1 - Fernando António Bento, identificado no processo, interpõe recurso para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação do Porto (processo 3165/2004, 4.ª Secção) que, confirmando decisão do tribunal de Bragança, «julgou inaplicável o n.º 6 do artigo 698.º do CPC, ao prazo fixado no n.º 1 do artigo 411.º do CPP, quando o recorrente tenha impugnado a matéria de facto, pretendendo a sua reapreciação».
Como sobre a mesma questão foi proferido, entre outros, o acórdão do STJ de 27 de Novembro de 2002, publicado em Colectânea de Jurisprudência - Supremo Tribunal de Justiça, ano X (2002), t. III, a pp. 236 e seguintes, o qual, no domínio da mesma legislação, «proferiu decisão assente em solução oposta à do acórdão recorrido», o recorrente pede que o recurso seja admitido e, após decisão em conferência que conclua pela oposição de julgados, seja julgado procedente, com a revogação do acórdão recorrido, fixando-se jurisprudência no sentido de que «é aplicável em processo penal o disposto no artigo 698.º, n.º 6, do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP, no que respeita ao alargamento do prazo de recurso, se o recorrente pretende impugnar a matéria de facto, solicitando a reapreciação da prova».
2 - Remetido o processo ao Supremo Tribunal, a Secção, em conferência, pronunciou-se no sentido da existência de oposição de julgados, determinando o prosseguimento do recurso.
3 - Foram apresentadas alegações pelo Ministério Público e pelo recorrente.
A Exma. Magistrada do Ministério Público considera que o acórdão recorrido deverá ser mantido e que o conflito que se suscita há-de resolver-se no sentido em que este acórdão decidiu, propondo, para o efeito, que a jurisprudência seja fixada pelo seguinte modo:
«Quando o recurso tiver por objecto a reapreciação da matéria de facto e a prova tiver sido gravada, ao prazo previsto no n.º 1 do artigo 411.º do Código de Processo Penal não acresce o prazo referido no artigo 698.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, por este não se lhe aplicar subsidiariamente.» O recorrente, por seu lado, faz terminar a alegação com a formulação das seguintes conclusões:
«1.ª Quando, em processo penal, o recorrente tenha impugnado a matéria de facto, ao prazo previsto no artigo 411.º, n.º 1, do CPP acresce o prazo de 10 dias previsto no artigo 698.º, n.º 6, do CPC, aplicável por força do artigo 4.º do CPP;
2.ª 'O direito ao recurso, corporizando-se como um dos elementos das garantias fundamentais da defesa, não só pressupõe como mesmo reclama que o recorrente disponha não apenas dos elementos indispensáveis à própria decisão de recorrer ou não mas ainda daqueles dados e elementos necessários à elaboração e apresentação da própria motivação, aliás simultânea em processo penal', como seja a disponibilidade de tempo para audição e análise das cópias das gravações, para a respectiva transcrição e para a referenciação dos concretos elementos de prova que fundamentem decisão diversa da impugnada;
3.ª A impugnação da matéria de facto em processo penal determina e envolve todo um particular e muito especial circunstancialismo, a requerer e a exigir consequentemente a devida atenção, face ao ónus da especificação prevenido nos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, com implicações e consequências decisivas, situação 'que de modo nenhum foi contemplada nem prevenida nas alterações introduzidas pela Lei 59/98';
4.ª 'No nosso actual sistema processual penal, a consideração única do prazo geral de 15 dias para interposição do recurso não satisfaz as referidas exigências, decorrentes desse sistema, no caso específico de o recurso poder ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto envolvendo a reapreciação de prova gravada.';
5.ª Já a aplicação do artigo 698.º, n.º 6, do CPC, por força do artigo 4.º do CPP, 'se harmoniza com a natureza e as regras do processo penal referentes ao recurso tendo como objecto a impugnação da matéria de facto com base em elementos decorrentes da gravação das declarações prestadas em audiência';
6.ª Inexiste norma no processo penal que directamente ou por analogia possa regular o caso, o que legitima o recurso à citada norma processual civil, por remissão do artigo 4.º do CPP;
7.ª A verificada oposição de julgados deve ser resolvida no sentido propugnado pelo acórdão fundamento, fixando-se, em consequência, jurisprudência que determine que 'é aplicável em processo penal o disposto no artigo 698.º, n.º 6, do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP, no que respeita ao alargamento do prazo de recurso, se o recorrente pretende impugnar a matéria de facto, solicitando a reapreciação da prova';
8.ª Foram violados os artigos 698.º, n.º 6, do CPC e 4.º do CPP.» Termina, pedindo que o recurso seja julgado procedente, fixando-se jurisprudência no sentido de que «é aplicável em processo penal o disposto no artigo 698.º, n.º 6, do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP, no que respeita ao alargamento do prazo de recurso, se o recorrente pretende impugnar a matéria de facto, solicitando a reapreciação da prova».
