Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Por acórdão da Vara de Competência Mista do Funchal, Manuel Gil Camarate foi condenado, em 28 de setembro de 2012, pela prática de um crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 170.º do Código Penal (atual artigo 169.º) e por outro, de auxílio à emigração ilegal, em cúmulo, na pena de quatro anos e seis meses de prisão.
A mesma decisão julgou parcialmente procedente, por provado, o pedido de perdimento dos valores obtidos com a atividade criminosa, nos termos dos artigos 1.º, n.º 1, alínea i), 7.º, e 12.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro.
Inconformado com esta decisão, dela recorreu Manuel Gil Camarate para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, através de acórdão datado de 9 de julho de 2013, considerou improcedente o recurso, com exceção da procedência pontual relativa à redução do montante a pagar ao Estado em que havia sido condenado o recorrente em função do perdimento de valores obtidos com a atividade criminosa.
2 - Desta decisão recorreu Manuel Gil Camarate para o Tribunal Constitucional, através de requerimento com o seguinte teor:
Não se conformando com as partes do douto acórdão final que não declarem a inconstitucionalidade das normas por si suscitadas, do mesmo e nesta medida interpõe o presente recurso para o Tribunal Constitucional e o que faz nos termos seguintes:
O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de novembro e com ele pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos:
a) 169.º e 178.º, n.º 1 do Código Penal porquanto a sua aplicação violou os artigos e princípios constitucionais constantes dos artigos 25.º, 26.º, n.º 1 e 2, 32.º, n.º 8 e 34.º da nossa Constituição;
b) 7.º, n.º 1 e 10 da Lei 5/2002, de 12 de janeiro porquanto a aplicação daquele violou os artigos e princípios constantes dos n.os 1 e 2 do artigo 32.º daquele Diploma fundamental e finalmente a deste último porquanto foi aplicado retroativamente e o que ofende os artigos 62.º, 204.º e por analogia os n.os 1 e 4 do artigo 29.º da Constituição.
A primeira destas questões de inconstitucionalidade foi suscitada pelo ora Recorrente nos autos pela 1.ª vez na reclamação contra alteração substancial ou não dos factos constantes da pronúncia bem como no recurso intermédio de 6 de julho da Vara Mista do Funchal interposto do indeferimento dessa reclamação e depois juntamente com as demais questões na Motivação e conclusões do recurso interposto do douto Acórdão final da Vara Mista do Tribunal do Funchal para esta Relação que as apreciou e indeferiu totalmente.
Tendo a primitiva relatora no Tribunal Constitucional convidado o requerente a precisar, com rigor, quais as normas cuja inconstitucionalidade pretendia que o Tribunal apreciasse, foi ao convite respondido que:
Em cumprimento do douto despacho anterior, vem aos autos indicar com precisão as normas cuja apreciação pretende e que são:
a) O n.º 1 dos artigos 169.º e 178.º do Código Penal.
b) O n.º 1 dos artigos 7.º e 10.º da Lei 5/2002 de 11 de janeiro.
Na sequência desta resposta proferiu-se despacho a ordenar a produção de alegações. No mesmo despacho, circunscrevia-se o objeto do recurso à «apreciação das disposições conjugadas dos artigos 169.º e 178.º do Código Penal e do artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da Lei 5/2012, de 11 de janeiro».
Em consequência deste despacho, o recorrente, não contestando a delimitação do objeto do recurso a estas duas questões, alegou, concluindo do seguinte modo:
1.ª - Devem declarar-se inconstitucionais os n.os 1 dos artigos 169.º e 178.º do Código Penal por violaram os artigos 25.º, 26.º n.º 1, 32.º n.º 8 e 34.º da Constituição ao permitirem que as prostitutas tenham deposto como testemunhas no inquérito, instrução e julgamento do crime de lenocínio havendo assim intromissão ilícita e abusiva no seu domicilio e área nuclear da privacidade sexual sem a sua prévia queixa ou consentimento e tanto pior na medida que estas são de aplicação direta por respeitarem aos direitos, liberdades e garantias nos termos do artigo 18.º daquele Diploma fundamental.
