Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - INTERESCRITÓRIO - Mobiliário Internacional para Escritório, S. A., reclamou para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 77.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional - LTC), do despacho do juiz do 7.º Juízo Cível do Tribunal Cível de Lisboa de 1 de Abril de 2004, de não admissão de recurso de constitucionalidade por ela interposto da sentença de 8 de Setembro de 2004, que julgou improcedentes os embargos de executado deduzidos na acção executiva que lhe foi movida por Henrique Augusto - Electricidade e Canalizações, Lda.
O despacho então recorrido não admitiu o recurso porquanto determinando o artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC que "cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões em que se aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo" - "desde o início do processo que não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade" e, "ainda que no requerimento em que a embargante requereu a reforma da sentença tenha alegado a violação de uma norma constitucional, o certo é que, atenta a fase processual em que tal questão foi suscitada, a mesma não foi objecto de qualquer discussão".
A recorrente viu deferida, pelo Acórdão 669/2005, a reclamação deste despacho do juiz do 7.º Juízo Cível do Tribunal Cível de Lisboa, considerando este Tribunal que, "no presente caso, a não suscitação adequada da questão de inconstitucionalidade no pedido de reforma da sentença não teve por efeito a perda do direito que, perante a natureza inesperada da interpretação normativa nela aplicada, assistia à recorrente de recorrer para o Tribunal Constitucional com dispensa desse requisito específico do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC".
Ainda de acordo com o decidido no referido aresto, "o critério normativo aplicado na sentença de que se pretendeu interpor recurso foi o de que, na execução baseada em título que resulta da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção, o executado apenas pode fundar a sua oposição na alegação e prova, que lhe incumbe, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente, direito que se tem por demonstrado".
2 - Neste Tribunal, a recorrente produziu alegações em que concluiu pela forma seguinte:
"1 - O artigo 20.º da Constituição consagra, nos seus n.os 4 e 5, o princípio da tutela jurisdicional efectiva, inserido na epígrafe do preceito após a Revisão Constitucional de 1997.
2 - O direito contido no n.º 4 do artigo 20.º a que nas causas em que intervenham a decisão seja tomada mediante processo equitativo compreende designadamente o princípio do contraditório, conforme se encontra reconhecido pelo Tribunal Constitucional.
3 - O legislador ordinário consagrou no artigo 815.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (presentemente artigo 816.º) o ditame de que numa execução que não seja baseado em sentença o executado pode usar todos os fundamentos que lhe seria licitar utilizar em processo declarativo.
4 - A sentença de 8 de Setembro de 2004 do Tribunal Judicial de Lisboa não reconheceu ao opositor da execução o direito a usar todos os meios de defesa que podia utilizar em processo declarativo, mas apenas os de invocar factos impeditivos, modificativos ou extintivos dos alegados pelo exequente.
5 - A mesma sentença foi proferida num processo de execução subsequente a injunção não contestada, e em decorrência da aposição da fórmula executória pelo secretário do Tribunal.
6 - É manifestamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência que esta aposição da fórmula executória não constitui uma sentença judicial.
7 - A sentença de 8 de Setembro de 2004 constituiu uma decisão surpresa, quer devido à falta de jurisprudência anterior sobre a matéria, quer devido ao facto de os embargos terem sido recebidos sem reservas, quer finalmente devido ao facto de na discussão de causa ter sido aceite com toda a amplitude a discussão da matéria de facto em termos de impugnação.
8 - A sentença de 8 de Setembro de 2004 omitiu na sua fundamentação de direito qualquer referência ao citado artigo 815.º, n.º 1 (hoje 816.º), do Código de Processo Civil.
9 - O opositor da execução tem toda a legitimidade, face ao regime consagrado neste preceito do Código de Processo Civil, para concentrar a sua defesa na oposição à execução fundada em título diferente de sentença, sem prejuízo do direito à oposição na providência de injunção.
10 - A sentença recorrida, ao violar, na interpretação restritiva que adoptou, o regime consagrado pelo legislador ordinário (artigo 14.º do regime anexo ao Decreto-Lei 269/98, e artigo 816.º do Código do Processo Civil) para a oposição na execução de títulos distintos de sentença, veio do mesmo passo violar o artigo 20.º da Constituição que consagra a tutela jurisdicional efectiva, designadamente o princípio do contraditório em toda a sua extensão.
11 - Deve assim a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça ao opositor da execução o exercício de todos os fundamentos passíveis de ser usados em processo declarativo, daí se extraindo as necessárias conclusões face à prova produzida."
Notificada para, querendo, contra-alegar, a recorrida nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos. - 3 - A questão que vem suscitada nos autos - tal como se encontra delimitada no referido Acórdão 669/2005 (disponível no sítio da Internet www.tribunalconstitucional.pt) - é a de saber se a norma do artigo 14.º do Regime anexo ao Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, interpretada no sentido de que na execução baseada em título que resulta da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção o executado apenas pode fundar a sua oposição na alegação e prova, que lhe incumbe, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente, direito que se tem por demonstrado, viola ou não o artigo 20.º da Constituição, que garante aos cidadãos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
É a seguinte a redacção do mencionado artigo 14.º, n.º 1:
"Artigo 14.º
Aposição da fórmula executória
1 - Se, depois de notificado, o requerido não deduzir oposição, o secretário aporá no requerimento de injunção a seguinte fórmula: 'Este documento tem força executiva.'