4 - Colhidos os vistos, nos termos determinados pelo artigo 442.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), cumpre apreciar e decidir.
Tal como foi verificado pela Secção, o acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidiram de modo divergente a mesma questão de direito.
O acórdão recorrido, com efeito, invocando expressamente a discordância com jurisprudência anterior do Supremo Tribunal, julgou inaplicável em processo penal a norma do n.º 6 do artigo 698.º do Código de Processo Civil (CPC), que estabelece que, no caso de o recurso ter como objecto a reapreciação da matéria de facto, o prazo de interposição é acrescido de 10 dias.
Por seu lado, o acórdão invocado como fundamento, considerando que existia uma lacuna no que respeita à regulação do prazo de recurso em processo penal quando o recorrente pretenda a reapreciação da matéria de facto e haja prova gravada, resolveu idêntica situação aplicando ao processo penal a referida norma de processo civil por força do disposto no artigo 4.º do CPP.
As decisões invocadas são, pois, contraditórias sobre a decisão da mesma questão de direito, tendo sido proferidas no domínio da mesma legislação.
Existe, assim, tal como decidiu a Secção, oposição de julgados.
5 - O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respectivos prazos de interposição, está construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.
O regime de recursos em processo penal, tributário e dependente do recurso em processo civil no Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29), autonomizou-se com o Código de Processo Penal de 1987 (CPP/87), constituindo actualmente um regime próprio e privativo do processo penal, tanto nas modalidades de recursos como no modo e prazos de interposição, cognição do tribunal de recurso, composição do tribunal e forma de julgamento.
No CPP/29, o recurso em processo penal seguia a forma do processo civil, sendo processado e julgado como o agravo de petição em matéria cível (artigo 649.º do CPP/29); não existia, então, como regra, regulamentação própria e autónoma, privativa do processo penal.
A autonomização do modelo de recursos constituiu mesmo um dos momentos de reordenamento do processo penal no CPP/87. A lei de autorização legislativa (Lei 43/86, de 26 de Setembro), que concedeu autorização para a aprovação de um novo Código de Processo Penal, definiu expressamente como objectivo a construção de um modelo, que se pretendia completo, desde a concepção das fases do processo até aos termos processuais da reapreciação das decisões na concretização da exigência - que é de natureza processual penal no plano dos direitos fundamentais - de um duplo grau de jurisdição. A lei consagrou imposições determinantes no que respeitava ao regime de recursos, apontando para uma perspectiva autónoma e para uma regulação completa.
Os pontos 70 a 75 do n.º 2 do artigo 2.º da lei de autorização (sentido e extensão), referidos especificamente às orientações fundamentais em matéria de recursos, impunham, decisivamente, a construção de um modelo com autonomia, desligado da tradição da referência aos recursos em processo civil.