2.ª - Deve igualmente declarar-se inconstitucional o n.º 1 do artigo 7.º da Lei 5/2002 de 11 de janeiro ao consignar a inversão do ónus da prova ou da presunção de inocência dele constante e assim violar os n.os 1 e 2 do artigo 32.º da nossa Constituição.
Nas suas contra-alegações, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional concluiu do seguinte modo:
1 - Com a incriminação das condutas previstas no artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal visa-se proteger um bem jurídico complexo que encontra materialização constitucional no princípio da dignidade da pessoa humana.
2 - Assim, aceitando esse entendimento quanto ao bem jurídico violado - o que tem vindo a ser adotado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional -, o crime de lenocínio ter natureza de público, não só é constitucionalmente aceitável como se mostra a opção legislativa mais coerente.
3 - Desta forma, a norma do artigo 169.º em articulação com a do artigo 178.º, ambas do Código Penal, segundo a qual o procedimento criminal pelo crime de lenocínio não depende de queixa por parte da pessoa que se prostitui, antes revestindo natureza pública, não viola qualquer princípio ou preceito constitucional.
4 - A norma do artigo 7.º, n.º 1, da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, enquanto estabelece que em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, não viola o artigo 32.º, n.os 1 e 2 da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
5 - Deve, pois, negar-se provimento ao recurso.
Tendo emergido da discussão em Pleno de Secção a eventualidade de se não conhecer do objeto de recurso quanto à primeira das questões colocadas, relativa à apreciação da inconstitucionalidade das disposições conjugadas dos artigos 169.º e 178.º do Código Penal, por falta (não suprida na resposta ao convite de aperfeiçoamento) de indicação da «norma» cuja validade se pretendia que o Tribunal julgasse, foi o recorrente notificado para sobre o assunto se pronunciar.
Na sua resposta (fls. 7528 e 7530) o recorrente pronunciou-se nos seguintes termos:
O recorrente argui e pede a este Tribunal que declare a inconstitucionalidade dos atuais n.osdos artigos 169.º e 178.º ambos do Código Penal porque violam os artigos 25.º, 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 8 e 34.º da Constituição da República Portuguesa nos termos em que foram interpretados e aplicados nas Instâncias não declarando nula, nos termos do n.º 3 do artigo 126.º do CPC, a prova obtida através dos depoimentos das testemunhas prostitutas sobre a atividade remunerada ou mediante a abusiva intromissão no domicílio e na «área nuclear inviolável da intimidade - sexualidade» das mesmas e tudo sem que tenha apresentado queixa para o respetivo procedimento criminal ou dado consentimento prévio às suas audições.
Daí que a inconstitucionalidade suscitada e pedida quanto àquele n.º 1 do artigo 178.º seja restrita à sua parte que não faz depender de queixa da prostituta o procedimento criminal do crime de lenocínio daquele n.º 1 do artigo 169.º ao invés do que sucede com a quase generalidade dos crimes do mesmo Capítulo e secção e que por isso assumem a natureza de crimes semipúblicos.
Cumpre apreciar e decidir
II - Fundamentação
3 - Antes do mais, há que resolver a questão prévia relativa ao conhecimento do pedido, no que diz respeito ao primeiro dos problemas colocados no requerimento de interposição do recurso: o referente à constitucionalidade das «disposições conjugadas dos artigos 169.º e 178.º do Código Penal».
Como já se viu, quando convidado a indicar, com precisão, a «norma» ou «normas» cuja inconstitucionalidade pretendia que o Tribunal apreciasse, o recorrente limitou-se a responder que, «em cumprimento do despacho anterior», vinha aos autos indicar que tais normas seriam: «a) o n.º 1 do artigo 169.º e artigo 178.º, ambos do Código Penal» (fls. 7489).
Posteriormente, de novo instado pelo Tribunal, reiterou o pedido.
Ao proceder assim, o recorrente não identificou (como lhe competia) a norma ou interpretação normativa que tem por inconstitucional.
