Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Por decisão instrutória de 5 de Fevereiro de 2007, a fls. 4 e seguintes, o juiz do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Sintra decidiu, entre o mais, pronunciar os arguidos Samuel Miranda e António Jorge Moreira Vieira pela prática, em co-autoria, dos crimes de tráfico de produto estupefaciente agravado, previstos e puníveis pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas b), c) e j), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, de três crimes de receptação dolosa, previstos e puníveis pelo artigo 231.º do Código Penal, de três crimes de falsificação de documento agravada, previstos e puníveis pelos artigos 256.º, n.os 1, alíneas a) e c), e 3, com referência ao artigo 255.º, alínea a), do mesmo diploma legal, e de um crime de associação criminosa, previsto e punível pelo artigo 28.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro.
Inconformados com a parte da decisão instrutória que lhes indeferira a arguição de nulidade de certas intercepções telefónicas, dela interpuseram Samuel Miranda e António Jorge Moreira Vieira recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, a fls. 247 e seguintes, tendo nas conclusões da motivação respectiva sustentado nomeadamente que, conforme se entendeu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/2006, «é inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1 e n.º 5, da Constituição, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação dada pelo tribunal segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância» (cf. conclusão 45.ª; cf., ainda, a conclusão 46.ª).
O Ministério Público respondeu, a fls. 269 e seguintes, sustentando que se não verificava a referida inconstitucionalidade (cf. conclusões 25 a 28), e, no parecer que emitiu, no tribunal de recurso, perfilhou idêntico entendimento (fls. 313).
Por Acórdão de 11 de Setembro de 2007, a fls. 324 e seguintes, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, podendo ler-se no texto respectivo, entre o mais, o seguinte:
«[...]
6 - Por último, consideram os recorrentes que a ordem de desmagnetização de parte do material gravado coloca o arguido na impossibilidade de se pronunciar sobre a relevância das conversas, o que violaria o direito ao contraditório.
De acordo com o que o regime legal em vigor estipula de forma clara, tudo o que não for considerado relevante para a prova é destruído (artigo 188.º, n.º 3). O objectivo desta disposição parece ser o de adquirir para o processo como prova o que seja pertinente e evitar, na medida do possível, que a invasão da vida privada das pessoas alvo de escuta alastre para lá do estritamente necessário. Foi esse, de resto, o entendimento que a Prof. Fernanda Palma fez consignar na sua declaração de voto lavrada no Acórdão Tribunal Constitucional n.º 660/06, que os recorrentes referem (indicando por lapso o n.º 660/07): «Em minha opinião, tal norma consagra, em termos constitucionalmente admissíveis, a possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão injustificada na reserva da intimidade da vida privada do arguido ou de terceiros (artigo 26.º, n.º 2 da Constituição)». É, aliás, à posição tomada nessa esclarecida declaração de voto que integralmente se adere, para ela se remetendo. Quer no que toca à questão da preponderância da defesa da reserva da intimidade da vida privada como valor contra a sua superação por um hipotético interesse do arguido em benefício da sua defesa [com a transfiguração de actos ilegítimos a priori em actos legítimos a posteriori, como com clareza se explica na citada declaração de voto] quer ainda à interpretação ali feita da "extensão" do princípio do contraditório.
Também no sentido de considerar inadmissível a subalternização da protecção dos direitos de terceiros com a pretendida manutenção das gravações decidiu o supra citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Fevereito de 2007.
O controlo judicial das escutas foi feito de acordo com o regime legal em vigor e a ordem de destruição do material gravado foi dada em conformidade com esse regime legal e em conformidade com a mais adequada interpretação dos preceitos constitucionais.
Nessa medida improcedem as conclusões 42.ª a 46.ª da motivação dos recorrentes.
[...].»
Deste acórdão interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 344 e seguinte):
«O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado do Acórdão de 11 de Setembro de 2007, proferido nos autos supra-referenciados e limitado apenas ao segmento do decidido que julgou, no domínio da vigência do Código de Processo Penal de 1987, na versão anterior à entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29/8, não ser inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (na versão referida), na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações que o órgão de Polícia Criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo Juiz de Instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que possa pronunciar sobre a sua relevância, dimensão normativa que foi julgada inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/2006, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 7, de 10 de Janeiro de 2007:
Vem interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, nos termos das disposições combinadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea g), 75.º-A, n.os 1 e 3, e 72.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, e 280.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.»
O recurso do Ministério Público foi admitido por despacho de fls. 367.
Os arguidos Samuel Miranda e António Jorge Moreira Vieira interpuseram também recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional e versando idêntica questão de inconstitucionalidade (fls. 349 e seguintes), o qual foi admitido por despacho de fls. 382 v.º
Foi determinada a intervenção do plenário, por determinação do Presidente do Tribunal (fls. 385).
No seguimento do processo, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional sustentou, nas alegações (fls. 389 e seguinte), o seguinte:
«I - Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
Foi interposto recurso obrigatório pelo Ministério Público, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea g), da Lei 28/82, de 15 de Novembro, da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, na parte em que aplicou a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (na versão anterior à actualmente vigente), na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de Polícia Criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância, dimensão normativa que foi julgada inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/2006, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Janeiro de 2007.
Mais recentemente, também os Acórdãos n.os 450/07 e 451/07, ambos de 18 de Setembro de 2007, se pronunciaram no mesmo sentido - www.tribunalconstitucional.pt.
Em todos os processos em que foram produzidos os aludidos acórdãos foi defendida pelo Ministério Público a conformidade constitucional da norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, no segmento em apreciação.
Com os argumentos que constam das respectivas declarações de voto e para os quais remetemos, igualmente os Senhores Conselheiros Fernanda Palma, Benjamim Rodrigues, Fernandes Cadilha e Vítor Gomes sustentaram a não inconstitucionalidade da interpretação normativa em apreciação.
II - Conclusão
1 - Não é inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 188.º do Código de Processo Penal (na redacção anterior à que lhe foi introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto) na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de Polícia Criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados não relevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tome conhecimento e sem que se possa pronunciar pela sua relevância.
2 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso, confirmando-se o juízo de conformidade constitucional da decisão recorrida.»
Notificados para alegar e contra-alegar, os arguidos Samuel Miranda e António Jorge Moreira Vieira fizeram-no nos seguintes termos (fls. 392 e seguintes):
«Pendem nos presentes autos os recursos interpostos pelos arguidos e pelo Digníssimo Representante do Ministério Público no Tribunal da Relação de Lisboa, sendo certo que, em ambos se discute a mesma questão, pelo que, os argumentos que fundamentam o nosso entendimento de inconstitucionalidade (da interpretação da norma constante do artigo 188.º, n.º 3 do Código de Processo Penal - sempre por referência à sua versão anterior), são precisamente aqueles que dão resposta aos apresentados nas alegações do Ilustre Procurador-Geral-Adjunto nesse tribunal.
É pois sem qualquer prejuízo de sentido que nos permitimos condensar nesta peça as nossas alegações e contra-alegações.
O douto acórdão recorrido, interpretou a norma do artigo 188.º, n.º 3, do CPP, aplicando-a, sendo certo que, quanto a nós, o caso em análise não difere de outros em que a mesma, com esse sentido, foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta.
Nesses casos como no presente, o Meretíssimo Juiz de Instrução Criminal ordenou a destruição de parte das conversas telefónicas interceptadas (as que não foram transcritas), sem que ao arguido tivesse sido concedida possibilidade de aceder às mesmas.
E na verdade, em abono deste entendimento, não deixaremos de aqui apontar o douto acórdão deste Tribunal, n.º 660/06, publicado no Diário da República, 2.ª série, parte D, de 10 de Janeiro de 2007, que decidiu nos seguintes termos:
'[...]
b) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 188º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância;
[...]'
O douto acórdão recorrido, no entanto, perfilhou precisamente a posição que ficou expressa em voto de vencido, da Ilustre Conselheira, Professora Fernanda Palma.
Porém, mais recentemente, o Tribunal Constitucional voltou a reiterar as razões constantes do acórdão 660/06, através da decisão sumária n.º 454/07, de 9 de Agosto de 2007 (no âmbito do processo 831/07 da 2.ª Secção, onde, concluindo pela inconstitucionalidade daquela interpretação do artigo 188º n.º 3 do CPP, considera que:
2 - [...]
Assim, pelas razões constantes do Acórdão 660/2006 (publicado no Diário da República, 2.ª série-A, n.º 7, de 10 de Janeiro de 2007, p. 145, e com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que subscrevemos, impõe-se o provimento do recurso, com a consequente reformulação da decisão recorrida.
Saliente-se que, no presente caso, a ordem judicial de destruição das gravações em causa se fundou exclusivamente no entendimento de que tais gravações não tinham interesse para a investigação (cf. fls. 207), pelo que surgem como de todo irrelevantes e impertinentes as considerações tecidas no acórdão recorrido para as hipóteses - que não se verificam no presente caso - de a ordem de destruição se basear em se tratar de escutas ilegítimas de terceiros ou conterem matéria coberta pelo segredo de Estado ou pelo segredo profissional. O que no aludido Acórdão 660/2006 - a cuja doutrina convictamente aderimos e que, aliás, segue firme jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem - se sustentou foi que é constitucionalmente intolerável, na perspectiva das garantias de defesa, a absoluta insindicabilidade do juízo judicial sobre a relevância processual das escutas, privando o arguido da possibilidade - de que beneficiaram o órgão de polícia criminal e o Ministério Público - de requerer (e não directamente de determinar, como erradamente parece supor o acórdão recorrido) a aquisição processual de provas obtidas através das escutas, que, na sua perspectiva, surgem como relevantes para a descoberta da verdade.
Trata-se, aliás, de solução que acaba de ser acolhida na revisão do Código de Processo Penal levada a cabo pelo Decreto 149/X da Assembleia da República (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 123, de 1 de Agosto de 2007), que, na nova redacção dada ao n.º 6 do artigo 188.º, limita a possibilidade de destruição imediata dos suportes técnicos às hipóteses de os mesmos dizerem respeito a conversações em que não intervenham pessoas referidas no n.º 4 do artigo anterior, abrangerem matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado, ou cuja divulgação seja susceptível de afectar gravemente direitos, liberdades e garantias. Isto é: deixa de ser admissível a destruição imediata dos suportes técnicos das gravações das escutas pelo simples facto de serem tidas por irrelevantes pelo juiz. [...]»
E ainda mais recentemente, proferiu o Tribunal Constitucional os Acórdãos n.os 450/07 e 451/07, da sua 3.ª Secção, nos quais se confirma o mesmo juízo de inconstitucionalidade.
Aliás, parece-nos mesmo que o douto Acórdão 450/07 veio acrescentar novos e valorosos argumentos a esse juízo de inconstitucionalidade:
[...]
Com efeito, para além das razões apresentadas pelo Tribunal naquele mesmo Acórdão, outras há, que decorrem do que ficou dito na resposta dada à primeira questão de constitucionalidade que o presente recurso coloca.
Antes do mais, do que ficou dito quanto ao direito consagrado no n.º 5 do artigo 188.º do CPP.
Afirmou-se acima (n.º 9.2.) que a possibilidade de exercício de um tal direito - que, recorde-se, confere ao arguido o poder de examinar o auto de transcrição [a que se refere o n.º 3 do artigo 188.º] para se inteirar da conformidade das transcrições - prevenia que a não assinatura, por parte do juiz de instrução, daquele auto (ou a não certificação, pelo mesmo juiz, da conformidade entre o que havia sido transcrito e o que havia sido gravado) se traduzisse, por si só, numa «intervenção restritiva», constitucionalmente inaceitável, dos direitos de defesa do arguido. No entanto, para que tal suceda, necessário é que o arguido possa ter acesso à integralidade das gravações que foram efectuadas, para que - como já disse o Tribunal no Acórdão 426/2005 (Diário da República, 2.ª série, n.º 232, p. 17 006) - «seja facultada à defesa (e também à acusação) a possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido das passagens anteriormente seleccionadas». Foi aliás este dito (citado pelo Acórdão 660/2006) que justificou a decisão tomada (e a nosso ver bem) pelo Tribunal no já referido Acórdão 426/2005. Para que esta «arquitectura» jurisprudencial mantenha coerência, necessário é que se entenda que o exercício do direito que é conferido ao arguido no n.º 5 do artigo 188º do Código de Processo Penal pressupõe a possibilidade de acesso da defesa à integralidade das gravações efectuadas no decurso das intercepções telefónicas.
Mas, para além disso, uma outra razão há para que se entenda que tal acesso é constitucionalmente imposto, não dependendo da livre disposição do legislador ordinário facultá-lo, ou não, à defesa. Disse-se atrás que o regime fixado nos artigos 187.º e 188.º do CPP decorria de uma autorização constitucional expressa - conferida ao legislador - para restringir «em matéria de processo criminal», o direito «inviolável» do sigilo dos meios de comunicação privada (artigo 34.º, n.º 4 e n.º 1). Disse-se também que o bem jurídico protegido por tal direito era refracção de outros bens jurídicos, nomeadamente dos protegidos pelo «direito à palavra» e pelo direito à «reserva de intimidade da vida privada» (artigo 26.º da CRP). A este último direito - e ao bem que ele protege - se voltará adiante. Por agora, atenhamo-nos apenas às implicações que decorrem da garantia constitucional de um «direito à palavra».
