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Acórdão 476/2015, de 5 de Novembro

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Sumário

Não julga inconstitucionais as normas constantes dos artigos 119.º, 120.º, 126.º, 188.º e 190.º, todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que a preterição dos prazos referidos no artigo 188.º, n.os 3 e 4, do aludido Código se traduz numa nulidade sanável e por isso sujeita a arguição no prazo de 5 dias subsequentes à notificação do despacho que procedeu ao encerramento do inquérito; não julga inconstitucionais as normas constantes dos artigos 7.º e 9.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro

Texto do documento

Acórdão 476/2015

Processo 1163/14

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

Por acórdão de 24 de janeiro de 2014, da 4.ª Vara Criminal do Círculo Judicial do Porto, decidiu-se julgar válidas as interceções telefónicas constantes dos autos, condenando-se a arguida Liliana Patrícia Oliveira Cardoso, pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro, na pena de seis anos de prisão.

Julgou-se ainda procedente o incidente de liquidação deduzido pelo Ministério Público contra a referida arguida Liliana Patrícia Oliveira Cardoso, nos termos previstos nos artigos 7.º e 8.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro e, consequentemente, declarou-se perdido a favor do Estado o montante de (euro) 183.640,00 - equivalente ao valor do património incongruente com o seu rendimento lícito - montante este que a arguida foi condenada a pagar, mantendo-se o arresto de bens já decretado.

A Arguida recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 10 de setembro de 2014, julgou improcedente o recurso.

A Arguida interpôs então recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:

"1. A recorrente pretende ver declaradas inconstitucionais as normas constantes dos artigos 119.º, 120.º, 126.º, 188.º e 190.º, todas do Código de Processo Penal quando interpretadas com o sentido de que a preterição dos prazos referidos no artigo 188.º, n.º 3 e 4 do CPP se traduz numa nulidade sanável e por isso sujeita a arguição no prazo de 5 dias subsequentes à notificação do despacho que procedeu ao encerramento do inquérito.

Com efeito, uma tal interpretação inquina de inconstitucionalidade material as referidas normas por contenderem com o estatuído nos artigos 18.º, 32.º n.os 1 e 8 e 34.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa;

O direito de defesa dos arguidos seria exponencialmente limitado quando é certo que estão em causa procedimentos que se prendem com o controlo jurisdicional de meios de prova extremamente invasivos como as escutas telefónicas.

2 - A recorrente pretende ainda ver declaradas inconstitucionais as normas constantes do artigo 7.º e 9.º, n.º 3 da Lei 5/2002 na medida em que, em caso de condenação do arguido por um crime de tráfico de estupefacientes, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença do valor patrimonial do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito (entendendo-se por património do arguido o conjunto dos bens descriminados nas alíneas do n.º 2 do artigo 7.º), na medida em que se transfere para o arguido o ónus de ilidir essa presunção, demonstrando a proveniência dos referidos bens;

Estas normas contendem com vários princípios da presunção de inocência: presume os pressupostos de que depende a sua aplicação; distribui o ónus da prova ao arguido; suprime o direito ao silêncio; e resolve o non liquet contra o arguido, consagrados no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa..."

A recorrente apresentou alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:

«1 - Uma interpretação das normas constantes dos artigos 119.º, 120.º, 126.º, 188.º, n.os 3 e 4 190.º do Código de Processo Penal no sentido de que a preterição dos prazos referidos no artigo 188.º, n.º 3 e 4 se traduz numa nulidade sanável e por isso sujeita a arguição no prazo de 5 dias subsequentes à notificação do despacho que procedeu ao encerramento do inquérito inquina de inconstitucionalidade material as referidas normas por contenderem com o estatuído nos artigos 18.º, 32.º n.os 1 e 8 e 34.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

i) A interceção telefónica sacrifica vários direitos fundamentais, entre os quais, o direito à palavra, à informação e à intimidade sendo que o aludido prazo de 48 horas visa acautelar a proteção desses direitos por banda da autoridade judiciária para que seja exercido um controlo efetivo e próximo da atividade do OPC nesta matéria.

ii) A única interpretação, das referidas normas, de acordo com a Constituição, é aquela que considera que os referidos vícios podem ser suscitados em qualquer momento processual, designadamente em sede de audiência de julgamento, pois na verdade. Este é o único regime compatível com uma proibição de prova.

2 - As normas constantes dos artigos 7.º e 9.º, n.º 3 da Lei 5/2002 são inconstitucionais na medida em que, em caso de condenação do arguido por um crime de tráfico de estupefacientes, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença do valor patrimonial do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito (entendendo-se por património do arguido o conjunto dos bens descriminados nas alíneas do n.º 2 do artigo 7.º) na medida em que se transfere para o arguido o ónus de ilidir essa presunção, demonstrando a proveniência dos referidos bens.

i) No caso concreto, a inconstitucionalidade destas normas é ainda mais visível por a recorrente ter adquirido os bens - que se presumem ser de proveniência ilícita - antes dos factos pelos quais foi condenada - apenas se provou o início da execução do crime em 29.1.2013, tendo o tribunal concluído pela origem ilícita de bens bem adquiridos antes, pois, como afirmou, a arguida não rebateu a presunção do artigo 9.º da Lei 5/2002 para esse período.

ii) Estas normas contendem com vários princípios da presunção de inocência: presume os pressupostos de que depende a sua aplicação; distribui o ónus da prova ao arguido; suprime o direito ao silêncio; e resolve o non liquet contra o arguido, consagrados no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Pelo que nestes termos e demais de direito deve ser dado provimento a este recurso.»

O Ministério Público contra-alegou, tendo concluído da seguinte forma:

«1 - Entender - no que respeita à interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas - que se deve aplicar um regime sancionatório mais rigoroso - o da nulidade absoluta (artigo 190.º do CPP) - quando a violação das regras se situa ao nível dos pressupostos de admissibilidade (artigo 187.º do CPP) do que se essa violação ocorrer ao nível das "formalidades das operações" (artigo 188.º do CPP) - o da nulidade relativa (artigo 120, n.º 3, alínea c), do CPP) - tem plena cobertura constitucional e está de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria.

2 - Com efeito, verificados os pressupostos, ou seja, respeitado o disposto no artigo 187.º do CPP, e não ocorrendo, dessa forma, violação do artigo 34.º, n.º 4, da Constituição, para que se continue a mostre cumprida a Constituição no que respeita ao princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição) o que é fundamental e decisivo é que haja um acompanhamento judicial continuo e próximo, temporal e material da fonte e que toda a prova obtida por essa via passe pelo "crivo" judicial quanto ao seu caráter não proibido e à sua relevância.

3 - Com a ligeira violação - de um dia, num caso e de dois dias no outro - do prazo estabelecido nos n.os 3 e 4 do artigo 188.º do CPP, não é minimamente afrontada aquela exigência constitucional, não sendo, pois, violado o princípio da proporcionalidade.