Contudo, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição, e n.º 1, alínea b) do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC: Lei 28/82, de 15 de novembro), cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade tenha sido arguida durante o processo. Como tem sido reiteradamente afirmado em jurisprudência firme, por «norma» o Tribunal entende o enunciado prescritivo de um certo preceito em si mesmo considerado - caso tenha sido tal enunciado o aplicado pela decisão recorrida e a questão da sua constitucionalidade a colocada durante o processo - ou o particular sentido que, em interpretação, lhe terá sido conferido in casu. De todo o modo, e como quer que seja, o recurso para o Tribunal Constitucional incide sobre normas e só sobre normas, devendo o seu conteúdo ser claramente identificado pelo recorrente nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC ou, quando instado a fazê-lo, em resposta ao convite a que aludem os n. os 5 e 6 do mesmo artigo 78.º-A. Afigura-se inadmissível a possibilidade de o Tribunal, desvalorizando a necessidade de indicação da norma por parte do recorrente, assumir ele próprio a tarefa de identificar ou «formular» o objeto do recurso. A tal se oporia, desde logo, o princípio do pedido, e a consequente limitação dos poderes de cognição do Tribunal à «norma que a decisão recorrida tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação» (artigo 79.º-C da LTC).
Não tendo, in casu, o recorrente, apesar de instado para o fazer, procedido à necessária identificação do objeto do recurso quanto a esta primeira questão, afigura-se impossível, pelas razões já expostas, que o Tribunal dela conheça.
À verificação deste dado não obstam as alegações apresentadas e cujas conclusões foram acima transcritas (cf. supra ponto 2). Embora se tenha aí ensaiado a formulação de uma certa «norma» ou «dimensão normativa» que seria correspondente aos preceitos conjugados do Código Penal antes identificados, o facto é que já não era esse o momento para a identificação do objecto do recurso perante o Tribunal Constitucional, conforme decorre do artigo 75.º-A da LTC.
4 - Resta resolver a segunda questão, relativa à norma constante do n.º 1 do artigo 7.º da Lei 5/2002.
A Lei 5/2002, de 11 de janeiro, estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira. Para tanto, define um regime especial de recolha de prova, quebra de sigilo profissional e perda de bens a favor do Estado (o sublinhado é nosso) que se aplica aos crimes constantes do elenco fixado no seu artigo 1.º Dentro desses crimes encontra-se, precisamente, o lenocínio [alínea i) do n.º 1 do artigo 1.º da Lei 5/2002].
No que ao regime especial de perda de bens a favor do Estado diz respeito, releva a seguinte disposição do n.º 1 do artigo 7.º:
Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem da atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
Sustenta o recorrente que é inconstitucional esta norma, por entender que a «presunção» que nela se estabelece implica a «consignação da inversão o ónus da prova ou da presunção de inocência», em violação das garantias de processo criminal que são consagradas no artigo 32.º da CRP.
Não tem razão o recorrente.
Na verdade, in casu, a «presunção» contida no n.º 1 do artigo 7.º da Lei 5/2002 apenas opera após a condenação, em nada contrariando, pois, a presunção de inocência, consagrada no n.º 2 do artigo 32.º da CRP. Além do mais, trata-se de uma presunção ilidível, como são todas as presunções legais exceto quando o legislador disponha em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil). O princípio de que parte o legislador ao estabelecê-la - princípio cuja não verificação o recorrente sempre poderia ter demonstrado - é o de que ocorreu no caso um ganho ilegítimo, proveniente da atividade criminosa, compreensivelmente reportada ao rendimento do condenado que exceda o montante do seu rendimento lícito.
Assim, não há senão que concluir pela improcedência do recurso.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos decide-se:
a) Não conhecer da questão de constitucionalidade relativa aos artigos 169.º e 178.º do Código Penal;
b) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 7.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, que estabelece que, no caso de condenação pelo crime de lenocínio, [...] «para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito»;
c) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixadas em 20 unidades de conta da taxa de justiça.
Lisboa, 11 de fevereiro de 2015. - Maria Lúcia Amaral - Maria de Fátima Mata-Mouros - João Pedro Caupers [parcialmente vencido quanto à alínea a)] - Joaquim de Sousa Ribeiro.
208486958