Acórdão 96/2000
Processo 636/99
I
1 - O representante do Ministério Público junto deste Tribunal veio, fundado no n.º 3 do artigo 283.º da Constituição e no artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, solicitar que fosse apreciada e declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º do Decreto-Lei 547/77, de 31 de Dezembro, e 1.º do Decreto-Lei 19/79, de 10 de Fevereiro, já que esses normativos «foram explicitamente julgados organicamente inconstitucionais, por violação do disposto na alínea o) do artigo 167.º, conjugado com o n.º 2 do artigo 168.º, ambos da versão originária da Constituição, pelos Acórdãos n.os 369/99, 370/99 [...] e pelo Acórdão 473/99».
Notificado o Primeiro-Ministro nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, veio o mesmo oferecer o merecimento dos autos.
Apresentado memorando, fixada a orientação do Tribunal e distribuído o processo em 2 de Fevereiro de 2000, cumpre formar a decisão.
II
2 - Por intermédio do Decreto-Lei 44158, de 17 de Janeiro de 1962, intentou-se, como aliás resulta do seu preâmbulo, «prosseguir por todos os meios na luta contra a grave epizootia conhecida por peste suína africana» e, por isso, para fazer face à cobertura dos encargos com a luta contra a peste suína atípica vírus L (peste suína africana), incluindo indemnizações pelo abate e destruição dos animais (cf. seu artigo 5.º), foi criada uma «taxa» destinada a tal fim, «taxa» essa que veio a ser fixada em $30 por quilograma de carne de porco abatida e importada para consumo no território metropolitano (cf. seu artigo 1.º), posteriormente vindo a ser aumentada para $60 pelo Decreto-Lei 667/76, de 5 de Agosto.
O valor da dita «taxa» passou, porém, a ser fixado em 1$00 pela norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 547/77 e em 2$00 pela norma do artigo 1.º do Decreto-Lei 19/79, sendo que a edição destes dois últimos diplomas legais foi levada a efeito pelo Governo no uso da sua competência legislativa própria e, assim, sem que tal órgão de soberania estivesse munido de autorização parlamentar.
3 - Dispunha-se na alínea o) do artigo 167.º da versão originária da Constituição que se incluía na reserva de «exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre [...] [c]riação de impostos e sistema fiscal», permitindo-se, porém (n.º 1 do artigo 168.º), que o Parlamento autorizasse o Governo a emitir legislação sobre essa matéria [as disposições em causa passaram a ficar integradas, com a revisão constitucional de 1982, no artigo 168.º, n.º 1, alínea i), e, com a revisão constitucional de 1989, no artigo 167.º, n.º 1, alínea i)].
Após a Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro, tal matéria foi integrada no artigo 165.º, n.º 1, alínea i), que agora considera como sendo matéria da exclusiva competência da Assembleia da República, legislar ..., salvo autorização ao Governo, a [c]riação de imposto e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas.
Perante estes parâmetros constitucionais, claro se depara que necessário se torna caracterizar devidamente a natureza do tributo criado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 44158, e isso ponderando que se não pode, sem mais, considerar que da expressão «taxa» ali utilizada deva resultar que tal expressão corresponde conceptualmente ao conceito jurídico de taxa.
E, efectivamente, assim foi equacionada a questão nos Acórdãos n.os 369/99, 370/99 e 473/99, cujos juízos decisórios levaram à formulação do presente pedido.
4 - Nesta postura e por comodidade, respigam-se do primeiro dos indicados arestos as seguintes considerações:
«[...]
A questão que o Tribunal tem de decidir é a de saber se o Governo, no momento em que editou os diplomas em questão, dispunha de competência legislativa para proceder ao aumento do valor da taxa da peste suína ou se, por se tratar de matéria relativa a impostos, necessitava de solicitar autorização legislativa à Assembleia da República para editar tal legislação.
O que equivale a perguntar qual a natureza da taxa da peste suína: tem ela a natureza de imposto ou de uma prestação que como tal deva ser tratada, ou de mera contraprestação de um serviço prestado.