4 - Dessa forma, considerar que o desrespeito daqueles prazos constitui uma nulidade que depende de arguição, nos termos 120.º, n.º 3, alínea c), do CPP, não é inconstitucional.

5 - A norma do artigo 7.º, n.º 1, da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, enquanto estabelece que em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, não viola o artigo 32.º, n.os 1 e 2 da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.

6 - Para além de o próprio tribunal dever apreciar, oficiosamente, a prova produzida para, em face da mesma, poder determinar com o máximo de rigor qual a concreta vantagem de atividade criminosa, naturalmente que, não sendo inconstitucional a presunção, o ónus de a ilidir impende sobre o arguido (artigo 9.º da Lei 5/2002), não se vislumbrando, pois, qualquer violação Constituição.

7 - Consequentemente, deve negar-se provimento ao recurso.»

Fundamentação

1 - Da inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 119.º, 120.º, 126.º, 188.º e 190.º do Código de Processo Penal

A recorrente pretende ver sindicada a constitucionalidade da interpretação conjugada dos artigos 119.º, 120.º, 126.º, 188.º e 190.º, todos do Código de Processo Penal, no sentido de que a preterição dos prazos referidos no artigo 188.º, n.os 3 e 4, do referido Código, se traduz numa nulidade sanável e por isso sujeita a arguição no prazo de 5 dias subsequentes à notificação do despacho que procedeu ao encerramento do inquérito, sustentando que tal interpretação viola o disposto nos artigos 18.º, 32.º, n.os 1 e 8, e 34.º, n.º 4, da Constituição.

Para um melhor enquadramento da questão de constitucionalidade, importa começar por fazer uma breve análise do regime normativo em causa, especificamente no que diz respeito às formalidades a que estão sujeitas as operações de interceção e gravação de conversações telefónicas e às consequências da inobservância de tais formalidades.

No regime processual das escutas telefónicas, previsto nos artigos 187.º a 190.º do Código de Processo Penal, o legislador, depois de estabelecer no artigo 187.º os pressupostos a que está sujeita a admissibilidade da autorização de escutas telefónicas (definindo, designadamente, os critérios para a concessão da autorização, o catálogo de crimes em cuja investigação é admissível o recurso a escutas telefónicas e o universo de pessoas em relação às quais as mesmas podem ser autorizadas), define, no artigo 188.º, sob a epígrafe «Formalidades das operações», os requisitos processuais ou procedimentais a que deve obedecer a obtenção desta prova.

Assim, e no que ora nos interessa, depois do n.º 1 do referido artigo 188.º prever que «o órgão de polícia criminal que efetuar a interceção e a gravação a que se refere o artigo anterior lavra o correspondente auto e elabora relatório no qual indica as passagens relevantes para a prova, descreve de modo sucinto o respetivo conteúdo e explica o seu alcance para a descoberta da verdade», o n.º 3 dispõe que esse mesmo órgão de polícia criminal «leva ao conhecimento do Ministério Público, de 15 em 15 dias a partir do início da primeira interceção efetuada no processo, os correspondentes suportes técnicos, bem como os respetivos autos e relatórios», acrescentado o n.º 4 que «o Ministério Público leva ao conhecimento do juiz os elementos referidos no número anterior no prazo máximo de quarenta e oito horas».

Por sua vez, o artigo 190.º do Código de Processo Penal dispõe que «os requisitos e condições referidos no artigo 187.º, artigo 188.º e artigo 189.º são estabelecidos sob pena de nulidade».

Os artigos 119.º e 120.º, por seu turno, enquadram-se no regime geral das nulidades da lei processual penal, previsto nos artigos 118.º e ss. do Código de Processo Penal.

O artigo 118.º, n.º 1, do Código de Processo Penal estabelece que «a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo só determinam a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei», acrescentando o n.º 2 deste artigo que "nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular". Esta norma consagra o princípio da tipicidade ou da legalidade em matéria de nulidades, do qual resulta que só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respetivo ato.

No que respeita às nulidades processuais, o Código de Processo Penal distingue as nulidades insanáveis (ou absolutas), a que se refere o artigo 119.º, e as nulidades dependentes de arguição (ou nulidades relativas), a que se referem os artigos 120.º e 121.º

O referido artigo 119.º do Código de Processo Penal qualifica como nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, as situações tipificadas nas suas alíneas a) a f), «além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais».

Por sua vez, e de acordo com o n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo Penal, «qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte".

Assim, ao contrário das nulidades ditas insanáveis, as restantes nulidades ficam sanadas se os interessados renunciarem expressamente à sua arguição, tiverem aceite expressamente os efeitos do ato ou se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o ato anulável se dirigia (cf. artigo 121.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Acresce que também não é possível conhecer oficiosamente das nulidades ditas relativas, mas apenas mediante suscitação de quem tem interesse na observância da disposição processual violada ou omitida, pelo que, se o interessado não proceder à sua arguição dentro do prazo legalmente fixado, o vício tem-se por sanado.

De acordo com o disposto no n.º 3, do artigo 120.º, do Código de Processo Penal, as nulidades relativas têm de ser arguidas nos seguintes prazos: tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista, antes que o ato esteja terminado [al. a)]; tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência [al. b)]; tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito [al. c)]; logo no início da audiência nas formas de processo especiais [al. d)].

No que respeita aos efeitos da declaração de nulidade, o artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estabelece que «[a]s nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar», sendo que, nos termos do n.º 2 deste artigo «[a] declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição», dispondo-se no n.º 3 que «[a]o declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela».

Finalmente, o artigo 126.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Métodos proibidos de prova», estabelece, no n.º 1, que «[s]ão nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas», acrescentando o n.º 3 que «[r]essalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.»

O que está em causa nos autos, como vimos, sendo esse o problema subjacente à questão de constitucionalidade suscitada, é saber qual a consequência para a inobservância dos prazos previstos nos n.os 3 e 4, do artigo 188.º, do Código de Processo Penal, designadamente, qual o regime da "nulidade" prevista no artigo 190.º do mesmo Código.

Com efeito, conforme resulta da decisão da 1.ª instância, numa das situações em causa nos autos, os elementos recebidos pelo Ministério Público foram levados ao conhecimento do juiz no 19.º dia posterior ao do início da interceção e, noutra situação, tais elementos foram apresentados ao Ministério Público no 16.º dia, tendo o Ministério Público respeitado o prazo da respetiva apresentação ao juiz.

E, face a esta circunstância, a decisão recorrida entendeu que o desrespeito dos prazos máximos estabelecidos nos referidos n.os 3 e 4, do artigo 188.º, do Código de Processo Penal, não determina a proibição de utilização das escutas, constituindo uma nulidade dependente de arguição, a qual, não havendo lugar a instrução, deve ser efetuada até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, nos termos do artigo 120.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

É contra este entendimento que se insurge a Recorrente, sustentando, nas suas alegações, em síntese, que no caso de inobservância dos prazos previstos nos referidos n.os 3 e 4, do artigo 188.º, do Código de Processo Penal, a sanção instituída pelo artigo 190.º do mesmo Código é uma proibição de prova resultante de uma intromissão ilegal nas comunicações, sendo a prova obtida nula, salvo o consentimento do lesado pela escuta, por força do disposto no n.º 3, do artigo 126.º, do Código de Processo Penal.

