Acórdão 297/86
Processo 163/86
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
1 - O Primeiro-Ministro requereu, em 17 de Junho último, ao abrigo do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (CRP), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas dos artigos 2.º, 3.º, 6.º, 7.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º e 31.º da Lei 17/86, de 14 de Junho (salários em atraso), com fundamento na violação do n.º 2 do artigo 170.º da lei fundamental, já que tais disposições, da iniciativa dos deputados, implicam no ano económico em curso um aumento da despesa do Estado prevista no Orçamento para esse efeito.
Concretizando:
Pelo artigo 2.º da referida lei ficam abrangidas pelo regime nela previsto «as empresas públicas, privadas e cooperativas em que, por causa não imputável ao trabalhador, se verifique a falta de pagamento total ou parcial da retribuição devida, nos casos e nos termos dos artigos seguintes».
O artigo 3.º dispõe:
1 - Quando a falta de pagamento pontual da retribuição se prolongue por período superior a 30 dias sobre a data do vencimento da primeira retribuição não paga e o montante em dívida seja equivalente ao valor de uma retribuição mensal ou a mora se prolongue por período superior a 90 dias, qualquer que seja o montante em dívida, podem os trabalhadores, isolada ou conjuntamente, rescindir o contrato com justa causa ou suspender a sua prestação de trabalho, após notificação à entidade patronal e à Inspecção-Geral do Trabalho, por cartas registadas com aviso de recepção, expedidas com a antecedência mínima de dez dias, de que exercem um ou outro desses direitos, com eficácia a partir da data da rescisão ou do início da suspensão.
2 - A situação referida no n.º 1 deverá ser comprovada pela entidade patronal, a requerimento do trabalhador.
3 - A recusa da entidade patronal ou dos seus representantes em emitir, no prazo de cinco dias após o pedido do trabalhador, a declaração referida no n.º 2 será suprida por declaração da Inspecção-Geral do Trabalho.
Quanto aos trabalhadores que optarem pela rescisão unilateral com justa causa, o artigo 6.º confere-lhes direito a:
a) Indemnização, de acordo com a respectiva antiguidade, correspondente a um mês de retribuição por cada ano ou fracção, não podendo ser inferior a três meses, salvo regime mais favorável previsto na regulamentação colectiva aplicável;
b) Subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego, nos termos previstos pelo Decreto-Lei 20/85, de 17 de Janeiro:
c) Prioridade na frequência de curso de reconversão ou reciclagem profissionais, subsidiado pelos departamentos oficiais já existentes ou a, criar obrigatoriamente pelos organismos oficiais competentes.
Por sua vez, o artigo 7.º regula, pela seguinte forma, a suspensão da prestação do trabalho:
1 - A suspensão da prestação do trabalho confere ao trabalhador, a contar do seu início, o direito à percepção do subsídio de desemprego ou à percentagem máxima do subsídio social de desemprego, previstos no Decreto-Lei 20/85, até ao termo do prazo de suspensão, sem prejuízo do limite legal de duração do direito a qualquer daqueles subsídios.
2 - A atribuição do subsídio de desemprego ou do subsídio social de desemprego está, nestes casos, condicionada ao cumprimento do período de garantia de tempo de trabalho imediatamente anterior e das demais condições exigidas pelo Decreto-Lei 20/85.
3 - Sem prejuízo do limite legal de duração do direito à concessão dos subsídios atrás referidos, a atribuição destes pode retroagir à data de entrada em vigor do Decreto-Lei 20/85, desde que tal seja requerido e a Inspecção-Geral do Trabalho reconheça o incumprimento da retribuição no período em causa, não podendo, porém, o seu quantitativo ser superior à proporção de um subsídio por cada três salários não recebidos.
4 - Confere igualmente direito aos subsídios o não pagamento pontual da retribuição determinado pela paralisação do funcionamento da empresa por período igual ou superior a quinze dias e por todo o período da paralisação, sem prejuízo dos limites temporais previstos no n.º 1 deste artigo.