[...]"
4 - Recorde-se o que este Tribunal afirmou, ainda que para concluir pela verificação dos pressupostos de admissibilidade do presente recurso, no Acórdão 669/2005 sobre a questão que ora se nos coloca:
"[...]
O CPC, na redacção vigente à data da instauração da presente execução (2001), diferenciava os fundamentos invocáveis pelo executado para se opor à execução por embargos consoante o título executivo fosse uma sentença [hipótese em que os fundamentos invocáveis eram os elencados nas alíneas a) a g) do artigo 813.º], uma decisão arbitral (em que aos fundamentos anteriores se aditavam os que podiam basear a anulação judicial da decisão arbitral - artigo 814.º, n.º 1) ou outro título (em que aos fundamentos invocáveis na execução fundada em sentença acresciam quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração - artigo 815.º, n.º 1), acrescentando o n.º 2 deste artigo 815.º que a homologação, por sentença judicial, da conciliação, confissão ou transacção das partes, em que a execução se fundasse, não impedia que na oposição se alegasse qualquer das causas que determinam a nulidade ou a anulabilidade desses actos. Este esquema foi mantido na redacção dada pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, com melhorias de sistematização [a regra de que a oposição à execução de sentença homologatória de conciliação, confissão ou transacção se podia também fundar em qualquer causa de nulidade desses actos, que constava do n.º 2 do artigo 815.º, relativo à oposição à execução baseada noutro título, transitou (com eliminação da referência a conciliação) para a alínea h) do actual artigo 814.º, que é o preceito dedicado à enumeração dos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, já que, de facto, 'a situação aí prevista - atenta a existência de sentença homologatória - se situa no âmbito da execução baseada em decisão judicial' - Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., vol. II, Coimbra, 2004, p. 39.
A injunção, como providência destinada a conferir força executiva ao requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não excedesse metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, foi instituída pelo Decreto-Lei 404/93, de 10 de Dezembro, prevendo-se que, na falta de oposição do requerido, o secretário judicial do tribunal aporia fórmula executória no requerimento de execução. Este diploma não continha qualquer disposição específica quanto às execuções fundadas nesse título, mas no respectivo preâmbulo esclareceu-se que:
'A aposição da fórmula executória, não constituindo, de modo algum, um acto jurisdicional, permite indubitavelmente ao devedor defender-se em futura acção executiva, com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de declaração, nos termos do disposto no artigo 815.º do Código de Processo Civil.'
Esse regime foi substituído pelo instituído pelo Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, que alargou a aplicabilidade da providência aos contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância (artigo 7.º do Regime anexo), tendo posteriormente o Decreto-Lei 32/2003, de 17 de Fevereiro, estendido essa aplicabilidade às obrigações comerciais abrangidas por esse diploma. No que concerne à execução fundada em requerimento de injunção, o artigo 21.º, n.º 1, do Regime aprovado pelo Decreto-Lei 269/98 limitou-se a determinar que a mesma seguiria, com as necessárias adaptações, os termos do processo sumário para pagamento de quantia certa, ou os termos previstos no Decreto-Lei 274/97, de 8 de Outubro, se se verificasse o requisito da alínea b) do artigo 1.º deste diploma; isto é, em termos práticos, o processo sumário de execução - em regra, utilizável apenas quando a execução se fundava em sentença judicial condenatória (artigo 465.º, n.º 2, do CPC) - passou a ser utilizável na execução fundada em requerimento de injunção a que fora aposta a fórmula executória, com a consequente atribuição exclusiva ao exequente do direito de nomear bens à penhora (artigo 924.º do CPC), e se o exequente nomeasse apenas bens móveis ou direitos que não tivessem sido dados de penhor, com excepção do estabelecimento comercial, não haveria lugar a reclamação de créditos na execução em causa [artigos 1.º, alínea b), e 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 274/97]. Mas, tirando estas duas especialidades, nenhuma alteração se introduziu nomeadamente quanto à extensão dos fundamentos invocáveis pelo executado na dedução de embargos à execução.