Este Tribunal já disse que o sistema fiscal é um sistema de impostos, não incluindo as taxas ou quaisquer outros tributos. Escreveu-se, de facto, no Acórdão 497/89 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14.º vol., p. 227), ''que o 'sistema fiscal' (cuja definição é uma das dimensões da reserva parlamentar em causa) seja um sistema de impostos (e não também de quaisquer outros tributos) eis do que não pode duvidar-se, inequívoco como é o significado daquela qualificação na nossa terminologia jurídica''. [Esta ideia voltou a ser reafirmada nos Acórdãos n.os 268/97 e 500/97 (in Diário da República, 2.ª série, de 22 de Maio de 1997, o primeiro, e o segundo in Diário da República, 2.ª série, de 12 de Janeiro de 1998).]
A doutrina também identificava geralmente o sistema fiscal com o sistema de impostos (pelo menos até à revisão constitucional de 1997), excluindo daquele sistema as taxas (cf., neste sentido, J. J. Teixeira Ribeiro, A Reforma Fiscal, Coimbra, 1989, p. 97, A. L. Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, 1992, p. 167, J. Casalta Nabais, Contratos Fiscais, Coimbra, 1994, p. 740).
Assim, [...], para se poder apurar se os mesmos foram validamente produzidos no uso da competência legislativa do Governo torna-se indispensável averiguar se as taxas cujo montante se agrava nas disposições questionadas se integram ou não na 'constituição fiscal', como esta era dimensionada pela doutrina e pela jurisprudência no momento em que os referidos diplomas foram editados: isto é, tais prestações estão ou não sujeitas à reserva da lei fiscal, por força do preceituado no artigo 167.º, alínea o), conjugada com o artigo 106.º, n.º 2, ambos da Constituição de 1976, que era a que então vigorava?
5 - O artigo 167.º, alínea o), da Constituição de 1976 estabelecia que era da competência da Assembleia da República legislar sobre criação de impostos e sistema fiscal. Pelo seu lado, o artigo 106.º, n.º 2, da Constituição determinava que 'os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes'.
Estabelece-se neste n.º 2 a reserva de lei para a criação de impostos e para a determinação dos seus elementos essenciais. Como já se referiu, esta reserva vale unicamente para os impostos e não também para as taxas e outras figuras próximas [posição esta insustentável após a última revisão constitucional (1997)]. A reserva de lei abrange certamente os elementos que definem (criam) os impostos e estabelecem a respectiva incidência e ainda as garantias dos contribuintes, para além dos benefícios fiscais (cf., neste sentido, J. Casalta Nabais, 'Imposto, sistema fiscal e direito fiscal', in Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, pp. 265 e segs.).
Assim, a taxa da peste suína africana reveste as características de um imposto ou de uma prestação que deva ter um tratamento constitucional similar ao dos impostos?
O imposto, do ponto de vista objectivo, é uma prestação pecuniária unilateral, pois não lhe corresponde nenhuma específica contraprestação em favor do contribuinte, definitiva e coactiva (cf. J. Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, 1998, Coimbra, p. 224).
Este é um conceito oriundo da doutrina e jurisprudência nacionais que também acentuava como elemento diferenciador da taxa o seu carácter sinalagmático face ao carácter unilateral do imposto (v., entre outros, J. Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 4.ª ed., refundida e actualizada, Coimbra, 1991, p. 208, e 'Noção jurídica de taxa', in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117.º, pp. 289 e segs., A. L. Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 3.ª ed., Coimbra, 1990, pp. 486 e segs.).
A taxa traduz-se em que à prestação do particular corresponde uma contraprestação específica, que pode ser uma actividade do Estado ou de outros entes públicos dirigida ao obrigado. Esta actividade pode realizar-se através da prestação de um serviço público, no acesso à utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares.