Defende, por isso, que a única interpretação das referidas normas compatível com a Constituição é a interpretação segundo a qual os referidos vícios podem ser suscitados em qualquer momento processual, designadamente em sede de audiência de julgamento, sendo este o único regime compatível com uma proibição de prova, concluindo que a interpretação seguida pela decisão recorrida viola o estatuído nos artigos 18.º, 32.º, n.os 1 e 8, e 34.º, n.º 4, da Constituição.

O entendimento seguido pela decisão recorrida corresponde a uma das posições seguidas na jurisprudência e na doutrina no que respeita à interpretação do artigo 190.º do Código de Processo Penal, quanto à nulidade aí prevista.

Segundo essa corrente, tal nulidade tem um regime diferenciado consoante esteja em causa a violação dos pressupostos do artigo 187.º ou as formalidades previstas no artigo 188.º, ambos do Código de Processo Penal. Assim, sustenta esta posição, estando verificados os pressupostos previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal e tendo a escuta telefónica sido judicialmente autorizada, as eventuais violações ao disposto no artigo 188.º constituem formalidades processuais, cuja falta de observância não contende com a validade e fidedignidade daquele meio de prova, razão pela qual a violação dos procedimentos previstos no artigo 188.º constitui uma nulidade sanável nos termos previstos no artigo 120.º do Código de Processo Penal.

Ou seja, esta posição entende que, não obstante o artigo 190.º do Código de Processo Penal cominar com a sanção de "nulidade" as violações dos artigos 187.º e 188.º do mesmo diploma, importa distinguir os pressupostos substanciais de admissão das escutas (previstos no artigo 187.º), cuja violação é sancionada com nulidade absoluta e, consequentemente, insanável e de conhecimento oficioso, e os requisitos processuais da sua aquisição (previstos no artigo 188.º), cuja violação é sancionada com nulidade relativa, sanável e dependente de arguição nos prazos previstos no artigo 120.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal.

Tem sido este o entendimento seguido, maioritariamente, pelo Supremo Tribunal de Justiça (no mesmo sentido, cf., Carlos Adérito Teixeira, «Escutas telefónicas: a mudança de paradigma e os velhos e novos problemas», in Revista do CEJ, 1.º Semestre de 2008, n.º 9, pág. 851; e António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques Graça, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra, Almedina, 2014, págs. 851-852).

Ainda neste sentido, Paulo Sousa Mendes (cf., «Lições de Direito Processual Penal», Almedina, Coimbra, 2013, pág. 190) sustenta que há algumas nulidades de prova reconduzíveis ao sistema das nulidades processuais, as quais seguem o regime das nulidades dependentes de arguição previsto no artigo 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, como é o caso dos atos cuja invalidade resulta da violação de «meras formalidades de prova», contanto que a nulidade seja cominada nas disposições legais em causa, e aponta como exemplo deste tipo de situações a demora na entrega ao juiz das gravações e transcrições necessárias para se fiscalizar as escutas telefónicas (artigos 188.º, n.º 4, e 190.º, do Código de Processo Penal).

Segundo outra posição, que tem merecido acolhimento sobretudo na jurisprudência das Relações, deverá ser adotada uma "solução unitária", devendo ser sancionada com a mesma nulidade quer a violação do disposto no artigo 187.º, quer a violação do disposto no artigo 188.º (sobre a caracterização destas duas soluções jurisprudenciais, cf., Costa Andrade, «"Bruscamente no verão Passado", a reforma do Código de Processo Penal», Coimbra Editora, pp. 139-144, considerando este Autor que «numa consideração estrita de direito positivo, os créditos da tese unitária [...] parecem mais sólidos»).

Esta é também a posição de André Lamas Leite (cf., «Entre Péricles e Sísifo: o novo regime legal das escutas telefónicas», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 17, n.º 4, outubro - dezembro de 2007, págs. 665-669) que sustenta que a introdução pela Lei 47/2007, de 29 de agosto, da locução «não podendo ser utilizadas» na nova redação do n.º 3 do artigo 126.º consagra indiscutivelmente a solução de que a nulidade prescrita no artigo 190.º não é uma nulidade em sentido técnico, enquadrável nos artigos 119.º ou 120.º, mas uma nulidade atípica, designada por «proibição de prova», sustentando que o segmento introduzido pela referida lei «fulmina com as consequências de "inutilização" todas as provas obtidas em incumprimento da disciplina legal dos meios de obtenção probatórios que contendam com os bens jurídicos nele protegidos, sendo ilegal, desde 15-9-2007, a interpretação quase unânime da jurisprudência e de alguma doutrina, no sentido da destrinça entre a violação do artigo 187.º e do artigo 188.º como conduzindo, respetivamente, a uma nulidade insanável ou a uma mera nulidade sanável».

Como é sabido, não compete ao Tribunal Constitucional tomar posição no que respeita a esta controvérsia, optando por uma das interpretações dos preceitos em análise. Ao Tribunal Constitucional cabe apenas decidir se a norma que se extrai desses preceitos, na interpretação adotada pela decisão recorrida, é ou não desconforme com a Constituição, designadamente, com os seus artigos 18.º, 32.º, n.os 1 e 8, e 34.º, n.º 4.

Para a apreciação desta questão de constitucionalidade assumem particular importância, enquanto parâmetros relevantes, as normas dos artigos 18.º, 32.º, n.º 8 e 34.º, n.º 4, da Constituição. Sendo certo que a referida norma do 32.º, n.º 1, é também fonte autónoma de direitos dos arguidos, constituindo uma "cláusula geral" que engloba todas as garantias de defesa do arguido em processo criminal não expressamente referidas nos números seguintes, importa, justamente, começar pela análise da questão em face daqueles outros parâmetros e, na hipótese de se concluir que os mesmos não se mostram violados, apreciar então a questão também à luz da referida norma do artigo 32.º, n.º 1.

A possibilidade, conferida no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, de ingerência na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal, representa uma restrição a um direito fundamental e, como tal, deve limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, sem jamais diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição).

Depois de feita uma referência ao quadro legal relativo ao regime das escutas telefónicas, importa ter presente a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria, de forma a poder extrair da mesma, sobretudo daquela em que foram apreciadas questões próximas, critérios relevantes a ter em conta na decisão.

Embora esta questão de constitucionalidade não seja completamente nova, uma vez que o Tribunal Constitucional já foi por diversas vezes chamado a pronunciar-se sobre a conformidade de interpretações normativas respeitantes ao regime das escutas telefónicas em que estavam em causa questões relacionadas com as formalidades exigidas no que respeita ao acompanhamento das interceções telefónicas pelo juiz, não se poderá dizer que coincida inteiramente com alguma das questões com que o Tribunal já foi anteriormente confrontado.

