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Acórdão 42/2007, de 11 de Maio

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Sumário

Julga inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de consagrar o prazo de três dias para arguir irregularidades contados da notificação da acusação em processos de especial complexidade e grande dimensão, sem atender à natureza da irregularidade e à objectiva inexigibilidade da respectiva arguição; não julga inconstitucional a norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, na medida em que permite ao Ministério Público, na fase de inquérito, determinar o levantamento de sigilo bancário

Texto do documento

Acórdão 42/2007

Processo 950/2006

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

Relatório. - 1 - Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura como recorrente João Henrique Peste dos Santos Fernandes e como recorridos o Ministério Público e outros, foi interposto recurso da decisão instrutória, tendo o agora recorrente sustentado a inconstitucionalidade da norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal interpretada no sentido de consagrar um prazo de três dias para a arguição de invalidades em processos de especial complexidade, assim como a inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, na medida em que permite ao Ministério Público a prolação de decisão a determinar o levantamento do sigilo bancário.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 26 de Setembro de 2006, considerou o seguinte:

"2.2 - Resulta da decisão recorrida:

[...]

Da nulidade do despacho que decretou o levantamento do sigilo bancário:

Veio o arguido João Henrique Peste Santos Fernandes invocar a nulidade dos despachos proferidos pelo Sr. Procurador da República e relativos à quebra do sigilo bancário e juntos a fls. 2255, 1674, 3149, 3529, 4382 e 8317, alegando, em resumo, que do despacho não constam quais os crimes em causa, não constam os indícios que lhe são imputados e nem consta a justificação para a obtenção das tais informações.

Conclui, dizendo que foram violadas as disposições legais contidas no artigo 97.º, n.º 4, do CPP,no artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002 e no artigo 205.º da CRP e que, sendo inválido o despacho em causa, é nula toda a prova obtida nos autos na sequência da referida decisão.

Cumpre decidir:

Nos termos do artigo 118.º, n.º 2, do CP Penal a violação ou a inobservância das disposições da Lei do Processo Penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.

O regime jurídico das nulidades, no âmbito do processo penal, está sujeito ao princípio da legalidade. Assim, salvo nos casos em que a lei expressamente cominar a nulidade, a violação ou inobservância das disposições processuais penais apenas fere o acto ilegal que haja sido praticado de irregularidade. Irregularidade esta que deve ser arguida no próprio acto ou, se a este os interessados não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado, sob pena de a mesma se considerar sanada.

O arguido foi notificado da acusação no dia 17 de Janeiro de 2006, conforme resulta de fl. 12 397, o que significa que a partir dessa data poderia ter tomado conhecimento dos actos processuais em causa e veio invocar a invalidade dos referidos despachos apenas no seu requerimento de abertura de instrução, ou seja, em 1 de Março de 2006.

Ora, tendo em conta o tempo decorrido entre a data da notificação da acusação e a data em que invocou a irregularidade verifica-se que já haviam decorrido mais de três dias.

Deste modo, dado que o requerente não arguiu tempestivamente essa irregularidade, deve considerar-se a mesma sanada.

Da inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro:

O mesmo arguido invocou, ainda, a inconstitucionalidade material da citada norma por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 4, da CRP, alegando, em síntese, que permitir ao Ministério Público, na fase de inquérito, legitimidade para proferir uma decisão de quebra do sigilo bancário é admitir a interferência no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, matéria da competência do juiz de instrução, na medida em que as informações relativas à conta bancária constituem matéria relativa à reserva da vida privada consagrada no artigo 26.º, n.º 1, da CRP.

A questão que se coloca é a de saber se as informações contidas na contas bancárias dizem respeito à reserva da intimidade da vida privada e se o sigilo bancário constitui um corolário dessa reserva.

Em primeiro lugar, cumpre referir a reserva do sigilo bancário não tem carácter absoluto, antes se admitindo excepções em situações em que avultam valores e interesses que devem ser reputados como relevantes como, verbi gratia, a salvaguarda dos interesses públicos ou colectivos (cf. acórdão 278/95, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Julho de 1995, onde se disse que 'o segredo bancário não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Na verdade, a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes. Assim sucede com os artigos 135.º, 181.º e 182.º do actual Código de Processo Penal, os quais procuram consagrar uma articulação ponderada e harmoniosa do sigilo bancário com o interesse constitucionalmente protegido da investigação criminal, reservando ao juiz a competência para ordenar apreensões e exames em estabelecimentos bancários'.

Em segundo lugar, cumpre referir que a consagração do segredo bancário tem na origem razões históricas recentes e relacionadas com a devassa pública das contas bancárias no período seguinte à revolução de Abril.

Em terceiro lugar, entendemos que o que se pretende com o segredo bancário é proteger as questões relacionadas com o acervo patrimonial e giro económico dos titulares das contas, matéria que respeitando à privacidade de cada um, mas que não contende com a área da intimidade da vida privada. Na verdade, não podemos comparar esta matéria com a relacionada com as buscas domiciliárias, escutas telefónicas, registo de voz e imagem, essas sim claramente limitadoras dos direitos à imagem, à palavra ao domicílio, em suma, intimidade de cada um.

Assim, conclui-se que a matéria de sigilo bancário, no seu reflexo de investigação criminal, não poderá ser perspectivada como sendo respeitante a direitos, liberdades ou garantias, na medida em que, como já referimos, a situação económica dos cidadãos espelhada nas respectivas contas bancárias fará parte do âmbito de protecção do direito à privacidade mas não da reserva da intimidade da vida privada.

A este propósito veja-se Saldanha Sanches, "Segredo bancário, segredo fiscal: uma perspectiva funcional", in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, Centro de Estudos Judiciários, 25 anos, 2004, fl. 57 e seguintes, "o primeiro ponto que deve ser considerado ao tratarmos do segredo bancário é que não estamos perante aquilo a que a constituição tutela como 'reserva da intimidade da vida privada e familiar'. Aquele núcleo central de características e comportamentos de natureza pessoal (máxime sexual e familiar) que a lei deverá proteger para proporcionar garantias efectivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana".

Por fim, cumpre referir que a consagração do segredo bancário não é tanto para a protecção da intimidade dos cidadãos mas, sobretudo, a protecção do sistema económico financeiro pelo receio de fuga dos capitais para países onde o segredo seja mais fortemente protegido.

Assim, não respeitando a matéria do segredo bancário à esfera da intimidade da vida privada a competência para a quebra desse segredo não está reservada ao juiz de instrução criminal pelo que não é inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º , 2 da Lei 5/2002.

3 - O despacho inicial referia (fl. 2255):

'A informação bancária já recolhida permite identificar novas contas, relativamente às quais importa obter informações e documentos.

Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, n.os 1, alínea e), 2 e 3, e 2.º, n.os 1, 2, 4 e 5, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, determina-se a quebra do sigilo bancário no sentido de serem solicitadas as seguintes informações:

Ao BCP, CGD, BES, BPI, CPP/Santander, Montepio Geral e BBVA solicite que nos informe da existência de contas bancárias em que seja interveniente, a qualquer título, João Peste dos Santos Fernandes da Costa, NIF 200630849; caso localizadas contas deve-nos ser remetida cópia da ficha de cliente e extractos relativos ao ano de 2004.'

