Acórdão 204/86
Processo 65/86
1 - O Exmo. Magistrado do Ministério Público requereu em 5 de Março último, "nos termos do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, conjugado com o artigo 281.º, n.º 2, da Constituição», a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade "da norma do artigo 196.º do Decreto-Lei 377/71, de 10 de Setembro, pelo menos quanto à sua alínea b), que aprovou o Estatuto do Oficial da Força Aérea Portuguesa», por ela já ter sido julgada inconstitucional em três casos concretos: Acórdãos n.os 123/84, de 5 de Dezembro (proferido no processo 58/84 e publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 54, de 6 de Março de 1985), 317/85, de 18 de Dezembro (proferido no processo 121/85), e 29/86, de 5 de Fevereiro (proferido no processo 107/85), os dois últimos também já publicados no Diário da República, 2.ª série, n.os 87 e 101, de 15 de Abril e 3 de Maio de 1986, respectivamente.
Ouvido nos termos do artigo 54.º da citada lei, o Sr. Primeiro-Ministro não respondeu ao pedido.
Cumpre decidir.
2 - O artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, depois de dizer na alínea a) do seu n.º 1 que o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de quaisquer normas, a requerimento do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, do Provedor de Justiça, do Procurador-Geral da República ou de um décimo dos deputados à Assembleia de República, acrescenta no n.º 2 que o mesmo Tribunal declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma desde que esta tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos.
Por sua vez, o artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, preceitua que, sempre que a mesma norma tenha sido julgada inconstitucional em três casos concretos, pode o Tribunal Constitucional, por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo, que seguirá os termos do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade.
Estamos, assim, em face de um processo previsto no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição e no artigo 82.º da Lei 28/82.
Não oferece dúvida a legitimidade do requerente, como agente que é do Ministério Público neste Tribunal.
Concorre além disso o pressuposto de que os referidos preceitos fazem depender a organização do processo para apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da constitucionalidade de uma norma, isto é, ter essa norma sido julgada inconstitucional em três casos concretos.
A este respeito importa, todavia, precisar que não é toda a norma do artigo 196.º do Estatuto do Oficial da Força Aérea (EOFAP) - aprovado pelo Decreto 377/71, de 10 de Setembro - que está em causa, mas apenas a da sua alínea b), já que só esta foi julgada inconstitucional nos três acórdãos invocados pelo Ministério Público: os Acórdãos n.os 317/85 e 29/86 julgaram, é certo, inconstitucional o artigo 196.º no seu todo, mas o Acórdão 123/84 restringiu o julgamento de inconstitucionalidade ao artigo 196.º, alínea b).
Vejamos então se procede o pedido de declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de tal preceito, pois, como se entendeu no Acórdão deste Tribunal n.º 93/84, de 30 de Julho (proferido no processo 10/84 e publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 266, de 16 de Novembro de 1984), não é o simples facto de uma norma ter sido julgada inconstitucional em três casos concretos que leva - automaticamente - à declaração de inconstitucionalidade dessa mesma norma, com força obrigatória geral.
2.1 - Dispõe o artigo 196.º do Estatuto do Oficial da Força Aérea (EOFAP), aprovado pelo Decreto 377/71, de 10 de Setembro, na parte que aqui interessa:
o Supremo Tribunal Militar é o órgão das Forças Armadas com competência para conhecer dos recursos que forem interpostos pelos oficiais:
a) [...];
b) Que se considerem prejudicados quanto à mudança de situação.
A questão que se põe é a da sua desconformidade com o artigo 218.º da Constituição, na redacção que lhe foi dada pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, que é a seguinte:
1 - Compete aos tribunais militares o julgamento dos crimes essencialmente militares.
2 - A lei, por motivo relevante, poderá incluir na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos previstos no n.º 1.
3 - A lei pode atribuir aos tribunais militares competência para aplicação de medidas disciplinares.
Diga-se desde já que disposição idêntica à da alínea b) do artigo 196.º do Estatuto do Oficial da Força Aérea se contém na alínea b) do artigo 134.º do Decreto-Lei 176/71, de 30 de Abril (Estatuto do Oficial do Exército), e que ambas elas reproduzem a alínea b) do artigo 107.º do Decreto-Lei 46672, de 19 de Novembro de 1965 (Estatuto dos Oficiais das Forças Armadas), sendo que o artigo 226.º do Estatuto do Oficial da Armada, aprovado pelo Decreto 46960, de 14 de Abril de 1966, se limita a remeter para esse artigo 107.º
Ora tanto o artigo 107.º do Estatuto dos Oficiais das Forças Armadas como o artigo 134.º do Estatuto do Oficial do Exército já foram declarados inconstitucionais, com força obrigatória geral, pelo Acórdão deste Tribunal n.º 81/86, de 12 de Março (proferido no processo 122/85 e publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 93, de 22 de Abril último).
