Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1 - José Mário Campos Casais recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 2 de Outubro de 2007, que negou provimento ao recurso interposto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel.
2 - O recorrente instaurou recurso contencioso contra o Vereador do Pelouro da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, relativamente ao seu despacho de 26 de Fevereiro de 2002, que o notificou para, no prazo de 30 dias, "apresentar processo para obtenção da necessária licença de utilização para o estabelecimento de mercearia, ou, em alternativa, para no mesmo prazo, proceder ao encerramento do estabelecimento" e ao despacho, da mesma autoridade, de 17 de Julho de 2002, que indeferiu a "requerida suspensão do prazo concedido pelo acto anterior".
3 - Por despacho judicial, foi rejeitado o recurso contencioso, relativamente ao primeiro daqueles despachos, por ter julgado que havia caducado o direito à respectiva interposição.
Tendo prosseguido o recurso relativamente ao segundo despacho, foi-lhe negado provimento por sentença.
4 - Inconformado com ambas as decisões, o recorrente interpôs recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo, mas sem êxito.
Na parte, circunstancialmente, relevante à compreensão do decidido, discreteou-se na decisão recorrida do seguinte jeito:
«II.3. Do direito
II.3.1. Vejamos em primeiro lugar do recurso respeitante ao despacho referido em I.1.
Tal decisão jurisdicional traduziu-se na rejeição do recurso contencioso por haver caducado o direito à respectiva interposição.
Como se viu o acto administrativo em causa, materializou-se em ordenar ao interessado que no prazo de 30 dias apresentasse na Câmara Municipal processo para obtenção da necessária licença de utilização para estabelecimento de mercearia, ou, em alternativa, para no mesmo prazo, proceder ao encerramento de tal estabelecimento. (cf. fls, 12 dos autos e 59 do Processo Administrativo).
Tendo ainda em vista o que decorre do ponto I dos factos, conclui-se ainda que a notificação identificava o seu autor, bem como a data da sua prolação.
Para a decisão ora impugnada, como ao acto administrativo eram assacados vícios que, a procederem, levariam à sua anulabilidade, atento o disposto nos artigos 28.º, n.º 1, al. a) e 29.º, 35.º, n.º 3, da LPTA, e como o recorrente fora notificado do mesmo a 13.03.2002, à data da interposição do recurso (5.11.2002) já o prazo de interposição de recurso se mostrava esgotado.
O recorrente em contestação do decidido, no essencial, alega que na p.i.. imputou ao acto impugnado que se mostrava inquinado de vícios que levariam à sua declaração de nulidade, pelo que a sua impugnação, atendendo a que, "a nulidade dos actos administrativos pode ser arguida a todo o tempo e é, até, de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 134º do CPA" (cf. conclusão 12. da alegação) devia considera-se tempestiva, visto "que não lhe é aplicável o prazo de caducidade do recurso contencioso previsto no artigo 29º da LPTA, o qual é restrito à mera anulabilidade" (ibidem).
Em abono da sua invocação, em síntese, afirma que relativamente ao acto recorrido se verificou:
- falta de audiência prévia do Recorrente, assim incorrendo em omissão de uma formalidade essencial (cf. artigo 100º do CPA, e artigo 267º, n.º 5 da CRP)
- faltarem as menções obrigatórias das alíneas c) e d) do n.º 1, do artigo 123º do CPA - a enunciação do acto ou facto que dá origem ao acto recorrido e a sua fundamentação de facto e de direito;
- estando assim perante falta de elementos essenciais ao acto administrativo o que gera a sua nulidade, nos termos do artigo 133º, n.º 1, do CPA;
- sendo a própria Constituição a prescrever, relativamente aos actos administrativos que afectem direitos e interesses legalmente protegidos como é o caso do acto recorrido que "carecem de fundamentação expressa e acessível" (art. 268º, n.º 3);
- mostrando-se assim violado o conteúdo essencial de um direito fundamental (cf. artigo 133º, n.º 2, al. d), do CPA);
- pelo que o prazo para o recurso contencioso do primeiro acto recorrido apenas se iniciou com a notificação do segundo acto recorrido, pois que, esse, refere o acto ou facto que deu origem ao primeiro e a fundamentação de facto e de direito no entender do Recorrido, que servirá a um e a outro.
- o primeiro acto recorrido só se torna definitivo e executório com o segundo, como só com a notificação deste, que mantém, integralmente, aquele, se torna, verdadeiramente, lesivo dos direitos do Recorrente.
- considera como violados "o disposto nos artigos 9.º, 66º, 68º, 100º, 123º, e, designadamente, n.º 1, als. c) e d), 124º, n.º 1, al. a), 133º, n.º 1 e n.º 2, al. d), 134º, n.º s 1 e 2, 138º, 140º e 141º do CPA e, ainda, o disposto nos artigos 267º, n.º 5 e 268º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa".
Vejamos:
O conteúdo dispositivo do acto em causa traduziu-se (i) na asserção de que o estabelecimento de mercearia do recorrente carecia de licença de utilização, e (ii) em intimação do interessado para desencadear na Câmara e no prazo que lhe foi indicado o respectivo processo, ou, em alternativa, para no mesmo prazo, proceder ao seu encerramento.
Analisemos as invocações do recorrente tendentes à demonstração de que, por se estar perante a falta de audiência prévia e de fundamentação se estaria perante vícios que conduziam à nulidade daquele acto, concretamente porque faltariam elementos essenciais do acto.
Ora, o conceito de "elementos essenciais do acto administrativo" para efeitos do artigo 133.º, n.º 1, do CPA, tem a ver com a densificação desses elementos, que decorre dos tipos de actos em causa ou da gravidade dos vícios que os afecta, podendo pois dizer-se que são nulos, nos termos daquele normativo, os actos a que falte qualquer dos elementos indispensáveis para que se possa constituir qualquer acto administrativo, incluindo os que caracterizam cada espécie concreta, ou feridos de vícios graves e decisivos equiparáveis àquela carência 1.
Mas assim sendo, há que dizer que a formalidade da audiência prévia não contende com a estrutura [a ideia de essencialidade estrutural ou funcional de que fala o Prof. Vieira de Andrade, citado naquele acórdão do STA de 17-02-2004] ou perfeição do acto administrativo, constituindo antes elemento do procedimento administrativo tendente à produção do acto; e o dever de fundamentação dos actos possui uma natureza meramente instrumental constituindo um conceito relativo, que varia em função do concreto tipo de acto. "A exigência de fundamentação diz respeito ao modo de exteriorização formal do acto administrativo e não à validade substancial do respectivo conteúdo ou pressupostos", sendo relevante a tal respeito o "esclarecimento das razões da decisão, no sentido da sua determinabilidade e não no sentido da sua indiscutibilidade substancial ou da sua convincência" (Acs. do STA de 04-07-2002, Rec. 0616/02, e de 19.12.2001, Rec. 47774).
Como a jurisprudência do STA vem afirmando, a falta de audiência do interessado, prevista no artigo 100.º do CPA, quando devida, gera, em princípio, mera anulabilidade, pois, não sendo o direito de ser ouvido um direito fundamental, é de aplicar a regra geral contida no artigo 135.º do mesmo Código.
A função instrumental do direito de audiência, como se expendia já no acórdão de 01/03/2000 (Rec. 44545) torna incompreensível que se lhe atribua a dignidade de direito fundamental - e, muito menos, que se considere que a sua preterição ofende "o conteúdo essencial de um direito fundamental" (art. 133.º, n.º 2, alínea d, do CPA) em termos de que tal gravidade justifique o seu sancionamento com a nulidade do acto conclusivo do respectivo procedimento - quando o direito substantivo em causa no procedimento não merece, ele próprio, a qualificação de direito fundamental.
