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Acórdão 317/86, de 14 de Janeiro

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Sumário

Não declara a inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º da Lei n.º 32/86, de 29 de Agosto, - alteração ao orçamento geral do Estado para 1986, aprovado pela Lei 9/86, de 30 de Abril -, declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 4.º da mesma lei, na parte que é aplicável ao ano económico em curso; declara a inconsticucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 1.º da citada lei, na parte em que introduz alterações aos mapas I e II do Orçamento. (Proc.º 208/86)

Texto do documento

Acórdão 317/86
Processo 208/86
Acordam no Tribunal Constitucional:
O Primeiro-Ministro, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição, requer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 3.º e 4.º da Lei 32/86, de 29 de Agosto, e ainda da alteração introduzida no mapa II do Orçamento do Estado, anexo àquela lei, consubstanciada numa transferência de verba de 64000 contos da Direcção-Geral da Comunicação Social - capítulo 10 de Encargos Gerais da Nação - para a rubrica de subsídios a empresas públicas, destinada à ANOP, bem como da inconstitucionalidade do aumento da receita do IVA em 14 milhões de contos - artigo 05, grupo 03 do capítulo 02, do mapa I -, com a consequente redução do défice, por violação do n.º 3 do artigo 108.º, da alínea b) do artigo 202.º e do n.º 2 do artigo 170.º, todos da Constituição.

Alega, em síntese:
É da exclusiva competência da Assembleia da República, sob a forma de lei, a aprovação do Orçamento do Estado, nos termos da alínea g) do artigo 164.º da Constituição, mas sob proposta apresentada pelo Governo. Desta forma, a Assembleia da República não pode tomar a iniciativa de um projecto de lei do orçamento, só pode discutir e votar o Orçamento sob proposta de lei do Governo.

O Orçamento do ano em curso foi aprovado pela Lei 9/86, de 30 de Abril.
Tornou-se necessária a sua alteração, o que só o Governo pode propor, tendo-o feito apresentando a proposta de lei do Orçamento, a que foi atribuído o n.º 31/IV. Pretendia, já na fase de execução, alterar o plano financeiro, aprovado pela Lei 9/86, corrigindo algumas receitas e despesas; pretendia-se, nomeadamente, o aumento de receita de crédito público interno e um correspondente aumento das despesas em combustíveis e lubrificantes em compensação da redução de receitas próprias de orçamentos privativos das Forças Armadas e em encargos com aposentações.

Porém, a Assembleia da República, ao aprovar a Lei 32/86, de 29 de Agosto, não contemplou o aumento das receitas de crédito interno proposto pelo Governo, mas aumentou as receitas do imposto sobre o valor acrescentado, do Fundo de Abastecimento e do crédito externo (sic); quanto às despesas, aprovou o aumento das despesas em combustíveis e lubrificantes e um aumento das despesas com aposentações e, ao mesmo tempo, aumentou as despesas do capítulo «Despesas excepcionais» (Ministério das Finanças) e do capítulo «Departamento de Gestão Financeira dos Serviços de Saúde» (Ministério da Saúde), reduzindo as despesas do capítulo «Direcção-Geral da Comunicação Social» (Encargos Gerais da Nação) e do capítulo «Encargos de dívida pública» (Ministério das Finanças).

De tudo isto resultaram profundas alterações à lei do orçamento que o Governo não propôs e que se repercutem na execução do Orçamento, que é da competência do Governo.

Durante a discussão do Orçamento podem os deputados apresentar todas as propostas de alteração que entenderem, desde que respeitem os princípios e regras orçamentais, não se aplicando a chamada «norma travão». Isto porque a Assembleia não está a exercer uma competência propriamente legislativa, mas, sim, uma competência política exclusiva sob a forma legislativa. A Assembleia fixa os limites máximos do conjunto de despesas e prevê o conjunto das adequadas receitas; os deputados não estão sujeitos a qualquer limitação nas suas propostas, porque discutem e votam a totalidade do Orçamento.