Dada a identidade de redacção entre a alínea b) do artigo 196.º do Estatuto do Oficial da Força Aérea, aqui em apreciação, e a alínea b) do artigo 107.º do Estatuto dos Oficiais das Forças Armadas, e sendo certo que um oficial da Força Aérea é um oficial das Forças Armadas ou, por outras palavras, que a expressão "oficiais das Forças Armadas» abrange os oficiais da Força Aérea, poderia pensar-se em aplicar à primeira norma a declaração de inconstitucionalidade já proferida relativamente à segunda.
Admitindo-se, porém, que, por se tratar de normas de diplomas diferentes, não possa a declaração de inconstitucionalidade do artigo 107.º do Estatuto dos Oficiais das Forças Armadas aplicar-se aqui, sem mais, sempre se dirá que as razões que levaram a um tal juízo de inconstitucionalidade valem inteiramente para a alínea b) do artigo 196.º do Estatuto do Oficial da Força Aérea.
Do que se trata, como é por de mais sabido, é de averiguar se é constitucionalmente admitido, face à actual redacção do artigo 218.º da Constituição, que os, tribunais militares detenham competência em matéria de contencioso administrativo militar, ou, mais precisamente, que o Supremo Tribunal Militar tenha a competência, que lhe é atribuída pela norma em causa, para conhecer dos recursos que forem interpostos pelos oficiais da Força Aérea "que se considerem prejudica dos quanto à mudança de situação».
No sentido da inconstitucionalidade dessa norma - e resumindo a argumentação do citado Acórdão 81/86 - pode desde logo dizer-se que a eliminação da primitiva redacção do n.º 1 do artigo 218.º - "Os tribunais militares têm competência para o julgamento, em matéria criminal, dos crimes essencialmente militares.» - do inciso "em matéria criminal» e o aditamento do n.º 3 - que permite que a lei atribua aos tribunais militares competência para aplicação de medidas disciplinares - só podem ter o sentido de "limitar a competência desses tribunais às matérias enunciadas nesse preceito».
Por outro lado, sendo a competência dos órgãos de soberania - entre os quais se encontram os tribunais, e, portanto, os tribunais militares - definida na Constituição (artigos 113.º e 212.º), "tem de concluir-se que não existe qualquer margem para intervenção legislativa a alargar a competência dos tribunais militares a áreas não previstas na Constituição».
Contra esta conclusão não pode ser invocado o artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição, que reserva à Assembleia da República a competência para legislar em matéria de "organização e competência dos tribunais». Como se lê no citado acórdão, "o único alcance jurídico-constitucional da norma do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), é o de que, na medida em que constitucionalmente dependa da lei a definição da competência dos tribunais, só a Assembleia da República tem competência para legislar sobre ela, não podendo o Governo fazê-lo (salvo prévia autorização legislativa). Ora, da combinação dos artigos 113.º, n.º 2, e 218.º da Constituição, a definição da competência dos tribunais militares só depende da lei quanto às matérias referidas nos n.os 2 e 3 do artigo 218.º, nenhuma das quais permite atribuir-lhes competência em matéria de contencioso administrativo militar».
Irrelevante é também o argumento segundo o qual parte da competência do Tribunal Constitucional está definida, não na Constituição, mas em lei ordinária, e é igualmente à lei que compete fixar a competência dos tribunais administrativos, fiscais e marítimos. É certo que os artigos 8.º, alíneas a), c) e d), 9.º e 10.º da Lei 28/82 vieram cometer ao Tribunal Constitucional o conhecimento de matérias não especificadamente previstas na Constituição. Mas, como se diz no Acórdão 317/85, o artigo 213.º da lei fundamental inclui na competência deste Tribunal, além das matérias que especifica no n.º 1 e nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 2, as demais funções que lhe sejam atribuídas pela Constituição e pela lei [alínea e) do mesmo n.º 2]. E, quanto aos tribunais administrativos, fiscais e marítimos, responde-se que, sendo a própria criação desses tribunais da iniciativa do legislador ordinário (n.º 2 do citado artigo 212.º), é necessariamente à lei que incumbe definir a respectiva competência.
Em conclusão o artigo 196.º, alínea b), do Estatuto do Oficial da Força Aérea, ao atribuir ao Supremo Tribunal Militar competência em matéria de contencioso administrativo militar, mais precisamente, para conhecer de recursos interpostos pelos oficiais que se considerem prejudicados quanto à mudança de situação, é inconstitucional, por violação do artigo 218.º da Constituição, na sua actual redacção.
3 - Pelo exposto, declara-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 196.º, alínea b), do Estatuto do Oficial da Força Aérea, aprovado pelo Decreto 377/71, de 10 de Setembro, por violação do artigo 218.º da Constituição.
Lisboa, 11 de Junho de 1986. - Mário de Brito - Raul Mateus - José Manuel Cardoso da Costa - Costa Mesquita - Vital Moreira - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Diniz - José Martins da Fonseca - Armando Manuel Marques Guedes.