Assento 3/86
Recurso extraordinário n.º 3/84
Acórdão
1 - Em sessão de 10 de Abril de 1984, o TC recusou o visto ao diploma de provimento de Antónia Maria Pousa Rodrigues no cargo de técnica de serviço social de 2.ª classe do quadro de pessoal do Ministério da Educação.
A resolução foi depois confirmada por Acórdão do mesmo Tribunal de 4 de Dezembro daquele ano, proferido nos autos de reclamação n.º 22/84.
Porém, na sessão ordinária de visto de 15 de Maio do mesmo ano, foi o visto concedido ao diploma de provimento de Natalina Maria Gonçalves Pais para o mesmo cargo.
Numa e noutra decisões invoca-se como disposição legal permissiva a alínea b) do artigo 45.º do Decreto-Lei 81/83, de 10 de Fevereiro.
Haveria, assim, duas decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, proferidas no domínio da mesma legislação.
Com tais fundamentos interpôs o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal recurso extraordinário do Acórdão de 4 de Dezembro de 1984, requerendo que, por meio de assento, seja fixada jurisprudência sobre a matéria.
O recurso foi admitido por despacho a fl. 11, por tempestivamente interposto por quem detinha legitimidade para o fazer.
Foi oficiado oportunamente ao Ministro das Finanças e do Plano e ao Secretário de Estado da Administração Pública, para, no prazo legal de 30 dias, tomarem, querendo, posição quanto ao fundo da questão.
Na vista que teve dos autos o magistrado recorrente ofereceu doutas alegações, que concluem pela necessidade de ser tirado assento no sentido de que o artigo 1.º do Decreto-Lei 180/80, de 30 de Novembro, se mantém em vigor, não tendo sido tacitamente revogado pelo artigo 19.º do Decreto-Lei 165/82, de 10 de Maio.
Cumpre apreciar e decidir:
2 - Dispõe o artigo 6.º da Lei 8/82, de 26 de Maio: "Se, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Contas proferir duas decisões que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, sejam opostas, pode a Administração, pelo membro do Governo competente, ou o Ministério Público requerer que o Tribunal fixe jurisprudência por meio de assento.»
A disposição, na sua essência e até na sua forma, reproduz praticamente o que sobre a matéria dispõe, para o direito civil comum, o artigo 763.º do Código de Processo Civil (CPC).
Deste modo, a interpretação do artigo 6.º da Lei 8/82 terá de ser feita à luz dos mesmos princípios que iluminam e clarificam o conteúdo daquele preceito da lei objectivo comum.
3 - No consenso unânime da doutrina e da jurisprudência, cinco são os elementos que condicionam o recurso para o tribunal pleno:
a) Que os acórdãos em conflito assentem sobre soluções opostas; e
b) Tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação;
c) Que o conflito diga respeito à mesma questão fundamental de direito;
d) Que os acórdãos opostos tenham sido proferidos em processos diferentes ou em incidentes diferentes do mesmo processo; e, finalmente,
e) Que tenha transitado em julgado o acórdão anterior invocado como fundamento do recurso.
Que os acórdãos assentam em soluções opostas proferidas em processos diferentes é uma realidade incontroversa, já que no processo de provimento de Natalina Maria Gonçalves Pais foi concedido o visto em sessão ordinária de 15 de Maio de 1984, mas no processo de provimento de Antónia Maria Pousa Rodrigues o visto foi recusado por resolução de 10 de Abril do mesmo ano, confirmada depois por acórdão deste Tribunal de 4 de Dezembro seguinte, que transitou.
Por outro lado não pode pôr-se em dúvida que ambas as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação, pois fácil é de constatar que durante o intervalo da sua publicação nenhuma modificação legislativa foi introduzida que, directa ou indirectamente, interfira na resolução da questão de direito controvertido (CPC, artigo 763.º, § 2.º).
Resta saber, neste domínio ainda dos pressupostos da admissibilidade do recurso, se, por idêntica forma, as decisões invocadas se enfrentam ou se afrontam na mesma questão fundamental de direito.
É doutrina constante e jurisprudência unânime que a oposição sobre a mesma questão fundamental de direito só fica devidamente retratada quando, relativamente às decisões em conflito, se verifiquem a identidade de factos e a identidade de normas legais mas resoluções em sentidos diferentes.
Por outras palavras: a oposição existe quando à mesma disposição legal aplicada à mesma factualidade forem dadas interpretações ou aplicações opostas.
No caso sub specie a concorrência deste requisito apresenta-se também como manifesta, pois os factos sobre que assentam as decisões são os mesmos do ponto de vista jurídico e mesma é ainda a norma legal que para cada um dos provimentos pretendidos ditou soluções divergentes: a alínea b) do artigo 45.º do Decreto-Lei 81/83, de 10 de Fevereiro.