Assim, e no que respeita, em geral, ao regime das escutas telefónicas consagrado no Código de Processo Penal, importa, desde logo, ter presente, conforme tem sido reiteradamente entendido pelo Tribunal Constitucional, que tal regime só existe na medida em que o mesmo é expressamente autorizado pela Constituição, conforme decorre do disposto no n.º 1 do artigo 34.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 18.º e no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição. É o que se afirma, entre outros, no Acórdão 450/2007 (acessível na internet, tal como os restantes acórdãos que a seguir se indicam, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):

«Sendo o direito ao sigilo dos meios de comunicação privada (dito inviolável pelo n.º 1 do artigo 34.º) um direito fundamental diretamente aplicável (artigo 18.º, n.º 1), a sua restrição terá que ser autorizada pela própria Constituição (artigo 18.º n.º 2); a previsão, por lei ordinária, de um regime que permita às autoridades públicas a interceção e gravação de conversações telefónicas sem o consentimento dos intervenientes é, evidentemente, uma restrição; tal restrição legal só existe porque a Constituição, no n.º 4 do artigo 34.º, expressamente a autoriza. [...] Aliás, a autorização é concedida por intermédio de uma reserva de lei qualificada: a «compressão» do direito só pode ser feita nos termos da lei e em «matéria de processo criminal». Eis, pois, a razão de ser dos artigos 187.º e 188.º do CPP.»

Por outro lado, conforme tem também sido reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional e, concretamente, pelo citado Acórdão 450/2007, os procedimentos fixados pelos artigos 187.º e 188.º do Código de Processo Penal «formam um 'sistema', dotado de coerência interna porque assente antes do mais numa lógica dual» e tal acontece porque «o legislador ordinário entendeu que devia disciplinar tanto os pressupostos das escutas quanto os termos da sua execução. Da disciplina dos pressupostos (ou seja, da definição das condições que devem estar reunidas para que se possa ordenar ou autorizar a interceção e gravação das comunicações) cuida o artigo 187.º do CPP; da disciplina dos termos da execução (ou seja, da definição do tempo e do modo de acompanhamento das interceções já ordenadas ou autorizadas) cuida o artigo 188.º».

Assim, seguindo a terminologia usada pelo citado Acórdão 450/2007, bem como, em parte, pelo Acórdão 425/2005, dir-se-á que as questões de constitucionalidade que este tribunal tem sido chamado a apreciar em matéria de escutas telefónicas têm subjacentes problemas relativos, quer aos pressupostos das escutas, quer aos termos da sua execução, aqui se incluindo os problemas relativos à definição do tempo e do modo de acompanhamento de interceções já ordenadas ou autorizadas,

Ainda de acordo com a citada terminologia, poder-se-á afirmar que a questão em causa nos presentes autos diz respeito ao regime do tempo do acompanhamento das escutas e, concretamente, às consequências do incumprimento desse regime.

Importa pois, dentro da vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de escutas telefónicas, ter em particular atenção os casos em que o Tribunal foi confrontado com este mesmo tipo de questões, em que estava em causa o tempo do acompanhamento de escutas já ordenadas e autorizadas.

Uma parte importante dessa jurisprudência apreciou a conformidade constitucional da interpretação do termo "imediatamente", constante do artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quer na redação originária, quer nas redações posteriores resultantes das alterações introduzidas pela Lei 59/98, de 25/08, e pelo Decreto-Lei 320-C/2000, de 15/12, a respeito da apresentação, ao juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações, do auto de interceção e gravação, juntamente com as fitas gravadas ou elementos análogos.

Designadamente, a propósito de situações em que estava em causa a aplicação do disposto no artigo 188.º, na redação anterior à introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de agosto, concretamente no que respeita à exigência contida no n.º 1 de ser lavrado auto da interceção e gravação e de tais elementos serem imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações, com a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados relevantes para a prova.

A primeira decisão proferida pelo Tribunal sobre esta questão foi o Acórdão 407/97, que concluiu pela inconstitucionalidade, por violação do disposto no n.º 6 (a que corresponde atualmente o n.º 8) do artigo 32.º da Constituição, da norma do n.º 1 do artigo 188.º do Código de Processo Penal «quando interpretado em termos de não impor que o auto da interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles, e bem assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de novo auto da mesma espécie, sobre a manutenção ou alteração da decisão que ordenou as escutas».

Neste aresto, o Tribunal fez assentar o juízo de inconstitucionalidade nos seguintes fundamentos:

«Trata-se aqui de precisar o conteúdo constitucionalmente viável do trecho do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, onde surge a expressão «imediatamente». Ora, partindo do pressuposto consubstanciado na proibição de ingerência nas telecomunicações, resultante do n.º 4 do artigo 34.º da Lei Fundamental, a possibilidade de ocorrer diversamente (de existir ingerência nas telecomunicações), no quadro de uma previsão legal atinente ao processo criminal (a única constitucionalmente tolerada), carecerá sempre de ser compaginada com uma exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade, subjacente ao artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, garantindo que a restrição do direito fundamental em causa (de qualquer direito fundamental que a escuta telefónica, na sua potencialidade danosa, possa afetar) se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente.

Nesta ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha da prova através da escuta telefónica aparece como o meio que melhor garante que uma medida com tão específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas pelo texto constitucional.

O atuar desta imediação, potenciadora de um efetivo controlo judicial das escutas telefónicas, ocorrerá em diversos planos, sendo um deles o que pressupõe uma busca de sentido prático para a obrigação de levar «imediatamente» ao juiz o auto da interceção e «fitas gravadas ou elementos análogos», de que fala a lei.»

E, depois de afirmar que «o critério interpretativo neste campo não pode deixar de ser aquele que assegure a menor compressão possível dos direitos fundamentais afetados pela escuta telefónica», o Tribunal realçou o seguinte:

«[...] a intervenção do juiz é vista como uma garantia de que essa compressão se situe nos apertados limites aceitáveis e que tal intervenção, para que de uma intervenção substancial se trate (e não de um mero tabelionato), pressupõe o acompanhamento da operação de interceção telefónica. Com efeito, só acompanhando a recolha de prova, através desse método em curso, poderá o juiz ir apercebendo os problemas que possam ir surgindo, resolvendo-os e, assim, transformando apenas em aquisição probatória aquilo que efetivamente pode ser. Por outro lado, só esse acompanhamento coloca a escuta a coberto dos perigos - que sabemos serem consideráveis - de uso desviado.

Com isto, não se quer significar que toda a operação de escuta tenha de ser materialmente realizada pelo juiz. Contrariamente a tal visão maximalista, do que aqui se trata é, tão-só, de assegurar um acompanhamento contínuo e próximo temporal e materialmente da fonte (imediato, na terminologia legal), acompanhamento esse que comporte a possibilidade real de em função do decurso da escuta ser mantida ou alterada a decisão que a determinou.»