O mesmo não sucede perante uma proposta do Governo de alterações ao Orçamento. Nesta última hipótese procura modificar-se um plano elaborado e aprovado, que está em execução. Quem o executa é o Governo, e as alterações que propõe são as que entende serem necessárias para assegurar a mais correcta execução do Orçamento. Se fossem atribuídos à Assembleia os mesmos poderes que lhe são conferidos aquando da elaboração do Orçamento, poderia modificar substancialmente aquele e praticamente elaborar um novo. Isto não significa que tenha de aceitar a proposta do Governo. Pode aumentar, ou não, e diminuir, ou não, as receitas e as despesas constantes da proposta, ou aumentá-las e diminuí-las em menos ou em mais. Não pode, porém, é inverter o sentido da proposta do Governo. Por estas razões, são inconstitucionais - formal e organicamente - as alterações introduzidas pela Assembleia da República, mediante proposta dos seus deputados, e que se traduzem na alteração do mapa II do Orçamento (transferência da verba de 64000 contos da Direcção-Geral da Comunicação Social - «Aquisição de serviços» - para a rubrica de subsídios a empresas públicas, destinada à ANOP) e no aumento da receita do IVA em 14 milhões de contos e consequente redução do défice orçamental. Tudo isto, por violação directa do disposto no n.º 3 do artigo 108.º da Constituição.

Sustenta também que são inconstitucionais as alterações introduzidas pela Assembleia da República e que constam do artigo 3.º da Lei 32/86, de 29 de Agosto. Isto porque a Assembleia da República só pode fiscalizar a execução do Orçamento nos termos do n.º 8 do artigo 108.º, ao apreciar e aprovar a Conta Geral do Estado.

Foi invadida a competência administrativa que é do Governo, nomeadamente ao fixar-se-lhe um prazo inaceitável para prestar informações, pelo que foi violada a alínea b) do artigo 202.º da Constituição.

Finalmente, entende ser inconstitucional o disposto no artigo 4.º da Lei 32/86, o qual veio isentar, com efeito imediato no ano económico em curso, os utentes dos serviços de saúde do pagamento de certas taxas moderadoras. É que, como se diminuiu, por essa forma, no corrente ano económico, uma receita do Estado, violou-se o n.º 2 do artigo 170.º da Constituição.

Termina pedindo que se declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade dos artigos 3.º e 4.º da Lei 32/86, de 29 de Agosto, e ainda a alteração introduzida no mapa II do Orçamento do Estado, anexo àquela lei, consubstanciada numa transferência de verba de 64000 contos da Direcção-Geral da Comunicação Social para a rubrica de subsídios a empresas públicas, destinada à ANOP, bem como a inconstitucionalidade do aumento da receita do IVA em 14 milhões de contos com a consequente redução do défice orçamental, com fundamento na violação do n.º 3 do artigo 108.º, da alínea b) do artigo 202.º e do n.º 2 do artigo 170.º, todos da Constituição.

Juntou um parecer da autoria do Prof. Teixeira Ribeiro, no qual se pronuncia sobre as matérias versadas no pedido.

Cumpriu-se o disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, e o Presidente da Assembleia da República respondeu oferecendo o mérito dos autos, tendo feito acompanhar a sua resposta dos documentos relativos à discussão do assunto em reunião plenária e em reunião da Comissão de Economia, Finanças e Plano.

Tudo visto.
a) Âmbito e delimitação do pedido
Durante a execução do Orçamento do corrente ano, entendeu o Governo ser necessária a alteração daquele, invocando para tanto várias disposições introduzidas pela Assembleia da República aquando da discussão e votação da Lei 9/86, de 30 de Abril.

O Governo, ao propor a alteração do Orçamento, pretendia alterar o plano financeiro aprovado pela Lei 9/86, corrigindo algumas receitas e despesas; pretendia, nomeadamente, o aumento de receitas de crédito público interno e um correspondente aumento de despesas em combustíveis e lubrificantes, em compensação da redução de receitas próprias de orçamentos privativos das Forças Armadas e em encargos com aposentações.

A Assembleia da República aprovou a Lei 32/86, de 29 de Agosto, que não contemplou o aumento das receitas de crédito interno proposto pelo Governo, mas aumentou as receitas do imposto sobre o valor acrescentado e as receitas do Fundo de Abastecimento.

Além disso, a Assembleia diminuiu a receita do crédito externo - conquanto, por evidente lapso, no pedido se refira que ela a aumentou.