Finalmente, adopta a lei algumas providências para os trabalhadores com retribuições em atraso quando contra eles estejam pendentes processos de execução.
Assim, visando os processos de execução fiscal, diz o artigo 23.º:
1 - São suspensos os processos de execução fiscal em que os executados sejam trabalhadores com retribuições em atraso e que provem tal situação.
2 - A suspensão referida no número anterior mantém-se até dois meses após a regularização das retribuições em dívida, findo o qual se renovará a execução em causa.
Para as execuções de sentenças de despejo, prevêem os artigos 24.º a 27.º Assim:
Artigo 24.º
Suspensão de execuções de sentenças de despejo
1 - É suspensa a execução de sentença de despejo em que a causa de pedir tenha sido a falta de pagamento das rendas, sempre que o executado prove que o incumprimento do contrato se deve ao facto de ter retribuições em atraso referentes ao período de rendas em mora.
2 - Para os efeitos previstos no número anterior, o juiz, oficiosamente, ordenará a notificação do executado para, querendo, alegar os motivos conducentes à suspensão.
3 - O incidente seguirá os termos dos artigos 302.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Artigo 25.º
Salvaguarda dos direitos dos senhorios
1 - O tribunal enviará ao Fundo de Desemprego cópia da decisão que ordene a suspensão, a fim de que este assegure o pagamento das rendas em mora em moldes a regulamentar.
2 - As rendas pagas nos termos do número anterior serão deduzidas em prestações adequadas na amortização dos créditos por salários em atraso que venha a ser efectuada.
Artigo 26.º
Renovação da instância
1 - Sempre que o pagamento das rendas não tenha sido assegurado pelo Fundo de Desemprego, a instância pode ser renovada oito dias após o recebimento, pelo trabalhador, das retribuições em atraso.
2 - Requerido o prosseguimento dos autos, o executado será notificado para, no prazo de dez dias, provar o pagamento ou o depósito, em singelo, das rendas em mora.
Artigo 27.º
Extinção da instância
1 - Provado o pagamento ou o depósito das rendas em dívida pelo trabalhador ou pelo Fundo de Desemprego, a instância extingue-se, beneficiando o executado de isenção de custas.
2 - Ao exequente serão restituídas as custas de parte.
Resta acrescentar que, por força do seu artigo 31.º, a lei - de 14 de Junho, como se disse - entrou em vigor no dia 16 desse mês (por o dia 15 ter sido domingo).
Ora, argumenta o Primeiro-Ministro:
O Decreto-Lei 7-A/86, de 14 de Janeiro, já regulava a situação dos trabalhadores com salários em atraso, admitindo tanto a possibilidade de eles rescindirem o contrato de trabalho - com direito a indemnização, eventualmente a cargo das instituições de segurança social, e à percepção do subsídio de desemprego ou do subsídio social de desemprego - como a faculdade de o suspenderem, com direito à percepção, durante um certo período, de subsídio de desemprego ou de subsídio social de desemprego. E para satisfação dessas prestações o Governo inscreveu na proposta de lei 16/IV (Orçamento do Estado para 1986), aprovada em 7 de Fevereiro desse ano, a verba necessária, cujo montante, aliás, não sofreu qualquer alteração na versão aprovada pela Assembleia da República (Lei 9/86, de 30 de Abril). Simplesmente, a lei em apreciação envolve um aumento de despesas em confronto com as resultantes da aplicação do Decreto-Lei 7-A/86. Assim:
a) O n.º 1 do artigo 25.º da lei, impondo ao Fundo de Desemprego que assegure o pagamento das rendas em mora por parte dos trabalhadores com retribuições em atraso, cria uma «nova obrigação legal», isto é, uma obrigação «inexistente à data da aprovação da Lei do Orçamento».