Por seu lado, a nota preambular do CPP/87, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, qualifica o regime de recursos como «inovador», estabelecido na perspectiva da obtenção de um amplo efeito («potenciar a economia processual numa óptica de celeridade e eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico»), assim autonomizado como modelo próprio para realizar finalidades específicas do processo penal.
A intenção e a autonomia do modelo mantêm-se após a reformulação do regime de recursos na reforma de 1998 (Lei 58/98, de 25 de Agosto), a formulação reguladora das diversas modulações nos recursos (tribunal singular, tribunal colectivo e tribunal do júri; matéria de facto e matéria de direito; tribunais da relação e Supremo Tribunal de Justiça; oralidade e audiência no tribunal de recurso) continua a constituir um sistema com regras próprias e específicas do processo penal (cf. a exposição de motivos da proposta de lei 157/VII, n.os 15 e 16).
A autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recursos de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipóteses que prevê.
Não obstante alguma proximidade ou «analogia semântica» nos nomina de designação entre as categorias de recursos (uma «civilprocessualização» do recurso em processo penal, como refere Damião da Cunha, in Caso Julgado Parcial, 2002, a pp. 528 e 529), a similitude não se verifica, no rigor das coisas, no plano da regulamentação e no modo operativo; nem o recurso em processo penal para o Tribunal da Relação constituiu uma apelação em processo civil, como o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça constitui, mais que um recurso de revista (revision), uma espécie autónoma de revista (revista alargada) em que o poder de cognição se estende a importantes domínios atinentes ao complexo material ainda pertencente ao âmbito - alargado - da matéria de facto.
6 - O recurso em processo penal deve ser motivado e interposto no prazo de 15 dias a contar da notificação da decisão ou do depósito da sentença na secretaria - artigo 411.º, n.º 1, do CPP.
O requerimento de interposição deve, pois, por regra, conter a motivação («o requerimento de interposição do recurso é sempre motivado» - artigo 411.º, n.º 2, do CPP) e a motivação deve enunciar especificadamente os fundamentos do recurso, terminando com a formulação de conclusões, «por artigos», em que o recorrente «resume as razões do pedido» - artigo 412.º, n.º 1, do CPP.
Para além de resumir as razões do pedido, as conclusões da motivação devem respeitar as exigências do n.º 2 (quando versem sobre matéria de direito) e do n.º 3 (quando seja impugnada a decisão proferida em matéria de facto) do artigo 412.º do CPP.
As exigências que a lei impõe para as conclusões (com a consequência, quando faltem e não sejam devidamente completadas, da rejeição do recurso) estão predeterminadas à finalidade de prevenir o uso injustificado do recurso, pela identificação, precisa, dos pontos de discordância e das razões da discordância, e assim delimitando o objecto de recurso e os termos da cognição do tribunal de recurso, tudo na perspectiva do uso racional e justificado do meio e não como procedimento dilatório. As referidas imposições, só aparentemente formais, destinam-se também a permitir a fluidez da decisão do recurso, contribuindo para a celeridade do processo penal na realização dos fins de interesse público a que está determinado.
E é esta também a função dos prazos fixados para a interposição do recurso:
15 dias, na coordenação razoável entre as necessidades de ponderação e de elaboração dos interessados relativamente ao uso do direito e a fluidez do curso do processo para a obtenção da decisão em tempo adequado.
Aliás, em processo penal, a motivação constitui (ou deveria constituir quando bem compreendido o sistema) tão-só a enunciação dos fundamentos do recurso com a função de delimitar o respectivo objecto, podendo os recorrentes desenvolver a fundamentação nas alegações, por regra a produzir oralmente na audiência no tribunal de recurso - artigos 411.º, n.º 4, e 423.º do CPP.
7 - No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, o recorrente deve especificar nas conclusões os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas - artigo 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), do CPP.
Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o n.º 4 do artigo 412.º, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Esta disposição, que descreve um iter procedimental para quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, separa inteiramente dois momentos, partindo do pressuposto e da função da gravação da prova e dos respectivos suportes técnicos e da função e finalidade da transcrição das provas gravadas.