Quanto às despesas, aprovou o aumento das despesas em combustíveis e lubrificantes e em compensação da perda de receitas próprias dos aludidos orçamentos, e aprovou um aumento menor de despesas com aposentações e, ao mesmo tempo, aumentou as despesas do capítulo «Despesas excepcionais» (Ministério das Finanças) e do capítulo «Departamento de Gestão Financeira dos Serviços de Saúde» (Ministério da Saúde), reduzindo as despesas do capítulo «Direcção-Geral da Comunicação Social» (Encargos Gerais da Nação) e do capítulo «Encargos da dívida pública» (Ministério das Finanças).

Resultaram, assim, várias alterações à lei do orçamento que o Governo não propôs.

É relativamente a estas modificações que o Primeiro-Ministro pede que se declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da alteração introduzida no mapa II do Orçamento do Estado, anexo àquela lei, consubstanciada numa transferência de verba de 64000 contos da Direcção-Geral da Comunicação Social para a rubrica de subsídios a empresas públicas, destinada à ANOP, bem como a inconstitucionalidade do aumento da receita do IVA em 14 milhões de contos, com a consequente redução do défice orçamental.

Além disso, pede o Primeiro-Ministro a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 3.º (Prestação de informações ao Governo) e 4.º (Isenção de taxas moderadoras) da Lei 32/86.

Alguns esclarecimentos se impõem.
A declaração de inconstitucionalidade só é possível relativamente a normas jurídicas. Afigura-se-nos, porém, que os mapas anexos assumem eles próprios natureza normativa (cf. Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 2.ª edição, 1984, pp. 101 a 280), pelo que nada impede a sua sindicância constitucional.

Posto isto, e no tocante à transferência da verba de 64000 contos da Direcção-Geral da Comunicação Social, nenhuma dúvida cabe aí quanto ao sentido do pedido, devendo unicamente esclarecer-se que tal transferência se operou em favor do capítulo 60 «Despesas excepcionais» do Ministério das Finanças, que é o que abrange tal subsídio.

Por sua vez, e quanto ao pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 4.º da referida lei, nenhuma referência expressa se faz à alteração por ele induzida no mapa II, alteração essa resultante do aumento de despesas que o Estado passou a ter de suportar, por ficarem isentos de taxas moderadoras os utentes de cuidados de saúde prestados pelos serviços de urgência de hospitais e serviços de atendimento permanente.

Deve entender-se o pedido como abrangendo também essa alteração.
Tocantemente à parte final do pedido, respeitante ao aumento das receitas previstas para o IVA e consequente redução do défice, deve entender-se que se pretendeu com tal visar a alteração do mapa I do Orçamento operada pela questionada lei (ou, se se quiser, o seu artigo 1.º, na medida em que alterou aquele mapa), na parte em que, através do aumento da receita do IVA e da correspondente diminuição da verba prevista no artigo 01 do capítulo 12 «Passivos financeiros - crédito externo», se determinou uma redução do défice orçamental.

Assim, deve entender-se o pedido como abrangendo a declaração de inconstitucionalidade:

a) Da norma constante do artigo 3.º;
b) Da norma constante do artigo 4.º;
c) Das alterações, com o conteúdo mencionado, dos mapas I e II do Orçamento (ou, se se preferir, o artigo 1.º da lei questionada na parte em que determinou essas alterações).

b) Alteração aos mapas I e II do Orçamento
De acorco com a alínea g) do artigo 164.º da Constituição, compete à Assembleia da República «aprovar a lei do Plano e o Orçamento do Estado».

Por seu lado, o n.º 3 do artigo 108.º também da Constituição dispõe:
A proposta de Orçamento é apresentada pelo Governo e votada na Assembleia da República.

O Orçamento é unitário e especifica as despesas e prevê as receitas (n.os 5 e 6 do artigo 108.º).

Após a revisão constitucional de 1982, a Assembleia da República passou a aprovar o próprio Orçamento do Estado. Mas, apesar disso, para a Assembleia da República legislar é necessária a apresentação de uma proposta do Governo. A Assembleia da República pode alterar livremente a proposta do Governo dentro dos limites constitucionais. Isto porque o Orçamento deixou de ser um acto do Governo e passou a ser um acto da Assembleia da República. No entanto, não é um acto independente, autónomo. Com efeito, a Assembleia da República não pode, ainda hoje, tomar a iniciativa de um projecto de lei do orçamento; só pode discutir e votar o Orçamento sob proposta de lei do Governo.