Pelo seu lado, o imposto constitui, por si, uma receita estadual ou da entidade pública habilitada a cobrá-lo, a qual não é especificamente destinada à satisfação de utilidade do tributado. Existem, porém, figuras tributárias cujo tratamento jurídico-constitucional se tem de aproximar do dos impostos: assim, a taxa de radiodifusão (Acórdão 354/98, in Diário da República, 2.ª série, de 15 de Julho de 1998); as quotas dos sócios contribuintes para as casas do povo (Acórdãos n.os 82/84 e 372/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., p. 239, e Diário da República, 2.ª série, de 1 de Setembro de 1989); contribuições de empregadores para a segurança social (Acórdão 363/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., p. 497, e Acórdão 1203/96, in Diário da República, 1.ª série-A, de 24 de Janeiro de 1997).
Também o Tribunal já teve de apreciar a questão das 'contribuições especiais' (Acórdãos n.os 277/86 e 313/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º vol., p. 383, e 23.º vol., p. 309) considerando que no caso apreciado deviam ser tratadas como impostos.
Porém, as maiores dúvidas se levantam quando se trata das taxas devidas aos designados 'organismos de coordenação económica' ou às entidades públicas que resultaram da sua reorganização após o 25 de Abril de 1974.
A doutrina (cf. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, 1974, pp. 64 e segs.) começou por enquadrar tais receitas no âmbito da parafiscalidade.
[...]
6 - Importa, por isso, analisar a estrutura do regime jurídico e da finalidade da taxa da peste suína para concluir se ela está ou não integrada na 'constituição fiscal', devendo ser tratada como verdadeiro imposto.
Logo com o Decreto-Lei 44158 ali se estabeleceu - ao criar a receita - que a mesma se destinava à cobertura de encargos com a luta contra a peste suína africana, resultantes do pagamento de indemnizações aos proprietários dos animais afectados com tal doença e também para pagamento das despesas com o funcionamento dos serviços.
Depois, o Decreto-Lei 250/88, de 16 de Julho, não só ampliou a finalidade inicialmente prevista visando agora a erradicação da epizootia e da peste suína clássica. De acordo com o artigo 12.º, n.º 3, as receitas apuradas com a cobrança da taxa destinavam-se ainda à cobertura dos encargos com a luta contra aquelas doenças, abrangendo, além do pagamento das indemnizações devidas pela eliminação dos animais doentes ou suspeitos de estarem infectados, também as despesas com a liquidação e cobrança da taxa.
O legislador erigiu como finalidade da tributação criada o asseguramento da despesa ocasionada pelo pagamento das indemnizações compensatórias a satisfazer aos proprietários pelo abate e destruição dos animais afectados, para além de custear as despesas com os serviços.
Assim, o que há que perguntar no caso em apreço é se um 'tributo' com as características que ficam atrás definidas pode corresponder aos elementos definidores do conceito de taxa.
Haverá, assim, que responder à questão de saber se da satisfação de um 'tributo' como o dos autos resulta para o respectivo devedor uma vantagem ou benefício decorrente da correspondente actividade pública.
Caso a resposta a esta questão seja positiva, então poderia ainda discutir-se, no caso, se a verificação do montante do 'tributo' em questão pode conceber-se como mera decorrência de uma actualização devida à inflação ou tem outro significado.
A resposta à primeira destas questões é negativa, no caso em apreciação, pelo que se torna desnecessário apreciar a segunda questão, que apenas se deixará formulada.
Destinando-se o produto da taxa em causa à cobertura dos encargos com a peste suína, parece claro que o importador de carne de porco sobre quem recai, no caso, a obrigação de pagar a taxa não vai retirar desse pagamento qualquer vantagem ou benefício, uma vez que a luta contra a peste suína ou a erradicação da mesma apenas beneficia os produtores de carne de porco e não os importadores. Beneficiados são também os consumidores, bem como o interesse público, em geral, na medida em que têm a garantia de consumir carne de porco de boa qualidade.
Não pode, assim, afirmar-se a existência de uma vantagem para o devedor individualmente considerado, decorrente da correspondente actividade pública.