A generalidade da doutrina tem considerado que a aposição, pelo secretário judicial, da fórmula executória no requerimento de injunção integra um título executivo distinto das sentenças, sendo admissível que, na oposição à execução nele fundada, o executado invoque, para além dos fundamentos invocáveis na oposição à execução fundada em sentença, 'quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração'. José Lebre de Freitas (A Acção Executiva - Depois da Reforma, 4.ª ed., Coimbra, 2004, pp. 64 e 182) refere que os títulos em causa, 'formados num processo mas não resultantes de uma decisão judicial, têm sido classificados como judiciais impróprios' e que o referido alargamento dos fundamentos da oposição à execução baseada em títulos diferentes das sentenças e das decisões arbitrais se compreende porque 'o executado não teve ocasião de, em acção declarativa prévia, se defender amplamente da pretensão do requerente'. Também Fernando Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 6.ª ed., Coimbra, 2004, pp. 39-46 e 152-153) salienta a ausência, no sistema português do processo de injunção, da emanação por parte de um juiz de uma ordem de pagamento de determinada quantia ou de satisfação de outra prestação em curto prazo (como sucede nos direitos italiano, francês e espanhol), sendo a fórmula executória aposta por um oficial de justiça, reconhecendo que 'não sendo o título executivo uma sentença, o executado está perante o requerimento executivo do exequente na mesma posição em que estaria perante a petição inicial da correspondente acção declarativa', pelo que 'consequentemente, pode alegar em oposição à execução tudo o que poderia alegar na contestação àquela acção'. J. P. Remédio Marques (Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Porto, 1998, pp. 79-80 e 153, n. 379) considera que a actividade conducente à aposição da fórmula executória - o 'execute-se' - pelo secretário judicial não se insere na função administrativa do Estado, visto que não visa a prossecução de interesses gerais da colectividade, 'mas também não é um acto jurisdicional - equiparável', parecendo-lhe tratar-se 'de um acto meramente instrumental, análogo àqueles que se praticam no exercício de uma função, que tanto pode ocorrer em processos jurisdicionais como em procedimentos administrativos'; de qualquer forma, sempre que 'não existe um processo declarativo prévio, o executado, nos embargos, pode impugnar ou excepcionar - mas nunca reconvir - a obrigação materializada pelo título extrajudicial'. Miguel Teixeira de Sousa (A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, 2004, p. 69) faz derivar da alteração da redacção do artigo 53.º, n.os 2 e 3, do CPC, operada pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março, o estabelecimento de uma tripartição dos títulos executivos: decisões judiciais [que são as sentenças condenatórias referidas no artigo 46.º, n.º 1, alínea a), do CPC], títulos extrajudiciais [que são os documentos mencionados nas alíneas b) e c) do mesmo preceito] e outros títulos de formação judicial, entendido como os que provêm de um 'processo' (e não de uma 'acção', como os títulos judiciais), categoria esta última que seria justamente utilizada para designar os títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção ao qual o requerido não deduziu oposição. Também Carlos Lopes do Rego (obra citada, vol. I, p. 90) considera que por 'título de formação judicial' deve ser considerado o 'título judicial impróprio, formado no âmbito de um procedimento cometido aos tribunais judiciais, mas sem qualquer intervenção jurisdicional, como ocorre, de forma paradigmática, no processo de injunção'. Porém, esta autonomização dos 'títulos de formação judicial' relativamente aos títulos extrajudiciais apenas releva para efeitos de determinação do tribunal onde deve correr a acção executiva no caso de cumulação inicial de execuções, quer se trate de títulos homogéneos (n.os 2 e 4 do artigo 53.º do CPC), quer de títulos heterogéneos (n.º 3 do mesmo artigo), não extraindo os autores citados qualquer outra consequência dessa autonomização, designadamente no sentido de sequer questionarem a aplicação plena do regime do actual artigo 816.º (anterior artigo 815.º, n.º 5) às execuções fundadas em títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção. Pode, pois, concluir-se que doutrinalmente é pacífico o entendimento assim sintetizado por Salvador da Costa (A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 2.ª ed., Coimbra, 2002, p. 172), em passagem já reproduzida no pedido de reforma da sentença apresentada pela ora reclamante:
'A aposição da fórmula executória não se traduz em acto jurisdicional de composição do litígio, consubstanciando-se a sua especificidade de título executivo extrajudicial no facto de derivar do reconhecimento implícito pelo devedor da existência da sua dívida por via da falta de oposição subsequente à sua notificação pessoal.
Assim, a fórmula executória é insusceptível de assumir efeito de caso julgado ou preclusivo para o requerido que pode, na acção executiva, controverter a exigibilidade da obrigação exequenda, tal como o pode fazer qualquer executado em relação a qualquer título executivo extrajudicial propriamente dito.
Em consequência, pode o requerido utilizar, em embargos de executado, a sua defesa com a mesma amplitude com que o podia fazer na acção declarativa, nos termos do artigo 815.º do Código de Processo Civil.'"
5 - O Tribunal Constitucional teve também já ocasião de dar conta de alguns traços do regime anexo ao Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, no Acórdão 625/2003 (igualmente disponível no sítio da Internet www.tribunalconstitucional.pt), afirmando o seguinte:
"[...]
3 - Por intermédio do Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, veio a concretizar-se a possibilidade, consagrada no artigo 7.º do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, de, sem prejuízo da aplicação do regime do processo sumaríssimo, ser criada, por diploma próprio, uma espécie processual, dotada de tramitação própria e referente a autos que corressem termos nos tribunais de pequena instância cível.
Aquele diploma, todavia, não se circunscreveu àqueles tribunais de competência específica, vindo a concretizar o propósito estatuído no aludido artigo 7.º generalizando-o ao conjunto dos tribunais judiciais e para o domínio do cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos que não excedessem o valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei 32/2003, de 17 de Fevereiro.