3.1 - Conforme se decidiu na 1.ª instância e resulta igualmente da resposta ao recurso do Ministério Público, a questão suscitada pelo recorrente relativamente à falta de fundamentação dos despachos do Ministério Público que determinaram a quebra do sigilo bancário, por alegada omissão nesses despachos de referência aos 'crimes em causa, aos indícios que lhe são imputados e à justificação para a obtenção das tais informações', não pode proceder.

Efectivamente, de harmonia com o disposto no artigo 118.º, n.º 1, do CPP, a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.

Por sua vez o n.º 2 do mesmo preceito refere que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.

Quanto às irregularidades dispõe o artigo 123.º do CPP que a mesma deve ser arguida pelo interessado no próprio acto, ou se não tiver assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado para qualquer termo do processo.

As alegadas omissões, susceptíveis de constituir vícios puramente formais da decisão, não têm importância tal que tenha justificado por parte do legislador a sua inclusão no elenco taxativo das nulidades, essas sim situações que poderão implicar uma afectação significativa da estrutura do processo ou de princípios ou direitos fundamentais, por forma a determinar a nulidade dos referidos actos.

O recorrente, ao ser notificado da acusação, interveio no processo e teve conhecimento do mesmo, pelo que deveria ter arguido o vício respectivo no prazo de três dias a partir de tal notificação, ou nos três dias úteis seguintes embora sujeito ao pagamento de multa pela prática tardia do acto, por as alegadas omissões não serem susceptíveis de afectar a estrutura essencial da decisão que põe em causa, tratando-se, como se viu, de meras irregularidades.

Este entendimento não contende com a invocada necessidade de existência de um processo justo, por o nosso sistema processual distinguir o que sejam invalidades susceptíveis de afectar a estrutura principal do acto, reservando a nulidade aos vícios mais importantes, de outras que apenas o atinjam na sua validade formal, prevendo que a falta de fundamentação de um despacho não produza a sua nulidade, mas apenas a sua irregularidade (artigo 118.º do Código de Processo Penal) e que essa irregularidade deva ser arguida nos termos e nos prazos estabelecidos no artigo 123.º do Código de Processo Penal. Coisa diversa será uma eventual inexistência dos pressupostos de que a lei faz depender a possibilidade de obtenção de prova, contida no acto que se pretende anular.

A possibilidade de arguição no requerimento de instrução reporta-se às nulidades dependentes de arguição e não a meras irregularidades [artigo 120.º, n.os 2 e 3, alínea c), do CPP].

Uma vez que o recorrente não arguiu tempestivamente a referida irregularidade, deve considerar-se a mesma sanada, o que é extensível aos restantes despachos invocados pelo recorrente.

Este entendimento, prevendo um prazo de arguição de vícios menores e que não afectam a essência do acto, também não exclui nem limita, de forma insustentável ou inadmissível, as possibilidades de defesa do arguido, não sendo inconstitucional, como defende o recorrente.

3.2 - O recorrente alega a nulidade da prova, por alegadamente obtida com abusiva intromissão na vida privada, face à invocada ausência de fundamentação dos despachos que determinaram a obtenção de prova com quebra de sigilo bancário o que mais não é do que a já apreciada questão da falta de fundamentação das decisões do Ministério Público que a determinaram, não tendo o recorrente atacado a própria justificação e eventual inexistência de pressupostos para a decisão de obtenção da prova, através da referida quebra. Aliás, não se pode concluir que a insuficiência de fundamentação implique a nulidade da prova obtida, como parece pretender o recorrente.

De todo o modo, apreciar-se-á na medida da sua alegação a invocada nulidade das provas, perante os elementos resultantes do processo com vista à apreciação da justificação da determinação da obtenção das provas da referida forma.

Embora, no tocante ao recorrente, se investigassem inicialmente factos susceptíveis de integrarem o crime de fundação e chefia de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 299.º, n.os 1 e 3, do CP, imputado na acusação, veio o mesmo a ser pronunciado pelo crime de adesão à associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 299.º, n.º 2, do CP.

Os indícios que se verificavam na investigação vieram a ser condensados na decisão instrutória da qual resulta a descrição da actividade imputada ao arguido João Peste Costa. Embora inicialmente o arguido tivesse negado a actividade que lhe era imputada acabou por admitir ter realizado algumas vendas de mercadorias obtidas através das condutas fraudulentas desenvolvidas a partir de sucessivas empresas, como a DISTRISUPER, a MICROSUPER, Casa das Beiras e STANCE.

Em sede de instrução, admitiu mesmo o arguido que viesse a ser pronunciado por adesão a associação criminosa, como efectivamente aconteceu.

Secundando ainda o Ministério Público junto do tribunal recorrido, cuja posição nesta parte se transcreve por traduzir a exacta ponderação dos direitos em confronto que entendemos justificar, no caso concreto, a compressão do direito do recorrente: '[...] admite-se que, na medida em que a situação económica dos cidadãos é espelhada nas suas contas bancárias, o segredo bancário constitui um corolário da protecção da reserva de vida privada, uma vez que é através das contas bancárias que são processados dados de onde se pode retirar a informação sobre o giro económico do particular, mas onde algumas das vezes se reflectem também dados relacionados com a vida privada' - v. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 602/2005, publicado do Diário da República, 2.ª série, de 21 de Dezembro de 2005, a p. 17 766 e seguintes.

No entanto, conforme se pode retirar das várias soluções que em direito comparado são encontradas para fundamentar o sigilo bancário, 'não se atribui à conservação em segredo de factos conhecidos pelo banqueiro, através do seu exercício profissional, um interesse de ordem pública' - v. a Colectânea de Pareceres da Procuradoria Geral da República, vol. VI, p. 365 e seguintes.

Efectivamente, os interesses individuais de quem recorre aos serviços dos bancos e mesmo os interesses próprios destes na manutenção do segredo bancário, cedem sempre que um forte interesse público se lhes oponha.

O segredo bancário, à semelhança dos demais sigilos profissionais não tem carácter absoluto, sempre se admitindo, com abrangência crescente, a existência de excepções para as situações em que importa salvaguardar interesses públicos ou colectivos - v. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/95, no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Julho de 1995, onde se afirma que 'a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes'.

A Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, surge dessa necessária ponderação entre os interesses públicos, no caso da tutela da sociedade e da economia legítima, contra a actuação das formas mais graves de criminalidade organizada - que passou mesmo por decisões tomadas no Conselho de Ministros das Finanças da União Europeia, designadamente em Outubro de 2000, que passavam pela recomendação da eliminação do segredo bancário perante as formas mais graves de criminalidade.

Correspondendo a esse imperativo da União Europeia, a Assembleia da República veio a encontrar uma solução que, não passando pela eliminação do segredo bancário, procedeu à 'desjurisdicialização' da quebra do sigilo bancário e fiscal.

Tal opção passa pela assunção de não estarmos perante um domínio da intimidade da vida privada, mas sim da 'reserva de uma parte do acervo patrimonial' - conforme expressão utilizada pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão 602/2005, já citado, que admitiu a conformidade à Constituição dos procedimentos administrativos de quebra do sigilo bancário para efeitos fiscais.