E, continua o citado Acórdão:

«Em qualquer dos casos, «imediatamente», no contexto normativo em que se insere, terá de pressupor um efetivo acompanhamento e controlo da escuta pelo juiz que a tiver ordenado, enquanto as operações em que esta se materializa decorrerem. De forma alguma «imediatamente» poderá significar a inexistência, documentada nos autos, desse acompanhamento e controlo ou a existência de largos períodos de tempo em que essa atividade do juiz não resulte do processo.»

Acabando por concluir que:

«Em qualquer caso, tendo em vista os interesses acautelados pela exigência de conhecimento imediato pelo juiz, deve considerar-se inconstitucional, por violação do n.º 6 do artigo 32.º da Constituição, uma interpretação do n.º 1 do artigo 188.º do CPP que não imponha que o auto de interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles, e bem assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de novo auto de escutas posteriormente efetuadas, sobre a manutenção ou alteração da decisão que ordenou as escutas.»

Esta jurisprudência foi seguida, entre outros, pelo Acórdão 347/2001 (que decidiu julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 34.º, n.os 1 e 4 e 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma constante do artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação anterior à que foi dada pela Lei 59/98, de 25 de agosto, quando interpretada no sentido de não impor que o auto da interceção e gravação de conversações e comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz e que, autorizada a interceção e gravação por determinado período, seja concedida autorização para a sua continuação, sem que o juiz tome conhecimento do resultado da anterior); pelo Acórdão 528/2003 (que decidiu julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 34.º, n.os 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma constante do artigo 188.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na redação anterior à que foi dada pelo decreto-lei 320-C/2000, de 15 de dezembro, quando interpretada no sentido de não impor que o auto da interceção e gravação de conversações e comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz); pelo Acórdão 379/2004 (que decidiu julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 34.º, n.os 1 e 4, e 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 188.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, quer na redação anterior quer na posterior à que foi dada pelo Decreto-Lei 320-C/2000, de 15/12, quando interpretada no sentido de uma interceção telefónica, inicialmente autorizada por 60 dias, poder continuar a processar-se, sendo prorrogada por novos períodos, ainda que de menor duração, sem que previamente o juiz de instrução tome conhecimento do conteúdo das conversações, e julgar inconstitucional por violação dos mesmos preceitos da Constituição da República Portuguesa a citada norma, na interpretação segundo a qual a primeira audição, pelo juiz de instrução criminal, das gravações efetuadas, pode ocorrer mais de três meses após o início da interceção e gravação das comunicações telefónicas); e pelo Acórdão 223/2005 (que incidiu sobre uma situação de incumprimento do Acórdão 379/2004).

Embora num caso em que a questão de constitucionalidade não era idêntica, o Acórdão 446/2008 decidiu não julgar inconstitucional «a norma do artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nos termos da qual o inciso "imediatamente" deve ser interpretado dentro das contingências inerentes à complexidade e dimensão do processo», tendo entendido, na esteira da referida jurisprudência e ainda da jurisprudência do Acórdão 4/2006, «que as exigências constitucionais pertinentes impõem, sempre e em todo o caso, um acompanhamento judicial efetivo e próximo das operações em causa, assumindo, quanto ao requisito da "imediatividade", que o mesmo possa, salvaguardada aquela determinação, assumir uma certa geometria variável em face dos "condicionalismo[s] do caso concreto"», concluindo, no entanto, que «a valoração dos fatores implicados pela complexidade das operações [...] constitui uma dimensão inarredável para aferir do cumprimento da exigência legal, sendo absolutamente compreensível que o lapso temporal a imputar ao requisito da imediatividade seja forçosamente diferenciado em função desses fatores, o que, só por si, em nada compromete o "efetivo controlo das operações" e o acompanhamento judicial da realização das escutas telefónicas, devendo mesmo aceitar-se que a aferição do momento de apresentação dos autos de gravação em face das circunstâncias do caso acaba inclusivamente por ser reclamada pelo investimento que o conteúdo dos autos de gravação representa em sede de controlo jurisdicional das escutas telefónicas e, bem assim, dos próprios direitos dos arguidos».

Feito este percurso pela jurisprudência do Tribunal Constitucional a respeito desta questão, importa, no entanto, relembrar que no caso dos autos não está em causa, ao contrário do que se verificava nas situações subjacentes à jurisprudência sobre a norma do artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação anterior à introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de agosto, a validade ou não de interceções telefónicas em consequência de um invocado incumprimento do disposto nessa norma, concretamente, no que respeita ao sentido do termo "imediatamente" para efeitos de cumprimento dos requisitos de acompanhamento das escutas pelo juiz.

No caso dos autos, a decisão recorrida entendeu que houve um incumprimento de alguns requisitos formais (concretamente, dos prazos previstos nos n.os 3 e 4 da atual redação do artigo 188.º) e que tal incumprimento determina a nulidade das escutas. A questão que se coloca nos autos é a de saber se é conforme com a Constituição a interpretação no sentido de que esta nulidade, não sendo invocada em determinado prazo, poderá ficar sanada e, em consequência, as referidas escutas poderem vir a ser utilizadas como prova.

Como vimos, esta questão no plano infraconstitucional não tem merecido, quer na doutrina, quer na jurisprudência, uma resposta unívoca. Não competindo, repete-se, ao Tribunal Constitucional optar por uma das soluções em confronto, a questão que importa apreciar, no plano jurídico-constitucional, é a de saber se a solução seguida pela decisão recorrida viola alguma norma ou princípio constitucional.

Conforme se referiu, o n.º 4, do artigo 34.º, da Constituição, proíbe «toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal», significando esta ressalva que em tais casos a Constituição, excecionalmente, autoriza a restrição dos direitos em causa. Por sua vez, o artigo 32.º, n.º 8, da Constituição, comina com nulidade as provas obtidas «mediante tortura, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações», tendo em vista, antes de mais, garantir a liberdade dos indivíduos contra o perigo de intromissões ilegítimas na sua esfera pessoal, defendendo-os, também, contra eventuais agressões provenientes das entidades a quem incumbe a realização da justiça penal, impedindo-as de recorrer a certos meios de investigação e estabelecendo limites que só nas condições previstas na lei podem ser ultrapassados.

Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, pág. 524), que esta interdição «é absoluta no caso do direito à integridade pessoal [...]; e, relativa, nos restantes casos, devendo ter-se por abusiva a intromissão quando efetuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (artigo 34.º- 2 e 4), quando desnecessária e desproporcionada ou quando aniquiladora dos próprios direitos (cf. artigo 18.º-2 e 3)».

Ora, como tem sido entendido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, é exigível que a admissibilidade da intromissão nas comunicações telefónicas seja não só objeto de prévia autorização judicial, mas também sujeita a um acompanhamento judicial ao longo da sua execução. Exige-se, nas palavras do Acórdão 4/2006 «um "acompanhamento próximo" e um "controlo do conteúdo" das conversações, com uma dupla finalidade: (i) fazer cessar, tão depressa quanto possível, escutas que se venham a revelar injustificadas ou desnecessárias; e (ii) submeter a um "crivo" judicial prévio a aquisição processual das provas obtidas por esse meio».