Como se sabe, a Constituição de 1933 atribuía à Assembleia Nacional poderes apenas para votar a lei de autorização das receitas e despesas (Lei de Meios). Com a Constituição de 1976, na sua versão originária, fez-se a distinção entre a lei do orçamento e Orçamento, competindo à Assembleia da República votar somente a lei do orçamento, que, todavia, não era uma simples lei de autorização de receitas e despesas, visto que continha as verbas das receitas e das despesas, aquelas discriminadas a nível em grande parte dos artigos e estas a nível dos departamentos do Estado (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/85, de 31 de Julho, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118, pp. 235 e 236).

Pronunciando-se sobre a alteração introduzida na primeira revisão constitucional, que passou a atribuir à Assembleia da República competência para votar o próprio Orçamento, em vez da simples lei do orçamento, escreveu o Prof. Teixeira Ribeiro:

A Assembleia da República, diz a Constituição (artigo 150.º), é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses. Ora, se se quer que os cidadãos portugueses através dos seus representantes se pronunciem sobre o destino que o Estado dá ao dinheiro que lhes leva, não há dúvida de que não basta à Assembleia votar apenas a lei do orçamento, nos termos do primitivo artigo 108.º, é preciso que ela vote o próprio Orçamento, como sucede agora. Eis a lógica da grande mudança que o artigo sofreu. [As Alterações à Constituição no Domínio das Finanças Públicas, separata do Boletim das Ciências Económicas, vol. XXVI, 1983, n.º 2, citação feita no acórdão já referido, a fl. 236.]

E compreende-se que seja tão vasta a competência da Assembleia da República quando se trata de elaborar o Orçamento. É que é possível definir o Orçamento, em finanças públicas, como uma previsão em regra anual das despesas a realizar pelo Estado e dos processos de as cobrir, incorporando a autorização concedida à administração financeira para cobrar e realizar despesas e limitando os poderes financeiros da Administração em cada ano (cf. Sousa Franco, Direito Financeiro e Finanças Públicas, vol. 1.º, p. 202).

Ora, tratando-se de uma previsão anual, de um plano financeiro, em que de forma global se encaram as despesas e as receitas do Estado, justifica-se que a Assembleia da República não só discuta tudo o que o Governo propõe, como tenha a iniciativa de alterar a proposta sempre que o entenda conveniente, dentro dos limites estabelecidos pelo artigo 108.º

Aprovado o Orçamento, passa-se à fase da sua execução. O Orçamento, enquanto previsão, pode não cobrir situações imprevistas que venham a ocorrer e a que a Administração Pública tem de fazer frente. É, em tais casos, que normalmente se impõe alterar o Orçamento.

Pergunta-se: quem o poderá alterar?
A resposta que se impõe é que tal competência cabe à Assembleia da República (n.º 1 do artigo 20.º da Lei 40/83, de 13 de Dezembro), o que, aliás, é lógico, uma vez que é ela o órgão que o elabora. No entanto, não pode a Assembleia da República tomar a iniciativa de alterar o Orçamento no decurso da sua execução. Se a proposta do Governo constitui um pressuposto indispensável para a sua elaboração, seria perfeitamente ilógico que a Assembleia da República o pudesse alterar, na fase de execução, sem proposta do Governo, órgão competente para a mesma execução.

Uma proposta de alteração não significa, por princípio, uma proposta para elaboração de um novo Orçamento, mas tão-somente a da modificação daquele em aspectos normalmente pontuais ou parcelares, tendentes a facilitar a condução da política financeira do País, em harmonia com a direcção imprimida pelo próprio Governo.

Terá, nesta hipótese, a Assembleia da República os mesmos poderes que possui em face da proposta do Orçamento, que lhe permitem modificá-lo largamente, criando e extinguindo receitas e despesas?

A resposta negativa parece impor-se.
É que, no caso da proposta do Orçamento, a fase é de previsão do conjunto de todas as despesas a realizar pelo Estado, durante o ano, e dos processos de as cobrir.