Estão deste modo verificados todos os pressupostos que permitem a admissibilidade do recurso interposto.
Assim sendo, o que agora se impõe é apreciar o fundo ou o mérito do recurso, com vista a firmar doutrina sobre a questão de direito decidida, por modos diversos, nas decisões referidas.
A tal não obsta, por expressa formulação do artigo 8.º da Lei 8/82, de 26 de Maio, o facto de uma ter sido proferida em sessão ordinária e a outra em sessão plenária do Tribunal.
4 - O objecto do recurso está limitado, em última análise, pela questão de saber se o artigo 1.º do Decreto-Lei 180/80, de 3 de Junho, ainda se encontra em vigor ou se, pelo contrário, foi revogado pelo artigo 19.º do Decreto-Lei 165/82, de 10 de Maio.
Dispõe o artigo 7.º, n.º 2, do Código Civil (CC): "A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as mesmas disposições e as regras procedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.»
A revogação pode, assim, assumir uma forma expressa ou uma forma tácita.
A p. 405 do 1.º volume da 4.ª edição das Noções Fundamentais de Direito Civil, escreveram Pires de Lima e Antunes Varela que a revogação é expressa se a nova lei individualizar concretamente a lei ou as disposições anteriores revogadas e tácita se faltar essa indicação expressa e a revogação resultar apenas da incompatibilidade existente entre uma nova lei e a lei anterior, conjugada com o princípio geral da prevalência da vontade mais recente do legislador.
Ora, com interesse imediato para a questão sub judice, importa atentar, desde logo, no artigo 23.º do Decreto-Lei 165/82, com a seguinte redacção:
"Consideram-se revogados:
a) Os artigos 1.º a 4.º e 12.º a 17.º do Decreto-Lei 140/81, de 30 de Maio;
b) O n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei 191-C/79, de 25 de Junho.»
Daqui resulta, com inteira segurança, que o artigo 1.º do Decreto-Lei 180/80 não foi expressamente revogado pelo artigo 23.º do Decreto-Lei 165/82.
Isto, porém, não significa, necessariamente, que o não esteja por forma tácita. É que, ao revogar, por forma expressa, determinados preceitos dos Decretos-Leis n.os 140/81 e 191-C/79, o legislador pode ter querido apenas tomar posição frontal perante aquelas disposições que mais claramente se mostravam incompatíveis com o novo diploma.
É, com efeito, dos princípios que, quando a lei nova não revoga expressamente a lei antiga, desta ficam revogados tacitamente os preceitos que se mostram incompatíveis com os novos.
O problema da revogação tácita, porém, envolve naturalmente certos melindres, pois, como se escreve no Acórdão do STJ de 1 de Março de 1983 (no BMJ, n.º 345, p. 237), "quando a revogação não é expressa, torna-se por vezes difícil saber até que ponto a lei posterior interfere com a lei anterior».
No fundo, do que verdadeiramente se trata é de um problema de interpretação da lei nova.
Interpretar a lei, contudo, é determinar o seu significado decisivo para a vida jurídica, captar o seu verdadeiro sentido e alcance, ou seja, por outras palavras, apreender a intenção do legislador.
Como, porém, se escreve no parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 173/80, de 6 de Novembro, a pp. 164 e segs. do BMJ, n.º 305: "Na fixação dessa intenção, dada a palavra 'inequívoca' (que se lê no artigo 9.º do CC), deve o intérprete ser particularmente exigente, atendendo-se ao texto da lei, sua conexão, evolução histórica, à formação legislativa, e sobretudo nortear-se pelo fim da disposição questionada e o resultado de uma e outra interpretação.»
Por outro lado, no desenvolvimento dessa actividade interpretativa importará ter presente que a revogação tácita tem como limite o princípio da contraditoriedade. Com isto quer-se significar que, salvo nos casos de revogação total ou por substituição - ab-rogação -, a lei anterior apenas se pode ter como revogada na medida da sua incompatibilidade com a lei posterior - derrogação. Onde essa incompatibilidade não existe terá de aceitar-se a coexistência, lado a lado, dos dois diplomas, embora, naturalmente, com domínios de aplicação diversos.
5 - O Decreto-Lei 180/80 veio permitir o primeiro provimento nos quadros dos serviços e organismos que se não tenham ainda estruturado depois de 30 de Junho de 1974 e solucionar dúvidas na interpretação dos Decretos-Leis n.os 191-C/79 e 191-F/79.
Por sua vez, o Decreto-Lei 165/82 veio implementar um sistema de gestão previsional conducente à criação e reorganização de serviços, quadros e carreiras de pessoal e introduzir novas concepções de mobilidade interdepartamental e interprofissional.