A gravação da prova, enquanto meio que permite a constituição de uma base para a reapreciação da decisão em matéria de facto pelo tribunal de recurso, obedece a modos regulamentados de execução constantes dos artigos 3.º a 9.º do Decreto-Lei 39/95, de 15 de Fevereiro.
Dos procedimentos regulados quanto ao modo como se efectua a gravação resulta que os suportes técnicos (fitas magnéticas ou outros suportes contendo a gravação) devem ser colocados pelo tribunal à disposição das partes no prazo máximo de oito dias a contar da respectiva diligência.
Deste modo, é a tais suportes técnicos (fitas gravadas ou outros) que a lei se refere no artigo 412.º, n.º 4, do CPP, e não a quaisquer transcrições da prova gravada; a especificação das provas que no entender do recorrente impõem decisão diversa e das provas que devem ser renovadas não é feita por referência à transcrição, mas por referência aos suportes técnicos donde consta a gravação das provas.
E como decorre da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após tal identificação e na estrita medida da referência feita é que se procederá à transcrição do que for relevante - não transcrição de toda a prova, mas apenas dos elementos que sejam previamente identificados e referidos pelo recorrente no cumprimento do ónus de especificação que lhe impõe a referida norma do artigo 412.º, n.º 4, do CPP.
A transcrição é um acto posterior que incumbe ao tribunal efectuar (cf. o Acórdão, de fixação de jurisprudência, n.º 2/2003, de 16 de Janeiro, in Diário da República, 1.ª série-A, de 30 de Janeiro de 2003), nos termos e na medida delimitada previamente pelo recorrente, e destina-se a permitir (rectius, a facilitar) ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada.
Mas, sendo assim, a oneração ou tarefa complementar (e posterior) da transcrição rigorosamente nada tem que ver com o prazo de recurso; é-lhe posterior e pressupõe mesmo que esteja definido o objecto do recurso na motivação, e consequentemente interposto o recurso em devido tempo.
Esta interpretação, que resulta da simples descrição das sequências procedimentais, é inteiramente compatível com o respeito pelas exigências impostas pelo respeito dos prazos do recurso.
Com efeito, como dispõe o artigo 7.º do Decreto-Lei 39/95, de 15 de Fevereiro, o tribunal facultará cópia das gravações, devendo o mandatário, com a solicitação da cópia, fornecer as fitas magnéticas necessárias; a resposta do tribunal, no prazo máximo que a lei impõe (oito dias), harmoniza-se por modo adequado com o exercício do direito ao recurso nos prazos fixados, sendo que, em caso de demora na disponibilidade das cópias, o interessado sempre disporá da faculdade de invocar justo impedimento. No rigor das coisas, os elementos necessários à impugnação da matéria de facto - suportes materiais da prova gravada - podem estar à disposição do recorrente desde o início do prazo para a interposição do recurso.
E semelhante interpretação tem caução de constitucionalidade (cf., por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 542/2004, de 15 de Julho, processo 609/04).
8 - No complexo argumentativo que suporta as decisões em oposição, a divergência assinalada reverte, exclusivamente, a um módulo central que se situa no diferente entendimento quanto à suficiência da regulação do recurso, em processo penal, quando seja impugnada decisão em matéria de facto e as provas tenham sido gravadas.
Enquanto o acórdão recorrido assenta a solução na suficiência do regime do processo penal, o acórdão fundamento considera-o incompleto, vendo uma lacuna na circunstância de não existir norma semelhante à do processo civil, aplicando, consequentemente, o artigo 686.º, n.º 6, do CPC, por vocação das regra de integração de lacunas constantes do artigo 4.º do CPP.