Por outro lado, o valor da taxa, que começou por ser de $30, foi fixada em $60 por quilo de carne de porco importada pelo Decreto-Lei 667/76, de 5 de Agosto, e agravada para 1$00 pelo Decreto-Lei 547/77, de 31 de Dezembro; pelo Decreto-Lei 17/79, de 10 de Fevereiro, a taxa foi fixada em 2$00 por quilo de carne abatida e importada, o que significa que, no período de um ano, o valor da taxa duplicou.
Ora, um tal aumento do valor do 'tributo' parece não permitir que se fale de uma 'actualização' do seu montante, por forma a poder defender-se que se está perante um mero agravamento decorrente da incidência da inflação.
Tem, pois, de se concluir que, no caso da taxa da peste suína, não se está perante uma contraprestação de um serviço prestado, mas antes perante uma forma de financiar uma actividade do Estado vocacionada para a satisfação de necessidades públicas em geral ou de uma certa categoria abstracta de pessoas, não se verificando, no caso, os elementos definidores de uma taxa, pelo que o 'tributo' em questão é um imposto ou, pelo menos, tem de ser considerado como se de um imposto se tratasse. O que vale por dizer que não pode deixar de se considerar como integrando a reserva da lei fiscal.
Assim, não podia o Governo legislar sem solicitar autorização à Assembleia da República, pelo que as normas dos artigos 1.º do Decreto-Lei 547/77, de 31 de Dezembro, e 1.º do Decreto-Lei 19/79, de 10 de Fevereiro, tendo sido editadas apenas no uso da competência legislativa própria do Governo, são organicamente inconstitucionais, por violarem o artigo 167.º, alínea o), conjugado com o artigo 168.º, n.º 2, ambos da Constituição da República Portuguesa (versão originária).
[...]»
4.1 - Idênticas considerações foram as carreadas ao Acórdão 370/99 e, no Acórdão 472/99, disse-se também:
«[...]
É assim que, v. g. (e para se citarem as mais recentes decisões deste Tribunal sobre a matéria), no seu Acórdão 558/98 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Novembro de 1998) se escreveu que é sabido que a doutrina portuguesa - que neste particular tem tido acolhimento na jurisprudência que, a propósito, é seguida por este Tribunal - tem realçado que a diferença específica entre 'imposto' e 'taxa' se situa na existência ou não de um vínculo sinalagmático que é apontado à segunda, representando ''o encargo a pagar como que o 'preço' do serviço ou da prestação de um serviço ou actividade públicas ou de uma utilidade de que o tributado beneficiará (e sem aqui se olvidar que esse 'preço' não tem, necessariamente, de corresponder à contrapartida financeira ou económica do serviço prestado)'' (efectuando-se ali citação do Acórdão 654/93, de 4 de Novembro, ainda inédito).
De outro lado, acentuou-se no Acórdão 313/92 (in Diário da República, 2.ª série, de 18 de Fevereiro de 1993) que o imposto 'constitui, por si, uma receita estadual - ou até da entidade legalmente habilitada a cobrá-lo -, que não é directamente destinada à satisfação da utilidade do tributado como contrabalanço do usufruto dessa satisfação'.
E, como se disse no citado Acórdão 558/98, ''assente uma relação sinalagmática característica da 'taxa', o que, como é claro, implica uma contrapartida de diferentes naturezas por parte do ente público impositor do tributo, tem a doutrina entendido que são essencialmente três os tipos de situações em que essa contrapartida se verifica e se consubstanciam na utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização, pelo mesmo, de um bem público ou semipúblico ou de um bem do domínio público e, finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte dos particulares''.
À guisa de suporte da postura seguida por este Tribunal, e a título meramente exemplificativo, não se deixará de ponderar que a doutrina portuguesa tem entendido como imposto a 'prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem o carácter de sanção exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos' (usaram-se as palavras de Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1995, 5.ª ed., refundida e actualizada, p. 258).
Este mesmo autor considera que 'a taxa também é prestação pecuniária; também é prestação coactiva; mas já não é prestação unilateral, uma vez que ao seu pagamento corresponde a contraprestação de um serviço por parte do Estado'.