Pelo exposto, mostra-se que a tese de Saldanha Sanches, catalogada pretensiosamente pela defesa como politicamente comprometida, se mostra acolhida em sede da jurisprudência constitucional, consagrando-se uma clara diferença e aceitando-se um diferente tratamento entre matérias que se integram numa 'esfera de privacidade', como é o caso do segredo bancário, e as que se integram na 'intimidade da vida privada', caso do sigilo das telecomunicações.

Consequente a tal distinção, claramente se pode concluir que a necessidade de intervenção judicial apenas se justifica quando está em causa a compressão de direitos relacionados com a intimidade da vida privada - apenas se justificando a necessidade de autorização judicial para os casos de buscas domiciliárias, escutas telefónicas e filmagens dos movimentos pessoais, mas já não quando ocorre o seguimento policial de um suspeito, a recolha de dados da sua vida comercial, dos seus manifestos fiscais e mesmo do seu relacionamento com um banco.

A Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, garantindo a necessidade de ponderação de interesses e enquadrando os interesses públicos considerados dominantes, não pode deixar de considerar-se conforme à Constituição e, diremos mesmo, necessária para a afirmação do Estado de direito - v., quanto a essa ponderação, fora do âmbito da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, as decisões proferidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Outubro de 2004 e de 8 de Fevereiro de 2006, respectivamente nos processos n.os 1153/2004-9 e 1071/2006-3, disponíveis no site oficial do ITIJ.

Mesmo para quem não questione que o segredo bancário se mostra abrangido na reserva da intimidade da vida privada e familiar (Acórdão 278/95, do Tribunal de Contas), tem importância compreender que, com vista à ponderação da intromissão nessa reserva e na restrição do direito em causa, não será indiferente a configuração e conceptualização dos interesses concretamente em confronto, uma vez que, não se tratando o segredo bancário de direito absoluto, haverá que realizar uma articulação casuística, e sempre ponderada e harmoniosa, do sigilo bancário com o interesse constitucionalmente protegido da investigação criminal.

Como o Tribunal Constitucional já teve ocasião de decidir, "tal como o sigilo profissional, a reserva do sigilo bancário não tem carácter absoluto, antes se admitindo excepções em situações em que avultam valores e interesses que devem ser reputados como relevantes como, verbi gratia, a salvaguarda dos interesses públicos ou colectivos (cf. o acórdão 278/95, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Julho de 1995, onde se disse que 'o segredo bancário não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Na verdade, a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes')".

Entendemos que a vida privada compreende núcleos distintos, um ligado à essencialidade da reserva da intimidade pessoal, referenciada aos direitos de personalidade que numa perspectiva naturalística exigem uma tutela mais apertada e exigente, a que corresponde a esfera da intimidade pessoal, outro que, ligado embora ao conceito de privacidade, não atinge o conceito de íntimo, havendo ainda quem identifique um que constitui a esfera social.

Mesmo que esta distinção possa merecer algumas reservas o que é certo é que terá algum interesse na apreciação concretizada do nível de importância dos direitos em conflito.

Assim, se quanto à esfera privada e social se admitem maiores compressões já quanto ao primeiro núcleo se mostrará mais reduzido o número de situações que permitirão a sua compressão, por respeitar à referida área de essencialidade dos direitos da personalidade.

É sabido que, por vezes, a realização da justiça, na sua vertente de descoberta da verdade dos factos, exige intromissões na reserva da intimidade ou da privacidade do cidadão.

No caso em apreço perante os indícios que existiam já no processo, embora inicialmente negados pelo arguido, conclui-se que o recurso à recolha da documentação bancária com recurso à quebra do sigilo bancário que perante os concretos interesses em confronto se mostrou justificada e necessária, sendo aliás a mais adequada ao tipo e natureza da actividade ilícita indiciada.

Indiciava-se que o arguido João Henrique Peste Costa tomava parte efectiva na actuação sob a forma organizada de um grupo de indivíduos que assumiram o controlo de diferentes sociedades, que se sucederam no tempo, para, através das mesmas e aproveitando o seu bom-nome comercial, procederem à encomenda de grandes quantidades de mercadorias, entregando para pretenso pagamento cheques e letras emitidas de forma fraudulenta e que nunca seriam pagos, como efectivamente não o foram.

Conforme salienta o Ministério Público para cuja resposta se remete novamente já que condensa de forma exacta e merecedora da nossa concordância o objecto da investigação levada a efeito:

'No cometimento do crime, os arguidos geraram dois circuitos financeiros.

O primeiro, visando criar uma aparência de actuação como um normal operador económico, destinava-se a encenar uma capacidade financeira e o propósito de honrar pagamentos, recorrendo à realização de primeiras encomendas que eram efectivamente pagas, para depois, adquirida a confiança do fornecedor, proceder a novas e sucessivas encomendas, com a emissão de cheques com datas futuras e de letras, mas já com o propósito de as não pagar no final.

O segundo circuito, correspondia ao das receitas obtidas com a venda das mercadorias, que numa perspectiva de normalidade comercial deveria alimentar o supra-referido primeiro circuito, mas que, na realidade, era desviado para o proveito pessoal dos arguidos, que se locupletavam assim, com o produto da venda de mercadorias, sem que estas lhes tivessem implicado qualquer custo.

Dada esta ausência de custo, através do sacrifício dos fornecedores que não recebiam os pagamentos a que tinham direito, permitia aos arguidos praticar preços abaixo dos de mercado, fazendo com que qualquer montante recebido na venda das mercadorias representasse um lucro.

De forma a ocultar tal prática de venda abaixo dos preços de mercado, os arguidos procediam à emissão de facturas por quantias superiores às que efectivamente pretendiam receber, exigindo ainda aos adquirentes/receptadores o pagamento a pronto e, por vezes, em numerário, de forma a facilitar a integração e a disseminação das quantias arrecadadas.

Qualquer destes circuitos financeiros era traduzido em movimentos realizados sobre contas bancárias para as quais os arguidos recorriam a terceiros, 'testas-de-ferro' ou usurpando as respectivas identidades, para figurarem como titulares - caso da conta em nome do Dmytro Andrusyac e em nome da MICROSUPER e de Marco Grácio, que foi pago para permitir a utilização do seu próprio nome.

A informação financeira vertida nos referidos movimentos bancários assume assim uma relevância crucial na reconstituição dos negócios desenvolvidos pelos arguidos, em particular pelo ora recorrente, uma vez que assumiu o essencial da função de arrecadação de receitas e seu encaminhamento para as contas utilizadas pelos outros dirigentes da organização, em particular por Fernando Cardoso.

Nenhuma leitura foi feita nem qualquer documentação foi recolhida que fosse relacionada com a vida ou com as despesas pessoais do arguido João Peste Costa.

O que foi analisado e colocado em evidência foi a actividade comercial desenvolvida pelo arguido, com base em mercadorias obtidas através de burla, permitindo identificar quem eram os seus clientes/receptadores, que montantes efectivamente eram pagos (quase sempre diferentes e inferiores aos que eram feitos constar das facturas, quando não eram as quantidades de mercadorias entregues que eram superiores às constantes das facturas) e qual o destino dos montantes recebidos, permitindo diferenciar entre os movimentos realizados em numerário, por cheque e por transferência, para além dos beneficiários e ordenantes das operações.

O resultado da análise desenvolvida encontra-se traduzido em seis volumes de mapas, tabelas, listas de valores por interveniente e diagramas de circuitos financeiros, num trabalho desenvolvido pelo Departamento de Perícia Financeira e Contabilística da Policia Judiciária, apenso bancário LXVII.