No entanto, o facto de a lei ordinária estabelecer um conjunto de exigências e formalidades no que respeita ao acompanhamento de escutas já devidamente ordenadas e autorizadas, e independentemente da interpretação que se possa ter por mais correta no plano do direito ordinário, não faz com que esse regime legal se transforme em regime constitucional, fazendo com que toda e qualquer violação dos formalismos legais deva ser considerada uma violação da Constituição (cf., neste mesmo sentido, o referido Acórdão 4/2006; cf., ainda a respeito dos requisitos de acompanhamento judicial das escutas o Acórdão 426/2005).

Tendo em conta o conteúdo das aludidas normas constitucionais, bem como a razão de ser do regime delas constante, é de concluir que não é constitucionalmente imposto que toda e qualquer violação do prescrito no regime processual das escutas telefónicas, designadamente, quanto esteja em causa o incumprimento de preceitos legais relativos aos termos de execução e ao modo de acompanhamento de escutas telefónicas validamente autorizadas, tenha como consequência uma nulidade, dita insanável, que implique irremediavelmente uma impossibilidade de valoração da prova.

A desconformidade com a Constituição de uma interpretação normativa reportada às consequências da preterição de formalidades legais relativas ao acompanhamento judicial da execução da operação, como é aquela que está sob análise neste recurso, apenas pode assentar numa eventual violação do princípio da proporcionalidade aplicável às restrições dos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição).

Quando uma escuta telefónica é autorizada com base na verificação dos pressupostos previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal, exige-se ainda, como vimos, por imperativo constitucional, que a mesma seja sujeita a um acompanhamento judicial «contínuo e próximo temporal e materialmente da fonte [...], acompanhamento esse que comporte a possibilidade real de em função do decurso da escuta ser mantida ou alterada a decisão que a determinou» (cf. Acórdão 407/97), de forma a que toda a prova obtida por essa via seja objeto de controlo judicial quanto ao seu caráter não proibido e à sua relevância.

Só no caso de se constatar que as aludidas formalidades foram desrespeitadas de tal forma que é de concluir que não se verificou um efetivo acompanhamento das escutas, é que se poderá entender que a prova assim recolhida não possa ser utilizada, não podendo ter-se por sanada a "nulidade" daí decorrente, por falta da sua arguição num determinado prazo, sob pena de violação da proporcionalidade da restrição expressamente admitida no artigo 34.º, n.º 4, da Constituição.

Ora, tendo em consideração que os prazos fixados no artigo 188.º do Código de Processo Penal para que as escutas realizadas sejam levadas ao conhecimento do juiz de instrução se revelam adequados a garantir um acompanhamento efetivo daquelas, a sua simples ultrapassagem, independentemente da dimensão dessa ultrapassagem, é insuficiente para que, em abstrato, se possa considerar que essa inobservância põe em causa a possibilidade real do juiz de instrução acompanhar eficazmente a realização das escutas. Só a concreta medida dessa ultrapassagem e as circunstâncias em que a mesma ocorreu permitirão efetuar um juízo seguro sobre se a solução de considerar essa infração às leis processuais uma nulidade sanável por falta da sua arguição num determinado prazo, constitui uma restrição desproporcionada à proibição de ingerência nas telecomunicações, por permitir a validação de escutas realizadas sem o necessário acompanhamento judicial.

Reportando-se a interpretação normativa sub iudicio à simples circunstância de não terem sido observados os prazos previstos no artigo 188.º do Código de Processo Penal, independentemente da dimensão dessa inobservância não é possível considerar que a mesma ofende o prescrito nos artigos 18.º, 32.º, n.º 2, e 34.º, n.º 4, da Constituição.

Importa agora apreciar se tal interpretação viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual "[o] processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso".

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, pág. 516), em anotação ao referido artigo 32.º da Constituição, "A fórmula do n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da proteção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Em «todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação."

O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado, por várias vezes, sobre o âmbito deste preceito. No Acórdão 61/88 podemos encontrar uma síntese do conteúdo genérico do direito de defesa do arguido:

"[...]

No artigo 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe-se que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa». Esta cláusula constitucional apresenta-se com um cunho «reassuntivo» e «residual» - relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes desse mesmo artigo - e, na sua «abertura», acaba por revestir-se, também ela, de um caráter acentuadamente «programático». Mas, na medida em que se apela para um núcleo essencial deste, não deixa a mesma cláusula constitucional de conter «um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer diretamente, em caso limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária» (cf. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p. 51, e o Acórdão 164 da Comissão Constitucional, Apêndice ao Diário da República, de 31 de dezembro de 1979).

A ideia geral que pode formular-se a este respeito - a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas nos n.os 2 e seguintes do artigo 32.º - será a de que o processo criminal há de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cf. Acórdão 337/86, deste Tribunal, no Diário da República, 1.ª série, de 30 de dezembro de 1986)".

Refere ainda o Acórdão 42/2007, deste Tribunal, a propósito do referido n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, que "Do ponto de vista substancial, o princípio consagrado implica a concessão de uma efetiva possibilidade de exercício da defesa (o poder de arguir vícios dos atos praticados no inquérito é inquestionavelmente um direito de defesa), o que pressupõe naturalmente o acesso à informação necessária, ou seja, aos elementos do processo. Tal acesso e a aquisição da informação inerente consomem tempo, variando, naturalmente, a quantidade de tempo em função da dimensão material e da complexidade do processo."

Do que antecede decorre que importa apreciar se a qualificação do vício em causa nos autos como nulidade sanável, dependente de arguição no prazo de 5 dias subsequentes à notificação do despacho que procedeu ao encerramento do inquérito, quando não tenha sido requerida a abertura de instrução, se traduz numa "diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável" (na expressão usada pelo citado Acórdão 61/88), das garantias de defesa.

A qualificação de algumas nulidades como sanáveis e dependentes de arguição, nos termos acima expostos, justifica-se, em grande medida, por evidentes razões de celeridade e economia processuais, não deixando de ser concedida ao arguido a possibilidade de, em sua defesa, obviar à utilização das escutas cujo procedimento não observou o disposto na lei, bastando-lhe, num determinado prazo arguir a irregularidade que teve oportunidade de verificar.

É certo que, a entender-se, como sustenta a Recorrente, que o vício em causa constitui nulidade insanável, tal conferiria uma mais ampla possibilidade de arguição do mesmo. No entanto, a solução seguida pela decisão recorrida, embora implique um prazo mais limitado para a arguição do vício e faça recair sobre o arguido o ónus de o invocar, manifestamente não implica um cerceamento inadmissível ou insuportável das suas possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável, em termos de consubstanciar uma solução constitucionalmente censurável, na perspetiva do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

Com efeito, um acompanhamento diligente da tramitação processual a partir do momento em que a arguida foi notificada da acusação, permite-lhe detetar a irregularidade em causa, revelando-se o prazo concedido quando não seja requerida a abertura de instrução, apesar de curto, suficiente para a arguição da respetiva nulidade, pelo que não é possível, por isso, afirmar-se que aqueles objetivos de celeridade e economia processuais sejam, neste caso, alcançados à custa de uma intolerável diminuição das garantias de defesa do arguido.