b) Por força do artigo 2.º da mesma lei, o regime por ela instituído - incluindo, no caso de «rescisão unilateral com justa causa do seu contrato de trabalho», o direito a «subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego» [artigo 6.º, alínea b)] e, no caso de «suspensão da prestação do trabalho», o «direito à percepção de subsídio de desemprego ou à percentagem máxima do subsídio social de desemprego» (artigo 7.º) - é aplicável à falta de pagamento total ou parcial da retribuição devida, pelo período de tempo exigido no n.º 1 do artigo 3.º, «por causa não imputável ao trabalhador», o que implica um alargamento do conceito de justa causa - já que, pela legislação anterior [artigo 25.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 372-A/75, de 16 de Julho, artigo 1.º, alínea b), conjugado com os n.os 1 e 2 do artigo 3.º, e artigo 29.º, todos do Decreto-Lei 20/85, de 17 de Janeiro], só a «falta culposa» de pagamento pontual da retribuição constituía justa causa de resolução do contrato de trabalho por parte do trabalhador -, daí um aumento de despesas para o Fundo de Desemprego. «E nem se diga», continua o requerimento do Primeiro-Ministro, «que o Decreto-Lei 7-A/86, vigente à altura da aprovação da Lei do Orçamento, já previa sensivelmente a mesma coisa, pelo que as despesas não seriam aumentadas com este novo normativo. É que o recurso aos mecanismos previstos naquele decreto-lei, nos termos do seu artigo 7.º, só poderá verificar-se durante os 90 dias subsequentes à sua entrada em vigor, prazo este que veio a ser prorrogado pelo artigo único do Decreto-Lei 89/86, de 8 de Maio. Logo, na parte que excede este prazo, a lei é contrária ao n.º 2 do artigo 170.º da CRP, uma vez que alarga o âmbito temporal de aplicação de uma obrigação legal do Estado por forma a originar um aumento das despesas previstas no Orçamento.»
c) O n.º 3 do artigo 7.º da lei é igualmente violador do n.º 2 do artigo 170.º da CRP, enquanto permite que a atribuição do subsídio de desemprego ou do subsídio social de desemprego retroaja à data da entrada em vigor do Decreto-Lei 20/85: nos termos desse preceito, os subsídios podem, na verdade, retroagir a essa data, «desde que tal seja requerido e a Inspecção-Geral do Trabalho reconheça o incumprimento da retribuição no período em causa».
d) Enquanto o n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 7-A/86 restringe o pagamento de quantias pelas instituições de segurança social até ao limite correspondente a seis meses de retribuição do trabalhador, a alínea b) do artigo 6.º da Lei 17/86 atribui subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego nos termos previstos pelo Decreto-Lei 20/85, «cujo normativo não refere um limite máximo para aquelas prestações».
2 - Observado o disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, ofereceu o Presidente da Assembleia da República um parecer da respectiva Auditoria Jurídica em que, não se contestando que a aplicação dos preceitos considerados institucionais pelo Primeiro-Ministro implica efectivamente um aumento das despesas previstas no Orçamento e aceitando-se que a proibição do n.º 2 do artigo 170.º da CRP abrange não só as iniciativas dos deputados ou grupos parlamentares que envolvam «directamente» aumento das despesas do Estado previstas no Orçamento como também as que aumentem essas despesas «por forma indirecta», se conclui, todavia, que as normas em questão não são inconstitucionais, mas apenas ineficazes durante o ano económico em curso.
Cumpre decidir.