Procura-se definir o plano financeiro global do Estado. Compreende-se que o órgão constitucionalmente competente para aprovar o Orçamento possa decidir livremente o que maior interesse tem para o Estado na matéria.

No caso de alteração do Orçamento, já não se está numa fase de previsão, nem se pretende traçar um plano financeiro global. Tem-se apenas a pretensão de alterar um plano já elaborado, que está a ser executado, e em áreas delimitadas pela proposta do Governo, que tem o exclusivo da iniciativa de alteração e o encargo e responsabilidade pela execução orçamental.

O Governo tem o poder de propor alterações ao Orçamento, sempre que tal se lhe afigure necessário. É certo que uma proposta de alteração do Orçamento se não reconduz a acto de execução do Orçamento, mas a própria execução deste pode determinar a necessidade de fazer a proposta de alteração.

Não é de aceitar que, face a uma simples proposta de alteração do Orçamento, a Assembleia da República possa proceder a modificações orçamentais que não se inscrevam no âmbito da proposta do Governo. Isto, desde logo, porque de outro modo ficaria descaracterizado o exclusivo governamental da iniciativa de alteração do Orçamento. O Governo ficaria condenado ou a não alterar o Orçamento ou a correr o risco de a Assembleia da República, aproveitando uma qualquer iniciativa sua de alteração, alargar as alterações a outras áreas, não pretendidas pelo Governo.

Se fosse possível aproveitar uma proposta de alteração do Orçamento para introduzir modificações orçamentais que não se inscrevessem no âmbito da proposta governamental, poderia desfigurar-se, em qualquer altura, o Orçamento aprovado, criar até um novo Orçamento. Acresce que, se tão amplos poderes estivessem sempre na disponibilidade da Assembleia da República o direito do Governo de propor alterações ao Orçamento, na verdade, ficaria esvaziado de conteúdo.

É que o Governo, ao propor uma alteração, pretende, em regra, soluções para situações imprevistas e criar condições para conduzir a política financeira do País segundo a orientação que lhe imprime, tendo como instrumento o Orçamento aprovado. Se, de antemão, souber que tudo vai ser alterado, criando-se-lhe porventura condições muito mais desfavoráveis do que as que tem, não se atreverá a fazer quaisquer propostas de alteração ao Orçamento. A menos que tenha uma segura maioria parlamentar.

Conferir sempre tão amplos poderes à Assembleia da República seria criar a possibilidade de uma modificação do Orçamento, ou, até, de um novo Orçamento. E isso a Constituição não o pode querer. De facto, uma tal possibilidade equivaleria a permitir que a Assembleia da República, depois de munir o Governo com um instrumento de trabalho que é o Orçamento, com o qual aquele aceitou governar, lhe «trocasse» esse instrumento por um outro completamente diferente e tão diferente que, com ele, o Governo não pudesse ou quisesse governar.

Em abono desta orientação podemos citar Cardoso da Costa. Com efeito, escreve:
A ideia fundamental vertida na Constituição em vigor no tocante à repartição de competências entre o Parlamento e o Governo, em matéria financeira, e explicativa das soluções por ela encontradas nesse domínio, é a de conferir à Assembleia da República uma ampla liberdade decisória na altura do debate da lei do orçamento, compensada por uma estreita vinculação a esta lei, uma vez ela aprovada. [Cf. Sobre as Autorizações Legislativas da Lei do Orçamento, pp. 14 e seguintes.]

Uma tal faculdade legislativa, a existir, equivaleria a abrir a possibilidade de introduzir desequilíbrios nos poderes do Estado, contra o que justamente postula o princípio de separação e interdependência, a que se refere o n.º 1 do artigo 114.º da Constituição. Princípio de divisão e interdependência em que vai necessariamente implicada uma ideia de equilíbrio, de checks and balances.

