, com bastante interesse para os presentes autos, no Acórdão deste Tribunal n.º 484/00 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Janeiro de 2001):

"[...] O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas, para alcançar os fins pretendidos).

Ora, a medida restritiva atinge verdadeiramente o ius aedificandi, sendo discutido se este se integra no direito de propriedade ou radica, antes, no acto administrativo autorizativo (cf. os Acórdãos n.os 329/99, 517/99 e 602/99, os dois primeiros publicados no Diário da República, 2.ª série, de 20 de Julho de 1999 e de 11 de Novembro de 1999, e o último ainda inédito; e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, p. 333, anotação VII ao artigo 62.º; em sentidos opostos podem ver-se Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pp. 372-382, e Freitas do Amaral, 'Apreciação da dissertação de doutoramento do licenciado Fernando Alves Correia', Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXII, 1991, pp. 99-101; um inventário e apreciação das diferentes posições da doutrina portuguesa encontra-se em Mário Esteves de Oliveira, 'O direito de propriedade e o ius aedificandi no direito português', in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 3, 1995, pp. 187-198).

Pode, assim, desde logo duvidar-se de que esteja em causa uma 'restrição' de direitos, liberdades e garantias e, consequentemente, o âmbito de aplicação do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.

No primeiro daqueles referidos acórdãos escreveu-se: 'mesmo quando se entenda que o direito a construir [...] é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições decorrentes dos planos urbanísticos [...] resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda a extensão em que tal seja possível ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são em parte sacrificados'.

Significa isto que a especial situação da propriedade [...] importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional."

Partindo desta fundamentação, concluiu-se naquele acórdão que "não pode considerar-se que a demolição de obras tidas como ilegais - por não terem sido autorizadas - ofenda qualquer dos três subprincípios do princípio da proporcionalidade, mesmo, como se disse, 'quando se entenda que o direito a construir [...] é uma dimensão do direito de propriedade'".

Esta argumentação é inteiramente transponível para o caso dos autos, conduzindo agora - como ali - à conclusão de que a estatuição da obrigação de demolição de obras construídas ilegalmente por falta da necessária autorização não constitui uma limitação desproporcionada do direito de propriedade.

A recorrente coloca, porém, o acento tónico da sua alegação quanto à inconstitucionalidade daquele artigo 6.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho, não tanto no facto de se sancionar a construção da obra ilegal com a obrigação da sua demolição mas num outro ponto: no facto de se colocar a cargo do particular que construiu sem a necessária autorização ó ónus de provar, como forma de obstar à demolição, que a obra poderia ser autorizada.

Porém, também não se vê em que é que a atribuição ao particular - que começou por construir abusiva e ilegalmente a obra - do ónus da prova de que ela poderia ser autorizada, como forma de obviar à consequência que a lei prevê para o acto ilícito que praticou, constitua uma limitação desproporcionada ao seu direito de propriedade.

Sendo a demolição a consequência prevista na lei para a construção sem prévia autorização, a qual só excepcionalmente poderá ser evitada, demonstrando-se que poderia ser autorizada, parece óbvio - como, bem, evidencia o Ministério Público na sua alegação - que, pela própria "natureza das coisas", é ao sujeito responsável pela construção ilegal que tem de caber o ónus de demonstrar - como forma de obviar à sanção que a lei prevê para o seu acto ilegal - que a mesma estaria em condições de ser autorizada, que aqui funciona efectivamente como facto impeditivo do direito do autor.

Efectivamente, tendo o sujeito particular começado por desrespeitar a sua obrigação de não construir sem prévia autorização, parece evidente que não faria agora sentido premiar o infractor, que construiu ilegal e abusivamente, com a inversão do ónus da prova de que a construção estaria em condições de ser autorizada, impondo esta a cargo da Administração.

Acresce, finalmente, como evidencia igualmente o Ministério Público na sua alegação, que o particular dispõe de outros meios processuais para fazer valer o seu alegado direito a construir, podendo sempre requerer à entidade competente, a posteriori, a prática do acto administrativo destinado à concessão da autorização legalmente exigida e, na hipótese de ser ilegalmente indeferida a concessão de tal autorização, impugnar contenciosamente esse acto administrativo. E mesmo que, como acontecia nos autos, já esteja pendente acção destinada a obter a declaração ou efectivação da obrigação de demolir a obra ilegalmente efectuada, pode sempre o particular requerer a suspensão da instância por prejudicialidade, nos termos dos artigos 97.º e 279.º do Código de Processo Civil, até que se mostre definitivamente julgado o recurso contencioso e apurada a possibilidade, ou não, de sanação do vício de ilegalidade da construção efectuada.

Por tudo o exposto, torna-se evidente que a interpretação normativa do artigo 6.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho, utilizada pela decisão recorrida - que supra já identificámos -, não consubstancia, como pretende a recorrente, qualquer limitação desproporcionada ao seu direito de propriedade.

10.2 - Quanto à alegada violação do direito à habitação, previsto no artigo 65.º da Constituição, é igualmente manifesta a sua improcedência. É que - como, bem, se refere na decisão recorrida - "desta disposição não resulta que cada cidadão possa construir a sua habitação onde quiser e da forma que lhe convenha [...], passando por cima do que a lei ordinária dispõe quanto às obras de construção civil, de reconstrução, ampliação, alteração ou reparação das edificações".

11 - E, concluindo-se pela não inconstitucionalidade do disposto nos artigos 6.º, n.os 2 e 3 do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho, não pode, pelas razões que já antes deixámos expostas, conhecer-se do objecto do recurso no que se refere às normas contidas no Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80.

III - Decisão. Nestes termos, decide-se:

a) Não conhecer do objecto do recurso no que se refere às normas contidas no Regulamento aprovado pela Portaria 26-F/80, de 11 de Janeiro;

b) Não julgar inconstitucional a norma que se extrai do artigo 6.º, n.os 2 e 3, do Decreto-Lei 622/76, de 28 de Julho -, designadamente por restringir desproporcionadamente o direito de propriedade privada e o direito à habitação, consagrados nos artigos 62.º e 65.º da Constituição - quando interpretada em termos de atribuir ao particular que realizou ilegalmente obras sujeitas a autorização da direcção do Parque, sem previamente ter obtido essa autorização, o ónus de provar que a obra poderia ser autorizada como forma de obster à obrigação de demolição que naquele n.º 2 se prevê.

Por consequência, nega-se provimento ao recurso.

23 de Outubro de 2001. - José de Sousa e Brito (relator) - Guilherme de Fonseca - Luís Nunes de Almeida - Bravo Serra - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1956994.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1976-07-28 - Decreto-Lei 622/76 - Presidência do Conselho de Ministros

    Cria o Parque Natural da Arrábida.

  • Tem documento Em vigor 1978-01-11 - Decreto 4/78 - Presidência do Conselho de Ministros - Secretaria de Estado do Ambiente

    Define a orgânica dos parques naturais, reservas e património paisagístico.

  • Tem documento Em vigor 1980-01-09 - Portaria 26-F/80 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Habitação e Obras Públicas

    Aprova o Regulamento do Parque Natural da Arrábida.

  • Tem documento Em vigor 1980-05-19 - Portaria 261/80 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Orçamento - Direcção-Geral das Alfândegas

    Permite a importação, sob regime de draubaque, de tecidos para o fabrico de estofos destinados à exportação, ao abrigo do mesmo regime.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda