Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório. - 1 - O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença do Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência Criminal), de 14 de Dezembro de 2005, que absolveu a arguida Carla Elisabete Ramos Tavares da contravenção de que vinha acusada e que consistia em fazer-se transportar num autocarro de uma carreira de transporte colectivo de passageiros sem que estivesse munida do correspondente título de transporte válido. Para tanto, a sentença recorrida, invocando a jurisprudência do Tribunal Constitucional quanto à cominação de penas fixas para ilícitos criminais, nomeadamente, os acórdãos n.os 95/2001, 202/2000 e 124/2004, recusou aplicação à norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei 108/78, de 24 de Maio, que considerou violar os princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 1.º, 13.º, n.º1, 18.º, n.º1, 25.º,n.º1 e 30.º, n.º1, da Constituição, por estabelecer para a contravenção em causa uma multa de valor fixo.
2. Tendo o recurso prosseguido, alegaram o Ministério Público e a arguida (ora recorrida), ambos concordando com a decisão do Tribunal Judicial de Oeiras.
O Ministério Público salienta que o facto de estarmos em presença de uma infracção com a natureza de transgressão ou contravenção, regendo-se ainda pelo Código Penal de 1886, não altera, na matéria que é objecto do recurso, a situação quanto à desconformidade das penas fixas à Constituição, remetendo na íntegra para a jurisprudência do Tribunal Constitucional referida na decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos:
«1 - É inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma constante do artigo 3º, nº. 2, alínea b) do Decreto-Lei nº. 108/78, de 24 de Maio, na medida em que estabelece uma pena de multa de valor fixo, que o Tribunal terá sempre de aplicar em caso de condenação.
2 - Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida quanto à questão de inconstitucionalidade que é objecto de recurso».
A recorrida sustenta que cabe declarar, em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, a inconstitucionalidade da norma em causa, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
II - Fundamentação. - 3. O Tribunal Judicial de Oeiras (2.º Juízo de Competência Criminal) recusou a aplicação da norma constante do artigo 3º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei 108/78, de 24 de Maio, com fundamento na violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 1º, 13º, n.º 1, 18º, n.º 1, 25º, n.º 1, e 30º, n.º 1, da Constituição.
É a seguinte a redacção daquela disposição legal:
«Artigo 3º
1 - ...
2 - Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido de uma multa de montante de:
a) 50 % do preço do respectivo bilhete mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer título válido de transporte;
b)...»
É inegável que a norma em causa estabelecia, para um ilícito de natureza contravencional, uma multa de valor fixo, caso se verificasse a situação descrita no tipo (utilização de transporte colectivo de passageiros sem título válido). Não era um montante absolutamente fixo, porque era calculado em função do preço do respectivo bilhete ou do mínimo cobrável no transporte utilizado, consoante o maior produto, mas era seguramente uma pena fixa, no sentido de não graduável pelo juiz dentro de uma moldura penal abstracta que estabelecesse um mínimo e um máximo (Cf., sobre diversas acepções da expressão pena fixa, acórdão 83/91, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 30 de Agosto).
Entretanto, a Lei 28/2006, de 4 de Julho, veio substituir este regime sancionatório, definindo a falta de título de transporte válido como contra-ordenação punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menos valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante, com respeito pelos limites máximos previstos no artigo 17.º do regime geral do ilícito de mera ordenação social (artigo 7.º) e mandando punir como contra-ordenações as anteriores contravenções, sem prejuízo do regime mais favorável (artigo 14.º). Intervenção legislativa esta que se insere num "pacote legislativo" visando a erradicação das contravenções ainda subsistentes, substituindo-as por contra-ordenações, e que além desse diploma incluiu a Lei 28/2006, de 4 de Julho e a Lei 30/2006, de 11 de Julho.
4. Importa começar por dar nota de que a questão de constitucionalidade que é objecto do presente recurso foi apreciada pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos n.º 579/2006 (Diário da República, 2.ª série, de 3 de Janeiro de 2006) e n.º 679/2006, que tiveram por objecto a mesma norma que é objecto do presente recurso (alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei 108/78), e pelo acórdão 5/2007, que versou sobre a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º, norma esta que estabelece a sanção para a ultrapassagem da paragem para que o título era válido. Nos três casos, essencialmente repetitivos, no teor da sentença recorrida, das alegações apresentadas e da decisão do Tribunal, foi confirmado o juízo de inconstitucionalidade sendo as normas apreciadas sido julgadas inconstitucionais por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
Todavia, nenhuma das decisões foi tomada por unanimidade, registando cada uma delas dois votos de vencido. E, efectivamente, também agora se vai divergir do entendimento adoptado.
5. Não se põe em dúvida o entendimento firmado pela jurisprudência do Tribunal, aliás bem identificada na sentença recorrida, de que a cominação, para ilícitos criminais, de penas insusceptíveis de individualização pelo juiz viola os princípios constitucionais referidos. Como pondera o acórdão 124/2004 (Diário da República, I-Série A, de 31 de Março), filiando-se no Acórdão 95/2001, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Abril de 2002, em que essa doutrina começou por ser firmada:
«[...] O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de Direito, proíbe - já se disse - que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de José de Sousa e Brito (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de Jorge de Figueiredo Dias, vai buscar o seu fundamento axiológico "ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de Direito democrático" (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, página 73).
Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de culpa do agente - é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente, nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.
Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas, o princípio da igualdade - que impõe se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes - também vincula o juiz.
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções criminais seja proporcional à gravidade das infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa, que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena de prisão, quer seja uma pena de multa.
Jorge de Figueiredo Dias (Direito Penal Português cit., página 193), depois de dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação - "mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão nítida quanto possível entre o legislador e o juiz" - , sublinha que "uma responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade".
Este Tribunal, no seu Acórdão 202/2000 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo 31º, n.º 10, da Lei 30/86, de 27 de Agosto - que mandava aplicar a pena fixa de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos - e concluiu que a mesma era inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade. Escreveu-se aí:
"Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das suas "circunstâncias") corresponda também uma diferenciação da sanção penal que lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal situação concreta.
Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de caçar invariável de cinco anos para o "crime de caça" do artigo 31º, n.º 10, da Lei 30/86 é materialmente inconstitucional".
Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram apontados.
[...] Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias), por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são, em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.
Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que faz apelo o acórdão 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73º do Código Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor fortemente atenuativo ("quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena", diz o n.º 1 do artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade (recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com multa não superior a cento e 20 dias), o juiz verificar que são "diminutas" "a ilicitude do facto e a culpa do agente"; que o "dano" já foi "reparado"; e que "à dispensa de pena" se não opõem "razões de prevenção" (cf. o artigo 74º do mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para - como se escreveu no citado Acórdão 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena - "dar conta da necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar - à culpa do agente e às necessidades de prevenção".
Recorrendo, de novo, aos dizeres do Acórdão 202/2000:
"Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como prevendo uma pena apenas "tendencialmente fixa" ela não viola o princípio da igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções, encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a perigosidade do agente)".
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo Acórdão 202/2000:
"A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral - de atenuação especial da pena e de dispensa de pena - , bastaria para permitir a graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa, assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida, conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais".»
Todavia, o facto de se continuar a perfilhar esta a orientação não conduz a que se julgue inconstitucional a norma em causa, essencialmente porque estas razões que levaram a considerar inconstitucional a cominação de penas fixas para ilícitos de natureza criminal, não são transponíveis para a apreciação da conformidade constitucional das penas pecuniárias fixas estabelecidas nos demais domínios sancionatórios, designadamente e limitando-nos ao que interessa para o caso, para os ilícitos contravencionais punidos com uma sanção de natureza exclusivamente pecuniária insusceptível de ser convertida ou substituída por pena privativa da liberdade e sem qualquer outro efeito senão a perda patrimonial que é inerente ao seu cumprimento.
6. Até à revisão de 1982, o texto constitucional somente fazia referência à "lei criminal" e aos "crimes" [cf., a título de exemplo, os artigos 29.º, 30.º, 32.º e 167.º, alínea e), na versão originária], omitindo qualquer referência às contravenções. A partir daquela revisão, a Constituição passou referir o ilícito criminal e o ilícito de mera ordenação social, continuando a silenciar a existência do ilícito contravencional [cf. artigos 32.º, n.º 10 e 165.º, n.º 1, alínea c)]. Quanto ao último, a Constituição apenas diz expressamente que "nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa" e que é da competência reservada da Assembleia da República "legislar sobre o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social". Perante esta evolução, o Tribunal passou a considerar que, ao contrapor o ilícito criminal ao ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela desapareceu como tipo sancionatório autónomo - para efeitos de relevância constitucional específica, entenda-se - , pelo que as contravenções que subsistirem (ou que fossem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a natureza que no caso tiverem: criminal ou de mera ordenação social.
Nesta linha, disse ainda recentemente o Tribunal no acórdão 230/2006, www.tribunalconstitucional.pt, retomando o que dissera no acórdão nº 61/99 (Diário da República, 2.ª série, de 31 de Março de 1999):
"3.1. Efectivamente, haverá, em primeira linha, que acentuar que, independentemente da questão de saber se, após a Revisão Constitucional operada pela lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, é possível a criação, ex novo, de contravenções, o que é certo é que a norma em apreço veio instituir (e para se utilizarem algumas das palavras do artigo 3º do Código Penal de 1886) a previsão de um comportamento consubstanciado na prática de um "facto voluntário" "punível" (in casu tão só com uma pena pecuniária) e que "consiste unicamente na violação ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica" (cf., sobre o conceito de contravenção, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 218 a 221, e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, ed. da A.A.F.D.L., I, 168).
De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada (1992), a sanção pecuniária nela prevista não podia ser convertível em prisão, por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, o artigo 123º do Código Penal aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (cf., quanto a este último aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal números 188/87 e 308/94, publicados na 2.ª série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto de 1987 e 29 de Agosto de 1994).
Ora, torna-se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da «taxa» de portagem devida pela utilização das auto-estradas) não pode ter uma ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária, então (tal como se disse no referido Acórdão 308/94, embora a propósito de outra norma) há-de concluir-se que "o tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser o correspondente às contra-ordenações, para as quais a Constituição não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar".
[...]
3.1 - 2. E, a este propósito, convém respigar alguns passos que se podem ler no citado Acórdão 308/94.
Assim, disse-se nesse aresto, a propósito da questão de saber se era possível, no caso ali apreciado, a criação de um novo tipo contravencional:
"[...]
Ou seja: o Governo poderia criar aqui esta nova infracção contravencional, uma vez que não lhe corresponde sanção restritiva de liberdade, isto a admitir que a figura das contravenções ainda tem cobertura constitucional (...)
Tradicionalmente, quer a definição de cada concreto ilícito contravencional, quer a fixação da respectiva pena, sempre puderam ser efectuadas por regulamento, inclusivamente por regulamentos locais, como expressamente resultava do preceituado no artigo 486º do velho Código Penal de 1886. E o mesmo entendimento se manteve na generalidade da doutrina e na jurisprudência, após a entrada em vigor da Constituição de 1976.
Com a revisão constitucional de 1982, suscitou-se o problema de saber qual o destino, em geral, da figura das contravenções. A este propósito, escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., anotação X ao artigo 168º, pág. 673):
Ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à figura das contravenções (que era tradicional no direito português até ao Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que subsistirem (ou que forem ex novo criadas) têm de ser tratadas de acordo com a natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social).
Ora, dúvidas não restam que, no caso vertente, não deparamos com uma infracção com a ressonância ética suficiente para poder ser qualificada como de natureza criminal. E, assim sendo, e também porque lhe não corresponde qualquer sanção privativa ou restritiva da liberdade, o tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser o correspondente às contra-ordenações [...]".
7. Não se ignora que o Tribunal tem desenvolvido este tipo de considerações a propósito de verificação de constitucionalidade de aspectos formais ou competenciais das contravenções e que não é uma questão desta natureza que agora está em apreciação. Mas delas retira-se que a apreciação das questões de constitucionalidade colocadas pelo ilícito contravencional não pode fazer-se por mera transposição das ponderações efectuadas a propósito de questões semelhantes no domínio do ilícito e das penas criminais, com base numa pressuposta identidade de género entre os dois tipos de ilícito que - independentemente do critério que se perfilhasse, face ao direito positivo infra-constitucional, ou no plano doutrinário, de distinção entre crimes e contravenções ou de separação entre o "ilícito criminal administrativo e o de justiça" - , a Constituição não acolhe.
Por outro lado, o facto de o legislador ter mantido o processamento e julgamento desse tipo de ilícito - face ao texto constitucional, desse tertium genus de ilícito - subordinado a um regime de processo penal simplificado, de natureza judicial e não administrativa (cf. Decreto-Lei 17/91, de 10 de Janeiro), nada permite inferir sobre a sua natureza que necessariamente se projecte no modo como o seu regime substantivo se relaciona com os referidos princípios constitucionais.
Deste modo, embora os princípios da culpa, da proporcionalidade e da igualdade vinculem também o legislador ordinário na configuração dos ilícitos contravencionais (como nos de contra-ordenação) e respectivas sanções (cf. acórdão 547/2001), eles têm, aqui, um diferente grau de exigência, designadamente o primeiro daqueles princípios, que é o nuclear na argumentação do Tribunal a propósito da proibição de penas criminais fixas, porque não está em causa o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º1) e só de modo muito remoto - e nunca por causa da sua invariabilidade - uma sanção estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico estigmatizante, pode contender com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), que é de onde o Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na "Constituição criminal".
Aliás, no domínio do direito de mera ordenação social - e, para o confronto com os princípios constitucionais em causa, uma contravenção punida apenas com multa não se diferencia de uma contra-ordenação punida apenas com coima, porque ambas significam exactamente o mesmo na esfera jurídica do destinatário da sanção - , o Tribunal já admitiu a constitucionalidade de penas fixas, como dá conta o acórdão 74/95 quando, confrontado com a possibilidade de, na situação aí apreciada, o jogo interpretativo conduzir a uma identificação entre o máximo e o mínimo da moldura penal, afirma que "a jurisprudência deste Tribunal, plasmada nos Acórdãos n.º 83/91 (Diário da República, 2.ª série, de 30 de Agosto de 1991) e n.º 441/93, tem sido a seguinte: [...] dos princípios constitucionais da justiça, igualdade e proporcionalidade «não decorre necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional de todas as chamadas penas fixas», não existindo assim um obstáculo constitucional a uma sanção contra-ordenacional dessa natureza".
É certo que a estruturação dos sistemas punitivos de modo a permitir à entidade decisora - em último termo, o juiz - a individualização da sanção, mesmo daquela que só tenha expressão pecuniária, de modo a levar em conta as especificidades de cada caso, o grau de ilicitude e culpa e a situação pessoal do agente, se apresenta como a mais consentânea com os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Mas essa exigência pode ser superada desde que, pela natureza do ilícito sancionado e pela medida da sanção pecuniária fixa prevista, esta última apareça razoavelmente proporcionada relativamente à gama de comportamentos susceptíveis de recondução ao concreto tipo de ilícito. Como diz o Conselheiro Benjamim Rodrigues no voto de vencido aposto no acórdão 579/2006, "não se vê que o legislador ordinário, colocado perante a possibilidade de verificação de infracções contravencionais (contra-ordenacionais) em massa, decorrente da opção legislativa de punir a esse título comportamentos violadores de simples regras de conduta ou de ordenação da comunidade social ou de colaboração com o Estado, não possa conferir maior relevo às exigências postuladas pelo princípio da legalidade em detrimento do sentido apontado pelo princípio da culpa e, nesse seu juízo, proceder a uma maior concretização das sanções aplicáveis nesses tipos de ilícito, afrouxando a necessidade da intervenção do juiz no apuramento efectivo do montante da sanção a aplicar, sem que possa sustentar-se existir uma violação intolerável dos princípios da igualdade e proporcionalidade".
Acresce que o juízo sobre essa necessidade de intervenção judicial individualizadora não pode abstrair do montante da sanção legalmente prevista, não sendo indiferente que esteja em causa uma pena pecuniária de montante elevadíssimo ou uma quantia acessível ao comum das pessoas, em que haverá um claro desfasamento entre o investimento na recolha séria de elementos para essa tarefa diferenciadora e a sua expressão prática, que também é lícito ao legislador levar em conta. Ora, neste aspecto, o montante da multa fixa agora em causa pode objectivamente considerar-se moderado, em termos de valores absolutos, porque o tipo de cobrança a que o infractor se furta é característico de carreiras em percursos urbanos ou de periferia, em que o mínimo cobrável no transporte em causa, correspondendo a trajectos curtos, é necessariamente baixo. O que, aliás, é patente no caso, em que estava em causa uma multa de (euro)144,40 (1,44 x 100) e bem justifica que se questione a praticabilidade da averiguação judicial sistemática das circunstâncias que podiam justificar a uma individualização e graduação da sanção, "averiguação que poderia mesmo, ou impor um esforço que não parece exigível, ou, pelo seu carácter rotineiro, conduzir a situações de injustiça relativa" (cf. declarações de voto do Conselheiro Mota Pinto no acórdão 579/2006 e do Conselheiro Pamplona de Oliveira no acórdão 5/2007).
8. Posto isto, tem de concluir-se que a norma que é objecto do presente recurso não colide com os mencionados princípios.
Pune-se o comportamento de utilização de meio de transporte colectivo de passageiros sem título válido de transporte, nos casos em que a cobrança não é feita por agente cobrador mas por outro processo, prevendo que o infractor pague, além do preço do bilhete correspondente ao seu percurso - aspecto que não está em causa, porque não respeita ao segmento sancionatório - acrescido de uma multa de "50 % do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado". Conduta do agente que, para ser punida, tem de ser, no mínimo, culposa (sobre a controvérsia acerca da vigência do Decreto-Lei 108/78 e a relação das infracções aí previstas com o crime de burla relativos a serviços constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 220.º do Código Penal, cf. acórdão da Relação de Lisboa, de 21/4/2004, Proc. 2163/04). Trata-se de forçar o utente a adequar o seu comportamento à evolução do sistema de cobrança nos transportes colectivos de passageiros, criando uma sanção suficientemente dissuasora do incumprimento da obrigação legal de pagar o preço do transporte, desmotivando para uma conduta cuja generalização importa prevenir porque, além da consequência imediata na relação entre o prestador do serviço e o utente, tornaria menos eficiente a prestação do serviço público em causa, porque obrigaria a mobilizar recursos para a cobrança ou o controlo sistemático.
Ora, retomando a declaração de voto do Cons.º Benjamim Rodrigues, cujas razões neste passo se acompanham:
"Antes de mais importa notar, que não estamos, porém, perante uma sanção que se possa considerar rigidamente fixa.
Na verdade, a sanção prevista apenas coloca na mesma posição os infractores que utilizem, sem título válido, o transporte durante um mesmo percurso ou ainda aqueles em que o valor de 50 % do preço do respectivo bilhete seja inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado. Nos outros casos, a sanção é objectivamente variável.
Todavia, existem razões que podem sustentar, no plano constitucional, essa opção legislativa de igualação sancionatória.
A sanção pune a utilização dos transportes sem título válido de transporte, nos casos em que a cobrança do preço não é feita por cobrador.
O fim que ela prossegue é, pois, o de desencorajar, pelo modo tido como eficaz, a utilização dos transportes sem o pagamento da contraprestação devida pela prestação do transporte e de, por essa via, procurar garantir, na maior medida possível, a amortização dos custos do investimento e da prestação do serviço.
Ora, estes serviços de transporte são serviços de interesse geral, porquanto satisfazem necessidades básicas dos cidadãos, que são prestados em regime de concessão de serviço público e que estão sujeitos a princípios específicos, como o da universalidade, ou do acesso do maior número possível de pessoas, mesmo as economicamente desfavorecidas, neste se incluindo a inadmissibilidade legal da possibilidade de escolha do contraente e de recusa de contratar, possível relativamente a outros bens.
Deve notar-se, por outro lado, que a prestação de serviços deste tipo corresponde, de resto, a um modo de o Estado se desincumbir da tarefa fundamental cometida no artigo 9.º, alínea d) da Constituição ("promover o bem estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais...").
[...]
Por estas razões, os preços relativos à prestação dos serviços de transporte são, por via de regra, "preços normativos" e não preços estabelecidos por acordo das partes ou segundo mecanismos de livre funcionamento do mercado, em cuja determinação intervêm, de modo relevante, factores normativos e ponderações "políticas" que são efectuadas pela competente Administração Pública, situando-se, normalmente, em patamares que se situam abaixo do que resultaria daquele mercado.
Mas demandando a actividade de prestação de tais bens avultados investimentos, não poderá, correspondentemente, o legislador deixar de adoptar, como se disse, já, instrumentos que garantam, eficazmente, o pagamento dos preços devidos.
Ora, se os preços são fixados em função de um paradigma económico dos seus utilizadores, que procura colocar todos os consumidores no mesmo plano, quanto à possibilidade de poder aceder a tais bens, dentro de uma óptica de igualdade de oportunidades, não se vê que o legislador, optando pela conformação de um ilícito contravencional (ou contra-ordenacional) perspectivado para conferir eficácia ao dever do seu pagamento/cobrança, não possa, por decorrência desses mesmos princípios, estabelecer um padrão de pena igual para todos aqueles que o violem, desde que ele se situe dentro de valores que não sejam desadequados, e exista uma infracção a punir.
A sanção fixa corresponderá, deste modo, a uma transposição para o campo sancionatório dos mesmos princípios a que obedece, precisamente, o estabelecimento dos preços normativos e a conformação do dever do seu pagamento/cobrança, maxime, dos princípios da proporcionalidade e da igualdade."
Reprime-se, afinal, um comportamento que tira vantagem da massificação da prestação do serviço e em que a eventual diversidade das motivações individuais é pouco significativa no que revela de atitude perante a ordenação social que se quer assegurar e é indiferente no plano das consequências desse comportamento para o regular funcionamento do sistema de transportes colectivo de passageiros. Por outro lado, a multa não graduável é determinada por um método de cálculo que ainda reflecte a gravidade concreta da infracção e que, em qualquer caso, privilegiando claramente a finalidade dissuasora, não parece afastar-se de montantes razoavelmente suportáveis pelo comum das pessoas. A evolução legislativa mostra, aliás, que, tendo agora optado pelo sistema de sanções pecuniárias susceptíveis de graduação, o legislador fixou o limite mínimo da coima a um nível que grosso modo corresponde à multa de montante fixo anteriormente cominada.
Assim sendo, impõe-se concluir que a norma em causa não viola os preceitos e princípios constitucionais com fundamento nos quais a sentença recorrida lhe recusou aplicação, pelo que deve conceder-se provimento ao recurso para a sentença ser reformada em conformidade.
9. Decisão
Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei 108/78, de 24 de Maio, na parte em que estabelece, para a contravenção aí prevista, uma multa correspondente a 50 % do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado;
b) Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade;
c) Sem custas
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2007. - Vítor Gomes - Bravo Serra - Gil Galvão - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Artur Maurício.