No seu artigo 1.º dispõe aquele primeiro decreto-lei, no n.º 1: "Os diplomas orgânicos dos diversos serviços e organismos cujos quadros de pessoal e respectivo regime de provimento não tenham sido objecto de alteração ou reestruturação posteriormente a 1 de Junho de 1974 poderão prever normas de transição, com observância dos requisitos habilitacionais legalmente estabelecidos e de acordo com as seguintes regras: [...]»
O artigo 19.º do Decreto-Lei 165/82, por seu turno, estatui:
"Nos diplomas de criação ou de regulamentação dos quadros de pessoal não é permitida a inclusão de disposições transitórias que possibilitem:
a) Promoções automáticas ou reclassificações de pessoal não resultantes da extinção das anteriores carreiras ou da alteração da natureza das funções exercidas;
b) Integração directa em lugares do quadro de pessoal contratado a prazo certo ou admitido sem observância das formalidades legais.»
Postas assim frente a frente as duas disposições, o que importará agora saber é se é ou não coincidente o domínio de aplicação de ambos os diplomas, isto é, se o artigo 19.º do Decreto-Lei 165/82 prevê e disciplina no todo ou em parte as mesmas situações do Decreto-Lei 180/80. Se assim for, poder-se-á concluir, de facto, pela revogação tácita global - revogação por substituição - ou pela revogação tácita parcial deste segundo diploma.
Ora, uma solução negativa parece impor-se.
Desde logo porque, ao promulgar o Decreto-Lei 165/82, o legislador não ignorava o conteúdo e o alcance do artigo 1.º do Decreto-Lei 180/80. Se, por isso, no seu espírito se albergasse o propósito de substituir, total ou parcialmente, o regime deste diploma legal, certamente que não teria deixado de o referir, por forma expressa, como para outros diplomas o fez no artigo 19.º
Contra a revogação tácita milita, pois, a própria mens legislatoris.
Por outro lado, a essa mesma conclusão leva a própria letra do texto do artigo 19.º do Decreto-Lei 165/82, no seu confronto com o artigo 1.º do Decreto-Lei 180/80.
O que claramente resulta da letra daquele artigo 19.º é que no preenchimento de lugares dos quadros ficou interdito o recurso a determinadas promoções automáticas ou a reclassificações de pessoal e ainda a sua integração directa em lugares do quadro de pessoal contratado a prazo certo ou admitido sem observância das formalidades legais. Tudo com o propósito, que se surpreende até do relatório do diploma, de evitar escusados empolamentos de quadros e desnecessário aumento do volume de efectivos da função pública.
Pelo contrário, o Decreto-Lei 165/82 veio permitir, no seu artigo 1.º, a integração em quadros de pessoal de serviços e organismos que se não tivessem ainda estruturado depois de 30 de Junho de 1974.
Mas, tal como reconheceu já o Acórdão deste Tribunal de 4 de Dezembro de 1984, de que ora se recorre, há matéria prevista no artigo 1.º do Decreto-Lei 180/80 que o artigo 19.º do Decreto-Lei 165/82 não regula. É o que acontece, por exemplo, com a matéria prevista na alínea a), com os requisitos de promoção exigidos na alínea b), com a categoria de ingresso noutra carreira contemplada na alínea c) e com as condições em que se efectuará a transição referida na alínea d), "quando se tratar de casos de reclassificações resultantes de alterações da natureza das funções exercidas, bem como resultantes de extinção das anteriores carreiras (n.º 2), e é o que acontece ainda com a matéria do n.º 3 do mesmo preceito».
Ora, constatada esta realidade, a revogarão tácita do artigo 1.º do Decreto-Lei 180/80 pelo artigo 19.º do Decreto-Lei 165/82 tem de ter-se como excluída.
6 - Nesta conformidade, acorda-se no TC em negar provimento ao recurso e resolver o conflito de jurisprudência suscitado mediante a formulação do seguinte assento: "Mantém-se em vigor o artigo 1.º do Decreto-Lei 180/80, de 3 de Junho, que não foi tacitamente revogado pelo artigo 19.º do Decreto-Lei 165/82, de 10 de Maio.»
Não são devidos emolumentos.
Cumpra-se oportunamente o disposto no artigo 11.º da Lei 8/82, de 26 de Maio.
8 de Abril de 1986. - João de Deus Pinheiro Farinha - Alberto Leite Ferreira (relator) - Orlando Soares Gomes da Costa - Pedro Tavares do Amaral - Francisco Pereira Neto de Carvalho - António Rodrigues Lufinha - José Lourenço de Almeida Castello Branco (vencido. O Decreto-Lei 165/82, de 10 de Maio, foi expressamente revogado pelo Decreto-Lei 41/84, de 3 de Fevereiro, artigo 42.º; por essa razão, entendo que não seria de firmar assento.) - Fui presente, João Manuel Fernandes Neto.