Foi assim que veio a ser instituído o Regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, publicado em anexo ao Decreto-Lei 269/98, revogando-se a providência de injunção introduzida pelo Decreto-Lei 404/93, de 10 de Dezembro.
De harmonia com este novo Regime, a injunção é uma providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei 32/2003 (cf. artigo 7.º desse Regime, na redacção dada pelo diploma referido em último lugar), requerimento esse apresentado, consoante a vontade do credor, quer na secretaria do tribunal do cumprimento da obrigação, quer na do tribunal do domicílio do devedor, e que, inter alia, deve indicar a taxa de justiça paga por intermédio de estampilha apropriada, de modelo aprovado por portaria do Ministro da Justiça (o que veio a suceder, no que ora interessa, por intermédio da Portaria 233/2003, de 17 de Março), ou nos termos do n.º 4 dessa mesma portaria, no valor de um quarto de unidade de conta, quando o procedimento tenha valor inferior a metade da alçada do tribunal de 1.ª instância, meia unidade de conta se o valor for igual ou superior a metade daquela alçada, uma unidade de conta, se o valor for igual ou superior à alçada, ou duas unidades de conta, se o valor for igual ou superior à alçada do tribunal de relação [cf. artigos 10.º, n.º 2, alínea f), e 19.º, n.º 1, do dito Regime, na redacção conferida pelo Decreto-Lei 32/2003]."
Já anteriormente, no Acórdão 399/95 (Diário da República, 2.ª série, de 16 de Novembro de 1995), o Tribunal procedera à caracterização da figura da injunção, nos termos em que a instituiu o Decreto-Lei 404/93, de 10 de Dezembro - fazendo então uma referência à questão dos fundamentos invocáveis na oposição à execução fundada em título que resulte da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção -, e averiguara se as faculdades conferidas aos secretários judiciais traduzem a atribuição aos mesmos de poderes jurisdicionais. Fê-lo nos seguintes termos:
"[...]
4.1 - Visa a injunção facultar, ao credor de uma obrigação pecuniária decorrente de contrato cujo valor não exceda metade do da alçada do tribunal da 1.ª instância, um título executivo (v. preâmbulo e artigo 1.º do Decreto-Lei 404/93), ou seja, a condição de acesso ao processo de execução que este representa. Não se trata, portanto, e importa reter este aspecto, da criação de qualquer forma processual diversa das já existentes na nossa lei adjectiva, tanto mais que, se ao requerimento for aposta a 'fórmula executória' o que se segue é uma execução sob a forma de processo sumário baseada num título diverso da sentença judicial (cf. artigo 465.º, n.º 2, do Código de Processo Civil); e, se for deduzida oposição à pretensão ou, como aqui sucede, frustrada a notificação do requerimento (hipóteses previstas no artigo 6.º do Decreto-Lei 404/93), o que se segue é uma acção declarativa com processo sumaríssimo [note-se que a referência do artigo 6.º, n.º 2, à marcação de julgamento - 'se o estado do processo o permitir' - aplica-se apenas às hipóteses em que foi deduzida oposição; nos casos em que a notificação postal não ocorre (se frustrou como diz a lei), tem lugar, como não podia deixar de ser, a citação nos termos do artigo 794.º do Código de Processo Civil].
Trata-se, assim, como refere o preâmbulo do diploma, do estabelecimento de uma 'fase desjurisdicionalizada' visando facultar relativamente a dívidas de montante reduzido a possibilidade - mediante a formação de um título executivo decorrente do reconhecimento implícito do devedor - de acesso à acção executiva sem passagem pelo processo declarativo, garantida que se mostra, conforme o legislador expressamente fez questão de indicar, a defesa do devedor através dos mecanismos normais de oposição à execução, decorrentes do artigo 815.º do Código de Processo Civil.
Cabe aqui notar constituírem precisamente este tipo de dívidas (inferiores a 250 000$) a fatia esmagadora das acções declarativas propostas na justiça cível portuguesa, no que um estudo recente qualifica sugestivamente de 'colonização do sistema judiciário pelas pequenas dívidas' (referimo-nos ao trabalho coordenado por Boaventura Sousa Santos, Os Tribunais na Sociedade Portuguesa, v. A Justiça em Tribunal, Expresso/revista de 4 de Março de 1995, pp. 32/43, cf. quanto ao peso das acções declarativas de dívida até 250 000$, os quadros constantes a pp. 40-41).
Assumindo o processo de formação deste tipo específico de título executivo índole essencialmente tabeliónica (trata-se de verificar a regularidade formal de papéis e levá-los, por via postal, ao conhecimento de alguém), é natural que o legislador, em homenagem aos objectivos de simplificação da actividade jurisdicional que motivaram a injunção, não tenha sobrecarregado a actividade do juiz com mais esse encargo. Daí, a sua entrega ao secretário judicial que, exercendo poderes não substancialmente diversos dos já resultantes do artigo 213.º do Código de Processo Civil, constata a não oposição à pretensão (o elemento que leva à formação do título executivo), certificando em conformidade o requerimento de injunção. De forma mais simples ainda, nas hipóteses, como a dos autos, em que o título se não forma, a intervenção do funcionário reduz-se, na prática, à distribuição de uma acção sumaríssima e à conclusão desta ao juiz.