Em idêntica senda navega Camilo Cimourdain de Oliveira ao ponderar que as 'taxas são, portanto, cobradas em contrapartida da prestação de serviços públicos' (Lições de Direito Fiscal, Porto, 1997, 6.ª ed., p. 107).
Todavia, podendo a concepção diferenciadora de 'taxa' e 'imposto', baseada unicamente nas ideias que se deixaram sumariadas, não bastar por si só para cobrir determinadas realidades, este Tribunal, no seu Acórdão 354/98 (de 12 de Maio de 1998, proferido no processo 32/97 e ainda inédito), não deixou de referir que ''um tributo só pode qualificar-se como taxa se a exigência do seu pagamento, mesmo quando feita pela simples possibilidade de utilização de um bem semipúblico, e não pela sua utilização efectiva, continuar exclusivamente relacionada com essa utilização. O pagamento das taxas - recorda-se - é feito, em regra, aquando da utilização, e só 'conveniências da cobrança' justificam que ele seja antecipado''.
A 'taxa' de que ora se cura, recorda-se, foi instituída como uma forma de cobertura dos encargos com a luta contra a peste suína [...], incluindo indemnizações pelo abate e destruição dos animais (artigo 5.º do Decreto-Lei 44158).
Tudo leva a crer, destarte, que a imposição pecuniária levada a cabo pelo artigo 1.º do falado Decreto-Lei 44158 teve por finalidade, de um lado, custear as despesas do Estado acarretadas pelos meios de luta contra uma epizootia que, reconhecidamente, apresenta gravidade [cf. alíneas a) e b) do artigo 6.º desse diploma] e, de outro, cobrir os encargos assumidos pelo Estado ao conferir indemnizações pelo abate e destruição de animais a quem produz e comercializa carne de porco.
Nesta segunda vertente, poderia defender-se que a imposição em causa se poderia perspectivar como abarcando a existência, ainda que de certo jeito ténue - reconhece-se -, de uma relação sinalagmática entre essa imposição e a utilização de um serviço público por parte do tributado, sinalagma esse consubstanciado no aproveitamento da execução de medidas profilácticas e de polícia sanitária, investigação e a produção de meios de luta e prevenção, educação sanitária, incluindo a assistência técnica e a vulgarização e culminando no eventual recebimento de indemnizações pelo abate e destruição dos animais.
E evidente é também que, quanto a esta última finalidade, inclusivamente, não seria de todo incurial defender-se que a 'taxa' em apreço poderia visualizar-se como a instituição de um 'prémio' de seguro, conquanto coactivo, se bem que isso dificilmente se possa considerar aplicável a quem comercialize carne de porco, não a produzindo (cf., quanto aos destinatários das indemnizações, os Decretos-Leis 39209, de 14 de Maio de 1953 e 41178, de 8 de Julho de 1957).
Todavia, um ponto se surpreende e que, à partida, não pode deixar de considerar-se como podendo servir de objecção de peso à perspectivação da imposição pecuniária como uma verdadeira 'taxa'.
É ele, justamente, o que consiste em uma das finalidades dessa imposição ser a de custear despesas do Estado que, directamente, não têm uma relação com vantagens imediatas dos a ela sujeitos, ou seja, as actividades ligadas à polícia sanitária, algumas despesas com o pessoal e material de investigação e produção dos meios de luta.
Com acrescidas dificuldades, quanto a este ponto, se descortinaria qualquer relação sinalagmática (a menos que se efectuasse uma mui remota ligação dos benefícios acarretados com aquelas despesas) inerente à conceptualização de 'taxa'.
Por isso, e ainda que se não viesse a considerar a imposição em análise como um 'imposto' no sentido técnico, poder-se-ia ser levado a considerá-la como um tributo que, dada a sua natureza, haveria de ter um tratamento do ponto de vista constitucional quanto à sua criação semelhante ao dos 'impostos', à semelhança da postura que, em casos paralelos, tem sido seguida por significativa parte da doutrina e por este Tribunal (cf. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, p. 15, Nuno de Sá Gomes, Curso de Direito Fiscal, p. 97, e, por entre muitos outros, o Acórdão 313/92, in Diário da República, 2.ª série, de 18 de Fevereiro de 1993).