Não se vislumbra de toda essa análise desenvolvida qualquer descoberta de factos relativos à vida privada do arguido João Peste Costa, mas bem se compreende o desespero do mesmo arguido relativamente ao nível de esclarecimento e pormenorização que se conseguiu alcançar relativamente às condutas ilícitas desenvolvidas.

A força e a evidência de uma tal prova, porque baseada em documentos que se limitaram a colocar por ordem e sobre os quais foram realizadas meras operações aritméticas, compromete definitivamente o arguido João Peste Costa, que, de outro modo, pretendia apenas limitar-se a admitir a compra e a venda de mercadorias ao melhor preço possível.

Realce-se ainda, que a procura de informação financeira foi sempre concertada com a prova pessoal que foi sendo recolhida, designadamente junto dos terceiros que serviam para titular as contas utilizadas e dos que eram chamados a fazer depósitos de numerário nas contas dos arguidos, levando assim, à identificação das contas utilizadas.

Mas também a análise da documentação recolhida foi permitindo identificar novas contas relacionadas, quer de origem quer de destino dos fundos ilícitos, sendo evidente que estamos perante uma procura sistemática e rigorosamente dirigida a circuitos de pagamento de mercadorias.

Uma análise bancária séria, como foi a que se pretendeu desenvolver nos autos, não é um exercício de curiosidade mesquinha nem de devassa de hábitos ocultos, sendo um trabalho técnico, estritamente contabilístico, como se fosse uma reconciliação bancária realizada no âmbito de uma auditoria.

Para uma análise assim dirigida, correspondem, como adiante se verá, procedimentos e fases sucessivas de recolha de documentos, que obviamente se ligam e se explicam entre si'.

Pelas razões que levaram à imposição da obtenção da referida prova e pela forma como foi efectuada a sua recolha entendemos que a prova por documentação bancária foi justificadamente recolhida, tendo permitido a descoberta de actividades comerciais que são ilícitas e que, em concreto, se não enquadram na esfera de reserva da intimidade da vida privada em função da qual se mostra erigido o princípio fundamental que tem vindo a ser analisado, uma vez que respeitam ao âmbito da vida patrimonial do cidadão não relacionada com a sua vida privada pessoal mas antes se mostra ligada com a esfera da sua actividade económica, de carácter indiciariamente ilícito, por forma a ter de dar-se prevalência aos interesses da investigação, que são de ordem pública.

Como tal, não são nulas as provas assim obtidas.

3.3 - Também pela mesma ordem de razões haverá que concluir que a solução encontrada pela Lei 5/2002, que não passou pela eliminação do segredo bancário, mas sim pela dispensa da intervenção judicial para a quebra do sigilo bancário e fiscal verificados certos pressupostos, assumindo não se estar perante um domínio da intimidade da vida privada, mas sim da 'reserva de uma parte do acervo patrimonial' conforme expressão utilizada pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão 602/2005 (Diário da República, 2.ª série, 21 de Dezembro de 2005) que admitiu a conformidade à Constituição dos procedimentos administrativos de quebra do sigilo bancário, para efeitos fiscais, tendo-se concluído não haver ofensa de direitos fundamentais do cidadão, nomeadamente o da reserva da sua vida privada.

Aliás, face ao entendimento de que a quebra do sigilo possa soçobrar face a interesses da administração fiscal e perante órgãos dessa mesma administração, por maioria de razão se terá de considerar que possa ser afastado por razões atinentes à investigação criminal.

Não respeitando a matéria do segredo bancário à esfera de reserva da intimidade da vida privada, em função da qual se mostra erigido o referido princípio fundamental a dispensa da intervenção judicial para a sua quebra não ofende a Constituição, não sendo inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002.

A Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, garante a necessidade de ponderação de interesses e enquadramento de interesses públicos considerados dominantes e, nessa estrita medida, não se mostra contrária às normas constitucionais invocadas.

Neste sentido se pronunciou o Prof. Germano Marques da Silva, in Colóquio Internacional de Direito Penal, na Universidade Lusíada, publicação de 7 de Novembro de 2002, que refere tratar-se este de uma questão de hierarquia de interesses a prosseguir e sustenta:

'Não me repugna nada que certos segredos, nomeadamente os atinentes ao exercício da função pública, v. g. fiscais e actividade bancária, cedam perante as necessidades de combate à criminalidade organizada, como não repugna que cedam em geral relativamente ao combate a certos tipos de crime desde que a sua gravidade o justifique (princípio da proporcionalidade).

Não me perturba sequer que a quebra de determinados segredos, como o fiscal e o bancário, possam ser quebrados por simples ordem da autoridade judiciária titular da direcção do processo, em despacho fundamentado, como sucede com a nossa lei, nomeadamente no âmbito do combate à criminalidade organizada e económico-financeira (artigos 2.º e 5.º da Lei 5/2002). Como disse trata-se de uma questão de hierarquia de valores a proteger e muitos dos segredos profissionais não protegem interesses que directamente ou de perto toquem com direitos atinentes à personalidade.

[...] O direito à reserva é importante e pode não ter nada a ver com actividades criminosas por isso deve ser protegido até onde não seja necessário para o combate à criminalidade'.

Tendo o sigilo bancário por preocupação não tanto a protecção da intimidade - que poderá até ser posta em causa pois pode a leitura de dados bancários fornecer elementos susceptíveis de permitir a devassa da vida privada - mas a protecção do sistema económico-financeiro pelo receio de fugas de capitais para paraísos fiscais e, sendo compreensível o cuidado que o legislador tem tido com a referida protecção, não pode exacerbar-se a mesma por forma a que, perante os interesses em confronto, constitua um entrave à investigação da criminalidade organizada, sob pena de se comprometerem interesses públicos de grande relevo."

2 - O recorrente interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:

"1 - O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelas Leis 85/89, de 7 de Setembro, 88/95, de 1 de Setembro e 13-A/98, de 26 de Fevereiro.

2 - Pretende ver-se apreciada a constitucionalidade das seguintes normas:

1.ª A norma do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que as irregularidades do inquérito devem ser arguidas nos três dias seguintes à notificação da acusação, não o podendo ser até ao encerramento do debate instrutório, designadamente no requerimento de abertura de instrução atempadamente apresentado pelo arguido, por se entender que a mesma, interpretada no sentido apontado, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que restringe de forma inadmissível os direitos de defesa do arguido, ou melhor 'implica um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido' (como infra se explicitará);

2.ª A norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, nos termos da qual a quebra do segredo profissional dos membros dos órgãos sociais das instituições de crédito e sociedades financeiras, dos seus empregados e de pessoas que a elas prestem serviço (v. g. o sigilo bancário) 'depende unicamente de ordem da autoridade judiciária titular da direcção do processo, em despacho fundamentado', na medida em que a mesma permite ao Ministério Público, na fase de inquérito de um processo crime, proferir despacho que autorize a quebra de tal segredo - e que, como tal, colide, restringindo-o, com o direito constitucionalmente consagrado da reserva da vida privada (cf. o artigo 26.º, n.º 1, da CRP) - entendendo ser a mesma inconstitucional, por violação do disposto, designadamente no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, o qual reserva à magistratura judicial a prática de todos os actos, que naquela fase processual, contendam directamente com direitos fundamentais.