Torna-se, assim, manifesto que a interpretação sindicada, ao qualificar o vício em causa nos autos como nulidade relativa, impondo ao interessado a sua arguição dentro de um prazo razoável para poder dar-se plena exequibilidade ao direito de defesa do arguido, não coloca em causa a garantia de tal direito de defesa.

Não se vislumbra, assim, que a interpretação normativa questionada, ao qualificar o vício resultante da inobservância dos prazos previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 188.º do Código de Processo Penal como nulidade relativa, prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, seja incompatível com as garantias de defesa do arguido em processo criminal, consagradas em geral no artigo 32.º, n.º 1, ou com o disposto nos artigos 18.º, 32.º, n.º 8 e 34.º, n.º 4, da Constituição, devendo o recurso, nesta parte, improceder.

2 - Da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 7.º e 9.º, n.º 3 da Lei 5/2002, de 11 de janeiro

A Recorrente suscitou a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 7.º e 9.º, n.º 3, da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, na medida em que, em caso de condenação do arguido por um crime de tráfico de estupefacientes, se presume constituir vantagem da atividade criminosa a diferença entre o valor patrimonial do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito (entendendo-se por património do arguido o conjunto dos bens descriminados nas alíneas do n.º 2 do artigo 7.º), e se transfere para o arguido o ónus de ilidir essa presunção, demonstrando a proveniência dos referidos bens.

Segundo a Recorrente, o regime consagrado nas referidas normas incorre em diversas violações do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que «presume os pressupostos de que depende a sua aplicação; distribui o ónus da prova ao arguido; suprime o direito ao silêncio; e resolve o non liquet contra o arguido».

Esta questão já foi objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos n.º 101/2015 e 392/15 e que julgaram não inconstitucionais as normas impugnadas.

No último destes arestos escreveu-se o seguinte:

"...importa realçar que o estabelecimento da presunção legal cuja constitucionalidade é sindicada nos presentes autos não tem em vista a imputação ao arguido da prática de qualquer crime e o consequente sancionamento, mas sim privá-lo de um património, por se ter concluído que o mesmo foi adquirido ilicitamente, assim se restaurando a ordem patrimonial segundo o direito, o que situa a questão em plano diverso do que foi objeto de análise nos Acórdãos 179/12 e 377/15 deste Tribunal (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

É certo que a aplicação da medida de perda a favor do Estado, a par deste objetivo, tem uma finalidade de prevenção criminal, evitando que se crie a ideia que o crime compensa, assim como a sua aplicação tem como pressuposto necessário a condenação por um dos crimes do catálogo previsto no artigo 1.º da Lei 5/2002 de 11 de janeiro. Contudo, conforme já salientou este Tribunal no referido Acórdão 101/2015, só com esta condenação pela prática de um dos aludidos crimes é que opera a presunção prevista no artigo 7.º, n.º 1, da mesma Lei, sendo que, no incidente de liquidação, a que se refere o artigo 8.º desta Lei, já não está em causa o apuramento de qualquer responsabilidade penal do arguido, mas tão só a determinação de uma eventual incongruência entre o valor do património do arguido e os seus rendimentos de proveniência lícita, incongruência essa que, uma vez demonstrada de acordo com determinados pressupostos, tem como consequência ser declarado perdido a favor do Estado o valor do património do arguido que se apure ser excessivo em relação aos aludidos rendimentos, caso o arguido não ilida aquela presunção de causalidade.

A imputação de um crime de catálogo funciona aqui apenas como pressuposto indiciador que poderão ter-se verificado ganhos patrimoniais de origem ilícita, o que justifica, na ótica do legislador, que, no mesmo processo em que se apure a prática desse crime e, eventualmente se conclua pela respetiva condenação, se averigue a existência desses ganhos, em procedimento enxertado no processo penal, de modo a poder determinar-se a sua perda (sobre as vantagens e desvantagens deste procedimento ocorrer enxertado no processo penal onde se apura a prática do crime que é pressuposto da aplicação da medida de perda de bens, vide Pedro Caeiro, ob. cit, pág. 311-313, Jorge Godinho, pág. 1360, e Damião da Cunha, pág. 159-160).

Embora enxertado naquele processo penal, o que está em causa neste procedimento, repete-se, não é já apurar qualquer responsabilidade penal do arguido, mas sim verificar a existência de ganhos patrimoniais resultantes de uma atividade criminosa. Daí que, quer a determinação do valor dessa incongruência, quer a eventual perda de bens daí decorrente, não se funde num concreto juízo de censura ou de culpabilidade em termos ético-jurídicos, nem num juízo de concreto perigo daqueles ganhos servirem para a prática de futuros crimes, mas numa constatação de uma situação em que o valor do património do condenado, em comparação com o valor dos rendimentos lícitos auferidos por este faz presumir a sua proveniência ilícita, importando impedir a manutenção e consolidação dos ganhos ilegítimos.

Em suma, a presunção de proveniência ilícita de determinados bens e a sua eventual perda em favor do Estado não é uma reação pelo facto de o arguido ter cometido um qualquer ato criminoso. Trata-se, antes, de uma medida associada à verificação de uma situação patrimonial incongruente, cuja origem lícita não foi determinada, e em que a condenação pela prática de um dos crimes previstos no artigo 1.º da Lei 5/2002 de 11 de janeiro tem apenas o efeito de servir de pressuposto desencadeador da averiguação de uma aquisição ilícita de bens.

Tendo em conta o aqui exposto, nesse procedimento enxertado no processo penal não operam as normas constitucionais da presunção da inocência e do direito ao silêncio do arguido, invocadas pelo Recorrente.

Já no que respeita ao procedimento criminal pela prática dos factos integradores de algum dos crimes referidos no artigo 1.º da Lei 5/2002 de 11 de janeiro, o arguido beneficia de todas as garantias de defesa em processo penal, não havendo qualquer alteração às regras da prova ou qualquer outra especificidade resultante do regime de perda de bens previsto na aludida Lei. Significa isto que, no caso de haver condenação pela prática de tal crime, embora a presunção de inocência tenha sido tida em atenção no respetivo procedimento criminal que manteve a sua estrutura acusatória, a mesma veio a ser afastada pela prova produzida (e daí a condenação). Acresce ainda que, na hipótese de tal condenação não chegar a transitar em julgado e vier a ser revogada, faltará um dos pressupostos para a perda de bens. Em suma, só haverá perda de bens em favor do Estado desde que exista condenação do arguido, transitada em julgado, por um dos crimes referidos no artigo 1.º do diploma.