3 - Verificando-se de há um tempo a esta parte a existência, em empresas em laboração, de trabalhadores com salários em atraso, tentou o Governo, através do Decreto-Lei 7-A/86, de 14 de Janeiro, pôr cobro a tal situação, que no próprio relatório do diploma é reconhecida como «jurídica, social e moralmente inaceitável». Para além de se interditarem às próprias empresas certos comportamentos, como, por exemplo, «distribuir lucros ou dividendos, pagar suprimentos e respectivos juros e amortizar quotas, sob qualquer forma» [artigo 2.º, n.º 1, alínea a)], concedeu-se ao trabalhador que se encontrasse nas condições previstas no n.º 1 do artigo 1.º - isto é, quando «as empresas deixem de pagar, total ou parcialmente, a retribuição devida aos trabalhadores, quando tiverem decorrido, pelo menos, 30 dias sobre a data do respectivo vencimento e o montante em dívida for igual ou superior à retribuição equivalente a um mês de trabalho» - o direito de rescindir unilateralmente o contrato de trabalho, mesmo sem culpa da entidade patronal (artigo 3.º), e ao trabalhador que, além dessas condições, satisfizesse a exigência prevista no artigo 6.º (antiguidade mínima de seis meses na empresa) o direito de optar pela suspensão unilateral do seu contrato (citado artigo 6.º). A rescisão conferia ao trabalhador o direito a uma indemnização (n.º 3 do artigo 3.º), que, a não ser paga pela empresa, podia ser exigida às instituições de segurança social, sendo o respectivo pagamento financiado por verbas do Fundo de Desemprego (artigo 5.º, n.os 1, 2 e 3); além disso, os trabalhadores que rescindissem os contratos nessas condições eram «equiparados a desempregados para efeitos de percepção do subsídio de desemprego ou do subsídio social de desemprego, nos termos da legislação aplicável» (artigo 4.º). Por seu lado, os trabalhadores com contratos de trabalho suspensos eram equiparados a desempregados para efeitos de percepção, durante seis meses, de subsídio de desemprego ou de subsídio social de desemprego, nos termos do Decreto-Lei 20/85, de 17 de Janeiro (n.º 4 do artigo 6.º). O recurso aos mecanismos descritos somente poderia verificar-se, segundo o disposto no artigo 7.º do diploma, durante os 90 dias seguintes à sua entrada em vigor (cuja data não foi objecto de fixação especial), mas esse prazo foi prorrogado por seis meses pelo artigo único do Decreto-Lei 89/86, de 8 de Maio.
Com o Decreto-Lei 7-A/86 impôs-se, assim, às instituições de segurança social o pagamento a trabalhadores com salários em atraso de indemnizações que em princípio eram da responsabilidade das empresas e, no que respeita à protecção social dos trabalhadores nessa situação, procedeu-se à sua equiparação a trabalhadores desempregados para efeitos de percepção do subsídio de desemprego e do subsídio social de desemprego (como se lê no preâmbulo do diploma).
A matéria dos salários em atraso veio, porém, a breve trecho, a constituir objecto de novo diploma - a Lei 17/86, de 14 de Junho.
E é a constitucionalidade de algumas das suas normas que vem posta em causa neste processo, à face precisamente do n.º 2 do artigo 170.º da CRP, segundo o qual «os deputados, os grupos parlamentares e as assembleias regionais não podem apresentar projectos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento».
Vejamos em primeiro lugar se essas normas, ou algumas delas, violam esse preceito constitucional.
3.1 - O n.º 1 do artigo 25.º impõe, como se disse, ao Fundo de Desemprego que assegure o pagamento das rendas em mora por parte dos trabalhadores com retribuições em atraso nas condições exigidas no artigo 24.º
Apesar de, nos termos do n.º 2 desse artigo, as rendas pagas serem «deduzidas em prestações adequadas na amortização dos créditos por salários em atraso que venha a ser efectuada», sempre é verdade que a obrigação imposta ao Fundo de Desemprego pelo n.º 1 pode envolver aumento da despesa do Estado prevista no Orçamento para o pagamento de salários em atraso, uma vez que a lei entrou em vigor quando já tinha sido apresentada a proposta de lei do Orçamento do Estado para 1986 (a proposta tem, como se disse, a data de 7 de Fevereiro) e até já tinha sido votada a Lei do Orçamento, ou seja, a Lei 9/86, de 30 de Abril. Certo é também que tal medida não constava da proposta de lei do Governo n.º 4/IV (salários em atraso), aprovada em Conselho de Ministros de 5 de Dezembro de 1985 (no Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 18, de 17 de Janeiro de 1986, a p. 573). Foi, sim, da iniciativa de deputados: projecto de lei 2/IV, de deputados do PCP, de 4 de Novembro de 1985 (no Diário citado, 2.ª série, n.º 2, de 13 de Novembro de 1985, a p. 14) - n.º 5 do respectivo preâmbulo -, e projecto de lei 10/IV, de deputados do mesmo Partido, também dessa data (no Diário referido, 2.ª série, n.º 2, a p. 36) - artigos 3.º a 7.º -; projecto de lei 70/IV, de deputados do PRD, de 10 de Dezembro de 1985 (no mesmo Diário, 2.ª série, n.º 14, de 15 de Dezembro de 1985) - artigos 39.º e 40.º
O n.º 1 do artigo 25.º da lei, conjugado com os artigos 24.º, 26.º e 27.º (na parte em que se referem ao pagamento pelo Fundo de Desemprego) e com o artigo 31.º (entrada em vigor), viola, pois, o n.º 2 do artigo 170.º da CRP.