3 - A inconstitucionalidade das apontadas normas foi suscitada pelo ora recorrente, quer no texto (motivação) quer nas conclusões do recurso que interpôs da decisão instrutória proferida no âmbito do processo de inquérito n.º 547/04.OJDLSB, para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Com efeito:

4 - Ali se alegava ser inconstitucional, por violação, designadamente, do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de conceder apenas três dias ao arguido e seu defensor, a contar da notificação da acusação, para vir arguir irregularidades do inquérito, designadamente a decorrente da inobservância do disposto no artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, por parte do magistrado do Ministério Público, o qual, por despacho não fundamentado, determinara naquela sede a quebra do sigilo bancário (cf. conclusão 25.ª do recurso interposto pelo ora recorrente da decisão instrutória, bem como n.os 3 a 20 da motivação de recurso, e ainda conclusões 18.ª a 25.ª do mesmo recurso).

5 - Nomeadamente quando tal despacho (ou despachos) fora(m) proferido(s) no âmbito de um processo dito 'monstruoso', isto é, um processo ao qual havia sido reconhecida especial complexidade, deduzindo o Ministério Público, no encerramento da fase de inquérito, ao longo de 477 páginas e 2912 artigos, a acusação de fl. 11 902 a 12 379, contra 57 arguidos, imputando-lhes, entre outros, a prática de crimes de fundação e chefia de associação criminosa, burla qualificada, falsificação de documentos, receptação, adesão a associação criminosa, branqueamento de capitais e auxílio material, ali identificando mais de uma centena de alegados lesados e arrolando 215 testemunhas de acusação, comportando tal processo, à data da acusação, 40 volumes a título de autos principais (mais de 13 000 páginas) e ainda cerca de duas centenas de volumes de apensos.

De facto:

6 - Pretender que, em três dias apenas, o arguido consultasse e analisasse devida e exaustivamente todo o processado, nele detectasse eventuais irregularidades - nomeadamente a invalidade do despacho de fl. 2255 e subsequentes de igual teor - e, naquele prazo, as viesse arguir aos autos, mais não é que restringir de forma inadmissível e injustificada o direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, desta forma se limitando, de modo desproporcionado e sem fundamento material, o núcleo essencial daquele mesmo direito.

Na verdade:

8 - É exigência do princípio do Estado de direito um processo equitativo e leal, isto é, um due process of Iaw, o qual, entre nós, encontra consagração expressa no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito:

9 - 'O processo criminal há-de configurar-se como um due process of Iaw, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido' (cf. entre outros, os Acórdãos n.os 337/86, de 30 de Dezembro, 383/97, de 14 de Maio, e 694/2003, de 24 de Março, todos do Tribunal Constitucional, que julgaram inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal).

Por outro lado:

10 - Ali se alegava também ser materialmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa a norma do n.º 2 do artigo 2.º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, na medida em que esta permite ao Ministério Público, na fase de inquérito, proferir despacho que autorize o levantamento do sigilo bancário, uma vez que este despacho colide com, restringindo-os, direitos fundamentais, concretamente o direito constitucionalmente consagrado à reserva da vida privada (cf. o artigo 26.º, n.º 1, da CRP), e, como tal, deveria ser competência exclusiva de um magistrado judicial (cf. a conclusão 38.ª do aludido recurso, bem como os n.os 56 a 66 da motivação do mesmo, e ainda conclusões 34.ª a 43.ª do mesmo recurso).

Com efeito:

11 - Mesmo no âmbito da fase de inquérito, cabe a um juiz - o juiz de instrução - a prática dos actos jurisdicionais.

12 - A saber, a prática de todos os actos que contendam com direitos, liberdades e garantias fundamentais, expressa ou implicitamente consagrados na nossa Constituição.

13 - Daí dizer-se ser o juiz (e não o Ministério Público) o garante dos direitos, liberdades e garantias.

Assim:

14 - Quando permite ao Ministério Público, na fase de inquérito, proferir despacho que autorize o levantamento do sigilo bancário - e, como tal, que colide, designadamente, com o direito constitucionalmente consagrado à reserva da vida privada (cf. o artigo 26.º, n.º 1, da CRP) - viola o n.º 2 do artigo 2.º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, o disposto, designadamente, no n.º 4 do artigo 32.º da CRP, sendo, por isso, tal norma materialmente inconstitucional.

15 - O presente recurso dever ser admitido a subir imediatamente e com efeito suspensivo.

Termos em que se requer a V. E.xa se digne admitir o presente recurso, fixando-lhe o regime de subida e os pertinentes efeitos, seguindo-se os demais termos da lei."

O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:

"1.ª Nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.

2.ª É inconstitucional, por violação, designadamente, do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de conceder ao arguido apenas três dias a contar da notificação da acusação para vir arguir eventuais irregularidades ocorridas na fase de inquérito.

3.ª Interpretação nos termos da qual é extemporânea a arguição de tais irregularidades, quando efectuada no requerimento de abertura de instrução atempadamente apresentado.

4.ª Designadamente quando o Tribunal nem sequer cuida de apurar da efectiva cognoscibilidade de tais irregularidades, no referido prazo de três dias, face às circunstâncias o caso concreto.

Com efeito:

5.ª É exigência do princípio do Estado de direito um processo equitativo e leal, isto é, um due process of Iaw, o qual, entre nós, encontra consagração expressa no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

De facto:

6.ª 'O processo criminal há-de configurar-se como um due process of Iaw, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido' (cf. entre outros, os Acórdãos n.os 337/86, de 30 de Dezembro, 383/97, de 14 de Maio, e 694/2003, de 24 de Março, todos do Tribunal Constitucional, que julgaram inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal).

7.ª Pretender que, em três dias apenas, contados a partir da notificação da acusação, o arguido (por intermédio do seu defensor) consulte e analise, devida e exaustivamente, todo o processado, detecte eventuais irregularidades ocorridas na fase de inquérito e, naquele mesmo prazo, as venha arguir aos autos, mais não é que restringir de forma inadmissível e injustificada o direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, desta forma se limitando, de modo desproporcionado e sem fundamento material, o núcleo essencial daquele mesmo direito.

Por outro lado:

8.ª A Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, fixando, designadamente, um regime especial de quebra do segredo profissional.

9.ª Nos termos do n.º 2 do artigo 2.º desta Lei 5/2002, a quebra daquele segredo profissional dependerá, assim, de ordem da autoridade judiciária titular da direcção do processo, em despacho fundamentado.

Com efeito:

10.ª Tratando-se indiscutivelmente de um acto decisório e, além do mais, de um acto que colide, restringindo-os, com diversos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados (cf. o artigo 26.º, n.º 1, da CRP).

11.ª Deve ser um acto devidamente fundamentado, mediante a indicação dos seus motivos quer de facto quer de direito (cf. o artigo 97.º, n.º 4, do CPP).

12.ª O n.º 2 do artigo 20.º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, prevê, pois, a possibilidade de a quebra do sigilo profissional, v. g. do sigilo bancário, poder ser determinada por despacho fundamentado da autoridade judiciária titular da direcção do processo.