O direito à palavra a que se refere o artigo 26º da CRP - próximo do direito à imagem, enquanto direito pessoal, e por isso estruturalmente distinto do direito à liberdade de expressão (artigo 31.º) - pressupõe a existência de uma «liberdade de disposição na área da comunicação não pública», em que o que é dito - justamente por ser dito fora do espaço público ou seja, não com o intuito de ser escutado - faz parte da «acção comunicativa» espontânea, «inocente e autêntica (veja-se Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 70). A esta esfera da comunicação humana pertencem os discursos fragmentários, a «expressão não reflectida nem contida», ou a «formulação apenas compreensível no contexto de uma situação especial» (Tribunal Constitucional Federal Alemão, apud Manuel Costa Andrade, ob. e loc. cit.) Quem «escuta» um discurso assim, feito para não ser escutado, infere sentidos. A decisão unilateral e externa (isto é, tomada sem o conhecimento do autor do próprio discurso) quanto ao se e ao modo da descontextualização do mesmo, permite que às inferências de sentido iniciais se venham a sobrepor outras, numa escala potencialmente progressiva de redução da compreensibilidade do que foi dito.
Um «processo devido em direito» - ou, como diz a Constituição no n.º 1 do artigo 32.º, um processo que «assegura todas as garantias de defesa» -, não pode ignorar que as coisas se passam assim. Sobretudo quando se sabe (e sabe-se porque tal já foi dito pelo Tribunal) que não é constitucionalmente censurável que a acusação, que tem naturalmente acesso à integralidade das gravações, sugira ao juiz quais as 'partes' das gravações a transcrever, por serem essas as partes consideradas relevantes para a prova (artigo 188.º, n.º 1, in fine, do CPP), e que a sugestão seja acolhida «não com base em prévia audição das mesmas [por parte do JIC mas por leitura de textos contendo a sua reprodução... acompanhados das fitas gravadas ou elementos análogas» (fórmula decisória do Acórdão 426/2005). Sabendo-se tudo isto, difícil é não concluir que, no âmbito de todas as garantias de defesa a que se refere o n.º 1 do artigo 32.º da CRP, se conta também a possibilidade de acesso do arguido à integralidade das gravações efectuadas no decurso de operações de «escutas telefónicas», antes que seja dada a ordem da sua destruição parcial.
Sustentar-se-á em contrário que uma tal leitura das coisas desconhece que, nos termos do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição, o princípio do contraditório vale apenas para as fases de audiência de julgamento e para os «actos instrutórios que a lei determinar», pelo que argumentar como se argumentou implicaria uma visão radicalmente acusatória de todo o processo penal, em que o princípio do contraditório dominaria, também, todo o inquérito - visão essa que, como se sabe, não é aquela que a CRP acolhe.
Note-se, no entanto, que não está aqui em causa a transposição, para a fase do inquérito, do princípio da contraditoriedade na produção e valoração da prova - princípio esse que só tem assento constitucional no que respeita à fase de audiência e julgamento. O que está em causa é outra coisa. Trata-se apenas de garantir que toda a prossecução processual se cumpra como se deve cumprir, ou seja, «de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação mas também as da defesa» (assim mesmo, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, reimp. 2004, Coimbra, Coimbra Editora, p. 150), de tal forma que o arguido tenha uma posição processual equiparada quanto possível à do acusador (ibidem p. 149).
Exigir que semelhante garantia se cumpra não equivale a transfigurar um processo penal de estrutura mitigada em outro diverso, de estrutura radicalmente acusatória. A exigência significa apenas que se obedece ao princípio contido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, pois que, «[e]m todas as garantias de defesa engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre acusação (normalmente apoiada pelo poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante especificas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas» (J. J. Comes Canotilho/Vital Moreira, Constituição do República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., 2007, Coimbra, Coimbra Editora, p. 516.
[...].
Deverá pois, ser mantida a jurisprudência dos acórdãos citados, por aplicável ao caso em análise, e em consequência, deve o presente recurso obter provimento.
Conclusões:
1.ª O Tribunal da Relação interpretou e aplicou a norma constante do artigo 188.º, n.º 3, do CPP (versão anterior), como não sendo inconstitucional, com o sentido de que o juiz de instrução pode destruir todo o material gravado sem que ao arguido seja concedida a possibilidade de o conhecer e sobre o mesmo se pronunciar;
2.ª Tal ocorreu nos presentes autos, em que os arguidos foram escutados, tendo sido destruído todo o material que não foi considerado relevante para a investigação, sem que aos arguidos fosse concedido acesso para o utilizar em sua defesa, e eliminando-se a possibilidade de contextualizar as conversas que foram consideradas relevantes.
3.ª A norma constante do artigo 188.º, n.º 3, está ferida de inconstitucionalidade se entendida com o sentido de que todo o material gravado pode ser destruído sem que aos arguidos seja dado acesso ao mesmo, por violação das garantias de defesa consagradas do artigo 32.º, n.º 1, da CRP. Por isso,
4.ª Deve ser declarada inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 3, do CPP, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, com a interpretação de que se permite a destruição dos elementos de prova obtidos com as escutas telefónicas, que o OPC e o MP conheceram e o Meritíssimo Juiz de Instrução julgou irrelevante para a investigação, sem que ao arguido seja dado conhecimento dos mesmos e se possa pronunciar sobre a relevância deles.
Nestes termos se requer a V. Exa.s que, conhecendo o presente recurso, venham a declará-lo procedente, e em conformidade, a declarar inconstitucional a norma constante do artigo 188.º, n.º 3, do CPP (anterior versão), quando interpretada com o sentido conferido na decisão recorrida.
Notificado da apresentação das alegações dos recorrentes Samuel Miranda e António Jorge Moreira Vieira, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio dizer que nada mais tinha a acrescentar às alegações que produzira (fls. 399).
II - Fundamentação
2 - A questão que vem discutida é a de saber se é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, asseguradas pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a sua defesa.
Sobre essa mesma matéria já se pronunciou especificamente o citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/06, de 28 de Novembro de 2006, que decidiu "julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância".
No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos n.os 450/07 e 451/07, ambos de 18 de Setembro de 2007.
É, aliás, na explanação seguida nesses arestos que os recorrentes Samuel Miranda e António Jorge Moreira Vieira se apoiam para defender idêntica solução, no caso vertente, ao passo que o magistrado do Ministério Público, aqui também na posição de recorrente, se baseia, para concluir no sentido oposto, nas considerações que foram aduzidas nos votos de vencido que acompanham esses acórdãos.
Importará, por isso, começar por expor, em termos argumentativos, as posições que se encontram em confronto, para daí partir para o entendimento que, no presente, melhor se considera ajustado ao caso.
Na verdade, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/06 excluiu que, em caso de intercepção e gravação de conversações telefónicas, e para efeito da eliminação dos conteúdos das comunicações interceptadas, as garantias de defesa do arguido se bastem com o controlo da relevância dos elementos de prova, por parte do juiz de instrução.
Para assim concluir, o Tribunal ponderou que a destruição, apenas por decisão do juiz de instrução, sem conhecimento pelo arguido, dos elementos de prova obtidos por intermédio da intercepção de telecomunicações, constitui, só por si, uma compressão inaceitável e desnecessária das garantias de defesa e que é particularmente notória na comparação da sua posição com a da acusação. Isso porque o arguido, que sofreu uma intervenção restritiva nos seus direitos fundamentais ao ser objecto de escutas telefónicas, acaba por ver eliminados os registos dessas comunicações, sem poder tomar conhecimento do seu conteúdo e sobre eles se pronunciar, enquanto que a acusação (rectius, o órgão de polícia criminal e o Ministério Público) tem acesso ao conteúdo integral e completo das comunicações e pode (deve mesmo) seleccionar e indicar as partes que considera relevantes (artigo 188.º, n.º 1, parte final), tendo uma intervenção substancial anterior à apreciação do juiz e podendo influenciar a sua decisão sobre a relevância dos elementos coligidos.
O acórdão entende, por outro lado, que não é possível contrapor, como justificação para a destruição dos registos tidos como irrelevantes, a ideia de que essa operação visa a própria protecção de direitos fundamentais de terceiros ou do próprio arguido, por se tratar de dados que, resultando da intercepção de comunicações, representam em si uma devassa da intimidade da vida privada. Neste plano de consideração, o tribunal chama a atenção para a circunstância de a destruição dos registos, com fundamento no disposto no artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ter por base exclusivamente a apreciação da relevância das conversações para efeito de prova, por parte do juiz, e não a ilegalidade das escutas ou a protecção dos direitos de terceiros ou do arguido. E, assim, a invocação da protecção de terceiros contra intromissão na vida privada só poderia colocar-se no plano abstracto, da presunção de que todas e quaisquer escutas podem pôr em causa esses direitos de terceiros.
A estas razões acrescenta o Acórdão 450/07 (e, na sua esteira, o Acórdão 451/07) outras que se julga apontarem também no sentido da inconstitucionalidade da solução legislativa contida no citado artigo 188.º, n.º 3. Por um lado, a consideração de que o exercício do direito de o arguido examinar o auto de transcrição para se inteirar da conformidade entre o que havia sido transcrito e o que havia sido gravado as transcrições [a que se refere o n.º 5 desse artigo] tem como pressuposto necessário que o arguido possa ter acesso à integralidade das gravações que foram efectuadas. Por outro lado, a ideia de que o direito à palavra, como refracção do direito à reserva de intimidade da vida privada, pressupõe a existência de uma liberdade de comunicação espontânea, que pode gerar inferências de sentido que reduzem a compreensibilidade do que foi dito, quando interceptadas por decisão unilateral e externa de terceiros.
As posições expressas nos votos de vencido que acompanham o Acórdão 660/06 situam-se, por sua vez, num plano de análise diametralmente oposto.
Aí entende-se que a argumentação do acórdão parte da ideia de que, uma vez realizada a intercepção, se tornará secundário assegurar os valores e interesses cuja restrição foi afectada, por as garantias de defesa e o contraditório consagradas no artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição se terem tornado prevalecentes relativamente à reserva da intimidade da vida privada do próprio arguido ou de terceiro.
No entanto - como se explicita - , o facto de uma intercepção ter sido já realizada e de a correspondente conversação ter sido ouvida por órgãos de polícia criminal e autoridades judiciárias não torna irrelevante o prejuízo para a reserva da intimidade da vida privada que pode advir da conservação dos respectivos suportes, visto que essa conservação gera sempre um perigo acrescido de reprodução e de devassa.
O juiz de instrução tem precisamente por função assegurar os direitos, liberdades e garantias - do arguido, de outros sujeitos processuais e de quaisquer terceiros - , como decorre do n.º 4 do artigo 32.º da Constituição, pelo que entender que esse órgão judiciário está proibido de ordenar a destruição de quaisquer gravações de escutas que considere, segundo a sua análise e ponderação, manifestamente irrelevantes constitui uma interpretação desproporcionada das exigências constitucionais no processo penal. Se assim sucedesse, estaria aberto o caminho para que todas as violações de direitos fundamentais (mesmo envolvendo só terceiros) e as correspondentes actividades de investigação e de obtenção de prova (intercepção de comunicações e até outras) se viessem a consolidar na ordem jurídica para ulterior satisfação de uma arbitrária vontade do arguido.
Neste contexto - conclui-se - , a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal o que faz é consagrar, em termos constitucionalmente admissíveis, a possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão injustificada na reserva da intimidade da vida privada do arguido ou de terceiros (artigo 26.º, n.º 2, da Constituição).
3 - Sendo estes os termos em que a questão se coloca, tal como é apresentada pelas partes, que se arrimam, nas suas peças processuais, em cada uma das posições contrastantes acabadas de referir, cabe efectuar o necessário enquadramento sistemático da norma sobre a qual se impõe a formulação do juízo de constitucionalidade.
No plano da lei geral, a confidencialidade das telecomunicações é expressamente garantida pela Lei de Tratamento de Dados Pessoais e Protecção da Privacidade no Sector das Comunicações Electrónicas (Lei 41/2004, de 18 de Agosto) e, particularmente, pelo artigo 4.º desta Lei, que assegura a inviolabilidade das comunicações e respectivos dados de tráfego no domínio das redes públicas de comunicações e dos serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público, proibindo a escuta, a instalação de dispositivos de escuta, o armazenamento e outros meios de intercepção ou vigilância de comunicações sem o consentimento prévio e expresso dos utilizadores, com excepção apenas dos casos previstos na lei.
O sigilo das telecomunicações merece, porém, garantias inscritas logo ao nível fundamental da Constituição, dispondo o seu artigo 34.º, nos n.os 1 e 4, que "o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis", e que "é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal" (veja-se, quanto a estes aspectos, o parecer da PGR n.º 21/2000, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Agosto de 2000, que se acompanhará por alguns momentos).
Por força do estatuído neste n.º 4, o direito ao sigilo das telecomunicações implica a proibição de devassa do seu conteúdo e da sua divulgação por quem a elas tenha acesso, designadamente os empregados dos serviços de telecomunicações para quem decorre o dever de sigilo profissional. E, correspondentemente, traduzindo o relevo e protecção na conformação de valores fundamentais, o Código Penal incriminou condutas violadoras do direito dos cidadãos à comunicação reservada através dos artigos 192.º, n.º 1, alínea a), e 194.º, que têm o respectivo âmbito de protecção definido para a intromissão na vida privada mediante acesso às comunicações telefónicas e a violação da correspondência e das telecomunicações.
A inviolabilidade da correspondência e de outros meios de comunicação está, por seu turno, relacionada com a reserva de intimidade da vida privada a que se reporta o artigo 26.º da Constituição da República. O direito à intimidade da vida privada, como garantia de resguardo, de reserva, de protecção, supõe a faculdade de impedir a revelação de factos relativos à vida íntima e familiar, de requerer a cessação de algum eventual abuso e o ressarcimento dos danos derivados da divulgação de um facto respeitante à vida privada.
Só no domínio do processo penal é que a lei ordinária pode prever restrições à referida garantia contida no artigo 34.º, n.º 4. As necessidades de perseguição penal e de obtenção de provas justificam a compressão do direito individual à comunicação reservada, mas carecem de ser avaliadas pelas autoridades judiciárias em termos de necessidade, adequação e proporcionalidade, de tal modo que violado que seja o princípio da menor intervenção possível e da proporcionalidade, há-de a prova assim obtida ser considerada nula (artigos 32.º, n.º 8, da Constituição e 189.º do Código de Processo Penal).
É neste plano que se compreendem as limitações que são impostas pelo Código de Processo Penal no tocante à obtenção de prova através de escutas telefónicas, e que resultam do disposto nos artigos 187.º a 190.º (tendo em consideração a redacção anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, aplicável ao caso).
O primeiro desses preceitos define as condições em que é admissível a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas, especificando que elas só podem ser ordenadas ou autorizadas, por despacho do juiz, relativamente aos crimes que aí são identificados e apenas «se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova».
Por sua vez, o artigo 188.º, com a redacção resultante da Lei 59/98, de 5 de Agosto, e do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, providencia sobre as «formalidades das operações», dispondo o seguinte:
«1 - Da intercepção e gravação a que se refere o artigo anterior é lavrado auto, o qual, junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações, com a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados relevantes para a prova.
2 - O disposto no número anterior não impede que o órgão de polícia criminal que proceder à investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação interceptada a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
3 - Se o juiz considerar os elementos recolhidos, ou alguns deles, relevantes para a prova, ordena a sua transcrição em auto e fá-lo juntar ao processo; caso contrário, ordena a sua destruição, ficando todos os participantes nas operações ligados ao dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento.
4 - Para efeitos do disposto no número anterior, o juiz pode ser coadjuvado, quando entender conveniente, por órgão de polícia criminal, podendo nomear, se necessário, intérprete. À transcrição aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 101.º, n.os 2 e 3.
5 - O arguido e o assistente, bem como as pessoas cujas conversações tiverem sido escutadas, podem examinar o auto de transcrição a que se refere o n.º 3 para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem, à sua custa, cópias dos elementos naquele referidos.»
Como o regime processual claramente pressupõe, a admissibilidade da intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas ou transmitidas por outro meio técnico está conformada pelo princípio da proporcionalidade: não só pela especial gravidade dos casos em que é admitida (os chamados "crimes de catálogo"), mas também pela exigência de um juízo da necessidade e do grande interesse para a descoberta da verdade. De tal modo que, pelos termos da revelação processual do regime de intromissão nas comunicações e das respectivas garantias de que está rodeado, poder-se-á dizer que o sigilo das comunicações é tendencialmente absoluto (neste sentido, o parecer da PGR n.º 16/94/Complementar, de 2 de Maio de 1996, publicado em Pareceres, vol. vi, pág. 535).
O carácter restritivo da utilização desse meio de prova é também evidenciado pelo regime procedimental que lhe é aplicável e que expressamente decorre do transcrito artigo 188.º
Um dos aspectos que tem sido enfatizado e sobre o qual existe uma consistente jurisprudência constitucional - amplamente analisada no citado Acórdão 660/2006 - é o do imediatismo da intervenção do juiz de instrução em relação à actividade de recolha da prova por parte dos órgãos de polícia criminal.
Como se refere no Acórdão 407/97 aí mencionado, segundo uma interpretação constitucionalmente conforme do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, a expressão «imediatamente», no contexto normativo em que se insere, terá de pressupor um efectivo acompanhamento e controlo da escuta pelo juiz que a tiver ordenado, enquanto as operações em que esta se materializa decorrerem, e de forma alguma poderá significar a inexistência, documentada nos autos, desse acompanhamento e controlo ou a existência de largos períodos de tempo em que essa actividade do juiz não resulte do processo.
Assim, como se conclui nesse aresto, "tendo em vista os interesses acautelados pela exigência de conhecimento imediato pelo juiz, deve considerar-se inconstitucional, por violação do n.º 6 do artigo 32.º da Constituição, uma interpretação do n.º 1 do artigo 188.º do CPP que não imponha que o auto de intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles, e bem assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de novo auto de escutas posteriormente efectuadas, sobre a manutenção ou alteração da decisão que ordenou as escutas" (a mesma orientação foi retomada nos Acórdãos n.os 347/2001, 528/2003, 379/2004 e 223/2005).
É, por outro lado, esta mesma concepção que parece estar presente na norma do n.º 3 do artigo 188.º, que aqui está especialmente em foco.
O auto, juntamente com as fitas magnéticas, é imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado a intercepção e gravação das operações, com a indicação das passagens das gravações ou elementos considerados relevantes para a prova (n.º 1). Ao que se segue a intervenção jurisdicional que se traduz justamente, como explicita o subsequente n.º 3, na verificação da relevância para efeitos de prova dos elementos recolhidos, ou de alguns deles, e na ordem da sua transcrição em auto (para ser junto ao processo) e ou da sua destruição.
Ou seja, o juiz de intrução averigua imediatamente (no sentido que o Tribunal Constitucional confere a esta expressão) se a diligência, que foi ordenada ou autorizada na perspectiva de possuir um "grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova", tem efectivo relevo probatório, para efeito de, desde logo, ordenar a transcrição dos elementos coligidos que se mostrem relevantes e a destruição daqueles outros que não possuam qualquer utilidade para a finalidade que justificou a utilização do meio de prova.
Só uma tal interpretação permite conferir à intervenção do juiz a função convalidante (dita de acompanhamento e controlo) dos actos da polícia criminal, sendo que essa é também a interpretação que melhor preserva a garantia constitucional da intimidade da vida privada.
Neste enquadramento, não se impõe que o juiz, depois de ter ordenado ou autorizado certos actos de intercepção e gravação de comunicações na suposição de eles poderiam ter interesse para a prova, venha a manter os elementos recolhidos no processo, apesar de não terem qualquer efeito útil e representarem objectivamente uma violação do princípio constitucional da proibição da devassa da vida privada.
E, assim, o sentido lógico que é possível atribuir às disposições conjugadas dos n.os 1 e 3, numa interpretação conforme à Constituição (que tenha presente o carácter excepcional dos meios de obtenção de prova que envolvam a violação de direitos fundamentais dos cidadãos), é aquele que entrevê o procedimento judiciário aí previsto, nas suas diversas fases, como finalisticamente dirigido à obtenção de elementos relevantes para a investigação (e apenas desses), com a salvaguarda possível da protecção da intimidade da vida privada. Assim se compreende que a diligência seja ordenada ou autorizada por um juiz, que os seus resultados lhe sejam imediatamente comunicados e que este desde logo possa efectuar o controlo da relevância probatória dos elementos recolhidos.
Neste contexto, a faculdade processual que é atribuída ao arguido no n.º 5 do mesmo artigo 188.º, não poderá deixar de ser entendida em sintonia com o que prevê o n.º 3 desse preceito. O arguido e o assistente, bem como as pessoas cujas conversações tiverem sido escutadas, podem examinar o auto de transcrição para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem cópia desses elementos. Mas naturalmente que o exame apenas incide sobre os elementos transcritos, isto é, aqueles que, nos termos do n.º 3, foram, considerados úteis para a investigação e que poderão ser avaliados pelos interessados (incluindo o arguido) para exercerem os direitos processuais que lhe correspondem.
A consulta não abrange os elementos não transcritos pela linear razão de que esses elementos, em ordem ao princípio da menor intervenção possível e da proporcionalidade, deverão ser destruídos, por determinação do juiz, como impõe o n.º 3 desse artigo, por não terem qualquer interesse para o processo e não justificarem de per si qualquer reacção defensiva por parte de quem tenha sido objecto de escuta.
4 - Coloca-se então a questão de saber se a interpretação que se mostra ser mais conforme com o sentido literal e teleológico da norma, nos termos que se deixam expostos, se poderá encontrar ferida de inconstitucionalidade por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Esse preceito, consignando que "o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso", encerra uma claúsula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos do arguido. Todas as garantias de defesa inclui "todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação", o que implica a possibilidade de utilização de "todos os meios que em concreto se mostrem necessários para que o arguido se faça ouvir pelo juiz sobre as provas e as razões que apresenta em ordem a defender-se da acusação que lhe é movida" (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, 4.ª edição revista, p. 516; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t. i, 2005, p. 354).
É, por sua vez, a qualidade de arguido que legitima a implementação das garantias de defesa, assim se justificando que a lei processual penal determine a obrigatoriedade da constituição do arguido, para além dos casos em que seja deduzida acusação ou requerida instrução (artigo 57.º do CPP), sempre que corra inquérito contra pessoa determinada e esta for chamada a prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária, for aplicada uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, o suspeito for detido em flagrante delito ou em consequência de mandados de detenção, ou for levantado auto de notícia que dá uma pessoa como agente de um crime e este lhe for comunicado (artigo 58.º do CPP), ou se deva proceder ao primeiro interrogatório do arguido, nos termos do artigo 272.º do CPP.
Uma das componentes específicas das garantias de defesa, aliás, também expressamente reconhecida na lei fundamental, é o princípio do contraditório (artigo 32.º, n.º 5).
Este princípio abrange, como esclarecem Gomes Canotilho/Vital Moreira (a) o dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; (b) o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; (c) em particular, o direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; (d) a proibição de ser condenado por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respectivos fundamentos (ob. cit., p. 523).
É necessário, no entanto, configurar o princípio do contraditório à luz da estrutura acusatória do processo penal que a Constituição também elege como um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. O princípio da acusação enquanto caracteristica da estrutura acusatória significa, no essencial, que uma pessoa apenas pode ser julgada por um crime desde que seja feita a investigação e deduzida acusação por parte de um órgão diverso daquele a quem incumbe o julgamento, o que pressupõe uma distinção entre as diversas fases processuais (instrução, acusação e julgamento) e entre os diversos órgãos intervenientes (Ministério Público, juiz de instrução e juiz julgador) (idem, p. 522).
Como logo se antevê, o sistema acusatório não é incompatível com a existência de uma fase de investigação pré-acusatória. O que sucede é que a actividades de investigação devem ser justificadas pela procura da verdade (e por isso as diligências a realizar poderão destinar-se a corrobar ou infirmar a suspeita de prática de crime) e estão submetidas a um dever de lealdade, que impede a utilização de meios de prova não legalmente admissíveis ou com preterição do formalismo legalmente estabelecido (Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., p. 359).
É justamente essa fase processual que é preenchida pelo inquérito, que a lei define como o «conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão da acusação» (artigo 262.º do CPP).
Por outro lado, o inquérito encontra-se subordinado a um princípio do inquisitório no sentido de que está sujeito ao segredo de justiça e é dominado por uma forte vertente de unilateralidade (artigos 263.º e 267.º do CPP). Isso porque as diligências de investigação a praticar no seu decurso são apenas aquelas que o Ministério Público considerar necessárias e convenientes para a descoberta da verdade, enquanto que o direito do arguido de nele intervir, oferecendo provas e requerendo as diligências que julgue necessárias [como prevê o artigo 61.º, n.º 1, alínea f), do CPP] tem um escasso alcance prático, em razão do desconhecimento do estádio de investigação e dos elementos de indiciação entretanto recolhidos (neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. iii, 2.ª ed., Lisboa, pp. 91 e 100).
Assim se compreende que a estrutura acusatória do processo, tal como está consagrada na Constituição, tenha sobretudo o significado de efectuar a parificação do posicionamento jurídico da defesa em relação à acusação, assegurando a aplicação do princípio da igualdade de armas mediante a possibilidade conferida ao arguido (e ao seu defensor), não só de participar no esclarecimento dos factos na fase de instrução, como também de intervir activamente na preparação e discussão da causa, com liberdade de investigação extraprocessual.
Neste contexto, como explicitamente decorre do disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, o princípio do contraditório traduz-se na estruturação da «audiência de julgamento e dos actos instrutórios que a lei determinar» em termos de assegurar um debate entre a acusação e a defesa. Subsiste, no entanto, aqui uma diferença de grau. O princípio do contraditório na audiência de julgamento pressupõe que as partes sejam chamadas a deduzir as suas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas, a controlar as provas contra si oferecidas e a discretear sobre o valor e resultados de umas e de outras (Germano Marques da Silva, «Princípios gerais do processo penal e Constituição da República Portuguesa», in Direito e Justiça, vol. iii, 1987-1988, p. 175). Na fase de instrução, o mesmo princípio representa a possibilidade de o arguido indicar novas diligências ou novos meios de prova que não tenham sido ainda considerados e ou a realização de um debate instrutório que permita a discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento (artigos 287.º, n.º 2, e 298.º do CPP). Relativamente a qualquer actividade que se desenrole ainda na fase do inquérito, o contraditório concretiza-se pela presença do arguido nos actos que directamente lhe disserem respeito e de ser ouvido sempre que se deva tomar qualquer decisão que o afecte pessoalmente, e, bem assim, no direito de não responder a perguntas, de escolher ou solicitar que lhe seja nomeado um defensor e de ser informado sobre os direitos que lhe assistem (artigo 61.º do CPP) (Cunha Rodrigues, «Sobre o princípio da igualdade das armas», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, fasc. 1, Janeiro-Março de 1991, p. 99).
Os actos instrutórios cobertos pelo princípio do contraditório, nos termos constitucionalmente exigíveis, quando produzidos na fase de inquérito, são, por conseguinte, aqueles que possam afectar directamente a estatuto jurídico do arguido, e, especificadamente, o interrogatório de arguido (artigos 141.º e 143.º do CPP), a aplicação de medidas de coacção (artigo 194.º) e quaisquer diligências que visem, desde logo, a recolha de declarações para memória futura de modo a serem consideradas em julgamento (artigo 271.º) (sobre estes apectos, em termos gerais, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., pág. 360).
O quadro de referência do legislador do Código de Processo Penal é também elucidativo quanto ao âmbito de aplicação do princípio do contraditório na fase de inquérito. A lei de autorização legislativa (Lei 43/86, de 26 de Setembro) define como linha de orientação a «garantia efectiva da liberdade da actuação do defensor em todos os actos do processo, sem prejuízo do carácter não contraditório da fase de inquérito», o que permite sustentar a ideia de que o princípio da igualdade das armas se aplica a todos os actos de processo com as limitações resultantes da estrutura não-contraditória do inquérito, reconhecendo-se assim que «nesta fase está ausente uma exigência de reciprocidade dialéctica» (Cunha Rodrigues, ob. cit., pág. 97).
Como observa o mesmo autor, o Código aplica o princípio da igualdade de armas a todos os actos do processo, efectuando, no entanto, uma nítida demarcação entre a fase de inquérito e as fases subsequentes, ao não confundir posição jurídica com meios jurídicos (armas). «No inquérito, por se tratar de uma fase não contraditória, a igualdade de armas é colocada ao serviço das garantias de defesa». O princípio instala-se nessa fase do processo sempre que seja necessário efectivar a posição jurídica dos intervenientes, nomeadamente quanto à constituição de arguido (artigos 58.º e 59.º), à definição da posição processual e dos direitos e deveres do arguido (artigos 60.º e 61.º), às regras sobre o defensor (artigos 62.º e seguintes), à proibição de métodos de prova (artigo 126.º) e a todos os actos em que, pela natureza dos valores em causa, é mister introduzir uma função contraditória arbitrada pelo juiz. Pelo contrário, «na instrução e no julgamento, o princípio adquire uma função estruturante», colocando ao dispor dos intervenientes todos os meios e recursos jurídicos destinados a permitir a defesa das suas posições (ob. cit., p. 98)
Como é de concluir, a acusação, por si e através dos órgãos de polícia criminal, tem uma função pré-processual em que a defesa, pela natureza das coisas, não participa ou não participa em termos de contraditório, o que torna igualmente incomportável, para as finalidades do processo, o reconhecimento de um pretenso direito de a defesa investigar autonomamente nessa fase pré-acusatória (idem, pp. 89-90).
Por isso, também, a faculdade de intervir no inquérito, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurem necessárias - que é reconhecida ao arguido através do artigo 61.º, n.º 1, alínea f), do CPP - , não tem a função de contraditar as provas coligidas nessa fase processual (que o arguido desconhece ou a que não teve acesso), mas corresponde antes a um direito de iniciativa que visa salvaguardar a sua posição jurídica e que, nesse plano, tem o mesmo valor de qualquer das demais garantias de defesa que o artigo 61.º do CPP consagra.
5 - No caso vertente, ao pretender-se demonstrar a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 188.º, n.º 3, do CPP na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, pode colocar-se a tónica no facto de as escutas telefónicas serem efectuadas para os fins que mais interessam à investigação, com tendência para a desvalorização de conversações que, sendo aparentemente irrelevantes, poderiam, todavia, servir para justificar certos factos, na perspectiva da defesa. Seria, assim, a eventual relevância de todo o material que fosse objecto de gravação que tornava conveniente a não eliminação dos registos sem antes ser dada oportunidade às partes de tomarem conhecimento dos elementos de prova recolhidos e exercerem o contraditório.
Como se deixou entrever, não é essa, no entanto, a lógica da actividade de investigação que se inicia e desenvolve com o inquérito criminal.
Embora o Ministério Público e as autoridades de polícia criminal devam actuar com imparcialidade, o certo é que o inquérito está sujeito a um princípio de averiguação pré-acusatória e não existe qualquer obrigatoriedade de assegurar a contraditoriedade relativamente às diligências que nessa fase processual venham a ser efectuadas. Essa característica do processo de inquérito determina que ele possa ser desenvolvido sobre uma estratégia de investigação que venha a revelar-se falível ou que necessite de ser corrigida em função de novos elementos. Como refere um autor, compreende-se que "perante os primeiros indícios, o investigador formule as hipóteses de um ou vários comportamentos criminosos e procure as provas que os confirmem ou desmintam. A interpretação das provas recolhidas é feita à luz das hipóteses anteriormente formuladas e a própria investigação é por elas condicionada. Podem até surgir no decurso da investigação provas fundamentais para a verdade histórica e que sejam desprezadas porque o investigador as considera irrelevantes" (Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 92).
Tratando-se de escutas telefónicas, para referir um meio de obtenção de prova que está aqui particularmente em causa, a relevância probatória dos registos recolhidos pode depender dos alvos que tiverem sido seleccionados ou da oportunidade em que se realizou a intercepção das comunicações. Do mesmo modo que a investigação pode ter sido dirigida erroneamente para a averiguação de determinados elementos que não tinham pertinência para o caso.
A questão não é essencialmente diversa quando a autoridade de investigação, ao levar ao conhecimento do juiz os resultados das operações de intercepção de comunicações telefónicas, com a indicação das passagens das gravações relevantes, tal como prevê o n.º 1 do artigo 188.º do CPP, acaba por fazer menção de elementos que não tenham relevo para o caso, desperdiçando porventura outros que poderiam ter preponderância.
A única consequência, numa tal circunstância, é a completa ineficiência dos actos de investigação que tenham sido realizados em face dos objectivos de sustentação de um libelo acusatório, e que poderá vir a culminar, por ausência de prova bastante da verificação do ilícito criminal, com o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público (artigo 277.º), com o despacho de não pronúncia pelo juiz de instrução (artigo 308.º) ou pela absolvição do arguido em sede de julgamento (artigo 376.º).
A questão coloca-se nos mesmos termos nas situações em que o arguido venha a sustentar uma necessidade concreta de contextualização ou de narrativa para a qual se tornaria necessário examinar as escutas que foram consideradas irrelevantes e entretanto destruídas. Como se observou num dos votos de vencido que acompanha o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/06, estaremos, neste caso, perante um erro do juiz de instrução quanto à extensão da relevância dos elementos recolhidos através das escutas telefónicas e que poderá conduzir à insuficiência probatória por falta de adequada contextualização dos suportes não destruídos, que necessariamente determinará, do mesmo modo, a inaptidão do meio de prova para o pretendido efeito de indiciação da prática do crime.
Em qualquer caso, é de considerar que não existe uma qualquer violação do princípio do contraditório, no âmbito do processo de inquérito, pelo facto de o juiz de instrução, no exercício do poder processual que lhe confere a citada norma do artigo 188.º, n.º 3, do CPP, vir a ordenar a eliminação dos conteúdos das comunicações interceptadas ou de uma parte deles sem prévia audição do arguido.
Face à própria natureza essencialmente investigatória do processo de inquérito - como há pouco se deixou explanado -, o arguido não tem de se pronunciar sobre a relevância dos registos das escutas telefónicas, como não tem de tomar posição sobre o modo e o lugar da intercepção ou o circunstancialismo temporal em que ela deve ocorrer, aspectos que naturalmente relevam de critérios de oportunidade que só ao Ministério Público, sob pena de frustrarem os objectivos da investigação, cabe definir. E o arguido não tem de se pronunciar sobre essa matéria como não tem de o fazer relativamente a qualquer outro resultado probatório que tenha sido obtido através de um outro meio de prova. As escutas telefónicas, nesse plano, distinguem-se de qualquer outro método de recolha de elementos de indiciação da prática de crime apenas pelo seu carácter restritivo, quer no que concerne ao âmbito de admissibilidade, quer ao respectivo formalismo procedimental, e que é justificado pela apontada circunstância de representar objectivamente uma forma de violação da intimidade da vida privada.
Do ponto de vista das garantias de defesa do arguido - e, especialmente, por referência ao princípio do contraditório -, as escutas telefónicas, ressalvadas as limitações que decorrem da lei processual, estão sujeitas ao mesmo regime de qualquer outro meio de prova legalmente admissível, e terão de ser também encaradas de acordo com os princípios gerais que regulam o processo de inquérito.
Em especial, a destruição de elementos recolhidos por irrelevância probatória não colide com o princípio do contraditório, que, tal como está constitucionalmente consagrado, apenas se torna aplicável nas fases subsequentes do processo penal, com excepção apenas de actos instrutórios que, praticados no âmbito do inquérito, possam pôr em causa directamente direitos do arguido, e cuja amplitude se circunscreve, como ficou dito, aos actos relativos à aplicação de medidas de coacção e às inquirições que devam ser feitas no inquérito para serem tomadas em conta no julgamento.
6 - Certo é que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/06, que preconiza uma solução contrária, para além de interpretar a intervenção do juiz de instrução, quando desacompanhada de prévia audição do arguido, como um mecanismo susceptível de instituir um desequilibrio entre a posição da acusação e da defesa (representando assim uma forma de compressão das garantias de defesa do arguido), apoia a sua posição em diversos dados que resultam quer de iniciativas legislativas apresentadas na anterior legislatura, quer da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, quer ainda do direito comparado, que apontam no sentido da conservação das gravações não transcritas até ao trânsito em julgado da decisão.
Para além de ser esse o sentido da alteração proposta no projecto de lei 424/IX, apresentado na anterior legislatura pelo Bloco de Esquerda, tem particular relevância, na economia do acórdão, a chamada da atenção por parte do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem para a necessidade de as legislações nacionais poderem assegurar «a comunicação intacta e completa das gravações efectuadas, para efeito de controlo pelo juiz e pela defesa» e estabelecerem as circunstâncias em que se pode operar o apagamento ou a destruição das gravações, designadamente após o arquivamento definitivo do processo ou o trânsito em julgado da condenação final, indicação que resulta especialmente dos acórdãos Huvig, de 24 de Abril de 1990 (considerando n.º 34), Kruslin, da mesma data (considerando n.º 35), Valenzuela Contreras, de 30 de Julho de 1998 (considerandos n.os 46, IV, e 59), e Prado Bugallo, de 18 de Fevereiro de 2003 (considerando n.º 30).
O Acórdão 660/06 também valorizou o facto de a nossa legislação, quanto à possibilidade de destruição imediata dos suportes das escutas com base na apreciação da sua relevância pelo juiz, se encontrar isolada relativamente ao regime vigente noutras ordens jurídicas europeias mais próximas, que prevêem diversos mecanismos de preservação das gravações, ou permitindo que estas sejam mantidas intactas a fim de as partes as poderem consultar e requerer a transcrição de passagens inicialmente tidas por irrelevantes (Bélgica), ou diferindo a sua destruição para um momento ulterior que não inviabilize a audição das gravações pela defesa (França, Itália e Espanha).
Resta agora acrescentar que a Lei 48/2007, de 29 de Agosto, na sequência da proposta de lei 140/X, apresentada já na actual legislatura, pretendendo alterar substancialmente o regime do artigo 188.º do CPP, preconiza a preservação dos suportes técnicos que tenham resultado da intercepção de comunicações, permitindo, a partir do encerramento do inquérito, que o assistente e o arguido possam examinar os registos para requerer a abertura da instrução ou apresentar a contestação, e o tribunal possa proceder à audição das gravações para determinar a correcção das transcrições já efectuadas ou a junção aos autos de novas transcrições, sempre que o entender necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (n.os 8 e 10). Cominando, por sua vez, a destruição imediata dos registos ou relatórios apenas nos casos em que, sendo manifestamente estranhos ao processo, disserem respeito a conversações em que não intervenham pessoas directamente interessadas (o suspeito ou arguido, a pessoa que sirva de intermediário e a vítima do crime), que abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado ou cuja divulgação possa afectar gravemente direitos, liberdades e garantias (n.º 6).
Há, portanto, novos elementos que apontam no sentido de uma tendencial manutenção, para efeitos processuais, dos registos efectuados através de intercepção e gravação de comunicações.
Importa em todo o caso notar que a verificação da conveniência de preservar os registos das conversações telefónicas que digam directamente respeito ao intervenientes, para efeito de assegurar o direito de exame e de contradição por parte do arguido ou outros interessados e permitir o controlo das transcrições que tiverem sido efectuadas para uma boa decisão da causa, constitui uma medida de política legislativa que não implica necessariamente o reconhecimento da existência de um direito ao contraditório no âmbito do processo de inquérito.
Na verdade, uma coisa é considerar que há vantagem, em termos processuais, na conservação dos registos (desde que salvaguardado o carácter sigiloso dos conteúdos); outra coisa é dizer que a destruição desses registos, na fase do inquérito, sem prévia audição do arguido, afronta a garantia do princípio do contraditório.
Nem a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nem o direito comparado, nem a recente alteração legislativa relativa ao actual artigo 188.º do CPP, apontam no sentido de assegurar ao arguido o direito de contraditório relativamente às diligências de investigação realizadas no âmbito do inquérito e que envolvam a intercepção e gravação de comunicações telefónicas. O que se reconhece é o interesse em manter intactas e completas as gravações para efeito de ulterior controlo quer pelo tribunal quer pela defesa.
Entretanto, o regime que decorre do artigo 188.º, n.º 3, na sua anterior redacção, assente num critério mais apertado de limitação dos efeitos negativos que a intercepção de comunicações sempre representa, sendo tributário de uma concepção legislativa que valoriza a protecção da intimidade da vida privada no confronto com os possíveis interesses da justiça material do caso concreto, não impõe, em todo o caso, uma diminuição intolerável dos direitos do arguido.
Já vimos que as garantias de defesa, reconhecidas no texto constitucional, não vão além, na parte que agora mais interessa considerar, da previsão de um processo criminal com estrutura acusatória em que apenas a audiência de julgamento e certos actos instrutórios especialmente previstos na lei é que estão subordinados ao princípio do contraditório.
O princípio acusatório e o reconhecimento do direito de contraditoriedade tem, pois - como já foi amplamente exposto - , um sentido inteiramente diverso, que é o de assegurar ao arguido a possibilidade de, nas fases ulteriores do processo, contrabater as razões e as provas que tenham sido contra ele coligidas e tomar também iniciativas instrutórias e de realização de prova que considerar pertinentes.
No entanto, como é bem de ver, esse direito de contraditório existe em relação às provas em que se funda a acusação, as mesmas que serão ponderadas pelo juiz de instrução, para efeito de emitir o despacho de pronúncia, e levadas a julgamento, para efeito a condenação do réu.
É só em relação a essas provas - e não a quaisquer outras que os investigadores tenham considerado irrelevantes ou tenham abandonado por considerarem (bem ou mal) imprestáveis para os fins de indiciação da prática de ilícito - , que o arguido poderá responder, alegando as razões que fragilizam os resultados probatórios ou indicando outras provas que possam pôr em dúvida ou infirmar esses resultados.
É o exercício desse direito, nas fases processuais subsequentes à investigação, que permite justamente equilibrar a posição jurídica da defesa em relação à acusação e dar cumprimento ao princípio da igualdade das armas. E é esse - e apenas esse - o sentido do princípio do acusatório que decorre do disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
É essa também a essência do processo equitativo ou do due process of law, que justamente envolve como um dos seus aspectos fundamentais (para além da independência e imparcialidade do juiz e a lealdade do procedimento) a consideração do arguido como sujeito processual a quem devem ser asseguradas as possibilidades de contrariar a acusação.
Todavia, o arguido não tem o direito nem interesse processual a contraditar as provas produzidas no inquérito que foram consideradas irrelevantes (e que não servem de fundamento à acusação), como não tem direito nem interesse processual em conhecer todos os expedientes ou diligências de que os órgãos de polícia criminal se serviram, segundo as estratégias de investigação que consideraram em cada momento adequadas ao caso e que podem, entretanto, ter sido abandonadas.
Acresce que a não audição do arguido relativamente à relevância das provas recolhidas não obsta a que ele possa pôr em causa, em sede de julgamento, os correspondentes resultados probatórios. E assim, as deficiências que puderem ser apontadas à investigação, assim como a insuficiência ou a descontextualização das passagens das gravações, na medida em que dificultam ou impedem a prova dos factos que constam da acusação relevam a favor do arguido, que poderá justamente utilizar a fase de instrução e de audiência de julgamento para fazer valer, em contraditório, as imprecisões e fragilidades das provas em que se funda a acusação.
O que tem também plena aplicação quando se pretenda ver (como nos Acórdãos n.os 450/07 e 451/07) como fundamento da inconstitucionalidade da norma do artigo 188.º, n.º 3, o risco que a não preservação integral dos registos possa representar para a verificação da conformidade do auto de transcrição ou para a compreensibilidade do discurso fragmentário.
Como se impõe concluir, ainda que possa considerar-se aconselhável de jure condendo assegurar a integralidade das conversações telefónicas interceptadas, por razões de política legislativa que considerem prevalecentes as vantagens daí advenientes para a justiça do caso concreto (como veio a entender-se com a publicação da Lei 48/2007), tais considerações não justificam um juízo de inconstitucionalidade relativo à norma do artigo 188.º, n.º 3, do CPP (na versão anterior a essa Lei), que, por tudo o que foi dito, não representa uma violação das garantias de defesa do arguido.
Ou seja, tendo em conta o sentido jurídico-constitucional do princípio acusatório e a possibilidade de colisão entre o interesse processual em manter intactas as provas coligidas através de intercepção e gravação de comunicações e o correspondente risco de devassa da reserva de intimidade da vida privada, cabe na liberdade de conformação legislativa adoptar um critério mais ou menos restritivo no que se refere ao momento em que, no decurso do processo penal, deverá efectuar-se a destruição dos elementos de prova considerados irrelevantes.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º, nº 3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a sua defesa, e, consequentemente, negar provimento aos recursos.
Custas pelos recorrentes que interpuseram recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008. - Carlos Fernandes Cadilha - Maria João Antunes (com declaração) - Carlos Pamplona de Oliveira - João Cura Mariano - Vítor Gomes - José Borges Soeiro - Joaquim de Sousa Ribeiro - Benjamim Rodrigues - Maria Lúcia Amaral (vencida, pelas razões no essencial expressas na declaração de voto do Sr. Conselheiro Mário Torres) - Gil Galvão [vencido, no essencial, pelas razõesconstantes do Acórdão 450/2007, que subscrevi (sendo certo que o preceito constitucional aí considerado violado foi o artigo 32.º, n.º 1, da CRP)] - Ana Guerra Martins (vencida, no essencial, com base na fundamentação constante dos Acórdãos n.os 660/06, 450/07 e 451/07 (de que sou relatora) - Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da declaração de voto junta).
Declaração de voto
Votei a decisão de não julgar inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que o juiz de instrução pode destruir o material coligido através de escutas telefónicas, quando considerado não relevante, sem que antes o arguido dele tenha conhecimento e possa pronunciar-se sobre o eventual interesse para a sua defesa.
Trata-se de norma que "consagra, em termos constitucionalmente admissíveis, a possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão injustificada na reserva da intimidade da vida privada do arguido ou de terceiros" (cf. declaração de voto da Conselheira Fernanda Palma no Acórdão 660/2006). Com efeito, "as escutas telefónicas são [...] portadoras de uma danosidade social polimórfica e pluiridimensional que, em geral, não é possível conter nos limites, em concreto e à partida, tidos como acertados" (Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 283).
A norma em apreciação, quando confrontada com a estrutura processual onde se insere - estrutura acusatória integrada por um princípio subsidiário de investigação judicial - não contende com as garantias do processo criminal constitucionalmente consagradas (artigo 32.º). Quer numa consideração estática, a partir do estatuto processual do arguido e do Ministério Público, quer numa consideração dinâmica, por referência às diferentes fases do processo e à interacção entre os diversos participantes processuais.
Uma das dimensões fundamentais do estatuto processual do arguido é o direito de defesa, entendido este como uma categoria aberta à qual devem ser imputados os direitos processuais que fazem dele um sujeito processual, titular de direitos autónomos de conformação da concreta tramitação do processo como um todo, em vista da sua decisão final. O direito de defesa supõe, nomeadamente, uma prossecução processual que faça ressaltar quer as razões da acusação quer as da defesa, o que equivale à consagração do princípio do contraditório (artigos 32.º, n.º 5, da Constituição). No processo penal português o arguido é titular de direitos autónomos daquele tipo, apesar de a fase de inquérito ocorrer com exclusão da publicidade (cf., especialmente, alíneas a), b) e f) do n.º 1 do artigo 60.º do Código de Processo Penal e artigo 86, n.º 1, deste Código, na versão anterior à agora vigente). Ainda que de forma limitada, o princípio do contraditório estende-se também à fase de inquérito, afastando-se de uma concepção marcadamente inquisitória desta fase de investigação, em resultado da harmonização de finalidades processuais e de direitos conflituantes: as finalidades de realização da justiça e de descoberta da verdade material, por um lado, e a protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos, por outro; os direitos fundamentais do arguido, por um lado, e os direitos fundamentais de terceiros, por outro.
No processo penal, em consonância com o estatuto que a Constituição lhe atribui (artigo 219.º), o Ministério Público é um órgão de administração da justiça com a particular função de, nas palavras do artigo 53.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções a critérios de estrita objectividade». Uma actuação norteada por critérios estritos de legalidade e objectividade, tornando-se desta forma bem claro que a atitude desta magistratura no decurso do processo penal não é, propriamente, a de interessada na acusação, mas sim a de um órgão que acusa ou arquiva depois de ter investigado à charge et à decharge, o que afasta irremediavelmente a caracterização do processo penal português como um "processo de partes" e prejudica o apelo, sem mais, ao princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa.
Na fase de inquérito, fase de investigação da notícia do crime, cabe ao Ministério Público descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação, constituindo objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime e para a punibilidade ou não punibilidade do arguido (artigos 53.º, n.º 1, 124.º, n.º 1, e 262.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). De acordo com a lei, a ordem judicial de destruição de elementos irrelevantes para a prova, obtidos através de escutas telefónicas, não pode abranger elementos relevantes para a prova da inexistência do crime ou para a não punibilidade do arguido. Não pode abranger elementos relevantes para a prova que interessa à defesa, cabendo ao juiz assegurar que assim é feito, exercendo a função de tutela das garantias de defesa do arguido que é própria da reserva de juiz (artigo 32.º, n.os 1 e 4, da Constituição). Por outro lado, o arguido pode examinar o auto de transcrição para se inteirar da conformidade das gravações (artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) e contraditar os meios de prova obtidos através da escuta telefónica, fazendo ressaltar as razões da defesa.
Deduzida acusação, confrontado com os meios de prova que a sustentam, designadamente os obtidos através de escuta telefónica, ao arguido é dada a possibilidade de requerer a abertura da instrução para o efeito de ser comprovada judicialmente a decisão do Ministério Público de submeter a causa a julgamento (artigos 286.º, 287.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, especialmente alínea f), do Código de Processo Penal), enquanto titular de um direito autónomo de conformação da concreta tramitação do processo como um todo.
Submetida a causa a julgamento, para o efeito de formação da convicção do juiz, são valoradas apenas as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, estando os meios de prova aqui apresentados submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal em nome da descoberta da verdade e da boa decisão da causa (artigos 327.º, n.º 2, 340.º, n.º 1, e 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). - Maria João Antunes.
Declaração de voto
1 - Votei no sentido de que o Tribunal Constitucional julgasse inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção dada pelo Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, interpretado no sentido de o juiz dever ordenar a destruição imediata das fitas gravadas e elementos análogos relativos a gravações de conversações telefónicas feitas durante o inquérito, que não foram consideradas relevantes para a prova, assim afectando irremediavelmente a possibilidade de o arguido, findo o inquérito, a elas ter acesso, para eventualmente sugerir a transcrição de novas passagens, por ele tidas como relevantes para a descoberta da verdade.
As razões essenciais deste juízo de inconstitucionalidade - que já haviam sido avançadas no Acórdão 4/2006, de que fui relator - constam do Acórdão 660/2006, da 2.ª Secção, que subscrevi, e dos Acórdãos n.os 450/2007 e 451/2007, ambos da 3.ª Secção.
2 - Importará, no entanto, começar por salientar que, apesar da determinação, feita ao abrigo do n.º 1 do artigo 79.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, da intervenção do Plenário do Tribunal Constitucional no julgamento do presente recurso, não deixa o Tribunal de se mover no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade, pelo que tem de atender ao critério normativo concretamente aplicado na decisão recorrida, consideradas as especificidades do caso sub judice, e não à norma contida no preceito legal em causa, abstractamente considerada.
2.1 - Daqui decorre, em primeiro lugar, que não se trata de apurar da constitucionalidade da norma em causa enquanto determinaria a imediata destruição dos suportes de gravações de conversações telefónicas em casos em que as intercepções fossem de considerar legalmente proibidas ou gravemente ofensivas de direitos, liberdades e garantias de terceiros, mas tão-só da constitucionalidade da mesma norma enquanto determina a imediata destruição desses suportes por não se haver considerado que as gravações em causa tivessem relevância para a prova, pois foi com este último alcance que a norma foi aplicada na decisão recorrida.
2.2 - Por outro lado, como resulta dos autos e da fundamentação expressa da decisão instrutória de 5 de Fevereiro de 2007, confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de Setembro de 2007, ora recorrido, no presente caso, o juiz de instrução limitou-se a ouvir as gravações que o órgão de polícia criminal sinalizou como contendo elementos relevantes para a prova.
Na verdade, do teor dos despachos judiciais proferidos na sequência da apresentação de relatórios do órgão de polícia criminal (cf. fls. 174-175, 186-187, 193-195, 204-205, 207-209, 218-219, 220-221, 223-224 e 225-226) resulta que apenas foram ouvidas pelo juiz de instrução as sessões referenciadas nesses relatórios como contendo elementos relevantes para a prova, sendo a identificação dos suportes que deveriam ser destruídos feita por exclusão de partes (todas as sessões não referidas na parte do despacho que determina as transcrições propostas pelo órgão de polícia criminal), sem qualquer referência a terem tais sessões sido ouvidas pelo juiz de instrução.
Na aludida decisão instrutória de 5 de Fevereiro de 2007, perante a arguição, feita pelos arguidos, da nulidade derivada de o juiz de instrução "não ter tomado conhecimento de todo o material gravado, seja por audição, seja por resumo, tendo sempre optado apenas por ouvir as sessões indicadas pelo OPC, sem ter conhecimento por qualquer meio do teor ou resumos das consideradas não relevantes pela polícia", foi decidido desatender tal arguição, por se considerar não existir "qualquer obrigatoriedade no sentido de ser a audição, pelo próprio juiz, da integralidade das gravações efectuadas, designadamente daquelas que o órgão de polícia criminal reputa de não relevantes, a única forma de este exercitar tal função de acompanhamento" (fls. 16-17).