3.2 - A seguir ao n.º 1 do artigo 25.º invocam-se como infringindo o n.º 2 do artigo 170.º da CRP as «disposições conjugadas do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 3.º, bem como da alínea b) do artigo 6.º, com o artigo 7.º», na medida em que por esses preceitos «é alargado o conceito de justa causa para rescisão unilateral do contrato de trabalho por parte do trabalhador - relevante para efeito de atribuição do subsídio de desemprego e do subsídio social de desemprego -, pelo que igualmente se alarga o âmbito de aplicação da legislação que regula esses subsídios, implicando, assim, um acréscimo das despesas a satisfazer pelo Estado já no corrente ano económico».
Já atrás [n.º 1, alínea b)] se expôs a argumentação desenvolvida no requerimento do Primeiro-Ministro, que assenta fundamentalmente na circunstância de, pelos artigos 25.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 372-A/75, e 2.º, n.º 1, alínea b), 3.º, n.os 1 e 2, e 29.º, todos do Decreto-Lei 20/85, só a «falta culposa» de pagamento pontual da retribuição constituir justa causa de resolução do contrato de trabalho por parte do trabalhador, quando, pela Lei 17/86, este pode rescindir o contrato «com justa causa» ou suspender a prestação de trabalho desde que se verifique uma «causa não imputável ao trabalhador», isto é, mesmo sem culpa da entidade patronal.
Mas, como também se acrescentou no local citado, o Primeiro-Ministro admitiu que «o Decreto-Lei 7-A/86, vigente à altura da aprovação da Lei do Orçamento, já previa sensivelmente a mesma coisa, pelo que as despesas não seriam aumentadas com este novo normativo».
Na verdade, no que respeita à culpa da entidade patronal - único ponto focado no requerimento do Primeiro-Ministro -, não houve alteração da Lei 17/86 em relação ao Decreto-Lei 7-A/86, pois este já permitia ao trabalhador que se encontrasse na situação prevista no n.º 1 do artigo 1.º rescindir unilateralmente o contrato de trabalho, «mesmo sem culpa da entidade patronal».
Simplesmente - acrescenta o requerente - «o recurso aos mecanismos previstos naquele decreto-lei [o Decreto-Lei 7-A/86], nos termos do seu artigo 7.º, só poderá verificar-se durante os 90 dias subsequentes à sua entrada em vigor, prazo este que veio a ser prorrogado pelo artigo único do Decreto-Lei 89/86, de 8 de Maio», e conclui: «logo, na parte que excede este prazo, a lei é contrária ao n.º 2 do artigo 170.º da CRP, uma vez que alarga o âmbito temporal de aplicação de uma obrigação legal do Estado por forma a originar um aumento das despesas previstas no Orçamento».