4.1.1 - Convém a este respeito esclarecer, na sequência da observação constante das alegações do Ministério Público (2.5 a fl. 37), que a injunção instituída pelo Decreto-Lei 404/93 apresenta diferenças radicais relativamente aos institutos que no direito francês e italiano recebem o mesmo nome (a 'injonction de payer', regulada nos artigos 1405.º e 1425.º do Code de Procédure Civil, e o 'Procedimento d'Ingiunzione' referido nos artigos 633.º a 656.º do Codice di Procedura Civile). Com efeito, assumem estes, por comparação ao direito adjectivo português, natureza de verdadeiras acções declarativas sumaríssimas, culminando com a prolação de uma decisão judicial (artigos 1419.º a 1422.º do CPC francês e 640.º e 641.º do CPC italiano) à qual se pode conferir, posteriormente, carácter executivo (artigos 1422.º do CPC francês e 647.º do CPC italiano).
A lei portuguesa, para além da coincidência no nome e em alguns aspectos de pormenor da tramitação, afastou-se decididamente destes modelos. Não se tratou entre nós de estabelecer um processo especial contendo uma tramitação mais simplificada e célere para acções declarativas; tratou-se antes de eliminar em determinadas situações a própria acção declarativa, conferindo um acesso directo à acção executiva.
O regime instituído pelo Decreto-Lei 404/93 tem, assim, mais pontos de contacto com figuras de introdução mais ou menos recente em diversos direitos adjectivos civis, em que os poderes de intervenção dos secretários judiciais em determinados procedimentos relativos a causas mais simples são substancialmente ampliados em aspectos que não traduzam o exercício de competências jurisdicionais. Disto constitui exemplo a chamada 'déclaration au greffe', introduzido em 1989 no processo civil francês (artigos 847-1 e 2, do CPC francês; v. Armindo Ribeiro Mendes, Novo Processo Executivo, sub judice, n.º 5, Janeiro/Abril de 1993, p. 29).
Assim caracterizada em traços gerais a figura da injunção, tal qual o Decreto-Lei 404/93 a desenhou, importa, pressupondo os elementos recolhidos nessa caracterização, encarar as questões de inconstitucionalidade invocadas no despacho recorrido.
4.2 - Haveria, na óptica da decisão de recusa, desde logo, a edição pelo Governo de um diploma regulando matéria reservada ao Parlamento, porque relativa à organização e competência dos tribunais [artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição], consubstanciando, portanto, uma situação de inconstitucionalidade orgânica.
A expressão 'organização dos tribunais' tem que ver genericamente com aquilo que a Constituição trata sob a designação de 'categorias de tribunais' (artigo 211.º; v. também, secção I do capítulo II, artigos 11.º e 12.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais - Lei 38/87, de 23 de Dezembro, com a redacção da Lei 24/92, de 20 de Agosto), matéria em nada tocada por qualquer das disposições do Decreto-Lei 404/93.
Por sua vez, ao falar em 'competência', na alínea q) do artigo 168.º, n.º 1, tem o texto constitucional em vista o sentido que a expressão tem na doutrina processualista: a '[...] medida de jurisdição atribuída a cada tribunal' (Castro Mendes, Direito Processual Civil, I vol., Lisboa, 1979, p. 405), '[...] as normas definidoras dos critérios que presidem à distribuição do poder de julgar entre os diferentes tribunais' (Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, 1985, p. 195), ideia esta que sai confirmada da leitura das referências à 'competência' de tribunais, contidas em diversas disposições constitucionais [v. artigos 213.º (quanto aos tribunais judiciais), 214.º, n.º 3 (quanto aos tribunais administrativos e fiscais), 215.º (quanto aos tribunais militares), 216.º, n.º 1 (quanto ao Tribunal de Contas), e 225.º (quanto ao Tribunal Constitucional)].
Ora, o Decreto-Lei 404/93, designadamente nos artigos 4.º e 6.º, n.º 2, não contém disposição alguma que mexa com os critérios de distribuição do poder de julgar entre os diversos tribunais, e que como tal toque aquilo que este Tribunal vem definindo como 'nível nuclear da matéria constante da competência dos tribunais referida na alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição' (Acórdão 246/92, Diário da República, 2.ª série, de 22 de Outubro de 1992; v. também Acórdãos n.os 241 e 242/92, Diário da República, 2.ª série, de 18 de Novembro de 1992).
A actividade do secretário visa, como já se frisou, a formação de um título executivo e as consequências dela, forme-se ou não esse título, sempre obtêm concretização processual através das espécies processuais normais (execuções sumárias ou acções declarativas sumaríssimas) que, aliás, a não existir o mecanismo da injunção, sempre corresponderiam como acções declarativas ao Tribunal que tramita a injunção.