13.ª Interpretada no sentido de que, autoridade judiciária titular da direcção do processo, é, na fase de inquérito de um processo criminal, o Ministério Público, cabendo ao mesmo, nesta fase, legitimidade para proferir aquele despacho, não pode deixar de se entender violar materialmente tal norma o disposto no n.º 4 do artigo 32.º da CRP.

Com efeito:

14.ª Mesmo no âmbito da fase de inquérito, cabe sempre a um juiz - o juiz de instrução - a prática dos actos jurisdicionais, a saber, a prática de todos os actos que contendam com direitos, liberdades e garantias fundamentais, expressa ou implicitamente consagrados na nossa Constituição, sendo o juiz, e não o Ministério Público, o garante dos direitos, liberdades e garantias.

15.ª E este acto - que determina a quebra do sigilo bancário - colide, manifestamente, com direitos, liberdades e garantias fundamentais, designadamente com o direito constitucionalmente consagrado à reserva da vida privada (cf. o artigo 26.º, n.º 1, da CRP).

16.ª Como, aliás, foi já decidido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/95, de 31 de Maio, que acompanhamos, 'a situação económica do cidadão espelhadas na sua conta bancária, incluindo as operações activas e passivas nela registadas, faz parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada condensado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, surgindo o segredo bancário como um instrumento de garantia desse direito'. De facto, numa época histórica caracterizada pela generalização das relações bancárias, em que grande parte dos cidadãos adquire o estatuto de cliente bancário, os elementos em poder dos estabelecimentos bancários, respeitantes designadamente às contas de depósito e seus movimentos e às operações bancárias, cambiais e financeiras, constituem uma dimensão essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada constitucionalmente garantido, 'concluindo, como naquele douto acórdão, que' pode dizer-se, de facto, que, na sociedade moderna, uma conta corrente pode constituir 'a biografia pessoal em números'.

Assim:

17.ª Quando permite ao Ministério Público, na fase de inquérito, proferir despacho que autorize o levantamento do sigilo bancário viola o n.º 2 do artigo 2.º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, o disposto, designadamente, no n.º 4 do artigo 32.º da CRP, sendo, por isso, tal norma materialmente inconstitucional."

O Ministério Público contra alegou concluindo o seguinte:

"1 - Face à especial complexidade do processo, o prazo de três dias contemplado na norma do n.º 1 do artigo 123.º do Código de Processo Penal revela-se demasiado exíguo e desproporcionado, não acautelando um efectivo direito de defesa, o que constitui violação das normas dos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição.

2 - A norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, não é inconstitucional, ao atribuir a competência ao Ministério Público, na fase de inquérito, para autorizar o levantamento do sigilo bancário, em despacho fundamentado.

3 - Termos em que, apenas, parcialmente deverá proceder o presente recurso."

A recorrida Petróleos de Portugal - PETROGAL, S. A., contra alegou, concluindo o seguinte:

"1) O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional reaprecie a decisão desfavorável proferida pelas instâncias quanto à sua arguição de nulidade de uma série de despachos proferidos pelo Ministério Público durante a fase de inquérito, que determinaram a quebra do sigilo bancário e consequentemente a produção de prova que se revelou da maior importância para a descoberta da verdade e que lhe é claramente desfavorável, só que essa sua pretensão extravasa claramente a competência deste Tribunal (cf. o artigo 6.º, a contrario, da LTC), pelo que não poderá ser atendida;

2) O n.º 2 do artigo 2.º da Lei 5/2002 limita-se a afirmar a necessidade de fundamentação da decisão que determine a quebra do sigilo bancário, e não os termos ou critérios de avaliação da suficiência ou insuficiência dessa fundamentação, que são os mesmos de qualquer outra decisão processual penal, razão pela qual não poderá o referido normativo ser declarado inconstitucional por suposta violação de normas constitucionais respeitantes a uma matéria sobre a qual não incide;

3) De resto, o despacho de fls. 2255 dos autos está devidamente fundamentado, não existindo por isso qualquer violação do disposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e sendo evidentes no caso dos autos a pertinência do recurso a informações bancárias e a relevância deste meio de prova para a descoberta da verdade material;

4) A doutrina fiscalista (aliás, citada na douta decisão instrutória e nas próprias alegações do recorrente) e a jurisprudência mais recentes têm sustentado o contrário, ou seja, que o sigilo fiscal não se confunde, não integra e não defende a reserva da intimidade da vida privada;

5) Seria anacrónico admitir que a administração tributária goza de acesso directo aos documentos bancários dos contribuintes (cf. o artigo 63.º-B da Lei Geral Tributária) para efeitos meramente fiscais, mas que tal faculdade estaria vedada ao Ministério Público para efeitos de investigação e perseguição de actividades criminais organizadas;

6) O recorrente não foi minimamente prejudicado, designadamente em sede de reserva da intimidade da vida privada, pela actuação do Ministério Público, e a alegação de violação da referida reserva de intimidade é apenas e só uma tentativa de inutilização processual das provas obtidas pela investigação;

7) Os direitos de personalidade, categoria em que se integram a generalidade dos direitos, liberdades e garantias, e assim também o direito à reserva da intimidade da vida privada, existem para e têm como finalidade a protecção da personalidade dos indivíduos, e não para facilitar, ocultar e muito menos proteger a sua degradação, revelada designadamente na prática de crimes, os mais graves, censuráveis e anti-sociais dos actos;

8) Por estas razões, não foi violado, por não ser aplicável ao caso dos autos, o artigo 26.º, n.º 1, da CRP, e consequentemente não foi também violado o artigo 32.º, n.º 4, do mesmo diploma;

9) Ao contrário do que tendenciosamente alega o recorrente, o M.mº Juiz de Instrução Criminal nunca reconheceu, sequer implicitamente, a invalidade do despacho da fl. 2255;

10) A irregularidade processual é sanável por natureza e precisamente em função da sua diminuta gravidade, e de nada teria valido ao recorrente a prolação, pelo Ministério Público, de novo(s) despacho(s) ordenando (mais) fundamentadamente a quebra do sigilo bancário, pois as entidades bancárias visadas teriam fornecido aos autos precisamente a mesma informação que, actualmente, neles consta;

11) Não houve, pois, qualquer violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, na forma como foram interpretados e aplicados os artigos 120.º, n.º 2, e 123.º, ambos do CPP."

Os demais recorridos não contra alegaram.

3 - Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação. - 4 - O recorrente submete nos presentes autos de fiscalização concreta de constitucionalidade à apreciação do Tribunal Constitucional duas questões de constitucionalidade normativa.

A primeira tem por objecto uma dada interpretação do artigo 123.º do Código de Processo Penal. A segunda tem por objecto a norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro.

5 - A norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal consagra o prazo de três dias a contar da notificação da acusação para o arguido arguir irregularidades ocorridas no inquérito.

O arguido sustenta que a norma que consagra tal prazo no âmbito de processos de especial complexidade é inconstitucional, por violação de garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).

Nos presentes autos, o arguido foi notificado da acusação em 17 de Janeiro de 2006 e arguiu nulidades no requerimento de abertura da instrução, apresentado em 1 de Março de 2006.

Ao processo foi reconhecida especial complexidade.

A acusação deduzida contra 57 arguidos tem 477 páginas, estando identificados mais de uma centena de alegados lesados e arroladas 215 testemunhas de acusação.

A prova documental está contida em número elevado de apensos.