E aqui, diga-se desde já, tem razão o Primeiro-Ministro. Dispondo o artigo 7.º do Decreto-Lei 7-A/86, de 14 de Janeiro, que «o recurso aos mecanismos previstos nos artigos 3.º, 4.º, 5.º e 6.º somente poderá verificar-se durante os 90 dias seguintes à entrada em vigor do presente diploma», prazo este prorrogado por seis meses pelo artigo único do Decreto-Lei 89/86, de 8 de Maio, e não fixando a Lei 17/86 qualquer prazo para os trabalhadores rescindirem o contrato de trabalho ou suspenderem a prestação do trabalho com fundamento na falta de pagamento total ou parcial da retribuição devida, alargou-se «o âmbito temporal de aplicação de uma obrigação legal do Estado por forma a originar um aumento das despesas previstas no Orçamento». Mais concretamente: o direito de rescisão do contrato de trabalho ou de suspensão da prestação do trabalho por parte do trabalhador, que só podia ser exercido até 20 de Outubro de 1986, passou a poder ser exercido independentemente da observância de qualquer prazo.
Há, assim, violação do n.º 2 do artigo 170.º da CRP, já que as soluções consagradas na lei a este respeito vêm dos citados projectos de lei n.os 2/IV, de deputados do PCP (artigos 11.º, 14.º e 28.º), 38/IV, de deputados do PS (artigos 1.º a 5.º e 26.º) e 70/IV, de deputados do PRD (artigos 3.º a 5.º, 20.º a 24.º e 44.º).
3.3 - O n.º 3 do artigo 7.º da Lei 17/86 também envolve um aumento da despesa do Estado nesta matéria, ao permitir que a concessão do subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego, no caso de suspensão da prestação do trabalho, retroaja à data da entrada em vigor do Decreto-Lei 20/85, ou seja, a 1 de Fevereiro de 1985, uma vez que tais subsídios, à data em que foi elaborada a proposta do Orçamento para 1986, só eram devidos a partir da data da entrada em vigor do Decreto-Lei 7-A/86, isto é, a partir de 20 de Janeiro de 1986.
E como a norma vem do projecto de lei 38/IV, de deputados do PS, de Novembro de 1985 (no Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 3, de 15 de Novembro de 1985), artigo 5.º, n.º 3, há, assim, violação do n.º 2 do artigo 170.º da CRP.
3.4 - Quanto à alínea b) do artigo 6.º da Lei 17/86:
Diz-se, para sustentar a ofensa do n.º 2 do artigo 170.º da CRP, que essa norma atribui subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego, nos termos previstos no Decreto-Lei 20/85, «cujo normativo não refere um limite máximo para aquelas prestações», ao passo que o n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 7-A/86 «expressamente restringe o pagamento de quantias pelas instituições de segurança social até ao limite correspondente a seis meses de retribuição do trabalhador».
A verdade é que esses preceitos tratam de matérias diferentes. Como se referiu, o Decreto-Lei 7-A/86, ao facultar ao trabalhador que se encontrasse na situação prevista no n.º 1 do artigo 1.º a rescisão unilateral do contrato de trabalho, concedia-lhe o direito a uma indemnização (artigo 3.º) e equiparava-o a desempregado para efeitos de percepção de subsídio de desemprego ou do subsídio social de desemprego, nos termos da legislação aplicável (artigo 4.º). A indemnização poderia vir a ser paga pelas instituições de segurança social, sendo o respectivo financiamento feito por verbas do Fundo de Desemprego (n.º 1 do artigo 5.º). Para a quantia paga pelas instituições de segurança social a título de indemnização é que o n.º 2 do artigo 5.º estabelecia um máximo, correspondente a seis meses de retribuição do trabalhador, ficando, aliás, essas entidades sub-rogadas nos direitos deste sobre a empresa. O artigo 6.º da Lei 17/86 também contém o regime aplicável aos trabalhadores que optem pela rescisão unilateral com justa causa, concedendo-lhes, além do mais que aqui não interessa [alínea c)], uma indemnização e subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego. Mas a alínea b) nada tem a ver com a indemnização, que é fixada na alínea a); essa alínea b) refere-se, sim, ao subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego, sendo a propósito desses subsídios que se remete para o Decreto-Lei 20/85: «subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego», diz-se textualmente nesta alínea, «nos termos prescritos pelo Decreto-Lei 20/85, de 17 de Janeiro».