A tudo isto sempre haverá que juntar ser entendimento deste Tribunal que, 'qualquer que seja o nível ou o grau da competência dos tribunais reservada à Assembleia da República, seguramente que nele não entram as modificações da competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter processual', pois, "a regulamentação do 'processo' a observar perante os tribunais - salvo no tocante ao processo criminal e [...] ao processo perante o Tribunal Constitucional - já não é matéria da reserva legislativa parlamentar" (Acórdão 407/87, Diário da República, 2.ª série, de 21 de Dezembro de 1987; v. também Acórdão 85/88, Diário da República, 2.ª série, de 22 de Agosto de 1988).
Não se verifica, assim, a apontada inconstitucionalidade orgânica.
4.3 - Resta averiguar se as faculdades conferidas pelo Decreto-Lei 404/93 aos secretários judiciais traduzem a atribuição aos mesmos de poderes jurisdicionais, conforme refere o despacho recorrido.
O exercício da função jurisdicional reserva-o a Constituição, no artigo 205.º, aos tribunais e, dentro destes, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, aos juízes (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 792). Isto, porém, não significa que todo o tipo de actividade desenvolvida por um tribunal, designadamente com incidência processual, assuma carácter jurisdicional e tenha, em última análise, de competir a um juiz. A especificidade do exercício da função jurisdicional encontra-a este Tribunal na presença do elemento 'composição de conflitos de interesses [...] de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do direito e da justiça' (Acórdão 182/90, Diário da República, 2.ª série, de 11 de Setembro de 1990).
Tendo presente a caracterização que atrás se fez da finalidade do processamento da injunção, ressalta que a actividade do secretário judicial, concretamente nos aspectos aqui em causa (os decorrentes dos artigos 4.º e 6.º, n.º 2, no trecho aplicável), não implica resolução, com recurso a critérios jurídicos, de quaisquer conflitos de interesses, não divergindo substancialmente daquela que às secretarias judiciais é atribuída por diversas disposições do processo.
Como a este propósito refere Armindo Ribeiro Mendes, existe no processo executivo português um espaço de viabilidade constitucional de uma mais intensa intervenção material dos funcionários do tribunal (O Processo Executivo e a Economia, sub judice, n.º 2, Janeiro/Abril, 1992, p. 55) e foi isso, feito um balanço global do Decreto-Lei 404/93, o que o legislador pretendeu, embora reportando essa intervenção à criação de um pressuposto da acção executiva."
A respeito do princípio da proibição de "indefesa" ínsito no direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, discorreu este Tribunal, no Acórdão 508/2002 (igualmente disponível no sítio da Internet www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:
"[...] O direito de defesa do réu ou demandado judicialmente, ou o chamado princípio da proibição da indefesa é indiscutivelmente um direito de natureza processual ínsito no direito de acesso aos tribunais, constante do artigo 20.º da Constituição, e cuja violação acarretará para o particular prejuízos efectivos, decorrentes de um impedimento ou um efectivo cerceamento ao exercício do seu direito de defesa.
Como se escreveu no Acórdão 271/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol., pp. 359 e segs.):
'E neste domínio é particularmente significativo o direito à protecção jurídica consagrado no artigo 20.º da Constituição, no qual se consagra o acesso ao direito e aos tribunais que, para além de instrumentos da defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, é também elemento integrante do princípio material da igualdade e do próprio princípio democrático, pois que este não pode deixar de exigir a democratização do direito.
Para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional, se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal.
Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual "a proibição da 'indefesa' que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses" (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp. 82 e 83).
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cf. os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da República, 2.ª série, de, respectivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990).
[...]
Em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o processo jurídico adequado (a due process of law clause, da tradição anglo-americana) de garantir que cada uma dessas partes deva ser chamada a dizer de sua justiça (audiatur et altera pars). E esta exigência alarga-se a todas as outras tramitações processuais cíveis, salvo contadas excepções, mesmo nos processos executivos, em especial quando são deduzidas oposições à própria execução ou à penhora. Como escreveu Manuel de Andrade, a estruturação 'dialéctica ou polémica do processo teria partido do contraste dos interesses dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões [...] para o esclarecimento da verdade. É tal a sua vantagem - seu rendimento - que as leis a consagram mesmo onde repelem ou cerceiam o princípio dispositivo [...]. Espera-se que, também para os efeitos do processo, da discussão nasça luz; que as partes (ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz, mais sereno mas mais distante dos factos e menos activo, dificilmente seria capaz de descobrir por si [...]' (Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista por Herculano Esteves, Coimbra, 1979, p. 379)".
Pode remeter-se, por último, para o que se escreveu no Acórdão 6/2001 (igualmente disponível no sítio da Internet www.tribunalconstitucional.pt), para concluir pela conformidade constitucional da cominação contida no n.º 3 do artigo 856.º do Código de Processo Civil, segundo a qual, em penhora de créditos, notificado o devedor de que o crédito fica à ordem do tribunal da execução e o devedor nada declarar, se entende que reconhece a existência da obrigação nos termos estabelecidos na nomeação do crédito à penhora:
"[...] A cominação prevista na norma em apreciação para a falta de declaração do devedor sobre o crédito penhorado está estabelecida para as situações em que quer no momento da notificação de que o crédito fica à ordem do tribunal, quer posteriormente - no prazo legal previsto para a prática de actos processuais - o devedor nada diz sobre a existência, garantias, data de vencimento e outras circunstâncias que possam interessar à execução, isto é, a cominação só se efectiva depois de o devedor ter oportunidade processual de se defender, contraditando ou dizendo o que lhe aprouver em sua defesa.