Critério este que foi reiterado no acórdão ora recorrido, onde se lê:
«5 - Colocam ainda os recorrentes a questão de o Sr. juiz de instrução não ter tomado conhecimento das sessões gravadas na totalidade mas apenas daquelas que lhe foram indicadas como relevantes pelo OPC. Segundo afirmam, a lei imporia que a autoridade judiciária efectuasse o controle de todas as comunicações respeitantes aos postos escutados.
Como já referido o que a lei determina é que o OPC leve ao juiz o material gravado com a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados relevantes para a prova. E também já se deixou expresso o entendimento seguido pela jurisprudência relativamente à finalidade da intervenção do juiz.
De acordo com a interpretação dominante da jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, designadamente do acórdão de 3 de Março de 2005, citado supra, e ainda dos acórdãos de 12 de Outubro de 2005, no proc. n.º 6814/05, de 8 de Fevereiro de 2006, no proc. n.º 12075/05, ambos da 3.ª Secção, e de 27 de Fevereiro de 2007, no proc. n.º 610/07, da 5.ª Secção, não é exigível que a audição do material gravado seja integral.
Como se deixou dito, com pertinência, neste último aresto:
'De facto, razões de eficiência e de racionalização dos meios disponíveis, permitem compreender que não seja exigível ao JIC a audição integral das gravações, o que em relação a muitos processos pressuporia a sua exclusiva disponibilidade para essa questão concreta. [...] as referências, por transcrição ou por resumo, das passagens das conversações que o órgão de polícia criminal considera relevantes, são suficientes para que o juiz possa de imediato determinar a interrupção da intercepção revelada desnecessária, ou formule um juízo próprio sobre a admissibilidade e a relevância dos elementos a transcrever. Na verdade, indo essas referências acompanhadas pelas fitas gravadas ou elementos análogos, tem o juiz todas as possibilidades de reduzir ou ampliar as passagens consideradas relevantes, nada impedindo que aceite as indicações recebidas, se com elas concordar. No fundo, a apresentação das gravações já com indicação de passagens consideradas como relevantes, é uma forma do juiz beneficiar de coadjuvação, expressamente admitida pelo n.º 4 do artigo 188.º, que em nada belisca o dever de acompanhamento próximo, temporal e materialmente, das escutas, pois tem a possibilidade real de ter acesso directo às gravações, emitindo, assim, um juízo autónomo sobre a relevância dos elementos recolhidos, mesmo que seja coincidente com as indicações que acompanhavam as gravações.'»
Daqui resulta, e contrariamente ao que é sugerido por diversas passagens do precedente acórdão, que não integra o critério normativo aplicado pelas instâncias e cuja constitucionalidade cumpria apreciar a existência de um juízo positivo de irrelevância dos elementos cuja destruição imediata é determinada, juízo esse pessoal e directamente formulado pelo juiz de instrução. Do que desse critério normativo resulta é que é lícita (e legalmente imposta) a destruição imediata dos elementos de gravação que o órgão de polícia criminal não considerou relevantes para a prova, juízo com o qual o juiz de instrução se conformou, sem ter procedido pessoalmente à audição dessas gravações. É este, efectivamente, o critério legal que se entende ter sido querido pelo legislador, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, que veio impor que o auto a apresentar ao juiz passasse a conter "a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados relevantes para a prova", em execução do sentido da correspondente autorização legislativa (artigo 4.º da Lei 27-A/2000, de 17 de Novembro: "Permite-se que o juiz possa limitar a audição das gravações às passagens indicadas como relevantes para a prova, sem prejuízo de as gravações efectuadas lhe serem integralmente remetidas") - cf. n.º 2.7. do Acórdão 426/2005.
2.3 - Integrando o critério normativo aplicado na decisão recorrida, e que constitui o objecto do presente recurso de constitucionalidade, estes dois elementos - (i) fundar-se a determinação da destruição imediata dos elementos de gravação na irrelevância das intercepções para a prova (e não no carácter proibido das escutas ou na grave lesão de direitos fundamentais de terceiros), e (ii) não existir um juízo positivo de irrelevância formulado pessoalmente pelo juiz de instrução após audição integral das gravações, mas uma mera aceitação do juízo negativo de relevância formulado pelo órgão de polícia criminal - , surge como desadequada a argumentação desenvolvida no precedente acórdão fundada em considerações atinentes, por um lado, aos objectivos de pôr cobro rapidamente a intromissões abusivas na intimidade da vida privada ou à continuação de escutas proibidas, e, por outro lado, ao dever de acatamento de um pretenso juízo próprio emitido por um juiz sobre a irrelevância de gravações fundado no prévio conhecimento pessoal das mesmas, que, como se viu, não existiu neste processo, nem é legalmente exigido.
Por outro lado, ainda quanto a este último aspecto, o precedente acórdão incorre, salvo o devido respeito, em manifesta petição de princípio, quando, no último parágrafo do n.º 3 da parte II -Fundamentação, refere que "a consulta [pelo arguido] não abrange os elementos não transcritos pela linear razão de que esses elementos, em ordem ao princípio da menor intervenção possível e da proporcionalidade, deverão ser destruídos, por determinação do juiz, como impõe o n.º 3 deste artigo, por não terem qualquer interesse para o processo e não justificarem de per si qualquer reacção defensiva por parte de quem tenha sido objecto de escuta". Isto é: o acórdão dá como assente (que os elementos são irrelevantes) justamente aquilo que o arguido pretende discutir (a relevância dos elementos), discussão essa que lhe é definitivamente recusada com a imediata (e irrecuperável) destruição desses elementos.
3 - O precedente acórdão parte de uma leitura "menorizadora" da posição do arguido na fase do inquérito (n.os 4 e 5 da "Fundamentação"), cuja correcção, em termos da estrutura do actual processo penal, não interessará discutir aqui, pois nunca nos acórdãos que concluíram pela inconstitucionalidade da norma ora em causa se sustentou a admissibilidade do imediato acesso do arguido à integralidade das gravações ainda na fase do inquérito. O que sempre se sustentou foi que, nas fases posteriores em que o arguido tem acesso aos autos, era constitucionalmente imposto que tivesse acesso aos elementos das gravações que foram tidas como não relevantes, para lhe possibilitar, nessas fases (instrução e julgamento), identificar eventuais gravações cuja transcrição reputasse relevante para a descoberta da verdade, e isto não só para permitir contextualizar (e atribuir diferente sentido) conversações anteriormente transcritas, como também para sugerir a transcrição de diferentes passagens para prova de novos factos, por ele tidos por relevantes para a definição da sua responsabilidade.
E também sempre se reconheceu que era necessária a intervenção do juiz para a aquisição processual dos elementos derivados das novas transcrições sugeridas ou propostas pelo arguido. Isto é: não basta a indicação pelo arguido de que pretende a transcrição de determinadas gravações para que de imediato se proceda a essa transcrição. Também aqui - como relativamente às transcrições propostas pelo órgão de polícia criminal - se impõe a interposição do crivo do critério do juiz, em ordem a aferir da efectiva relevância desses elementos para a descoberta da verdade e da não lesão de direitos fundamentais de terceiros.
4 - Feitas estas precisões, continuo a considerar inteiramente convincente a argumentação desenvolvida no Acórdão 660/2006 no sentido da inconstitucionalidade da norma, e que se recorda:
«11 - Adiantando a resposta à questão de constitucionalidade em causa no presente recurso, entende-se resultar destes arestos (cf., sobre eles, José Manuel Damião da Cunha, «A mais recente jurisprudência constitucional em matéria de escutas telefónicas - mero aprofundamento de jurisprudência? Anotação aos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 426/2005 e 4/2006', in Jurisprudência Constitucional, n.º 8, 2005, pp. 46-55) que a dimensão normativa em causa nos presentes autos não pode deixar de ser considerada inconstitucional. É logo o que decorre da afirmação, contida no Acórdão 426/2005 para justificar a possibilidade de a selecção das passagens a transcrever ser determinada pelo juiz de instrução com base, não em prévia audição pessoal das mesmas, mas por leitura de textos contendo a sua reprodução que lhe foram espontaneamente apresentados pela Polícia Judiciária, de que se trata apenas de uma «primeira selecção, dotada de provisoriedade, podendo vir a ser reduzida ou ampliada', pois deve «ser facultado à defesa (e também à acusação) a possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria, quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido de passagens anteriormente seleccionadas'. Mas é também o que se disse - embora sem tomar posição definitiva, pois era outra a questão que havia então que decidir - no citado Acórdão 4/2006, com apoio em abundante fundamentação na qual já se notou, designadamente: que se exige, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que a lei que prevê a possibilidade de realização de escutas telefónicas deve definir «as precauções a tomar para comunicar, intactos e completos, os registos realizados, para o controlo do juiz e da defesa', possibilitando às pessoas colocadas sob escuta o direito de acesso às gravações e respectivas transcrições, e «as circunstâncias nas quais pode e deve proceder-se ao apagamento ou destruição das fitas magnéticas, nomeadamente após uma absolvição ou o arquivamento do processo'; e que o nosso sistema, na medida em que permite a destruição dos registos das comunicações sem conhecimento da defesa, mas apenas do Ministério Público, e segundo a apreciação da sua relevância pelo juiz, se encontra isolado no contexto das ordens jurídicas mais próximas.
Vejamos estes dois pontos mais em pormenor.
12 - A afirmação de que as legislações nacionais devem tomar precauções para assegurar «a comunicação intacta e completa das gravações efectuadas, para efeito de controlo pelo juiz e pela defesa' e estabelecerem as circunstâncias em que se pode operar o apagamento ou a destruição das gravações, designadamente após o arquivamento definitivo do processo ou o trânsito em julgado da condenação final, encontra-se em várias decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Assim, esse Tribunal disse nos n.os 34 e 35 dos Acórdãos Huvig e Kruslin, de 24 de Abril de 1990, sobre legislação francesa em matéria de escutas, que «o sistema não oferece de momento as garantias adequadas contra diversos abusos a recear. Por exemplo, nada define as categorias de pessoas susceptíveis de serem colocadas sob escuta judiciária, nem a natureza das infracções que podem dar lugar a elas; nada vincula o juiz a fixar um limite à duração da execução da medida; e também nada precisa as condições de realização de procedimentos verbais de síntese consignando as conversações interceptadas, nem as precauções a tomar para comunicar intactas e completas as gravações realizadas, com o fim de controlo eventual pelo juiz - que não pode de todo deslocar-se ao local para verificar o número e a duração das fitas magnéticas originais - e pela defesa, nem as circunstâncias em que pode ou deve realizar-se o apagamento ou a destruição das ditas fitas', designadamente após absolvição ou trânsito em julgado.' (itálico aditado).
Tais «garantias mínimas, necessárias para evitar abusos, que devem figurar na lei', mencionadas no Acórdãos Kruslin e Huvig e que incluem as «precauções a tomar para comunicar, intactas e completas, as gravações realizadas, com o fim de controlo eventual pelo juiz e pela defesa', foram recordadas também no Acórdão Valenzuela Contreras, de 30 de Julho de 1998 (n.os 46, IV, e 59) e no Acórdão Prado Bugallo, de 18 de Fevereiro de 2003. Neste último pode ler-se, a propósito de legislação espanhola sobre escutas telefónicas, que o Tribunal entende «que a garantias introduzidas pela lei de 1988 não respondem a todas as condições exigidas pela jurisprudência do Tribunal, nomeadamente nos acórdãos Kruslin c. França e Huvig c. França, para evitar os abusos. É o caso da natureza das infracções que podem dar lugar às escutas, da fixação de um limite para a duração da execução da medida e das condições de realização dos procedimentos verbais de síntese consignando as conversações interceptadas, tarefa que é deixada à competência exclusiva do funcionário do tribunal. Estas insuficiências dizem igualmente respeito às precauções a tomar para comunicar intactas e completas as gravações realizadas, com o fim de um controlo eventual pelo juiz e pela defesa. A lei não contém qualquer disposição a este respeito.' (itálico aditado).
Resulta desta jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, referida já nos Acórdãos n.os 528/2003, 426/2005 e 4/2006, que a privação da possibilidade, pela imediata destruição da gravação que o juiz entende irrelevante (aliás, segundo o referido Acórdão 426/2005, possivelmente sem a ouvir, e apenas com base em transcrições), de a defesa requerer a transcrição de passagens não seleccionadas pelo juiz, e que não foram objecto de uma comunicação intacta e completa para controlo pela defesa, corresponde a uma diminuição das garantias da defesa - o que também já se consignou nos referidos Acórdãos n.º 426/2005 e 4/2006. Também por isso (como se nota neste último aresto) se disse no citado Acórdão 426/2005 que «deve ser facultado à defesa (e também à acusação) a possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria, quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido de passagens anteriormente seleccionadas'.
13 - Quanto à comparação da solução que está em apreciação - repete-se: a da destruição imediata dos suportes das escutas com base na apreciação da sua relevância pelo juiz, sem que o arguido se possa pronunciar sobre ela - com o regime vigente em outras ordens jurídicas europeias mais próximas da nossa, pode igualmente remeter-se para o Acórdão 4/2006 (n.º 2.8), para se verificar que aquela solução se encontra isolada (v. também, para o que se segue, Mireille Delmas-Marty e Mário Chiavario, Procedure penali d'Europa, 2.ª ed., CEDAM, Padova, 2001).