A questão que importa então apreciar tem por objecto a norma segundo a qual, num processo especialmente complexo, o arguido dispõe de três dias para arguir irregularidades de actos de inquérito.

6 - O n.º 1 do artigo 32.º da Constituição determina que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa.

Do ponto de vista substancial, o princípio consagrado implica a concessão de uma efectiva possibilidade de exercício da defesa (o poder de arguir vícios dos actos praticados no inquérito é inquestionavelmente um direito de defesa), o que pressupõe naturalmente o acesso à informação necessária, ou seja, aos elementos do processo. Tal acesso e a aquisição da informação inerente consomem tempo, variando, naturalmente, a quantidade de tempo em função da dimensão material e da complexidade do processo.

O artigo 123.º do Código de Processo Penal estabelece um prazo de três dias para a arguição de nulidades, concretizando o princípio da celeridade processual.

No entanto, como entendeu o Tribunal Constitucional no Acórdão 406/98 (www.tribunalconstitucional.pt), o princípio da celeridade processual não se sobrepõe ao núcleo essencial das garantias de defesa. De resto, nesse acórdão, o Tribunal julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, o artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na versão anterior ao Decreto-Lei 317/95, de 27 de Novembro, na medida em que fixava em cinco dias, contados da notificação da acusação, o prazo para o arguido requerer a abertura da instrução, com o fundamento de tal prazo, dada a sua exiguidade, não permitir à defesa a gestão da sua estratégia e das correspondentes iniciativas.

Cabe salientar, neste contexto, que o Código de Processo Penal determina a elevação dos prazos de duração máxima de prisão preventiva nos casos em que é declarada a especial complexidade do processo (artigo 215.º, n.º 3), reconhecendo a necessidade de diferenciar os processos em função da respectiva complexidade.

Ora, o prazo de três dias a contar da notificação da acusação para arguição de vícios dos actos praticados no inquérito em casos de especial complexidade pode afigurar-se insuficiente, já que se repercute, em princípio, nas possibilidades de identificação desses vícios e, consequentemente, no exercício dos direitos de defesa. Na verdade, o reconhecimento da especial complexidade de um processo repercutir-se-á, não só no tempo disponível para a investigação, mas também no tempo para a defesa exercer os seus direitos de defesa.

Por outro lado, se é certo que haverá irregularidades cuja natureza as tornará questão de fácil e imediata identificação, em outros casos, em processos de especial complexidade, essa complexidade afectará, necessariamente, a avaliação pela defesa de certas irregularidades (recorde-se que estava em causa a arguição de irregularidades de actos de inquérito e que a acusação deduzida contra 57 arguidos tinha 477 páginas com mais de uma centena de alegados lesados e 215 testemunhas de acusação arroladas, podendo a irregularidade repercutir-se na acusação). Deste modo, conjugando a especial complexidade do processo com a natureza da irregularidade em causa, haverá obviamente situações em que o prazo de três dias para arguir a irregularidade é objectivamente exíguo. Ora, não contemplando a lei qualquer possibilidade de alargamento do prazo em atenção às circunstâncias de objectiva inexigibilidade, de acordo com a complexidade do processo e a natureza da irregularidade, entende o Tribunal que a norma em crise é inconstitucional por afectar, nessa medida, as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).

7 - O recorrente impugna, por outro lado, a norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro.

Tal norma permite que o Ministério Público, na fase de inquérito, determine, em despacho fundamentado, o levantamento do segredo bancário.

O recorrente sustenta que tal acto consubstancia um acto jurisdicional, pelo que só poderia ser praticado por um juiz. Invoca a reserva da vida privada, assim como a fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/95 (www.tribunalconstitucional.pt).

Em primeiro lugar, cabe sublinhar que no Acórdão 278/95 o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional uma norma que permitia à administração fiscal o acesso a informações bancárias. Nos presentes autos, porém, a situação é diversa. Com efeito, não está agora em causa o acesso a informações bancárias por parte da administração fiscal, mas antes por decisão do Ministério Público.

Na verdade, o Ministério Público constitui uma magistratura com um estatuto próprio e autonomia, à qual cabe exercer, entre outras competências, a acção penal de acordo com critérios de legalidade e de objectividade (cf. os artigos 219.º da Constituição e 53.º do Código de Processo Penal).

É verdade que o Código de Processo Penal confere ao juiz de instrução criminal a competência para a prática de determinados actos particularmente lesivos ou restritivos de direitos fundamentais (cf. os artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal). Com efeito, a aplicação de uma medida de coacção, a realização de buscas em escritório de advogado ou a realização de buscas domiciliárias ou de intercepções de conversas telefónicas (apenas para apresentar alguns exemplos) competem ao juiz ou têm de ser autorizadas por ele.

Porém, nos presentes autos está em causa o sigilo bancário. E os crimes investigados no processo pretexto são os da fundação e chefia de associação criminosa, burla qualificada, falsificação de documentação, receptação, adesão a associação criminosa e branqueamento de capitais.

O âmbito da privacidade atingido pelo levantamento do sigilo bancário não é equiparável à liberdade pessoal (afectada com a aplicação de medidas de coacção) ou ao núcleo da reserva de privacidade que é afectado com uma escuta telefónica ou com uma busca domiciliária. O segredo bancário não é abrangido pela tutela constitucional da reserva da intimidade da vida privada nos mesmos termos de outras áreas da vida pessoal (cf., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 607/2003, em que foram tomadas em consideração diferenciações em função da esfera da privacidade em causa - www.tribunalconstitucional.pt). Seja como for, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 602/2005 (www.tribunalconstitucional.pt) salientou-se que o segredo bancário não é um direito absoluto, podendo sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Em face disto, o Tribunal Constitucional entende o seguinte:

Em primeiro lugar, o levantamento do sigilo bancário é instrumento especialmente relevante em matéria de criminalidade económica; por outro lado, abrange uma dimensão da vida do investigado diversa daquela que reclama necessariamente do ponto de vista constitucional a intervenção do juiz (refira-se, como lugar paralelo, ainda que distante e com fundamentos próprios, que a propriedade de bens imóveis e de alguns móveis está sujeita à publicidade registal); ponderando-se ainda que o Ministério Público é uma entidade com poderes de controlo da investigação, com a função de representante da legalidade democrática, e que a actuação do Ministério Público sempre poderá ser, se tal for requerido, sindicada pelo juiz de instrução criminal, conclui-se que a garantia constitucional não se revela insuficiente para a tutela dos direitos afectados.

III - Decisão. - 8 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de consagrar o prazo de três dias para arguir irregularidades contados da notificação da acusação em processos de especial complexidade e grande dimensão, sem atender à natureza da irregularidade e à objectiva inexigibilidade da respectiva arguição;

b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, na medida em que permite ao Ministério Público, na fase de inquérito, determinar o levantamento de sigilo bancário;

c) Conceder provimento parcial ao recurso, revogando a decisão recorrida no que se refere ao juízo constante da alínea a).