Na ordem jurídica surgem, com efeito e inevitavelmente, lacunas, por mais esclarecido, diligente e hábil que seja o legislador. As relações da vida social merecedoras de tutela jurídica não são, por vezes, completamente reguladas;
para lá das situações directamente disciplinadas, há, ou podem existir, outras não regulamentadas e que todavia merecem também a protecção do direito.
A determinação do que seja uma lacuna da lei é, porém, como pondera Karl Larenz (cf. Metodologia da Ciência do Direito, trad. da 5.ª ed., rev., Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 448 e segs.), tarefa plena de dificuldades.
«Poderia pensar-se que existe uma 'lacuna da lei' só e sempre que a lei - entendida esta [...] como uma expressão abreviada da totalidade das regras jurídicas susceptíveis de aplicação - não contenha regra alguma para determinada configuração do caso, quando 'se mantém em silêncio'. Mas existe também um 'silêncio eloquente' da lei [...] 'Lacuna' e 'silêncio da lei' não são pura e simplesmente o mesmo.
O termo 'lacuna' faz referência a um carácter incompleto. Só se pode falar de lacunas de uma lei quando esta aspira a uma regulação completa em certa medida para um determinado sector [...] Na maioria dos casos em que se fala de uma lacuna da lei não está incompleta uma norma jurídica particular, mas uma determinada regulação em conjunto: esta não contém nenhuma regra para certa questão que, segundo a intenção reguladora subjacente, precisa de uma regulação. A estas lacunas [...] qualificamo-las de 'lacunas de regulação'.
Não se trata de aqui a lei, se se quiser aplicar sem uma complementação, não possibilite uma resposta em absoluto; a resposta teria de ser que justamente a questão não está regulada e que, por isso, a situação de facto correspondente fica sem consequência jurídica. Mas uma tal resposta, dada pelo juiz, haveria de significar uma denegação de justiça, se se tratar de uma questão que caia no âmbito da regulação jurídica intentada pela lei e não seja de atribuir por exemplo ao 'espaço livre do direito'.
Tanto as lacunas normativas como as lacunas de regulação são lacunas dentro da conexão regulativa da própria lei. Se existe ou não lacuna, há-de aferir-se do ponto de vista da própria lei, da intenção reguladora que lhe serve de base, dos fins com ela prosseguidos e do 'plano legislativo'. Uma lacuna da lei é uma 'imperfeição contrária ao plano' da lei.» Esta perspectiva convoca uma necessária base de diferenciação entre os casos em que se pode detectar uma imperfeição contrária ao plano da lei e uma falha de política legislativa.
A fronteira entre uma lacuna da lei e uma falha de lei na perspectiva da política legislativa só pode traçar-se na medida em que se pergunte se a lei é incompleta comparada com a sua própria intenção reguladora ou se somente não resiste a uma crítica de política legislativa.
Em ambos os casos, a lei não contém uma norma que deveria conter.
«Mas a pauta de valoração é diferente em cada caso: num caso, é a intenção reguladora e a teleologia imanente; no outro caso, são as pautas de uma crítica, fundamentada político-juridicamente, dirigida à lei. Se a lei não está incompleta, mas defeituosa, então o que está indicado é não uma integração de lacunas mas em última instância um desenvolvimento do direito superador da lei.» (Cf. op. cit., p. 453.) A teleologia imanente da lei não deve, certamente, ser entendida, neste contexto, em sentido demasiado estrito. Não só se hão-de considerar os propósitos e as decisões conscientemente tomadas pelo legislador, mas também aqueles fins objectivos do direito e princípios jurídicos gerais que acharam inserção na lei.
Neste mesmo sentido vai a lição de Baptista Machado (cf. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1987, p. 194), para quem a lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou uma falha, relativamente a algo que protende para a completude. Uma lacuna é uma «incompletude contrária a um plano».
Tratando-se de uma lacuna jurídica, consistirá numa incompletude contrária ao plano do direito vigente, determinada segundo critérios eliciáveis da ordem jurídica global; existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou pressuposta pela ordem jurídica global, isto é, não contêm a resposta a uma questão jurídica.