E, é justamente o que ocorre no caso presente, em que o direito substantivo em causa - o direito à licença de utilização de um estabelecimento - não reveste as características de direito fundamental.
Também no que à fundamentação dos actos administrativos, em si mesma concerne, constituindo um direito instrumental ou formal, com vista à defesa de outros de conteúdo material, também não contende com algum direito fundamental, salvo se em concreto serve a defesa de um direito desta natureza, o que, como se viu, não é o caso dos autos.
Estando em discussão a natureza de vício que inquina o acto - anulabilidade ou nulidade (por pretensa preterição dos deveres de audiência e de fundamentação), concretamente para aferir da tempestividade da impugnação - , ou seja a (in)validade do acto, a alusão neste âmbito à notificação de acto administrativo que não contenha os seus elementos essenciais (cf. conclusão 14), constitui questão de todo impertinente, por respeitar à eficácia do acto, até pelo que acima se deixou referido sobre o que a propósito foi registado em sede de probatório.
Pelas mesmas razões e tendo em vista o já exposto a respeito do n.º 1 do artigo 123.º do CPA, e não se integrando a invocação do mais que é alegado no elenco das nulidades (concretamente no enunciado no n.º 2 daquele dispositivo), não pode a mesma deixar de improceder.
Face ao exposto o haverá que manter decidido.
II.3.2. Vejamos agora do recurso respeitante à sentença (referida em I.2.)
A sentença recorrida, por entender que tal constituía a questão essencial a decidir, apreciou se assistia fundamento ao pedido de suspensão do prazo a que se referia o acto de que se tratou em I.1., face ao regime legal respectivo, tendo concluído pela negativa.
Para assim concluir, e arrancando da matéria factual que seleccionou, ponderou a circunstância de nunca o recorrente haver feito prova da existência de "alvará de licença sanitária", sendo que era a ele que cumpria fazer a respectiva prova, tendo em vista a previsão do artigo 33.º 2, do Dec. Lei 370/99 de 16 de Setembro, pois que apenas fora exibido um atestado de fiscalização sanitária anual passado para o ano económico de 1957, não se apresentando outro atestado anual ou outro alvará de licença sanitária, concretamente o Alvará de Licença Sanitária emitida ao abrigo da Portaria 6.065, de 30 de Março de 1929.
Censura o decidido o recorrente nos termos já vistos.
Importa que se adiante, desde já, que a denegação de provimento ao recurso contencioso contida na sentença deve manter-se.
Na verdade, o conteúdo dispositivo do acto prendeu-se com o indeferimento do pedido de suspensão (por 60 dias) do prazo para obtenção da licença de utilização, ou encerramento do estabelecimento, por haver entendido que a pedida suspensão nada resolveria, prazo esse que havia sido fixado no acto referido em I.1., e de que já acima se tratou.
Ou seja, a um acto administrativo que, nos termos já vistos, depois de ter asseverado que o estabelecimento de mercearia do recorrente carecia de licença de utilização, determinou ao interessado que, em dado prazo (de 30 dias) desencadeasse processo para a sua obtenção, ou, em alternativa, para no mesmo prazo, proceder ao encerramento de tal estabelecimento, seguiu-se um outro que indeferiu o pedido de suspensão daquele mesmo prazo.
Naturalmente que cada uma dessas decisões administrativas é susceptível de se mostrar inquinada de vícios próprios inerentes à sua própria estatuição, não sendo, em princípio, transponíveis para a impugnação de cada uma delas os vícios que são típicos de cada uma das outras, desde logo porque a cada uma preside regime jurídico próprio.
Assim, para aquilatar da (in)validade de um acto que indeferiu pedido de suspensão de prazo terá que se indagar do regime a que estava subordinado um tal prazo, concretamente se, e em que termos, admitia a sua suspensão.
Em conformidade, a decisão recorrida, entrando na decisão da aludida questão essencial que enunciou, concluiu que as "disposições legais apontadas pelo recorrente como violadas pelo acto recorrido nada têm a ver com a questão da permissão ou não da prorrogação do prazo requerido pelo recorrente, pois nenhuma delas permite a prorrogação desse prazo", mais ali se acrescentando que a questão da necessidade ou não da obtenção da licença de utilização se prendia com o anterior despacho que lhe fixara prazo para dar início do respectivo procedimento.
Efectivamente, a indagação sobre a necessidade (ou não) da obtenção da licença de utilização relativamente ao estabelecimento em causa (re)abriria uma discussão que tinha a sua sede própria na impugnação do acto referido em I.1, por se prender com a legalidade do acto que determinou que o aqui recorrente apresentasse na Câmara processo para a obtenção daquela licença.
Ora, na sua alegação de recurso, o recorrente, em resumo, para além de suscitar questões - como a da inexistência do alvará de licença sanitária e sobre quem competia o respectivo ónus de prova - , sustenta que o prazo de 30 dias para dar início ao procedimento para obter a licença de utilização lhe fora fixado livremente pela Administração, acrescentando que era susceptível de prorrogação.
Só que, como se alcança do probatório, o despacho impugnado assentou na convicção de que, face à inacção do recorrente em apresentar no prazo ali indicado o pedido de licenciamento ("uma vez que, em 12 de Janeiro de 2002, já havia decorrido o prazo consagrado no n.º 1 do artigo 32.º do Dec. Lei 370/99"), "o pedido de suspensão...não irá resolver a situação em crise" (cf. ponto 3.º).
Refere o Ministério Público no seu aludido parecer, que se tratou "de uma decisão discricionária do recorrido, ancorada em motivação de ordem pragmática e sem apelo a dispositivos legais, nada tendo a ver com uma eventual improrrogabilidade do prazo que lhe fora concedido".
Efectivamente, segundo aquele artigo 32.º do citado DL 370/99, sob a epígrafe estabelecimentos sem anterior licença sanitária ou autorização de funcionamento:
"1 - Os estabelecimentos abrangidos pelo presente diploma já em funcionamento, que não possuam o alvará de licença sanitária previsto na Portaria 6065, de 30 de Março de 1929, ou a autorização de funcionamento emitida ao abrigo da Portaria 22970, de 20 de Outubro de 1967 e do Despacho Normativo 148/83, de 25 de Junho, ou de legislação anterior, dispõem do prazo de um ano para requerer a licença de utilização prevista no presente diploma e de dois anos para procederem às adaptações exigidas.
2 - Quando, por razões de ordem arquitectónica ou técnica, não possam ser integralmente cumpridos os requisitos exigíveis para o tipo de estabelecimento em causa, deve o seu titular propor soluções alternativas, as quais serão apreciadas pela câmara municipal, com vista à respectiva aprovação".
Ora, para além dos referidos prazos, não se antolha qualquer outra previsão legal referente à matéria, bem como a possibilidade de alguma prorrogabilidade ou suspensão do procedimento, pelo que se compreende a aludida posição de incredulidade da Administração.
Aliás, o recorrente, para justificar a prorrogabilidade do prazo, afirma estar-se em presença, não "do prazo previsto no artigo 32.º do Decreto-Lei 370/99, mas, antes, do prazo de 30 dias concedido - discricionária, infundamentadamente e sem que se encontre previsto em qualquer dispositivo legal - pela Administração..." (cf. conclusão 14), não sendo "um prazo fixado por Lei, mas, antes, fixado livremente pela Administração" (cf. conclusão 15).