Nenhuma comparação se pode, pois, estabelecer entre o n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 7-A/86 e a alínea b) do artigo 6.º da Lei 17/86.
3.5 - Abrangido no pedido de declaração de inconstitucionalidade encontra-se também o artigo 23.º da lei, que manda suspender os processos de execução fiscal instaurados contra trabalhadores com retribuições em atraso.
Nenhum argumento específico se aduz nesse sentido no pedido do Primeiro-Ministro, apenas podendo aproveitar-se a invocação genérica de que as disposições arguidas de inconstitucionais envolvem um «claro e flagrante aumento de despesas» se comparadas com as resultantes da aplicação do Decreto-Lei 7-A/86.
E se não pode pensar-se na possibilidade de aumento de despesas para o Estado como consequência dessa medida, poderia dela derivar diminuição de receitas, também relevante para o efeito do n.º 2 do artigo 170.º da CRP.
Simplesmente, o citado artigo 23.º limita-se a reproduzir os n.os 1 e 2 do artigo 59.º da própria Lei 9/86 (Orçamento do Estado para 1986), o que liminarmente afasta a violação do citado preceito constitucional.
4 - Averiguado que algumas das normas sujeitas à apreciação deste Tribunal infringem o disposto na Constituição - concretamente o n.º 2 do seu artigo 170.º -, como classificar essa infracção e qual a respectiva consequência?
Sendo inconstitucionais, por força do n.º 1 do artigo 277.º da CRP, «as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados». terão essas normas de considerar-se como tais.
Trata-se de uma inconstitucionalidade por infracção de uma norma sobre o processo de formação das leis - precisamente o n.º 2 do artigo 170.º - e que, por isso mesmo, é qualificada na doutrina como inconstitucionalidade formal: neste sentido, v. g. o Prof. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, n.º 73, IV, 2.ª ed., 1983, e J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., parte IV, nota prévia, n.º 2.5.4, 2.ª ed., 1985.
Quanto ao efeito da inconstitucionalidade:
O n.º 1 do artigo 282.º da CRP limita-se a estabelecer o princípio de que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional e determina a repristinação das normas que ela eventualmente haja revogado.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. e vol. cits., nota II a esse artigo, ensinam a esse propósito:
Salvo decisão em contrário do TC, ao abrigo do n.º 4, a declaração da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de normas é equivalente, em geral, à declaração de nulidade das mesmas normas. As normas declaradas inconstitucionais ou ilegais não são apenas anuladas (mera anulabilidade); elas estão feridas de nulidade desde a sua entrada em vigor ou desde o momento em que se tornaram inconstitucionais (ou ilegais), se só se tornaram inconstitucionais (ou ilegais) posteriormente (efeitos «ex tunc»). A sentença do TC tem carácter declarativo e não constitutivo: declara a nulidade da norma; não anula constitutivamente a norma inconstitucional ou ilegal.
Acerca da proibição constante do n.º 2 do artigo 170.º, escrevem os mesmos autores (ob. e vol. cits., nota V a esse artigo) que ela «só vale para o ano económico em curso, implicando com o respectivo orçamento; nada impede a apresentação de projectos ou propostas de lei ou propostas de alteração que impliquem aumento de despesas ou dimiunição de receitas desde que elas só se verifiquem nos anos económicos subsequentes. O que sucederá é que os orçamentos posteriores deverão tomar em conta essas leis (cf. o artigo 108.º, n.º 2, segunda parte)». «A solução mais razoável», concluem os mesmos autores, «parece ser a de que a lei apenas permanece ineficaz durante a vigência do orçamento do ano económico em curso, visto que nada haveria de irregular se ela expressamente contivesse essa cláusula temporal.»