Doutrina idêntica se pode colher em Mário Bigotte Chorão (cf. Temas Fundamentais de Direito, Coimbra, 1986, pp. 231 e segs.), que, após salientar que a definição de lacuna jurídica tem sido motivo de muitas dúvidas e controvérsias, fornece uma série de explicações complementares:
«a) Essa definição supõe que a ausência de regulamentação respeita a uma verdadeira questão jurídica. O que se situa no espaço ajurídico (rechtsfreier Raum) ou 'extramuros da cidadela jurídica' está fora de causa [...];
b) Para que se verifique uma lacuna em sentido próprio é ainda necessário que a falta de regulamentação seja contrária ao plano ordenador do sistema jurídico. Não basta, pois, que a situação se possa considerar, em abstracto, susceptível de tratamento jurídico, mas é preciso que este seja exigido pelo ordenamento jurídico concreto. Bem pode acontecer, com efeito, que certo caso não encontre cobertura normativa no sistema, sem que isso frustre as intenções ordenadoras deste. Razões político-jurídicas ponderosas podem estar na base da abstenção do legislador. Esses 'silêncios eloquentes' da lei não têm de ser supridos pelo juiz, ainda que este, porventura, em seu critério, entenda o contrário. Diz-se, por isso, que tais faltas de regulamentação constituem lacunas impróprias (de lege ferenda, de jure constituendo, político-jurídicas, críticas, etc.), que eventualmente poderão vir a desaparecer em futuros desenvolvimentos do sistema, a cargo dos órgãos competentes.» Pode, assim, haver casos em que a inexistência de regulamentação (ou de regulamentação com um determinado conteúdo) corresponde a um plano do legislador e não da lei, a uma inexistência planeada, que não representa, enquanto tal, uma deficiência, mas apenas pode motivar críticas no plano da política legislativa.
9 - A verificação da existência de algum espaço vazio (uma incompletude) no plano da lei e não do legislador pressupõe um prévio trabalho de interpretação e de conjugação das normas aplicáveis, em função da questão a regular e da solução que as normas disponíveis não permitiriam.
Nos casos em que a interpretação e aplicação das normas disponíveis, que constituem a integridade de um específico sistema, permite uma solução completa e coerente no plano da lei, não existe incompletude de regime, como conjunto de normas que dispõem sobre determinado espaço que carece de regulação.
Como se referiu, o regime estabelecido em processo penal relativo aos procedimentos de impugnação da decisão em matéria de facto revela-se coerente, com inteira autonomia, e não apresenta qualquer espaço vazio; é um sistema que, nos termos descritos, funciona completamente por si, na previsão, nos procedimentos e nos resultados da sua execução.
Apresentando-se como regime completo, que funciona com autonomia e que permite realizar, por inteiro e de modo razoável e constitucionalmente capaz, a função para que foi concebido, não há espaços não regulados que necessitem de complemento; não deixando espaços de regulamentação em aberto que importe preencher, não existe, pois, lacuna de regulamentação.
E na sua completude é diverso, em momentos essenciais, do regime relativo à impugnação da matéria de facto em processo civil, e uma tal diversidade remete para o plano do legislador e não da pauta valorativa da lei.
No processo civil, com efeito, e para além do diverso prazo de interposição (artigo 685.º, n.º 1, do CPC) e das diferentes modalidades para a apresentação dos fundamentos, a indicação dos concretos meios de prova em que se funda («passagens da gravação» - artigo 690.º-A, n.º 2, do CPC) é feita por referência à transcrição.
Por outro lado, a motivação em processo penal, que tem de ser apresentada no prazo de interposição, constitui, quando bem interpretada na sua função e finalidade processual, apenas uma delimitação do objecto do recurso e a enunciação dos fundamentos, sendo o desenvolvimento dos fundamentos do recurso objecto de intervenções posteriores, seja nas alegações na audiência seja, quando o recorrente o requeira, em alegações escritas.