Assim sendo, quando pelo acto impugnado foi indeferido o pedido de suspensão de prazo, e tendo presente, como se refere no probatório, que já havia muito que decorrera o prazo consagrado no citado n.º 1 do artigo 32.º do Dec. Lei 370/99, caberia alegar e provar que se incorrera nalgum dos vícios que enformam a actuação discricionária da Administração (com destaque para o desvio de poder, ou violação de princípios da igualdade e proporcionalidade), o que se não encetou.
Como assim, o que vem invocado em impugnação do decidido - como a questão jurídica da existência ou não do alvará de licença sanitária e da repartição do ónus da prova pertinente - , e com também refere com pertinência o Ministério Público, configura questões alheias à apreciação da legalidade do acto impugnado, antes contendendo com o anterior acto que havia determinado prazo para o desencadeamento do procedimento necessário à obtenção da licença sanitária, cuja sindicância contenciosa foi rejeitada, por intempestiva».
5 - Dizendo-se, mais uma vez, inconformado, o recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, através de requerimento do seguinte teor:
«Sendo, quanto ao primeiro acto administrativo recorrido e ao primeiro recurso jurisdicional interposto, as normas constitucionais violadas os artigos 267º, n.º 5 e 268º, n.º 3, da CRP, nas interpretações feitas na 1.ª Instância e mantidas no STA, quanto à primeira dessas normas, e, também, quanto às dos artigos 100.º e 133º, n.º 1, do CPA, no sentido de não ser a audiência prévia elemento essencial do acto administrativo e, quanto à segunda dessas normas, e, também, quanto às dos artigos 123º, n.º 1, al. d), 124º, n.º 1, al. a) e 133º, n.º 1, do CPA, no sentido de não ser a fundamentação dos, actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos elemento essencial desses actos e direito fundamental dos cidadãos,
Tendo tais questões de inconstitucionalidade sido suscitadas nas alegações do recurso jurisdicional perante o STA, designadamente no 1º, 2º, 8º e 9º parágrafos da segunda página e nas conclusões 1., 2., 3., 4., 5., 7., 8., 9., 10., 17. e 18..
E sendo, quanto ao segundo acto administrativo recorrido e ao segundo recurso jurisdicional interposto, a norma constitucional violada o artigo 266º, n.º 1, da CRP, na interpretação feita na 1.ª Instância e mantida no STA, desse preceito e dos artigos 4º do CPA e 33º do Decreto-Lei 370/99, de 18 de Setembro, no sentido de não ser ónus da alegação e prova da Administração a inexistência do Alvará de Licença Sanitária emitido ao abrigo da Portaria 6065, de 30 de Março de 1929».
6 - No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho a ordenar a notificação das partes para alegarem e, ainda, para se pronunciarem "querendo, sobre a questão prévia do eventual não conhecimento do recurso de constitucionalidade relativo às normas constantes dos artigos 4.º do CPA e 33.º do DL. n.º 370/99, de 18 de Setembro, por não terem constituído fundamento normativo ou ratio decidendi do decidido, relativamente ao recurso interposto para o STA da sentença de 1.ª instância".
7 - Apenas, o recorrente alegou, concluindo a sua argumentação do seguinte modo:
«1. As questões de constitucionalidade que se colocaram perante o Supremo Tribunal Administrativo são, como se resume no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional, duas:
a) Saber se é ou não inconstitucional, por violação do disposto no artigo 267º, n.º 5, da Lei Fundamental, a interpretação feita na 1.ª Instância e mantida no STA dos artigos 100º e 133º, n.º 1, do CPA, no sentido de não ser a audiência prévia elemento essencial do acto administrativo;
b) Saber se é ou não inconstitucional, por violação do disposto no artigo 268º, n.º 3, da Lei Fundamental, a interpretação feita na 1.ª Instância e mantida no STA dos artigos 123º, n.º 1, al. d), 124º, n.º 1, al. a) e 133º, n.º 1, e - acrescente-se aqui por, apenas por lapso, não ter sido invocado no requerimento de interposição de recurso - n.º 2, al. d), do CPA, no sentido de não ser a fundamentação dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos elemento essencial desses actos e direito fundamental dos cidadãos.
2 - A audiência prévia é formalidade essencial do procedimento administrativo.
3 - Mas, se assim é, não deve distinguir-se formalidade essencial de elemento essencial.
4 - Sobretudo quando é inegável que a CRP atribui dignidade constitucional ao princípio da participação dos cidadãos nas decisões administrativas que lhes digam respeito, ao impor, no seu artigo 267º, n.º 5, que a lei ordinária assegure tal participação.
5 - Aliás, não deixa essa participação de constituir um direito e uma garantia dos administrados face à administração, pese embora não integrar de forma expressa o artigo 268º.
6 - Mas, se assim é, não pode deixar de considerar-se que tal direito de participação há-de ter o tratamento dos direitos fundamentais.
7 - Não há que distinguir consoante a natureza do direito ou interesse que esteja a ser posto em causa.
8 - Mas, no caso, não vale dizer-se que o direito à licença de utilização de um estabelecimento não reveste as características de direito fundamental.
9 - Justamente, reveste-as, pois integra-se, inelutavelmente, no direito ao exercício livre da iniciativa económica privada no respeito pela Constituição e pela Lei, que aquela integra no seu artigo 61.º, n.º 1, no seu catálogo de direitos fundamentais.
10 - O artigo 100º do CPA é o preceito da lei ordinária que responde ao acima invocado imperativo constitucional.
11 - Pelo que apenas uma interpretação do artigo 100.º e 133º, n.º 1 do CPA que conte a violação do direito de audiência prévia imposta pelo primeiro entre os elementos essenciais do acto administrativo para cuja falta o segundo culmina a nulidade estará conforme o artigo 267º, n.º 5 da Constituição.
12 - Não ficando por dizer que, aliás, a nulidade do acto administrativo recorrido - e que é do conhecimento oficioso, nos termos do disposto no artigo 134º, n.º 2, podendo ser declarada por qualquer Tribunal - decorreria, também, do artigo 133º, nº 2, al. d) do CPA.
13 - Pois será evidente que a total omissão do direito de audição prévia ofende o conteúdo essencial desse direito.
14 - Por tudo o que é, efectivamente, inconstitucional, por violação do disposto no artigo 267º, n.º 5, da Lei Fundamental, a interpretação feita na 1.ª Instância e mantida no STA dos artigos 100.º e 133º, n.º 1, do CPA, no sentido de não ser a audiência prévia elemento essencial do acto administrativo.
15 - Assim devendo ser declarado por esse Venerando Tribunal.
16 - O artigo 268º da CRP estabelece os direitos e garantias dos administrados, ou seja, os direitos fundamentais do cidadão enquanto administrado, entre os quais, o direito à fundamentação dos actos que afectem direitos ou interesses protegidos.
17 - Trata-se de direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, partilhando do mesmo regime, designadamente a aplicabilidade directa e a limitação da possibilidade de restrição apenas nos casos expressamente previstos na Constituição e mediante lei geral e abstracta.
18 - Pelo seu número, importância e significado sob o ponto de vista do princípio do Estado de direito democrático, este conjunto de direitos e garantias dos administrados constitui uma espécie de capítulo suplementar do catálogo constitucional de direitos, liberdades e garantias, ao lado dos de carácter pessoal, dos de participação política e dos trabalhadores.
19 - O dever de fundamentação expressa está constitucionalmente consagrado quanto aos actos que afectam direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, no que sempre se incluirá o respeito perante situações jurídico-patrimoniais estabelecidas.