Não interessa discutir agora quais sejam, em geral, os efeitos da inconstitucionalidade. Uma coisa é certa: a violação do n.º 2 do artigo 170.º da CRP não pode conduzir à inaplicabilidade, para todo o sempre, da norma que infringe esse preceito. Isto porque ele só impede que os deputados apresentem projectos de lei que envolvam aumento de despesas no ano económico em curso. Por outras palavras: a apresentação de projectos de lei envolvendo aumento de despesas nos anos seguintes não é proibida.
Pensa-se, todavia, que para resolver a dificuldade não é necessário lançar mão da figura da ineficácia. Basta que se fale em inconstitucionalidade parcial (ratione temporis) para se poder concluir que as normas em questão só são inconstitucionais na medida em que são aplicáveis ao ano económico em curso.
5 - Pelo exposto, declara-se a inconstitucionalidade parcial das seguintes normas da Lei 17/86 - por violação do n.º 2 do artigo 170.º da CRP -, na medida em que elas se aplicam no ano económico em curso:
a) N.º 1 do artigo 25.º, conjugado com os artigos 24.º, 26.º e 27.º (na parte em que estes se referem ao pagamento pelo Fundo de Desemprego), e 31.º (entrada em vigor);
b) N.º 1 do artigo 3.º, artigo 6.º, alínea b), e artigo 7.º, enquanto aplicáveis para além do dia 20 de Outubro último;
c) N.º 3 do artigo 7.º
Tribunal Constitucional, 4 de Novembro de 1986. - Mário de Brito (relator) - Nunes de Almeida - Magalhães Godinho - Mário Afonso - Vital Moreira - Messias Bento - Monteiro Diniz - Martins da Fonseca - Cardoso da Costa (com a declaração anexa) - Raul Mateus (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) - Armando Manuel Marques Guedes.
Declaração de voto
Votei o acórdão, com reserva, a benefício de melhor estudo, de uma posição definitiva acerca da legitimidade da limitação ratione temporis da inconstitucionalidade das normas violadoras do artigo 170.º, n.º 2, da CRP.
Na verdade, não será em absoluto inquestionável que a sanção dessa violação haja de traduzir-se, na prática, unicamente na inaplicabilidade dessas normas durante o ano económico em curso. É bem certo que o preceito constitucional em causa e a latitude dos poderes em matéria financeira que dele advêm para o Parlamento e para os seus membros (em confronto com os que lhes eram, e noutros ordenamentos ainda são, deixados pelas tradicionais «normas» ou «leis travão») apontam fortemente nesse sentido, mas do mesmo preceito retira-se, de qualquer modo, uma ideia de «contenção» dos parlamentares, em matéria de decisões com repercussão no domínio financeiro, a qual, se mais rigidamente aplicada, bem poderia porventura comportar um resultado diverso (considerando, nomeadamente, que o «tempo» em que tais decisões são adoptadas, isto é, a sua «oportunidade» ou «inoportunidade», não será de todo indiferente sob esse ponto de vista). - Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Declarou-se a inconstitucionalidade parcial da norma do n.º 1 do artigo 25.º da Lei 17/86, conjugado com as normas dos artigos 24.º, 26.º e 27.º do mesmo diploma (na parte em que estes se referem ao pagamento pelo Fundo de Desemprego) - na medida em que elas se aplicam no ano económico em curso - por violação do n.º 2 do artigo 170.º da CRP.
Votei, porém, por esses mesmos motivos e com aquela limitação temporal, que se tivesse declarado antes e directamente a inconstitucionalidade das normas dos artigos 25.º, 26.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, da Lei 17/86 (por confronto com o artigo 170.º, n.º 2, da CRP) e consequencialmente (o sistema de suspensão de execuções de sentenças de despejo, por completo desequilibrado com a inconstitucionalização das normas dos artigos 25.º, 26.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, já não poderia, em boa lógica, subsistir) a inconstitucionalidade ainda das normas dos artigos 24.º, 26.º, n.º 2, e 27.º, n.º 2, da lei 17/86.
Este o único ponto de divergência em relação ao acórdão a que anexo esta declaração de voto. - Raul Mateus.