A sequência da evolução legislativa dos modelos de recurso no processo civil e no processo penal revela que evoluíram de modo autónomo relativamente à admissibilidade, natureza e modo de concretização do recurso em matéria de facto.
O recurso em matéria de facto no regime do CPP/87 era admitido mediante a reapreciação através da documentação das declarações prestadas em audiência nos casos de julgamento perante tribunal singular, ou com a renovação da prova.
No processo civil, foi apenas com a reforma de 1995 (Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro) que a lei admitiu o recurso em matéria de facto com base em suportes gravados, mas sem aplicação, porque os regimes eram diversos, ao processo penal.
A reforma do processo penal de 1998, visando dar maior eficácia à garantia do duplo grau de jurisdição em matéria penal (a revisão constitucional de 1997 expressamente constitucionalizou o direito ao recurso como uma das garantias de defesa - artigo 32.º, n.º 1, in fine), permitiu o recurso em matéria de facto de decisões do tribunal colectivo, tendo por base o suporte das provas gravadas, fixando-lhe o respectivo regime de interposição - as especificações da motivação referidas no artigo 412.º, n.º 3, do CPP. E, em coerência de tempos, a lei aumentou o prazo de interposição de recurso de 10 para 15 dias.
Se nesse momento o legislador não unificou ou aproximou os regimes no que respeita à identidade de prazos de interposição do recurso, limitando-se a alargar o prazo do recurso em processo penal, foi certamente porque, atendendo às diferenças entre os modelos e aos diversos interesses em confronto, não entendeu que fosse necessária, adequada ou justificada uma tal identificação.
Esta interpretação está acolhida na jurisprudência, mais recente e maioritária, do Supremo Tribunal [cf. os Acórdãos de 14 de Março de 2001, processo 412/2000, de 10 de Janeiro de 2002, processo 3419/2000, de 30 de Janeiro de 2002, processo 3428/2001, de 20 de Março de 2002, processo 363/2002, de 21 de Abril de 2004, processo 143/2004, de 23 de Setembro de 2004, processo 3028/2004, de 10 de Novembro de 2004, processo 3215/2004, de 9 de Dezembro de 2004, processo 4323/2004, de 15 de Dezembro de 2004, processo 2825/2004, de 3 de Março de 2005, processo 335/2005, de 9 de Março de 2005, processo 228/2005, e de 27 de Abril de 2005, processo 1121/2005, no sentido da aplicabilidade do artigo 686.º, n.º 6, do CPP, e os Acórdãos de 10 de Julho de 2002, processo 1080/2002, de 13 de Novembro de 2002, processo 3192/2002, e de 27 de Novembro de 2002 (acórdão fundamento), processo 3212/2002].
10 - Nestes termos, confirma-se o acórdão recorrido, fixando-se a seguinte jurisprudência:
«Quando o recorrente impugne a decisão em matéria de facto e as provas tenham sido gravadas, o recurso deve ser interposto no prazo de 15 dias, fixado no artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não sendo subsidiariamente aplicável em processo penal o disposto no artigo 698.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.» Taxa de justiça - 5 UC.
Lisboa, 11 de Outubro de 2005. - António Silva Henriques Gaspar - Políbio Rosa da Silva Flor - António Artur Rodrigues da Costa - José Vítor Soreto de Barros - João Manuel de Sousa Fonte - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - Alfredo Rui Francisco do Carmo Gonçalves Pereira - Luís Flores Ribeiro - Florindo Pires Salpico - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - Manuel José Carrilho de Simas Santos - José Vaz dos Santos Carvalho - António Joaquim da Costa Mortágua. (Tem voto de conformidade do conselheiro Armindo Monteiro, que não assina por não estar presente. - José Moura Nunes da Cruz.)