20 - A imposição do dever de fundamentação expressa dos actos administrativos que afectem direitos e interesses legalmente protegidos indicia claramente que, pelo menos nestes casos, o dever de fundamentação é, sob o ponto de vista constitucional, uma dimensão subjectivo-garantística dos direitos fundamentais. Não se trata apenas de uma condição objectiva dos direitos; é, sim, um dos vários componentes do feixe de direitos enquadráveis no âmbito de um determinado direito fundamental, globalmente considerado.
21 - O sentido jurídico-constitucional do dever de fundamentação aponta inequivocamente para a contextualização da fundamentação; ela deve ser parte da decisão administrativa (e não elaborada a posteriori) e deve ser notificada juntamente com ela, independentemente de pedido do interessado.
22 - Repete-se que, no caso, não vale dizer-se que o direito à licença de utilização de um estabelecimento não reveste as características de direito fundamental.
23 - Justamente, reveste-as, pois integra-se, inelutávelmente, no direito ao exercício livre da iniciativa económica privada no respeito pela Constituição e pela Lei, que aquela integra no seu artigo 61º, n.º 1, no seu catálogo de direitos fundamentais.
24 - A nulidade do primeiro acto administrativo recorrido - e que é do conhecimento oficioso, nos termos do disposto no artigo 134º, n.º 2, podendo ser declarada por qualquer Tribunal - decorre, flagrantemente, do artigo 133º, n.º 2, al. d) do CPA, mas, também, do seu n.º 1.
25 - É, efectivamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 268º, n.º 3, da Lei Fundamental, a interpretação feita na 1.ª Instância e mantida no STA dos artigos 123º, n.º 1, al. d), 124º, n.º 1, al. a) e 133º, n.º s 1, e n.º 2, al. d), do CPA, no sentido de não ser a fundamentação dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos elemento essencial desses actos e direito fundamental dos cidadãos.
26 - Assim devendo ser declarado por esse Venerando Tribunal.
27 - O artigo 32º do Decreto-Lei 370/99, de 18 de Setembro, foi o fundamento essencial de direito para o acto recorrido. Como, também, conjugado com a referida inverificação do artigo 33º do mesmo diploma e exactamente com a mesma interpretação feita a propósito do ónus da prova, foi o fundamento essencial de direito da decisão de 1.ª instância.
28 - Esse referido artigo 33º do Decreto-Lei 370/99 e, bem assim, o artigo 4º do CPA, em conjugação com o disposto no artigo 266º, n.º 1, da CRP, cujas violações lhes imputou o aqui Recorrente, foram os fundamentos essenciais do recurso perante o STA.
29 - E foi também argumento essencial do Acórdão recorrido o artigo 32º do Decreto-Lei 370/99 e o facto de que, quando se apresentara o pedido de suspensão, já há muito decorrera o prazo de um ano aí fixado.
30 - Acontece que os referidos artigos 32º e 33º do Decreto-Lei 370/99 são duas faces da mesma moeda que, como essas, se opõem - o primeiro rege para os estabelecimentos existentes que não possuam o Alvará da Portaria 6.065 e o segundo para os que o possuam.
31 - O que deixa intacta a questão da necessidade de saber a quem incumbe o ónus da prova da existência ou inexistência do Alvará da Portaria 6.065. E o que - no sentido de que esse ónus da prova, o da existência, cabe ao aqui Recorrente - constitui, assim, um pressuposto lógico, inelutável, do Acórdão recorrido.
32 - Pelo que não procede a questão prévia suscitada.
33 - Nos termos do artigo 32º do Decreto-Lei 370/99, os estabelecimentos em funcionamento "que não possuam o alvará de licença sanitária previsto na Portaria 6.065 [...] dispõem do prazo de um ano para requerer a licença de utilização prevista no presente diploma".
34 - Ou seja, a Administração só pode exigir o início dos procedimentos tendentes à emissão da licença de utilização aos titulares de estabelecimentos existentes que não possuam o alvará.
35 - O mesmo é dizer que é elemento constitutivo do direito da administração de exigir a licença de utilização aos titulares de estabelecimentos pré-existentes ao diploma que a exige. Logo, é seu o ónus da prova - cf. artigo 342º, n.º 1, do CC.
36 - Até porque os Alvarás de autorização para o funcionamento de estabelecimentos, são, como eram, emitidos pela Administração.
37 - O estabelecimento do aqui Recorrente estava em funcionamento muito antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 370/99.
38 - Nos procedimentos sancionatórios e, como regra geral, em todos aqueles que tendam a provocar uma privação de direitos, a prova dos factos terá de incumbir à Administração e não ao particular visado.
39 - No caso, pretende-se privar o aqui Recorrente da exploração do seu estabelecimento, que há muito vem exercendo, bem à vista da Administração, tendo até, pela junção de atestados de fiscalização sanitária anual, inculcado ser possuidor do Alvará de licença sanitária da Portaria 6.065.
40 - Nos termos do artigo 4º do CPA: "Compete aos órgãos administrativos prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos".
41 - O que decorre do imperativo constitucional consagrado no artigo 266º, n.º 1, da CRP, de que é a transcrição.
42 - Assim, é, efectivamente, inconstitucional, por violação do disposto no artigo 266º, n.º 1, da CRP, a interpretação feita na 1.ª Instância e mantida no STA, dos artigos 32º e 33º do Decreto-Lei 370/99, de 18 de Setembro, e do artigo 4º do CPA, no sentido de não ser ónus de alegação e prova da Administração a inexistência do Alvará de Licença Sanitária emitido ao abrigo da Portaria 6.065, de 30 de Março de 1929.
43 - Como, aliás, é essa interpretação inconstitucional por violação, também, do artigo 61º, n.º 1, da Lei Fundamental».
B - Fundamentação
8 - Da questão prévia
8.1 - Como se disse, o presente recurso vem interposto ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
De acordo com este preceito, que reproduz o texto constitucional [artigo 280.º, n.º 1, alínea b)], o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, nele previsto, há-de, necessariamente, traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade de norma(s), previamente suscitada perante o Tribunal a quo, e que tenha(m) constituído o fundamento normativo, ou ratio decidendi do, aí, decidido.
8.2 - Ora, aplicando este critério normativo ao caso sub judice, constata-se que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso referente à alegada "interpretação feita na 1.ª instância e mantida no STA dos artigos 4.º do CPA e 33.º do DL. n.º 370/99, de 18 de Setembro, no sentido de não ser ónus de alegação e prova da Administração a inexistência do Alvará de Licença Sanitária emitido ao abrigo da Portaria 6065, de 30 de Março de 1929".
Na verdade, ao contrário do sustentado pelo recorrente, essas disposições não foram fundamento do decidido, no recurso jurisdicional, quanto ao segundo acto contenciosamente recorrido.
É certo que, como alega o recorrente, a sentença da 1.ª instância, para negar provimento ao recurso contencioso, relativo ao segundo acto administrativo, apreciou se assistia fundamento ao pedido de suspensão do prazo a que se referia o primeiro acto contenciosamente impugnado e, para assim concluir, «ponderou a circunstância de nunca o recorrente haver feito prova da existência de "alvará de licença sanitária", sendo que era a ele que cumpria fazer a respectiva prova, tendo em vista a previsão do artigo 33.º do Dec. Lei 370/99 de 16 de Setembro, pois que, apenas, fora exibido um atestado, de fiscalização sanitária anual, passado para o ano económico de 1957, não se apresentando outro atestado anual ou outro alvará de licença sanitária, concretamente o Alvará de Licença Sanitária, emitida ao abrigo da Portaria 6.065, de 30 de Março de 1929».