Assim, recorde-se que, como se disse no Acórdão 4/2006, na Bélgica, as gravações são mantidas intactas a fim de as partes as poderem consultar e requerer a transcrição de passagens inicialmente tidas por irrelevantes; em França, as gravações só são destruídas no termo do prazo de prescrição do procedimento criminal; em Itália, só após audição das gravações (cuja guarda compete ao Ministério Público) pela defesa e pronúncia dos diversos intervenientes é que o juiz manda suprimir os registos cuja utilização é legalmente vedada e admite os que não são manifestamente irrelevantes (artigo 268.º, n.º 6, do Código de Processo Penal), sendo os registos conservados até ao trânsito em julgado da sentença final, a menos que, a requerimento dos interessados, com fundamento em tutela da privacidade, o juiz autorize a destruição antecipada (artigo 269.º, n.º 2, do mesmo Código); em Espanha, atenta a exiguidade da regulamentação legal, a jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Tribunal Supremo têm insistido na necessidade de serem os originais das fitas de gravação ou elementos análogos a serem remetidos ao tribunal, ficando à guarda do secretário judicial, que facultará o seu acesso às partes (e ao Ministério Público) e dirigirá a tarefa de transcrição das partes tidas por relevantes.
Também na Alemanha os limites da possibilidade da destruição são discutidos, apesar de o § 100b, n.º 6, da Strafprozessordnung mandar destruir imediatamente, sob fiscalização do Ministério Público, os elementos [Unterlagen] que já não sejam necessários para a perseguição penal (v. Gerhard Schäfer, em Löwe/Rosenberg, Die Strafprozessordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz - Grosskommentar, 25.ª ed., Berlin, W. de Gruyter, 2003, anot. 38 ao §100b e anots. 103 e seg. ao § 100c, dizendo que só pode destruir-se o material de prova seguramente já desnecessário, porque o seu conteúdo está entretanto confirmado por outros meios de prova, pelo que se o material for ainda possivelmente utilizado como meio de prova na audiência de julgamento nunca é de considerar uma destruição, antes deve ser guardado juntamente com os meios de prova). O Tribunal Constitucional Federal alemão já declarou, mesmo (na decisão de 3 de Março de 2004, in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, vol. 109, pp. 279 e ss.), a inconstitucionalidade desse § 100b, n.º 6, embora apenas em conjugação com a remissão que para ele fazia o § 100d, n.º 4, frase 3, que o mandava aplicar à destruição dos registos de vigilância acústica em espaços habitacionais (o chamado «grosser Lauschangriff'), por violação da garantia do acesso à via judiciária, que a destruição dificultava ou tornava mesmo impossível. Salientou-se, nessa decisão, que «pode surgir uma situação específica de conflito por, de uma parte, corresponder à protecção de dados o apagamento de dados já não necessários, e, por outra, com o apagamento se dificultar, quando não mesmo impossibilitar, uma protecção jurídica efectiva, porque um controlo dos actos só é em limitada medida possível depois do apagamento dos elementos' (v. também, já antes, a decisão de 14 de Julho de 1999, in Entscheidungen..., cit., vol. 100, pp. 313 e ss., 400, onde se considerou condição do respeito pela garantia do acesso à via judiciária o facto de os registos serem conservados até seis meses depois da notificação dos actos ao atingido). Na sequência da citada decisão de 2004, foi aprovada uma «Lei de Aplicação da Decisão do Tribunal Constitucional Federal de 3 de Março de 2004', que alterou o referido §100d, passando a prever que os dados são destruídos se não forem necessários «para a prossecução da acção penal e para uma eventual comprovação judicial', e que, na medida em que a destruição seja adiada por esta última razão, «os dados devem ser encerrados e só podem ser utilizados para esse fim'.
Aliás, também entre nós têm sido propostas várias soluções no sentido de evitar que os registos das conversações possam ser logo destruídos, antes sendo assegurada a possibilidade de controlo (incluindo a «contextualização' e a descoberta de novos elementos) também pela defesa (cf. as propostas legislativas referidas no n.º 2.6 do citado Acórdão 4/2006). E refira-se, aliás, como mera nota marginal, que é também diferente da que está em apreciação a solução prevista no anteprojecto de revisão do Código de Processo Penal que foi tornado público pelo Ministério da Justiça já em 2006. Segundo o seu artigo 188.º, n.º 6, a destruição imediata apenas é determinada pelo juiz em relação a «suportes técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo' e que: disserem respeito a conversações em que não intervenham o suspeito ou arguido, pessoa «relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido ou vítima de crime, mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido'; abranjam matérias cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado; ou cuja «divulgação possa afectar gravemente direitos, liberdades e garantias'. Fora desses casos, prevê-se que, a partir do encerramento do inquérito, o assistente e o arguido possam «examinar os suportes técnicos das conversações ou comunicações e obter, à sua custa, cópia das partes que pretendam transcrever para juntar ao processo', sendo os suportes técnicos referentes a conversações ou comunicações que não forem transcritas para servirem como meio de prova «guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo' (artigo 188.º, n.os 8 e 12, do citado anteprojecto).
14 - Poderia - é certo - defender-se que estas soluções legislativas se enquadram dentro da liberdade de conformação do legislador, sendo possíveis várias soluções no plano infra-constitucional. Dir-se-ia, neste sentido, que bastaria o controlo da relevância dos elementos de prova pelo juiz de instrução, procedendo ao controlo da legalidade, da necessidade e da relevância desses elementos.
Estes argumentos não podem, porém, considerar-se procedentes.
Na verdade, a destruição (permitida pela norma em apreço) de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o arguido poderia pretender utilizar em seu benefício e que apenas foram conhecidos pelo órgão de polícia criminal e pelo Ministério Público, com base na apreciação da sua relevância, e na consequente ordem de destruição, apenas pelo juiz de instrução, sem conhecimento pelo arguido, constitui logo, só por si, uma compressão inaceitável, e desnecessária, das garantias de defesa do arguido, particularmente notória na comparação da sua posição com a da acusação. Com efeito, o arguido, que já sofreu uma intervenção restritiva - determinada e justificada apenas por razões de necessidade - nos seus direitos fundamentais ao ser objecto de escutas telefónicas, vê destruídos os registos dessas comunicações, de cujo conteúdo não chega a tomar conhecimento, e não pode sequer pronunciar-se sobre a sua relevância, enquanto a acusação (rectius, o órgão de polícia criminal e o Ministério Público) teve acesso ao conteúdo integral e completo das comunicações e pode (deve mesmo) seleccionar e indicar as partes que considera relevantes (artigo 188.º, n.º 1, parte final), tendo uma intervenção substancial anterior à apreciação do juiz e à sua decisão sobre a relevância, que pode influenciar.
Contra isto não basta argumentar, nem com o facto de a destruição dos registos inúteis visar ela própria a protecção de direitos fundamentais de terceiros ou do próprio arguido, nem com as garantias resultantes da intervenção do juiz de instrução, como «juiz das garantias' do arguido, ou com uma alegada possibilidade de contraditar a prova no momento do julgamento.
Quanto a esta última possibilidade, ela torna-se evidentemente ilusória, quanto ao que pudesse depender das conversações cujo conteúdo o arguido não conheceu, a partir do momento da destruição dos respectivos registos. Aliás, repete-se que não está apenas em causa a utilização das comunicações para enquadrar os elementos transcritos, mas igualmente com relevo autónomo.
Quanto ao primeiro ponto, recorda-se que está apenas em causa, na dimensão normativa em apreço, a ordem de destruição dos registos com base exclusivamente na apreciação da relevância das conversações para a prova, por parte do juiz, e não na ilegalidade das escutas ou na protecção dos direitos de terceiros ou do arguido (aliás, quanto a este último, sempre poderia duvidar-se da indisponibilidade de uma tal «protecção contra si próprio'). A invocação da protecção de terceiros - aliás, não concretizada no caso em apreço - contra intromissão na vida privada apenas poderia, pois, situar-se no plano abstracto, da presunção de que todas e quaisquer escutas podem (criam o risco de) pôr em causa esses direitos de terceiros. Sem deixar de sublinhar a importância das garantias contra a indevida circulação do conteúdo das conversações interceptadas, ou, até, do estabelecimento de mecanismos que tutelem o risco da violação de direitos fundamentais como o segredo das comunicações, a alegação de um tal risco não pode, porém, sobrepor-se aos concretos direitos do arguido, de organizar a sua defesa controlando o conteúdo das conversações e utilizando-as em sua defesa, seja enquadrando as transcrições existentes, seja com relevância autónoma.
15 - No que toca à intervenção do juiz, para apreciar a relevância das comunicações interceptadas «em lugar' da apreciação que o arguido poderia pretender efectuar, é certo que ela representa uma garantia suplementar em relação a um sistema que deixasse a apreciação da relevância e a selecção exclusivamente na dependência da acusação (cf., aliás, concedendo especial importância ao parâmetro da «reserva do juiz', e ao artigo 32.º, n.º 4, da Constituição no regime das escutas telefónicas, J. M. Damião da Cunha, «A mais recente jurisprudência...', cit., pp. 51 e ss.)
Todavia, tal garantia não pode considerar-se suficiente sob dois pontos de vista: por um lado, e como se referiu, enquanto o órgão de polícia criminal e o Ministério Público podem influenciar a decisão do juiz sobre a relevância, devendo mesmo indicar as passagens das comunicações que consideram relevantes antes de aquele tomar uma decisão (que, recorda-se, pode, sem inconstitucionalidade, ser tomada sem audição da integralidade das conversações, e apenas com base em partes transcritas que lhe são facultadas, como se decidiu no Acórdão 426/2005), o arguido não chega sequer a ter conhecimento do conteúdo das comunicações antes da sua destruição, muito menos podendo fazer valer, ou fundamentar, a sua apreciação sobre a sua relevância, ficando, por isso, colocado numa posição de inferioridade, ou desigualdade, que objectivamente põe em causa as suas garantias de defesa; por outro lado, sendo ao arguido que compete organizar a sua defesa, contraditando os elementos invocados pela acusação e utilizando-os para se defender, tem de lhe ser deixada a possibilidade de ser ele a ajuizar, com base no conteúdo das conversações em causa, sobre a sua relevância, para, pelo menos, a poder justificar (por exemplo, porque entende que dela resulta um atenuação da sua culpa, ou até uma causa de justificação), sem que esse juízo possa ser antecipadamente inviabilizado pela destruição dos suportes magnéticos com base numa apreciação alheia (ainda que do juiz de instrução). Aliás, não está apenas em causa a possibilidade de conhecimento pelo arguido do conteúdo das comunicações, para efectuar e fundamentar a sua apreciação sobre a sua relevância, mas também a própria possibilidade de um controlo judicial da decisão de destruir os registos das conversações, ou, mesmo, da própria realização das escutas (em relação ao material destruído).
Sob este aspecto, a consideração de que a norma em causa apenas faz sentido no pressuposto de uma total irrelevância dos registos, com possibilidade (ou mesmo dever) de o juiz realizar esta avaliação, falha o alvo, justamente porque o que está em causa é esta possibilidade de avaliação e a intervenção nela do arguido - ou seja, saber se o arguido também há-de poder, pelo menos, influenciar com devido conhecimento a apreciação da relevância das conversações.
Não pode, aliás, excluir-se em absoluto que a apreciação pelo juiz de instrução, na sequência dos elementos que lhe são facultados pelo órgão de polícia criminal, e ainda que apenas de uma irrelevância clara, ou manifesta, dos elementos em questão, possa não estar objectivamente correcta, podendo vir a ser posta em causa pelo desenrolar futuro do processo ou por outros acontecimentos (sendo que a destruição dos registos inviabiliza, porém, a comprovação). E, de todo o modo, pelo menos quando não estejam em causa situações de ilegalidade das escutas ou de outras qualificadas afectações de direitos fundamentais justificadas em concreto, é ao arguido que tem de competir a possibilidade de controlar essa correcção e de fundamentar a sua própria apreciação sobre a relevância dos elementos em causa, o que só pode ser conseguido, como tem salientado o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mediante precauções no sentido da comunicação integral e completa das conversações interceptadas ao arguido, as quais são radicalmente postergadas pela imediata destruição dos registos.
16 - Em suma, conclui-se que é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, asseguradas pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, e em particular da garantia de um processo leal e do princípio do contraditório, a interpretação do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que permite que sejam destruídos elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal conheceu, com base na apreciação da sua relevância efectuada e na consequente ordem dada pelo juiz de instrução, e de cujo conteúdo o arguido não chega a tomar conhecimento, sem poder, pois, pronunciar-se sobre a sua relevância.
Há, assim, que conceder provimento ao presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade. Sublinhar-se-á apenas, como nota final, que as consequências a retirar do presente juízo de inconstitucionalidade para os elementos de prova constantes dos autos, incluindo as comunicações interceptadas aí transcritas, se encontram já fora do âmbito da intervenção do Tribunal Constitucional, situando-se claramente no domínio de intervenção do Tribunal recorrido.»
5 - A argumentação desenvolvida no parcialmente transcrito Acórdão 660/2006 foi posteriormente enriquecida nos já citados Acórdãos n.os 450/2007 e 451/2007.
No Acórdão 450/2007, após sumariar-se a fundamentação do Acórdão 660/2006, acrescentou-se (considerações que foram retomadas no Acórdão 451/2007):
«10.2 - Todos estes argumentos mantêm, no presente caso, inteira validade.