Lisboa, 23 de Janeiro de 2007. - Maria Fernanda Palma - Benjamim Rodrigues - Paulo Mota Pinto (com a declaração de voto que junto) - Mário José de Araújo Torres [vencido quanto à decisão constante da alínea a) do n.º 8, pelas razões constantes da declaração de voto junta] - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Votei o julgamento de inconstitucionalidade contido na alínea a) da presente decisão apenas por entender que, num processo de especial complexidade como o presente (com acusação deduzida contra 57 arguidos com quase cinco centenas de páginas, mais de 100 alegados lesados e de duas centenas de testemunhas de acusação), um prazo de três dias a contar da notificação da acusação é excessivamente exíguo para a análise dessa acusação e arguição de irregularidades de actos de inquérito, assim violando a norma em causa o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Mas entendo que a situação é diversa da que estava em questão no Acórdão 406/98 (citado na fundamentação e em que também votei vencido), relativa apenas ao requerimento para abertura da instrução, que não carecia de ser motivado ou de ser logo acompanhado do requerimento de todos os actos de instrução reputados necessários. - Paulo Mota Pinto.

Declaração de voto

Votei vencido quanto à decisão contida na alínea b) do n.º 8 do precedente acórdão - juízo de inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), da norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal (CPP), interpretada no sentido de consagrar o prazo de três dias para arguir irregularidades, contado da notificação da acusação, em processos de especial complexidade e grande dimensões, sem atender à natureza da irregularidade e à objectiva inexigibilidade da respectiva arguição - pelas razões a seguir sumariamente indicadas:

1 - A regra, contida no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, de que as irregularidades processuais devem ser arguidas nos três dias seguintes a contar daquele em que o interessado tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em qualquer acto nele praticado tem de ser apreciada, não isoladamente, mas enquadrada no sistema legal em que se insere. Ora, este sistema contém uma "válvula de segurança", que, se tivesse sido adequadamente utilizada pelo recorrente - como lhe cumpria se actuasse diligentemente -, era suficiente para salvaguardar os seus direitos de defesa. Refiro-me à faculdade de o recorrente, logo que tivesse detectado a irregularidade em causa neste recurso (falta de fundamentação dos despachos do Ministério Público que determinaram a quebra do segredo bancário), a vir arguir no processo, invocando justo impedimento (resultante de o volume e complexidade do processo ter impossibilitado que se apercebesse dessa nulidade em data anterior) de respeito pelo referido prazo de três dias, como o permite o artigo 107.º, n.º 2, do CPP.

Neste contexto, entendendo que o artigo 107.º, n.º 2, do CPP consente ao arguido arguir nulidades processuais para além dos três dias estabelecidos, como regra, no artigo 123.º, n.º 1, bastando para tanto que invoque e prove a existência de justo impedimento no escrupuloso cumprimento desse prazo (impedimento que pode consistir justamente na impossibilidade física de conhecimento, nesse prazo, das vicissitudes relevantes de processos volumosos e ou complexos), não daria por verificada a inconstitucionalidade por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

2 - Mas mesmo que assim se não entendesse - isto é, mesmo que se entendesse que, não tendo a decisão recorrida ponderado sequer a possibilidade de convocação do artigo 107.º, n.º 2, do CPP, a questão de inconstitucionalidade a apreciar se cingia à norma do artigo 123.º, n.º 1, do mesmo diploma -, considero que, no caso, o carácter instrumental do recurso de constitucionalidade justificaria uma decisão de não conhecimento do recurso, por inutilidade nesse conhecimento.

Há que ter sempre presente que estamos em sede de fiscalização concreta - e não de fiscalização abstracta - da constitucionalidade, o que implica se dê a devida relevância às circunstâncias do caso concreto. Não se trata, pois, de saber se, em termos gerais e abstractos, o prazo de três dias para arguir irregularidades processuais é de reputar razoável para todos os tipos de processos, incluindo os de natureza complexa. Do que se trata é de apurar se, no presente caso, esse prazo será adequado, tendo em conta, por um lado, as características do processo em causa, e, por outro - aspecto que se me afigura essencial - a específica irregularidade que se pretendeu arguir: a da falta de fundamentação dos despachos do Ministério Público a determinar a quebra do segredo bancário.

Ora, aceitando ser exíguo o prazo de três dias, daí não se pode fazer derivar o entendimento de que a irregularidade poderia ser arguida sem prazo, a todo o tempo. Neste contexto, considero manifestamente insustentável que se considere ajustado ou necessário um prazo de 43 dias (que foi o utilizado pelo recorrente, que, notificado da acusação em 17 de Janeiro de 2006, só arguiu a nulidade em 1 de Março de 2006), sendo de salientar que, diversamente do caso sobre que recaiu o Acórdão 406/98, a elaboração de um requerimento de arguição de nulidade do tipo da ora em causa é tarefa bem menos complexa do que a elaboração de requerimento de abertura de instrução.

É certo que da prolação do juízo de inconstitucionalidade constante do precedente acórdão não se segue necessariamente a admissão, pelo tribunal recorrido, da tempestividade da arguição de irregularidade. Caberá, na perspectiva da posição que fez vencimento, ao tribunal recorrido decidir se, sendo insuficiente o prazo de 3 dias, não será de reputar excessivo o prazo de 43 dias.

No entanto, a meu ver, sendo, como considero que é, manifestamente excessivo este último prazo, cabia nos poderes do Tribunal Constitucional, com base na natureza instrumental do recurso de constitucionalidade (que justifica que dele só se tome conhecimento quando o eventual provimento do recurso se mostre susceptível de se repercutir no sentido da decisão recorrida), constatando que o juízo de inconstitucionalidade reportado ao prazo de 3 dias nunca poderia conduzir ao reconhecimento da tempestividade de arguição entregue 43 dias depois do início da contagem do prazo, decidir, desde já, não tomar conhecimento, por inutilidade, desta parte do recurso (cf. o Acórdão 155/2003, em que se considerou não haver interesse em apreciar a existência de fundamento para a eventual prolação de juízo de inconstitucionalidade relativamente ao prazo de apresentação de pedido de revisão de pensões por acidentes de trabalho fixadas na menoridade do sinistrado, por se reconhecer que esse juízo jamais poderia ter o alcance de fazer dilatar esse prazo até à idade - no caso, 39 anos - em que o recorrente efectivamente formulou esse pedido). - Mário José de Araújo Torres.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1565730.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1989-09-07 - Lei 85/89 - Assembleia da República

    Introduz alterações à Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1995-09-01 - Lei 88/95 - Assembleia da República

    ALTERA A LEI 28/82, DE 15 DE NOVEMBRO, QUE APROVA A LEI ORGÂNICA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (NA REDACÇÃO CONFERIDA PELAS LEIS 143/85, DE 26 DE NOVEMBRO E 85/89, DE 7 DE SETEMBRO) NO ATINENTE AS CONTAS DOS PARTIDOS, AS DECLARAÇÕES DE TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS, AO RECURSO DE APLICAÇÃO DE COIMAS, A APLICAÇÃO DE COIMAS EM MATÉRIA DE CONTAS DOS PARTIDOS POLÍTICOS, A NAO APRESENTAÇÃO DAS CITADAS CONTAS, ASSIM COMO NO QUE SE REFERE AOS PROCESSOS RELATIVOS A DECLARAÇÕES DE RENDIMENTOS E PATRIMÓNIO DOS TITULARES (...)

  • Tem documento Em vigor 1995-11-28 - Decreto-Lei 317/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2002-01-11 - Lei 5/2002 - Assembleia da República

    Estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira e altera a Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, bem como o Decreto-Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro.

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