Mas, o acórdão, agora, recorrido, concluindo, embora, pela "manutenção da denegação do recurso contencioso", respeitante ao segundo acto administrativo, distraiu essa solução de outros fundamentos normativos.
Para tal decisão, estando apenas em causa, relativamente ao segundo acto administrativo, a legalidade da estatuição administrativa de não concessão da suspensão do prazo de 30 dias, que, no primeiro acto, contenciosamente sindicado, fora fixado pela administração, para que o recorrente "desencadeasse processo para a sua obtenção, ou, em alternativa, para no mesmo prazo, proceder ao encerramento de tal estabelecimento", importava, apenas, saber se havia disposição legal que autorizasse essa suspensão, ou se, tratando-se de acto discricionário da administração, como fora alegado pelo recorrente, esta "actuação discricionária da Administração" incorrera em "algum dos vícios que enformam esse tipo de actos (com destaque para o desvio de poder, ou violação de princípios da igualdade e proporcionalidade)".
E a tais questões o acórdão recorrido respondeu do seguinte modo: no tocante à primeira, que "para além dos referidos prazos [refere-se aos prazos estipulados no artigo 32.º, n.º 1, do Decreto-Lei 370/99] não se antolha qualquer outra previsão legal referente à matéria, bem como a possibilidade de alguma prorrogabilidade ou suspensão do procedimento, pelo que se compreende a aludida posição de incredulidade da Administração" e que, "quando o acto impugnado [o segundo] foi indeferido já há muito que decorrera o prazo consagrado no citado n.º 1 do artigo 32.º do Decreto-Lei 370/99"; quanto à segunda, caberia à recorrente alegar e provar se a actuação discricionária da Administração incorrera nalguns dos vícios que enformam esse tipo de actos (com destaque para o desvio de poder, ou violação de princípios da igualdade e proporcionalidade), o que não se encetou".
Resulta, pois, claro, que o acórdão recorrido não inferiu a denegação do recurso contencioso respeitante ao acto administrativo de não concessão da requerida suspensão do prazo dos "artigos 4.º do CPA e 33.º do DL. n.º 370/99, de 18 de Setembro, no sentido de não ser ónus de alegação e prova da Administração a inexistência do Alvará de Licença Sanitária emitido ao abrigo da Portaria 6065, de 30 de Março de 1929".
Deste modo, não se conhecerá dessa parte do objecto do recurso constitucional.
9 - Do mérito do recurso
9.1 - No requerimento de interposição de recurso, o recorrente pede a apreciação da questão de constitucionalidade de duas normas.
A primeira respeita aos "artigos 100.º e 133.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo (CPA), no sentido de não ser a audiência prévia elemento essencial do acto administrativo"; a segunda refere-se aos "artigos 123.º, n.º 1, alínea d), 124.º, n.º 1, alínea a), e 133.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo, no sentido de não ser a fundamentação dos actos administrativos que afectem direitos e interesses legalmente protegidos elemento essencial desses actos e direito fundamental dos cidadãos".
Nas alegações apresentadas, o recorrente manteve a formulação dada à definição da primeira questão de constitucionalidade.
Todavia, no que respeita à segunda, o recorrente passou a abranger, no elenco dos preceitos de direito positivo, ao qual reporta o critério normativo cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, também, a alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA.
Tal inclusão não envolve, porém, uma alteração do objecto do recurso de constitucionalidade.
Não obstante a formulação verbal usada parecer centrar as questões de constitucionalidade nas circunstâncias de a audiência prévia [artigo 100.º] e de a fundamentação dos actos administrativos não constituírem ou serem havidos, pelo legislador ordinário, como elementos essenciais dos actos administrativos, verifica-se, porém, que o que o recorrente, em boa verdade, se apresenta a questionar é a não atribuição legislativa do efeito jurídico que o artigo 133.º, n.º s 1 e 2, alínea d), do CPA associa à falta daqueles elementos e à ofensa do conteúdo essencial de direito fundamental, ou seja, o seu não sancionamento com a nulidade do acto administrativo e a possibilidade da sua arguição a todo o tempo, que constitui um aspecto específico do regime da mesma, nos termos do n.º 2 do artigo 134.º do CPA.
Tendo sido a projecção destes efeitos jurídicos, que o legislador ordinário acoplou à falta dos elementos essenciais do acto administrativo, ou, de entre outras situações que não vêm ao caso, à ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, que constituíram o concreto fundamento normativo da decisão proferida, no acórdão recorrido, e estando eles conformados pelo legislador como uma consequência necessária em caso de, entre outras hipóteses, falta dos elementos essenciais do acto administrativo ou da ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, entende-se ser de restringir a tal âmbito normativo as questões de constitucionalidade que foram postas.
9.2 - O recorrente sustenta, em síntese, que traduzindo-se o direito de audição dos interessados, consagrado no artigo 100.º do CPA, numa concretização do princípio constitucional de participação dos cidadãos, nas decisões administrativas que lhes digam respeito, afirmado no artigo 267.º, n.º 5, da Constituição, o mesmo assume a natureza de formalidade essencial do procedimento administrativo e, como tal, também, de elemento essencial do acto administrativo, por não haver razão para distinguir "formalidade essencial de elemento essencial".
Por outro lado, nas suas alegações, aduz, ainda, que, embora, não integre, expressamente, o artigo 268.º da Constituição, "não deixa essa participação de constituir um direito e uma garantia dos administrados face à administração", pelo que "há-de ter o tratamento dos direitos fundamentais", até por, no caso, ter por objecto o exercício do direito de livre iniciativa privada, que integra, de acordo com o disposto no artigo 61.º, n.º 1, o seu catálogo dos direitos fundamentais.
Vejamos.
O artigo 267.º, n.º 5, da Constituição dispõe do seguinte modo:
"O processamento da actividade administrativa será objecto de lei especial, que assegurará a racionalização dos meios a utilizar pelos serviços e a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito".
O preceito constitucional assume, expressamente, que a participação dos interessados, na formação das decisões ou deliberações administrativas, ou, dito de modo mais singelo, no procedimento administrativo, constitui um princípio que o legislador da "lei especial" deve assegurar, ao dispor sobre "o processamento da actividade administrativa".
A doutrina divide-se quanto à natureza do direito de participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito.
Enquanto uns Autores o perspectivam como direito análogo aos direitos, liberdades e garantias fundamentais e façam, daí, decorrer a sanção da invalidade constitucional da lei que o viole e a nulidade do acto administrativo praticado com ofensa do direito de audição, de acordo com o disposto no artigo 133.º, n.º 2, alínea d), do CPA (cf. Sérvulo Correia, «O direito à informação e os direitos de participação dos particulares no procedimento», in Cadernos de Ciência de Legislação, 9/10, Janeiro-Junho de 1994, pp. 156-157; Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, 1996, pp. 426 e segs.; Marcelo Rebelo de Sousa, «Regime do Acto Administrativo», in Direito e Justiça, vol. VI, 1992, p. 45; David Duarte, Procedimentalização, Participação e Fundamentação: Para uma Concretização do Princípio da Imparcialidade Administrativa como Parâmetro Decisório, 1996, pp. 143 e segs), outros negam-lhe essa qualidade (cf. Freitas do Amaral, «Fases do procedimento decisório de 1.º grau, in Direito e Justiça, Vol. VI, 1992, p. 32; Pedro Machete, A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo, Universidade Católica Editora, 1995, pp. 511 e segs.; José Manuel da S. Santos Botelho, Américo J. Pires Esteves e José Cândido de Pinho, Código do Procedimento Administrativo, Anotado, Comentado, Jurisprudência, 3.ª edição actualizada e aumentada, p. 352).