Ora, no regime previsto nas normas questionadas nos presentes autos que regulam o incidente de perda de bens enxertado no processo penal, a necessidade de o arguido carrear para o processo a prova de que a eventual incongruência do seu património tem uma justificação, demonstrando que os rendimentos que deram origem a tal património têm uma origem lícita, não coloca em causa a presunção de inocência que o mesmo beneficia quanto ao cometimento do crime que lhe é imputado naquele processo, nem de qualquer outro de onde possa ter resultado o enriquecimento. E também não inviabiliza o direito ao silêncio ao arguido, não se vislumbrando em que medida da demonstração da origem lícita de determinados rendimentos possa resultar uma autoincriminação relativamente ao ilícito penal que lhe é imputado nesse processo, e muito menos um desvio à estrutura acusatória do processo penal. Não se descortina, pois, que exista um perigo real daquela presunção, que opera num incidente de perda de bens tramitado no processo penal respeitante ao crime cuja condenação é pressuposto da aplicação desta medida, contaminar a produção de prova relativa à prática desse crime.

Por estas razões se conclui que a presunção legal estabelecida nos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, 2 e 3, da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, não viola o princípio da presunção de inocência, nem o direito do arguido ao silêncio, nem a estrutura acusatória do processo penal.

Mas, embora o legislador disponha de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação de um determinado procedimento, não está autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

Admitindo-se que o legislador não podia ser indiferente à evidência de que o nexo causal que é objeto da presunção legal questionada oferece grandes dificuldades de prova, o que é generalizadamente reconhecido, a criação de uma presunção legal de conexão não resulta num ónus excessivo para o condenado, uma vez que a ilisão da presunção será efetuada através da demonstração de factos que são do seu conhecimento pessoal, sendo ele que se encontra em melhores condições para investigar, explicar e provar a concreta proveniência do património ameaçado. As presunções legais surgem exatamente para responder a essas situações em que a prova direta pode resultar particularmente gravosa ou difícil para uma das partes, causando, ao mesmo tempo, o mínimo prejuízo possível à outra parte, dentro dos limites do justo e do adequado, enquanto a tutela da parte "prejudicada" pela presunção obtém-se pela exigência fundamentada e não arbitrária de um nexo lógico entre o facto indiciário e o facto presumido, o qual deve assentar em regras de experiência e num juízo de probabilidade qualificada.

As normas sub iudicio correspondem a estas exigências, revelando-se que o legislador teve o cuidado de prevenir que, sendo mais difícil ao arguido provar a licitude de rendimentos obtidos num período muito anterior ao do processo, a prova da licitude dos rendimentos pode ser substituída pela prova de que os bens em causa estavam na sua titularidade há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido ou que foram adquiridos com rendimentos obtidos no referido período (cf. artigo 9.º, n.º 3, als. a), b) e c) da Lei 5/2002 de 11 de janeiro). Esta limitação temporal faz com que a prova necessária para que possa ser ilidida a presunção se torne menos onerosa.

Acresce ainda que, no plano processual, o regime de perda de bens previsto na Lei 5/2002, embora assente numa condenação pela prática de determinado ilícito criminal (integrante do catálogo previsto no artigo 1.º da Lei 5/2002), está sujeito a um procedimento próprio, enxertado no procedimento criminal pela prática de algum dos aludidos crimes, no qual o legislador não deixou de ter em atenção diversas garantias processuais. Desde logo, como vimos, o montante apurado como devendo ser declarado perdido em favor do Estado deve constar de um ato de liquidação, integrante da acusação ou de ato posterior, onde se indicará em que se traduz a desconformidade entre o património do arguido e o que seria congruente com o seu rendimento lícito. Este ato de liquidação é notificado ao arguido e ao seu defensor, podendo o arguido apresentar a sua defesa, nos termos já referidos, assegurando-se, assim, um adequado exercício do contraditório, sendo que, conforme se referiu, para ilidir a presunção, o arguido pode utilizar qualquer meio de prova válido em processo penal, não estando sujeito às limitações probatórias que existem, por exemplo, no processo civil ou administrativo, além de que o próprio tribunal deverá ter em atenção toda a prova existente no processo, donde possa resultar ilidida a presunção estabelecida no artigo 7.º, n.º 1, da Lei 5/2002 de 11 de janeiro (artigo 9.º, n.º 1, do mesmo diploma)"

Mantendo a adesão a estes fundamentos devem julgar-se não inconstitucionais as normas constantes dos artigos 7.º e 9.º, n.º 3, da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, improcedendo também o recurso nesta parte.

Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 119.º, 120.º, 126.º, 188.º e 190.º, todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que a preterição dos prazos referidos no artigo 188.º, n.os 3 e 4, do aludido Código se traduz numa nulidade sanável e por isso sujeita a arguição no prazo de 5 dias subsequentes à notificação do despacho que procedeu ao encerramento do inquérito;

b) não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 7.º e 9.º, n.º 3, da Lei 5/2002, de 11 de janeiro;

e, em consequência,

c) julgar improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por Liliana Patrícia Oliveira Cardoso, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido nestes autos em 10 de setembro de 2014.

Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

30 de setembro de 2015. - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro.

209054426

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1945797.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1986-12-30 - Acórdão 337/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada, na parte em que atribui competência à Direcção-Geral de Viação para aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa.

  • Tem documento Em vigor 1993-01-22 - Decreto-Lei 15/93 - Ministério da Justiça

    Revê a legislação do combate à droga, definindo o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-07 - Decreto-Lei 303/98 - Ministério da Justiça

    Dispõe sobre o regime de custas no Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2000-12-15 - Decreto-Lei 320-C/2000 - Ministério da Justiça

    Altera o Código de Processo Penal, estabelecendo medidas de simplificação e combate à morosidade processual.

  • Tem documento Em vigor 2002-01-11 - Lei 5/2002 - Assembleia da República

    Estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira e altera a Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, bem como o Decreto-Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro.

  • Tem documento Em vigor 2006-03-17 - Acórdão 4/2006 - Supremo Tribunal de Justiça

    Fixa jurisprudência no seguinte sentido: a Portaria n.º 248/2001, de 22 de Março, revogada pela Portaria n.º 1179/2002, de 29 de Agosto, não era uma lei temporária, pelo que, por via daquela revogação, os factos nela tipificados e ocorridos na sua vigência deixaram de ser punidos, por força do n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal, ex vi o artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-28 - Lei 47/2007 - Assembleia da República

    Altera (primeira alteração) a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que altera o regime de acesso ao direito e aos tribunais.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2018-02-12 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 1/2018 - Supremo Tribunal de Justiça

    «A simples falta de observância do prazo de 48 horas, imposto no n.º 4 do art. 188.º do CPP, para o M.º P.º levar ao juiz os suportes técnicos, autos e relatórios referentes a escutas telefónicas, constitui nulidade dependente de arguição, nos termos dos art.s 190.º e 120.º, ambos do Código de Processo Penal.»

Aviso

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