Não se vê por isso como contrariar a conclusão obtida pelo Tribunal no Acórdão 660/2006, segundo a qual a ordem de destruição, pelo juiz de instrução, de parte das gravações efectuadas no decurso da intercepção das telecomunicações, dada sem que o arguido tenha tido possibilidade de acesso à integralidade das mesmas, 'comprime' de forma 'desnecessária e inaceitável' as garantias de defesa do arguido, consagradas em geral no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
Com efeito, para além das razões apresentadas pelo Tribunal naquele mesmo Acórdão, outras há, que decorrem do que ficou dito na resposta dada à primeira questão de constitucionalidade que o presente recurso coloca [relativa à assinatura e certificação dos autos de transcrição de escutas telefónicas].
Antes do mais, do que ficou dito quanto ao direito consagrado no n.º 5 do artigo 188.º do CPP.
Afirmou-se acima (ponto 9.2.) que a possibilidade de exercício de um tal direito - que, recorde-se, confere ao arguido o poder de examinar o auto de transcrição (a que se refere o n.º 3 do artigo 188.º) para se inteirar da conformidade das transcrições - prevenia que a não assinatura, por parte do juiz de instrução, daquele auto (ou a não certificação, pelo mesmo juiz, da conformidade entre o que havia sido transcrito e o que havia sido gravado) se traduzisse, por si só, numa 'intervenção restritiva', constitucionalmente inaceitável, dos direitos de defesa do arguido. No entanto, para que tal suceda, necessário é que o arguido possa ter acesso à integralidade das gravações que foram efectuadas, para que - como já disse o Tribunal no Acórdão 426/2005 (DR, 2.ª série, n.º 232, p. 17 006) - 'seja facultada à defesa (e também à acusação) a possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido das passagens anteriormente seleccionadas'. Foi aliás este dito (citado pelo Acórdão 660/2006) que justificou a decisão tomada (e a nosso ver bem) pelo Tribunal no já referido Acórdão 426/2005. Para que esta 'arquitectura' jurisprudencial mantenha coerência, necessário é que se entenda que o exercício do direito que é conferido ao arguido no n.º 5 do artigo 188.º do Código de Processo Penal pressupõe a possibilidade de acesso da defesa à integralidade das gravações efectuadas no decurso das intercepções telefónicas.
Mas, para além disso, uma outra razão há para que se entenda que tal acesso é constitucionalmente imposto, não dependendo da livre disposição do legislador ordinário facultá-lo, ou não, à defesa.
Disse-se atrás que o regime fixado nos artigos 187.º e 188.º do CPP decorria de uma autorização constitucional expressa - conferida ao legislador - para restringir, 'em matéria de processo criminal', o direito 'inviolável' do sigilo dos meios de comunicação privada (artigo 34.º, n.º 4 e n.º 1). Disse-se também que o bem jurídico protegido por tal direito era refracção de outros bens jurídicos, nomeadamente dos protegidos pelo 'direito à palavra' e pelo direito à 'reserva de intimidade da vida privada' (artigo 26.º da CRP). A este último direito - e ao bem que ele protege - se voltará adiante. Por agora, atenhamo-nos apenas às implicações que decorrem da garantia constitucional de um 'direito à palavra'.
O direito à palavra a que se refere o artigo 26.º da CRP - próximo do direito à imagem, enquanto direito pessoal, e por isso estruturalmente distinto do direito à liberdade de expressão (artigo 37.º) - pressupõe a existência de uma 'liberdade de disposição na área da comunicação não pública', em que o que é dito - justamente por ser dito fora do espaço público, ou seja, não com o intuito de ser escutado - faz parte da 'acção comunicativa' espontânea, 'inocente e autêntica' (veja-se Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em Processo Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 70). A esta esfera da comunicação humana pertencem os discursos fragmentários, a 'expressão não reflectida nem contida', ou a 'formulação apenas compreensível no contexto de uma situação especial' (Tribunal Constitucional Federal Alemão, apud Manuel Costa Andrade, ob. e loc. cit.) Quem 'escuta' um discurso assim, feito para não ser escutado, infere sentidos. A decisão unilateral e externa (isto é, tomada sem o conhecimento do autor do próprio discurso) quanto ao se e ao modo da descontextualização do mesmo, permite que às inferências de sentido iniciais se venham a sobrepor outras, numa escala potencialmente progressiva de redução da compreensibilidade do que foi dito.
Um 'processo devido em direito' - ou, como diz a Constituição no n.º 1 do artigo 32.º, um processo que 'assegura todas as garantias de defesa' - , não pode ignorar que as coisas se passam assim. Sobretudo quando se sabe (e sabe-se porque tal já foi dito pelo Tribunal) que não é constitucionalmente censurável que a acusação, que tem naturalmente acesso à integralidade das gravações, sugira ao juiz quais as 'partes' das gravações a transcrever, por serem essas as partes consideradas relevantes para a prova (artigo 188.º, n.º 1, in fine, do CPP), e que a sugestão seja acolhida 'não com base em prévia audição das mesmas [por parte do JIC] mas por leitura de textos contendo a sua reprodução ... acompanhados das fitas gravadas ou elementos análogas' (Fórmula decisória do Acórdão 426/2005). Sabendo-se tudo isto, difícil é não concluir que, no âmbito de 'todas as garantias de defesa' a que se refere o n.º 1 do artigo 32.º da CRP, se conta também a possibilidade de acesso do arguido à integralidade das gravações efectuadas no decurso de operações de 'escutas telefónicas', antes que seja dada a ordem da sua destruição parcial.
Sustentar-se-á em contrário que uma tal leitura das coisas desconhece que, nos termos do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição, o princípio do contraditório vale apenas para as fases de audiência de julgamento e para os 'actos instrutórios que a lei determinar', pelo que argumentar como se argumentou implicaria uma visão radicalmente acusatória de todo o processo penal, em que o princípio do contraditório dominaria, também, todo o inquérito - visão essa que, como se sabe, não é aquela que a CRP acolhe.
Note-se, no entanto, que não está aqui em causa a transposição, para a fase do inquérito, do princípio da contraditoriedade na produção e valoração da prova - princípio esse que só tem assento constitucional no que respeita à fase de audiência e julgamento. O que está em causa é outra coisa. Trata-se apenas de garantir que toda a prossecução processual se cumpra como se deve cumprir, ou seja, 'de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação mas também as da defesa' (assim mesmo, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed., 1974, reimp., 2004, Coimbra, Coimbra Editora, p. 150), de tal forma que o arguido tenha uma posição processual equiparada quanto possível à do acusador (ibidem, p.149).
Exigir que semelhante garantia se cumpra não equivale a transfigurar um processo penal de estrutura mitigada em outro diverso, de estrutura radicalmente acusatória. A exigência significa apenas que se obedece ao princípio contido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, pois que, '[e]m todas as garantias de defesa engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre acusação (normalmente apoiada pelo poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas.' (J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., 2007, Coimbra, Coimbra Editora, p. 516).
10.3 - Decorre dos presentes autos que a ordem dada, in casu, pelo juiz de instrução - de destruição 'definitiva' e 'irremediável' de parte das gravações efectuadas - o foi por razões apenas atinentes ao juízo, que ele próprio fizera, de valoração das 'escutas' como meios de prova. É aliás assim, ou a partir deste pressuposto, que é colocada ao Tribunal a questão de constitucionalidade (fls. 4612 dos autos).
Deve no entanto considerar-se que a ordem de destruição parcial das escutas pode ainda ser justificada por outra razão, atinente à protecção da reserva da intimidade da vida privada do próprio arguido e de terceiros. Colocar-se-á então o problema de saber se, nesses casos, não será (precisamente ao contrário do que até agora se tem vindo a defender) constitucionalmente devida a ordem do JIC de destruição de parte das gravações efectuadas, por corresponder ela 'à possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão injustificada na reserva de intimidade da vida privada do arguido ou de terceiros (artigo 26.º, n.º 2, da Constituição).' (DR, 2.ª série, n.º 7, 10/1/2007, p. 757. Itálico aditado)
Não existem dúvidas quanto à inevitabilidade da colocação do problema.
Por serem expressão da 'liberdade de disposição da comunicação não pública', inscrita no exercício do 'direito à palavra', as comunicações privadas que são interceptadas pelas 'escutas' não contêm só discursos potencialmente fragmentários, cujo sentido só pode ser, para quem 'escuta', apenas inferido. Faz parte também da especial estrutura comunicativa deste tipo de discurso, com as suas fronteiras fluidas, que ele raramente se restrinja à esfera pessoal daqueles que nele participam. Enquanto devassa da privacidade - na sua esfera mais íntima - as 'escutas' são por isso, frequentemente, manchas que alastram: muitas vezes e por seu intermédio, 'a revelação do segredo só se torna possível com a revelação de segredos de terceiros.' (Manuel da Costa Andrade, ob. cit. p. 50).
Deve por isso ter-se em conta que o problema que nos ocupa - ou seja, a questão de saber se será constitucionalmente admissível que o Juiz de Instrução ordene a destruição de parte do material gravado, sem que dessa parte tenha conhecimento o arguido - poderá em certos casos (que não seguramente o agora em juízo) ser equacionado como um problema de colisão de direitos: o direito do arguido a um processo equitativo, com todas as garantias de defesa, e que inclui, como já vimos, a faculdade de acesso à integralidade das gravações efectuadas, pode conflituar, no modo concreto do seu exercício, com direito ou direitos de outrem, afectando os bens jurídicos por estes últimos protegidos. (Sobre a colisão de direitos, em geral, J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 1270). No entanto, tal em nada legitima que se conclua que a ordem judicial de destruição de parte das gravações efectuadas será sempre constitucionalmente devida, por corresponder à correcção, feita pelo tribunal, da devassa da intimidade de terceiros. Uma tal conclusão só seria sustentável se os problemas de colisão de direitos pudessem ser resolvidos através do sacrifício unilateral de um deles - como se tivera o juiz constitucional uma habilitação genérica para declarar, em situações de conflito, qual o direito a sacrificar e qual o direito a tutelar. Nada permite sustentar que assim seja. O que não é de excluir é que, nas circunstâncias em que a colisão ocorra, se deva fazer a ponderação entre o direito do arguido a um processo devido e os direitos de terceiros ao segredo e à reserva, podendo por isso vir a ser constitucionalmente permitida a destruição, sem a audição do arguido, daquela parte das gravações que lesem especialmente o segredo ou a intimidade de terceiros. Em última análise, porém, caberá ao legislador ordinário identificar os casos em que deva ser feita a ponderação.
Face ao regime legal vigente - e tendo em conta que ele obriga que todos os participantes nas operações de 'escutas' fiquem 'ligados ao dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento' (n.º 3, in fine, do artigo 188.º do Código de Processo Penal) - não pode deixar de se julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, a norma contida na primeira parte do referido preceito, quando entendida no sentido de permitir que o juiz de instrução ordene, por considerar relevantes para a prova, a transcrição parcial das gravações de conversas telefónicas interceptadas, e prescreva a destruição das partes restantes, antes de o arguido as ter ouvido e controlado.»
6 - Pelas razões expendidas nos Acórdãos n.os 660/2006, 450/2007 e 451/2007 e pelas inicialmente expostas nesta declaração de voto, sustentei que devia ser concedido provimento ao recurso, julgando-se inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na redacção dada pelo Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, interpretado no sentido de o juiz dever ordenar a destruição imediata das fitas gravadas e elementos análogos relativos a gravações de conversações telefónicas feitas durante o inquérito, que não foram consideradas relevantes para a prova, assim afectando irremediavelmente a possibilidade de o arguido, findo o inquérito, a elas ter acesso, para eventualmente sugerir a transcrição de novas passagens, por ele tidas como relevantes para a descoberta da verdade. - Mário José de Araújo Torres.
Declaração de voto
Dissenti da presente decisão pelas razões constantes dos acórdãos n.º 660/2006 (que subscrevi), 450/07 e 451/07, todos deste Tribunal, que se pronunciaram pela inconstitucionalidade da dimensão normativa ora em apreciação. Aos fundamentos aduzidos nestes arestos, assim como à síntese e explicitação que deles nos oferece a declaração de voto do Conselheiro Mário Torres (que acompanho na integra), importa apenas acrescentar o seguinte.
Subjacente à tese que fez vencimento parece estar a ideia de que a intervenção do arguido antecedendo a destruição das escutas tem de estar proscrita uma vez que tal destruição tende a ser decidida na fase de inquérito, momento em que o contraditório se encontra naturalmente excluído.
É certo que nesta fase o contraditório não pode existir. Mas daí decorre apenas que a destruição destes especiais meios de prova (as escutas) não possa ser decidida nesta fase. O que só é confirmado pela circunstância de as conversações objecto de aquisição processual em inquérito não terem a sua eficácia probatória a ele confinada, antes se encontrado preordenadas a integrar o conjunto dos elementos sobre os quais incidirá a final o juízo de valoração judicial, aí necessariamente precedido do contraditório. Para a plena realização deste, nas fases do processo (instrução e julgamento) em que o mesmo se encontra constitucionalmente garantido, deve ser assegurada ao arguido a possibilidade de aceder à integralidade do material probatório recolhido a fim de, com o conhecimento daí resultante, poder não só discutir o alcance probatório de conversações já ordenadas transcrever como ainda estabelecer a relevância para a decisão da causa de outras conversações que até àquele momento não foram objecto de aquisição processual. O que implica naturalmente a regra da sua conservação.
E torna por outro lado claro que essa conservação constitui uma exigência a montante da plena realização do contraditório mas fases em que, também no discurso argumentativo do acórdão de que dissentimos, ele tem de ser constitucionalmente garantido. - Rui Manuel Moura Ramos.