Não tem, porém, o Tribunal Constitucional de tomar posição, aqui, tal contenda.
Na verdade, a questão de constitucionalidade, concernente ao direito de audição, foi definida, no requerimento de interposição de recurso, apenas, em torno do artigo 100.º do CPA, defendendo o recorrente ser tal direito elemento essencial do acto administrativo, em face do disposto no artigo 267.º, n.º 5, da CRP, e, consequentemente, ter a sua falta de considerar-se, necessariamente, abrangida pela hipótese e estatuição, definidas no artigo 133.º, n.º 1, do CPA.
O recorrente não questionou, tocantemente ao direito de audição, qualquer critério ou dimensão normativas, referidas aos artigos 100.º e 133.º, n.º 2, alínea d), do CPA, ou seja, qualquer norma que, por interpretação conjugada, deles houvesse sido inferida, no sentido de a falta de audição não importar a lesão do núcleo essencial de um direito fundamental e, decorrentemente, a nulidade do acto administrativo, sob pena de violação do disposto no artigo 267.º, n.º 5, da CRP.
Assim sendo, o que importa apurar é se decorre deste preceito constitucional que o direito de audição deva ser havido como formalidade essencial do procedimento administrativo e se esta, por razões constitucionais, tem de equivaler a falta de elemento essencial do acto administrativo que deva ser sancionada com a nulidade.
Resulta, claramente, do referido preceito que a Constituição não prevê a participação dos interessados, no procedimento administrativo, como uma garantia individual cuja concreta operacionalidade prático-jurídica, relativamente a determinado sujeito, derive, directa e imediatamente, da norma constitucional.
A Constituição limita-se a afirmar a existência da garantia como um instrumento jurídico-procedimental que o legislador especial deve prever, ou seja, como garantia dependente de intermediação e densificação legislativas.
A audição do interessado tem, assim, a natureza de princípio constitucional cuja efectivação como regra se impõe que seja adoptada pelo legislador ordinário, não podendo a sua dispensa deixar de estar sujeita aos princípios da necessidade e da proporcionalidade, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático (cf. artigo 2.º da CRP).
Nesta perspectiva, o direito de audição corresponde a uma formalidade essencial do procedimento administrativo, funcionalizado para a formação das decisões e deliberações administrativas, com a participação dos interessados.
Mas, atribuir-se ao direito de audição, na conformação do procedimento a que o legislador ordinário se encontra obrigado, uma função essencial, e, até, quando previsto, a natureza de uma formalidade essencial, não consequencia, necessariamente, que o preceito constitucional o tenha como elemento essencial do acto, até, porque o acto é evento posterior do procedimento a que respeita a audição, ou, sequer, que o mesmo artigo obrigue o legislador ordinário a atribuir-lhe tal natureza cuja falta haja de ser sancionada com a nulidade, nos termos do artigo 133.º, n.º 1, do CPA, em vez de o ser, apenas, mediante a sanção regra que o legislador ordinário adoptou para sancionar a ilegalidade dos actos administrativos - a anulabilidade (artigo 135.º do CPA).
O que vem de dizer-se não impede que, em certos casos, se reconheça ao direito de participação, sob a forma de direito de audição, uma natureza especial tal que demande que a sua violação seja sancionada com o estigma da nulidade própria da afectação do núcleo essencial dos direitos fundamentais (cf. artigo 133.º, n.º 2, alínea d), do CPA).
Será o caso do direito de audiência e de defesa, nos procedimentos contra-ordenacionais e quaisquer processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10, da CRP) e nos processos disciplinares (artigo 269.º, n.º 3, da CRP).
Mas, aqui, a configuração como verdadeiro direito subjectivo fundamental não se funda, directamente, no referido artigo 267.º, n.º 5, da Constituição, mas em outros preceitos constitucionais, prendendo-se, directamente, não com o interesse da comparticipação dos interessados na formação das decisões ou deliberações administrativas, no processamento da actividade administrativa, compaginante da melhor realização do interesse público e dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, mas com a fixação das condições, necessárias e indispensáveis, à garantia ou à realização "dos direitos fundamentais", impondo-se, então, como um postulado da dignidade da pessoa humana ou por um direito fundamental material em que ela se concretize (cf. José Carlos Vieira de Andrade, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, 1991, pp. 197 e segs.)
Temos, assim, de concluir que o sancionamento da falta do direito de audição, a que se refere o artigo 100.º do Código de Procedimento Administrativo, com a anulabilidade, nos termos do artigo 135.º, do mesmo código, não viola o disposto no artigo 267.º, n.º 5, da Constituição, nem qualquer outra norma ou princípio constitucional.
9.3 - Vejamos, agora, a questão de constitucionalidade que o recorrente imputa aos artigos 123.º, n.º 1, alínea d), 124.º, n.º 1, alínea a), e 133.º, n.º s 1 e 2, alínea d), do Código de Procedimento Administrativo, no sentido de não ser a fundamentação dos actos administrativos que afectem direitos e interesses legalmente protegidos elemento essencial desses actos e [conteúdo essencial de] direito fundamental dos cidadãos.
Sob o seu n.º 3, o artigo 268.º da Constituição, que tem por epígrafe a expressão "Direitos e garantias dos administrados", dispõe que "Os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos e interesses legalmente protegidos".
O dever de fundamentação expressa dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos só adquiriu assento constitucional expresso, na revisão de 1982, sendo antes distraído do princípio do Estado de direito democrático.
Mesmo, no plano do direito ordinário, a exigência só foi assumida como dever geral da Administração no artigo 1.º do Decreto-Lei 256-A/77, de 17 de Junho, tendo este artigo procedido, nos seus n.º s 2 e 3, ao recorte constitutivo desse dever de fundamentação expressa.
Conforme o exórdio deste diploma, o legislador visou "reforçar as garantias de legalidade administrativa e dos direitos individuais dos cidadãos perante a Administração Pública", tendo presente o diagnóstico efectuado sobre o resultado dos recursos contenciosos que apontava para a existência de um grande número de impugnações rejeitadas relativas a actos tácitos, resultantes da passividade da Administração, "admitidos nas legislações a benefício dos particulares, operam, no entanto, em prejuízo dos menos precavidos ou menos familiarizados com a técnica jurídica", bem como para uma elevada percentagem de anulações contenciosas de actos com fundamento em ilegalidade que poderiam ser evitadas dando-se aos órgãos da Administração a possibilidade de reverem os seus actos", terminando a proclamar que "bem pensadas [as melhorias introduzidas pelo diploma e a "radical metamorfose" por que irá passar o Código Administrativo], têm a virtude para dar do contencioso dos actos administrativos uma nova imagem, sem dúvida mais consentânea com uma instante preocupação de defesa dos direitos do homem em face da Administração".
A referida revisão de 1982 assumiu, expressamente, o dever de fundamentação, reportando a exigência constitucional ao conceito que a doutrina e a jurisprudência de então haviam precisado, em face dos referidos preceitos de direito ordinário.
E pode dizer-se existir, nelas, grande consenso, em torno, quer do conceito normativo do dever de fundamentação, quer da sua função.
Assim, tem-se entendido que o dever de fundamentação se desonera através da enunciação contextual, expressa, dos motivos de facto e de direito com base nos quais a administração se decidiu praticar o concreto acto administrativo, nos precisos termos em que o fez.