Não se pretende que a Assembleia da República esteja vinculada à proposta de alteração feita pelo Governo. Pode aceitá-la ou rejeitá-la. Pode aumentar as receitas, como se propõe, ou aumentá-las numa percentagem diferente do que a pretendida. Igualmente poderá não diminuir as despesas, ou diminuir menos do que se pretende. Não pode é proceder a alterações que extravasem o âmbito da proposta. Ora, são claramente desta natureza as alterações orçamentais cuja declaração de inconstitucionalidade o Primeiro-Ministro solicita, a saber:

A reavaliação da receita do IVA em mais 14 milhões de contos e a consequente redução do défice orçamental, através de uma correspondente diminuição da receita a obter através do recurso ao crédito externo;

A transferência do montante de 64000 contos da verba de despesa da Direcção-Geral da Comunicação Social para a rubrica de subsídios a empresas públicas, a qual integra a verba do capítulo 60 «Despesas excepcionais» do Ministério das Finanças;

E, finalmente, o aumento de despesas resultante da isenção do pagamento de certas taxas moderadoras no ano económico em curso, aumento esse traduzido no crescimento de 50000 contos na verba de despesas do capítulo 3 do Ministério da Saúde.

Na verdade, todas estas alterações aos mapas I e II do Orçamento se situam inteiramente fora do quadro da proposta de alteração do Orçamento apresentada pelo Governo.

Tais alterações - ou a norma do artigo 1.º da Lei 32/86, na parte em que as aprova - violam, pois, os princípios que se extraem da leitura conjugada dos artigos 108.º, n.º 3, e 114.º, todos da Constituição.

c) Isenção do pagamento das taxas moderadoras
Do artigo 4.º da Lei 32/86, de 29 de Agosto, ficou a constar:
Ficam isentos do pagamento de taxas moderadoras os cuidados de saúde prestados pelos serviços de urgência dos hospitais e serviços de atendimento permanente.

O n.º 2 do artigo 170.º da Constituição reza assim:
Os deputados, os grupos parlamentares e as assembleias regionais não podem apresentar projectos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.

Acolhe-se aqui um dos sentidos da tradicionalmente denominada «lei travão».
Não está impedida a apresentação e a aprovação de propostas que envolvam aumentos de despesas ou diminuição das receitas públicas, desde que se trate de propostas de alteração à proposta do Orçamento; a limitação do n.º 2 não se aplica à própria votação do Orçamento, que, embora sendo da exclusiva iniciativa legislativa originária do Governo, pode ser aprovado com alterações. Mas, uma vez votado o Orçamento, não podem os deputados, por sua iniciativa, aprovar normas que por qualquer daquelas formas o afectem.

Ora, a isenção traduziu-se num aumento das despesas previstas no Orçamento.
A norma do artigo 4.º da Lei 32/86 violou assim o n.º 2 do artigo 170.º da Constituição. Mas, tal como se decidiu no Acórdão 297/86, a inconstitucionalidade daí resultante só releva no ano económico em curso, isto é, nas suas incidências financeiras sobre o ano económico de 1986.

d) Imposição ao Governo de prestar informações de natureza económico-financeira à Assembleia da República dentro de determinado prazo

O peticionante alega nos artigos XVI e XVII do seu requerimento:
XVI
São igualmente inconstitucionais as alterações introduzidas pela Assembleia da República e que constam do artigo 3.º da Lei 32/86, de 29 de Agosto.

XVII
Na verdade, não restam dúvidas de que a execução do Orçamento do Estado e a sua fiscalização administrativa competem ao Governo, nos termos da alínea b) do artigo 202.º da CRP. Aliás, trata-se de uma competência administrativa do Governo e, como tal, indelegável e não exercitável por qualquer outro órgão de soberania.

É certo que, de harmonia com o n.º 3 do artigo 108.º da Constituição, a execução do Orçamento será fiscalizada pelo Tribunal de Contas e pela Assembleia da República, ao aprovar a Conta Geral do Estado. Todavia, nada na Constituição proíbe que a Assembleia da República, no âmbito da competência genérica que lhe é atribuída pelo artigo 165.º, alínea a), da Constituição, possa acompanhar o desenvolvimento orçamental solicitando as informações genéricas para tanto necessárias.

Acresce que os deputados podem solicitar os elementos que entendam necessários, tendo o Governo o dever de os fornecer [artigo 159.º, alínea d)], o mesmo acontecendo em relação aos grupos parlamentares [artigo 183.º, n.º 2, alínea i)].