In casu, a recorrente terá sido notificada por mais de uma vez, nada tendo dito em sua defesa sobre o teor das respectivas notificações. Pretende agora eximir-se à cominação, invocando a sua alegada inconstitucionalidade por violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP.
O artigo 2.º da Constituição tem a epígrafe Estado de direito democrático, nele se estatuindo que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na vontade popular, na dignidade da pessoa humana, para alcançar uma sociedade justa e solidária.
Ora, não se vê em que medida a cominação estabelecida na norma em apreço viole o Estado de direito democrático que a recorrente invoca. Num Estado de direito democrático os cidadãos devem obediência à lei, ainda que esta lhes imponha o cumprimento de obrigações e não já e apenas lhes atribua direitos. Não resulta violado o Estado de direito democrático quando, atribuindo a lei obrigações/deveres aos cidadãos, em caso de incumprimento dos mesmos, se estabeleçam consequências prejudiciais para os seus destinatários, por força do referido incumprimento.
A cominação prevista na norma em apreço para o incumprimento do devedor só é accionada depois de se lhe dar oportunidade de defesa, sem que ele a tenha querido apresentar. O reconhecimento da obrigação nos termos indicados na nomeação do crédito à penhora só sucede porque o devedor, notificado de que o crédito fica à ordem do tribunal, não prestou sobre ele quaisquer declarações no acto da notificação nem posteriormente no prazo geral para a prática de actos processuais.
A existência de cominações no processo civil não faz com que a decisão proferida seja desconforme com o Estado de direito democrático, em que se pressupõe que os cidadãos cumpram a lei, recebendo e respondendo às notificações, cumprindo os deveres que lhes são impostos, responsabilizando-se pelo respectivo incumprimento.
Refira-se ainda que, no processo civil, situações mais gravosas do que a da recorrente se verificam, por exemplo, nas acções julgadas com base em provas com força probatória legal (presunções legais, documentos, confissão, designadamente por falta de impugnação especificada pelo réu dos factos articulados pelo autor na petição), sendo entendimento pacífico na jurisprudência deste Tribunal o de que não são inconstitucionais as normas então em causa (cf., entre outros, Acórdãos n.º 223/95, in Diário da República, 2.ª série, de 27 de Junho de 1995, e n.º 499/98 - inédito).
O princípio da proporcionalidade (cf. artigo 18.º, n.º 2, da CRP) exige que as medidas restritivas legalmente previstas sejam o meio adequado para prossecução dos fins visados pela lei, o mesmo é dizer para a salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, sendo necessárias para alcançar os fins (que não podiam ser alcançados com meio menos gravoso) e que os meios restritivos e os fins obtidos se situem numa 'justa medida'.
A cominação estabelecida para o devedor que, notificado para tal - podendo fazê-lo no acto ou posteriormente, no prazo legal assinalado -, nada declarou sobre o crédito penhorado pelo tribunal, não se configura como um meio legal restritivo desproporcionado, desrazoável ou excessivo em relação aos fins obtidos, máxime a satisfação do interesse legítimo do credor em obter o pagamento da sua dívida pela nomeação à penhora dos créditos do executado.
Além disso, a referida cominação não é produto de uma decisão legislativa arbitrária ou caprichosa.
Não resultam assim, violados os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade.
De igual modo se não mostra violado o artigo 20.º da CRP enquanto este garante aos cidadãos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
[...]
Nada disto acontece, por força da aplicação da norma em apreço, já que ela pressupõe que previamente foi dada oportunidade processual ao devedor de defender o seu direito e exactamente por ele nada ter dito, se considera reconhecida a obrigação - a referida norma não coloca, pois, o notificado numa situação de 'indefesa' e, no caso, só a conduta da recorrente fez precludir o direito de alegar e provar a invocada inexistência do crédito.
Aliás, a recorrente nem sequer nega que aquela oportunidade processual lhe foi dada, já que admite o recebimento das notificações relativas à penhora dos créditos, não cuidando de se pronunciar no prazo legal."
6 - No presente caso, porém, a distribuição do ónus da prova que resulta do efeito cominatório previsto na norma impugnada dá-se fora do âmbito do exercício da função jurisdicional, não tendo havido, antes da emissão do título executivo, apreciação da pretensão do autor por parte de um juiz. Não existindo decisão condenatória, o executado não teve ocasião de, em acção declarativa prévia, se defender amplamente da pretensão do exequente.