A doutrina aponta, em geral, como sendo os seguintes os objectivos da fundamentação: uma função de pacificação traduzida na idoneidade para convencer o administrado da "justeza" do acto; uma função de defesa do administrado, ao possibilitar-lhe o recurso aos meios contenciosos e graciosos; uma função de autocontrole, por facilitar "a autofiscalização da Administração pelos próprios órgãos intervenientes no processo ou pelos seus superiores hierárquicos"; uma função de clarificação e de prova, porquanto "fixa em termos claros qual o significado que os órgãos administrativos atribuíram às provas e argumentação jurídica desenvolvida, qual a marcha do raciocínio e opções que se precipitaram no acto"; uma função democrática, por dar a conhecer aos administrados as razões da sua actuação concreta; uma função de incentivo à boa administração, pois que a "obrigação de motivar obriga as autoridades administrativas a examinar atentamente o bem fundado das decisões que pensam vir a tomar"; uma função de um bom controle da Administração, na medida em que "o conhecimento dos motivos das decisões habilitam os terceiros a melhor ajuizar da necessidade de interpor recurso administrativo ou contencioso dos actos que os afectam" (cf., entre muitos, Rui Machete, «Processo Administrativo Gracioso perante a Constituição Portuguesa de 1976», in Estudos de Direito Público e Ciência Política; José Osvaldo Gomes, Fundamentação do Acto Administrativo, 1979; José Carlos Vieira de Andrade, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, 1991, pp. 65 e segs.)
Sintetizando, pode dizer-se que o dever de fundamentação cumpre, essencialmente, três funções: a de propiciar a melhor realização e defesa do interesse público; a de facilitar o controlo da legalidade administrativa e contenciosa do acto e a de permitir aos órgãos hierarquicamente superiores ou tutelares controlar, mais eficazmente, a actividade dos órgãos subalternos ou sujeitos a tutela.
A natureza deste dever de fundamentação - se direito fundamental integrante do direito fundamental do direito ao recurso contencioso, se direito autónomo análogo a direito ou garantia fundamental, se "direito" de natureza não fundamental ou simples "imposição objectiva, dirigida imediatamente à Administração", não atributiva de um direito subjectivo - é objecto de controvérsia. A jurisprudência do Tribunal Constitucional, tecida, essencialmente, acerca da [in]conformidade constitucional do Decreto-Lei 356/79, de 31 de Agosto, e do Decreto-Lei 10-A/80, de 18 de Fevereiro (que consideravam que "os actos de transferência ou exoneração de funcionários da Administração Pública, de institutos autónomos ou de empresas públicas, quando praticados legalmente no uso de poderes discricionários, independentemente de qualquer ilícito disciplinar, e se refiram a funcionários nomeados discricionariamente, consideram-se suficientemente fundamentados quando o fundamento invocado for o da conveniência de serviço"), e, no âmbito da versão originária da Constituição, que não continha um preceito semelhante ao acima transcrito, dividiu-se sobre a matéria.
Assim, enquanto alguns acórdãos afirmaram a sua natureza de direito fundamental com base, essencialmente, numa irradiação necessária do direito ao recurso contencioso, postulada pelas suas exigências de efectividade e de concessão de tutela plena, ou defenderam a tese do direito de fundamentação como direito autónomo, análogo a direito ou garantia fundamental, cuja configuração como "direito de origem e nível exclusivamente legal" poderia ser mesmo surpreendida na legislação anterior e sujeito no seu regime, no mínimo, ao princípio, da "proibição das restrições injustificadas ou desproporcionadas" (Acórdãos n.º s 109/85 e 190/85 e 78/86, publicados no Diário da República 2.ª série, respectivamente, de 10 de Setembro de 1985, 10 de Fevereiro de 1986 e 14 de Junho de 1986), outros negaram essa natureza de direito fundamental ou de direito de natureza análoga (cf. Acórdãos n.º s 63/84, 86/84, 89/84, 51/85, 150/85, 32/86 e 266/87, publicados no Diário da República 2.ª série, respectivamente, de 2 de Agosto de 1984, 2 de Fevereiro de 1985, 5 de Fevereiro de 1985, 13 de Abril de 1985, 19 de Dezembro de 1985, 9 de Maio de 1986 e Diário da República 1.ª série, de 28 de Agosto de 1987).
Analisando a estrutura da norma constitucional que o prescreve, verifica-se que a fundamentação está prevista como dever objectivo, que integra o quadro de legalidade ao qual a Administração está sujeita quando pratica actos ou deliberações administrativas (cf. artigo 266.º, n.º 2, da CRP).
Ao dispor que "os actos administrativos carecem de fundamentação", o legislador constitucional está a constituir, em geral, sem necessidade de intermediação do legislador ordinário, ou seja, directamente e com tal âmbito, o dever da Administração de, na sua actividade, fundamentar os actos administrativos quando estes afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.
Mesmo assim, a norma constitucional "não dispensa a conformação ou, pelo menos, a mediatização concretizadora do legislador relativamente ao alcance ou extensão da obrigatoriedade da fundamentação" e "não é claro que resolva as questões de externação-comunicação que lhe estão associadas e que visivelmente pretende abranger" (cf. José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., p. 218).
É que "o preceito constitucional que consagra a obrigatoriedade de fundamentação tem um núcleo essencial, a que corresponde o dever de fundamentação contextual dos fundamentos, e uma garantia acessória, que a lei concretizou no dever de comunicação expressamente estabelecido - um dever que será um corolário implicado, mas não abrangido no dever de fundamentação e, por isso, sujeito a um regime jurídico diverso" (cf. José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., p. 62).
Mas, daí, não resulta que, em correlação com o dever de fundamentação, se contraponha, no outro pólo, uma posição autónoma do interessado que tenha por conteúdo concreto o direito "em si" à fundamentação, desfuncionalizado relativamente a outros direitos, fundamentais ou não, que possam constituir objecto de relações jurídico-administrativas, e que tutele um bem jurídico-constitucional cuja protecção encontre a sua razão de ser determinante no princípio da dignidade da pessoa humana que constitui o radical unitário dos direitos fundamentais ou de natureza análoga (cf. José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., pp. 194 e segs.)
O interessado "tem o direito" a exigir que a Administração, na sua actividade decisória sobre quaisquer direitos, fundamentais ou não, e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, cumpra o quadro de legalidade, nele se abrangendo o dever de fundamentação, sem que possa afirmar-se, sem mais e em geral, a existência de um direito subjectivo dos interessados ao cumprimento do bloco de legalidade, por parte da Administração, donde os "preceitos relativos ao dever de fundamentação serem [são] afinal aquilo que parecem ser: normas de acção que regulam o comportamento administrativo em função de um conjunto multipolar de interesses, incluindo dos administrados, que nessa medida são juridicamente protegidos" (cf. José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., p. 214).
De qualquer modo, "é certo que a projecção normativa dos direitos fundamentais fortalece o dever de fundamentação quando estes estejam em causa, não podendo o legislador ordinário eliminar o dever em termos de precludir o conhecimento pelo particular das razões do acto que toque os seus direitos fundamentais, nem restringi-lo nesses casos fora do quadro previsto no artigo 18.º da Constituição" (cf. José Carlos Vieira de Andrade, op. cit. 213), ou seja, apenas fora do núcleo essencial exigido pela garantia dos direitos fundamentais dos administrados, o legislador ordinário "pode optar por soluções diversas das já estabelecidas".
Nesta perspectiva, pode concluir-se não existir, em geral, um direito fundamental à fundamentação, ou, sequer, um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias (cf. José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., pp. 202 e 204), mas poder ele vir a ser permeado com as exigências dos direitos fundamentais, pelo menos, naqueles casos em que a fundamentação seja condição indispensável da realização ou garantia dos direitos fundamentais.