Por outro lado, nada impede que uma tal obrigação do Governo seja disciplinada e garantida por via de lei. Ao menos, enquanto semelhante conduta não seja erigida em prática sistemática, que acabe por transformar um sistema de «governo parlamentar» em sistema de «governo convencional».

A própria «lei do enquadramento orçamental» (Lei 40/83, de 13 de Dezembro) já contém normas semelhantes, e antes dela já o «Estatuto da Oposição» (Lei 59/77, de 5 de Agosto) incluía um conjunto de deveres do Governo para com os partidos da oposição.

Desta forma, não foi violada, pelo artigo 3.º da Lei 32/86, qualquer norma constitucional.

Nestes termos, acordam:
1) Em não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º da Lei 32/86, de 29 de Agosto;

2) Em declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 4.º da mesma lei, na parte em que é aplicável ao ano económico em curso;

3) Em declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 1.º da citada lei, na parte em que introduz as seguintes alterações aos mapas I e II do Orçamento:

a) Aumento, no mapa I, da receita prevista no artigo 05 do grupo 3 do capítulo «Imposto sobre o valor acrescentado», em 14 milhões de contos, com a consequente redução do défice orçamental;

b) Transferência, no mapa II, da verba de 64000 contos do capítulo 10 da despesa em Encargos Gerais da Nação «Direcção-Geral da Comunicação Social» para o capítulo 60 da despesa do Ministério das Finanças «Despesas comuns - Despesas excepcionais»;

c) Aumento, no mapa II, em 50000 contos da dotação do capítulo 03 da despesa do Ministério da Saúde «Departamento de Gestão Financeira dos Serviços de Saúde».

Tribunal Constitucional, 19 de Novembro de 1986. - José Martins da Fonseca - Mário de Brito - Luís Nunes de Almeida - Raul Mateus - José Manuel Cardoso da Costa - José Magalhães Godinho - Mário Afonso - Vital Moreira - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - Armando Manuel Marques Guedes.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/111567.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1977-08-05 - Lei 59/77 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto do Direito de Oposição.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1983-12-13 - Lei 40/83 - Assembleia da República

    Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado.

  • Tem documento Em vigor 1986-04-30 - Lei 9/86 - Assembleia da República

    Orçamento Geral do Estado para 1986.

  • Tem documento Em vigor 1986-08-29 - Lei 32/86 - Assembleia da República

    Alteração ao Orçamento do Estado para 1986.

  • Tem documento Em vigor 1986-11-21 - Acórdão 297/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade parcial das seguintes normas da Lei n.º 17/86 (salários em traso): n.º 1 do artigo 25.º, conjugado com os artigos 24.º, 26.º, 27.º e 31.º; n.º 1 do artigo 3.º, artigo 6.º, alínea b), e artigo 7.º; e n.º 3 do artigo 7.º.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1987-07-10 - Acórdão 206/87 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de diversas normas de vários artigos de legislação referente às regiões autónomas e limita os efeitos da inconstitucionalidade.

  • Tem documento Em vigor 1997-03-05 - Acórdão 1/97 - Tribunal Constitucional

    Não se pronuncia no sentido de que as normas do Decreto 58/VII, aprovado em 31 de Outubro de 1996 pela Assembleia da República e subordinado ao título «Criação de vagas adicionais no acesso ao ensino superior», contrariam o princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania; Pronuncia-se pela inconstitucionalidade do artigo 1º do referido decreto, por este contrariar, conjugadamente, o princípio da segurança jurídica derivado do artigo 2º da Constituição e o princípio da igualdade, em particu (...)

  • Tem documento Em vigor 2021-09-16 - Acórdão do Tribunal Constitucional 545/2021 - Tribunal Constitucional

    Não declara a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 3.º da Lei n.º 16/2021, de 17 de abril, na parte em que adita o artigo 4.º-C ao Decreto-Lei n.º 8-B/2021, de 22 de janeiro (estabelece medidas de apoio no âmbito da suspensão das atividades letivas e não letivas presenciais), e, através deste, altera os n.os 7 e 8 do artigo 23.º e os n.os 7 e 8 do artigo 24.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março; não declara a inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º da Lei n.º 16/2021, de 7 d (...)

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