[...]
Adite-se ainda que, mesmo para quem sustentasse que não era constitucionalmente censurável a delegação legal na Administração da actualização (mormente anual), a realizar por via normativa (isto é, em termos genéricos), dos elementos quantitativos dos impostos [e, acrescentaremos, dos tributos que, dada a sua natureza, haveriam de ter tratamento, do ponto de vista constitucional, semelhante aos impostos], de modo a manter estes actualizados face ao fenómeno inflacionário, dado que 'a actualização de tais elementos com base na taxa de inflação não configura qualquer alteração (real) dos mesmos, não constituindo por isso qualquer violação ao princípio da reserva de lei' (cf. Casalta Nabais, Contratos Fiscais, 1994, p. 247) [...] sempre se seria levado à mesma conclusão de inconstitucionalidade, justamente pelo facto de não ter existido qualquer delegação (na Administração ou no Governo, quanto a este último, com o fim de editar normação actualizadora por referência aos índices inflacionários).»
5 - Reitera-se agora, no essencial, a fundamentação acima extractada, por isso que se não divisam obstáculos ao seu acolhimento.
E, na sua sequência, ser-se-á levado a concluir que o tributo estatuído pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 44158, cujo montante foi posteriormente alterado pelas normas sob sindicância, não pode ser perspectivado como uma imposição pecuniária não unilateral visando tão-só um encargo marcadamente de índole sinalagmática, pois que destinado a pagar uma contraprestação de serviço ou uma prestação de um serviço ou de uma actividade pública ou, ainda, de uma utilidade por banda do tributado. Por essa razão, tal tributo não poderá ser tido como integrando a noção típica e tradicional de taxa, designadamente para efeitos de tratamento como tal no âmbito de competência para emissão de legislação a ela pertinente.
Alcançada essa conclusão, uma outra se seguirá, qual seja, justamente, a de se dever entender que os normativos em apreço padecem de vício de desconformidade com a lei fundamental, por ofensa da norma constitucional conferidora de competência para a respectiva edição.
6 - Tendo em atenção que uma declaração de inconstitucionalidade normativa produz efeitos ex tunc, e sendo certo que razões de segurança jurídica e de interesse público aconselham a que as liquidações das taxas nos quantitativos por ela fixadas se mantenham - por isso que, dado o tempo decorrido desde a entrada em vigor das normas ora sub specie e as inúmeras liquidações que, entretanto, se efectuaram, a feitura de novas liquidações e a devolução das quantias já pagas pelos tributados representaria um enormíssimo labor por parte dos serviços da Administração -, o Tribunal entende que, no vertente caso, se justifica lançar mão da faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, por forma que limite os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de modo a não serem afectadas as liquidações não impugnadas ou já definitivamente decididas.
E esta limitação, anota-se, é efectuada de sorte cautelar, justamente porque desde logo se poderia sustentar que a ressalva dos casos julgados a que se reporta o n.º 3 daquele artigo também abarca os denominados «casos resolvidos» e, assim, não seria porventura necessário proceder a tal limitação.
III
Em face do exposto, este Tribunal declara inconstitucionais, com força obrigatória geral, por violação da alínea o) do artigo 167.º, conjugada com o n.º 2 do artigo 168.º, um e outro da versão originária da Constituição, as normas contantes do artigo 1.º do Decreto-Lei 547/77, de 31 de Dezembro, e do artigo 1.º do Decreto-Lei 19/79, de 10 de Fevereiro, limitando a produção de efeitos desta declaração por forma a não serem afectadas as liquidações não impugnadas ou já definitivamente decididas.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2000. - Bravo Serra - Messias Bento - Guilherme da Fonseca - Alberto Tavares da Costa - Luís Nunes de Almeida - Maria Fernanda Palma - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - José de Sousa e Brito - Vítor Nunes de Almeida - Artur Maurício - Paulo Mota Pinto - José Manuel Cardoso da Costa.