Conferida força executiva ao requerimento de injunção em resultado de um procedimento que representa a atribuição de uma especial fé a uma pretensão de pagamento de uma quantia em dinheiro, sem pôr em causa a possibilidade de questionar quer a obrigação exequenda, quer o responsável pelo seu cumprimento, o executado não se pode defender amplamente da pretensão do exequente em fase anterior ao requerimento de execução. Na oposição de mérito à execução, a qual visa um acertamento negativo da obrigação exequenda, incumbe ao exequente o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito substancial, sendo à acção executiva que se devem reportar as normas dos artigos 342.º a 345.º do Código Civil, relativas ao problema do ónus da prova. Assim, quando, como no caso dos autos, o executado ponha em causa ser ele a pessoa responsável pelo cumprimento da obrigação exequenda, é o exequente que, em sede de oposição à execução, terá o encargo de o provar, de acordo com o artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil. Trata-se de "matéria de defesa do devedor; e só por existir um título executivo é que ao devedor cabe a iniciativa de instaurar a acção" (Bruns-Peters, Zwangsvollstreckungsrecht, München, 1987, p. 90, citado por José Lebre de Freitas, A Acção Executiva - Depois da Reforma, 4.ª ed., Coimbra, 2004, p. 184, n. 33).
Houve, é certo, por parte do devedor, uma opção no sentido de não deduzir a pertinente oposição no procedimento de injunção, reservando para a acção executiva subsequente à constituição do título executivo a formulação da defesa que anteriormente podia ter formulado, sendo tal falta de oposição subsequente à sua notificação o próprio fundamento da aposição da fórmula executória no requerimento de injunção.
Como afirma o tribunal a quo, "a característica deste título judicial impróprio, que o afasta dos restantes títulos criados por força de disposição legal, resulta, aliás, do facto de a força executiva ser conferida apenas depois de se conceder ao devedor a possibilidade de, judicialmente, discutir a causa debendi, alegada. Ou seja, no processo de injunção, o requerido tem a possibilidade de, deduzindo oposição, impedir que seja aposta força executiva à acção".
Pode talvez dizer-se que o título executivo não é uma sentença porque o devedor optou por, no procedimento de injunção, não se opor à pretensão do requerente. Mas, seja como for, a falta de oposição e a consequente aposição de fórmula executória ao requerimento de injunção não têm o condão de transformar a natureza (não sentencial) do título, tornando desnecessária, em sede de oposição à execução, a prova do direito invocado, deixando ao executado apenas a alegação e prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do exequente.
Tendo presente, por um lado, que a demonstração do direito do exequente não tem o mesmo grau de certeza relativamente a todos os títulos executivos, reconhecendo-se que o título executivo que resulte da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção demonstra a aparência do direito substancial do exequente, mas não uma sua existência considerada certa, e, por outro lado, que a actividade do secretário judicial não representa qualquer forma de composição de litígio ou de definição dos direitos de determinado credor de obrigação pecuniária, há que evitar a "indefesa" do executado, entendendo-se por "indefesa" a privação ou limitação do direito de defesa do executado que se opõe à execução perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.
Nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, se uma limitação interfere com um direito, restringindo-o, necessário se torna encontrar na própria Constituição fundamentação para a limitação do direito em causa como que esta se limite "ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos" - não podendo, por outro lado, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, "diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais".
No caso, a possibilidade de se introduzir limites ao princípio da proibição de "indefesa", ínsito na garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da Constituição, existe apenas na medida necessária à salvaguarda do interesse geral de permitir ao credor de obrigação pecuniária a obtenção, "de forma célere e simplificada", de um título executivo (9.º parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro), assim se alcançando o justo equilíbrio entre esse interesse e o interesse do executado de, em sede de oposição à execução, se defender através dos mecanismos previstos na parte final do n.º 1 do artigo 815.º do Código de Processo Civil (correspondente hoje ao artigo 816.º, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março).
Ora a norma em causa, na interpretação perfilhada dos autos, segundo a qual a não oposição e a consequente aposição de fórmula executória ao requerimento de injunção determinam a não aplicação do regime da oposição à execução previsto nos artigos 813.º e segs. do Código de Processo Civil, designadamente o afastamento da oportunidade de, nos termos do actual artigo 816.º do mesmo Código, e (pela primeira vez) perante um juiz, o executado alegar "todos os fundamentos de oposição que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração", afecta desproporcionadamente a garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no artigo 20.º da Constituição, na sua acepção de proibição de "indefesa".
Ponderadas as considerações referidas, apenas se justificando normas restritivas quando se revelem proporcionais, evidenciam uma justificação racional ou procurem garantir o adequado equilíbrio face a outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, entende-se que a norma impugnada se encontra ferida de inconstitucionalidade.
III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa ínsito no direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, a norma do artigo 14.º do Regime anexo ao Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro, na interpretação segundo a qual, na execução baseada em título que resulta da aposição da fórmula executória a um requerimento de injunção, o executado apenas pode fundar a sua oposição na alegação e prova, que lhe incumbe, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente, o qual se tem por demonstrado;
b) Em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar a sua reforma de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006. - Paulo Mota Pinto - Benjamim Rodrigues - Mário José de Araújo Torres - Maria Fernanda Palma - Rui Manuel Moura Ramos.