No caso em apreço, o dever de fundamentação toca-se com dois direitos fundamentais: o direito de acesso aos tribunais, na dimensão de direito ao recurso contencioso contra actos administrativos lesivos de direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP) e o alegado direito análogo a direito fundamental, da iniciativa privada (artigo 61.º, n.º 1, da CRP).
Pensa-se, todavia, como no referido Acórdão 150/85, que "a fundamentação dos actos administrativos não constitui pressuposto juridicamente necessário, ou condição insuprível, do exercício do direito de recurso contencioso, mas unicamente condição ou factor da uma sua maior viabilidade prática".
A fundamentação constitui um instrumento institucional administrativo cuja existência potencia o conhecimento dos pressupostos de facto ou de direito, com base nos quais se praticou o acto ou deliberação administrativas, com certo conteúdo ou disposição constitutiva - a motivação e a justificação do acto (cf. Acórdão 53/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) - , e, consequentemente, das possíveis causas da sua invalidade.
Ora, o direito de acção ou de recurso contencioso tem por conteúdo a garantia da possibilidade do acesso aos tribunais para a defesa desses direitos e interesses legalmente protegidos, afectados ou violados por actos administrativos.
A fundamentação, apenas, propicia, na perspectiva de um eventual exercício desse direito ou garantia fundamental e da sua efectividade, a obtenção do material de facto e de direito cujo conhecimento poderá facilitar ao administrado, de modo mais ou menos determinante e decisivo, a interposição da concreta acção e o seu êxito, através da qual se pretende obter a tutela dos concretos direitos ou interesses legalmente protegidos cuja ofensa é imputada ao concreto acto e deliberação.
Por mor da sujeição da administração ao princípio da legalidade administrativa e através desse instituto, o cidadão terá à mão, porventura, mais facilmente do que acontece nas relações privadas, onde lhe caberá desenvolver a actividade investigatória que tenha por pertinente, os elementos de facto e de direito com bases nos quais se pode determinar, pelo recurso aos tribunais, configurar os concretos termos da causa e apetrechar-se dos meios de prova, para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
O dever de fundamentação não tem, pois, uma relação de necessidade com o direito de acesso aos tribunais, existindo este sem aquele.
Nesta perspectiva, pode concluir-se que o dever de fundamentação não constitui uma condição indispensável da realização ou garantia do direito fundamental de recurso contencioso contra actos administrativos lesivos dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados.
Vejamos, agora, se ele adquire a especial força normativa, atrás referida, em função do alegado direito análogo a direito fundamental, da iniciativa privada, previsto no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição.
De acordo com o disposto neste preceito "a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral".
Consagrando, embora, o direito de liberdade de iniciativa económica privada, nas suas diversas significações (liberdade de criação de empresa, liberdade de investimento, liberdade de estabelecimento, por um lado, e liberdade de organização, gestão e actividade da empresa) (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, p. 790; e Jorge Miranda-Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, p. 620), não deixa o preceito de reconhecer a existência de uma ampla margem para a delimitação ou configuração legislativa, ao dizer que esse direito só pode exercer-se "nos quadros definidos pela Constituição e pela lei".
Admite-se, deste modo, que, não obstante a regra seja a liberdade de iniciativa, possa ela ser objecto de limitações e restrições que terão de ser justificadas à luz do princípio da proporcionalidade e ressalvar, sempre, o seu núcleo essencial.
Ora, a subordinação da liberdade de estabelecimento à obtenção de alvará sanitário e de licença administrativa de utilização, mesmo para estabelecimentos [de mercearia] já em funcionamento, nos termos do artigo 32.º do Decreto-Lei 370/99, de 16 de Setembro, configura-se como um condicionamento legislativo inteiramente justificado à luz do princípio da proporcionalidade, desde logo, até, para tutelar, também, outros bens constitucionais, como sejam os direitos dos consumidores (cf. artigo 60.º da CRP), em nada afectando o seu núcleo essencial.
Assim sendo, importa concluir que o dever de fundamentação não vê reforçada a sua força normativa por via da conectação com tal direito fundamental.
Decorrentemente, pode, também, distrair-se a conclusão de que a falta de fundamentação não demanda, no caso, a sanção da nulidade prevista pelo legislador ordinário para a ofensa do conteúdo essencial de direito fundamental [artigo 133.º, n.º 2, alínea d), do CPA].
Estabelecendo, embora, o dever da fundamentação, a referida norma constitucional não fixa, todavia, as consequências do seu incumprimento.
Como diz José Carlos Vieira de Andrade, caberá, por isso, à lei ordinária esclarecer, por exemplo, se o vício é (ou é sempre) causa de invalidade do acto administrativo, que tipo de invalidade lhe corresponderá, bem como em que condições serão admissíveis a sanação do vício ou o aproveitamento do acto.
Assim sendo, bem poderá, em princípio, o legislador ordinário, na sua discricionariedade constitutiva, sancionar a falta de fundamentação, apenas, com a anulabilidade, erigida a sanção-regra (artigo 135.º do CPA), e não com a nulidade, assumida, legislativamente, como sanção específica (artigo 133.º do CPA), bem como subordiná-las a diferentes prazos de arguição.
E, dizemos "em princípio", porque a violação da ordem jurídica pode ser de tal gravidade que, para se manter o essencial da força jurídica da "garantia institucional" constitucional do dever de fundamentação, tenha a sanção para a sua falta de constituir na nulidade.
Serão situações especiais em que a falta de fundamentação assume, ou uma natureza própria de elemento essencial do acto, acabando por cair debaixo do critério legislativo constante do n.º 1 do artigo 133.º do CPA, ou uma natureza paralela à de ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental [artigo 133.º, n.º 2, alínea d), do CPA].
Tal "acontecerá sempre que, para além da imposição genérica da fundamentação, a lei prescrever, em casos determinados, uma declaração dos fundamentos da decisão em termos tais que se possa concluir que ela representa a garantia única ou essencial da salvaguarda de um valor fundamental da juricidade, ou então da realização do interesse público específico servido pelo acto fundamentando" ou "quando se trate de actos administrativos que toquem o núcleo da esfera normativa protegida [pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais] e apenas quando a fundamentação possa ser considerada um meio insubstituível para assegurar uma protecção efectiva do direito liberdade e garantia" (cf. José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., p. 293).
No caso, como decorre do que vem sendo exposto, não estamos, nem perante uma situação em que haja ofensa do conteúdo essencial de direito fundamental, nem em face de qualquer destas duas situações especiais.
De tudo, resulta que o legislador ordinário, bem, poderá cominar a sanção da anulabilidade para a falta da fundamentação relativa ao acto administrativo resultante da aplicação do direito considerado ao caso concreto.
C - Decisão
10 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 25 UCs.
1 Cf. por todos, acórdão do STA de 17-02-2004 (Rec. n.º 01572/02), com citação de outra jurisprudência do STA e doutrina, devendo realçar-se que a jurisprudência e doutrina não são unânimes quanto à consideração de que o conceito de elementos essenciais integre o conceito de acto administrativo contido no artigo 120.º do mesmo código.
2 Segundo o qual "Os alvarás sanitários e as autorizações de funcionamento de supermercados emitidos, respectivamente, ao abrigo da Portaria 6065, de 30 de Março de 1929, e da Portaria 22970, de 20 de Outubro de 1967, e do Despacho Normativo 148/83, de 25 de Junho, ou de legislação anterior, mantêm-se válidos, só sendo substituídos pela licença de utilização prevista no presente diploma, na sequência do licenciamento de obras de ampliação, reconstrução ou alteração".
Lisboa, 10 de Dezembro de 2008. - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.