Assento 9/99
Processo 992/98. - Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
No recurso penal n.º 964/97 do Tribunal da Relação de Coimbra, os arguidos Madalena Ferreira, Francisco Carvalho e Gabriel Correia interpuseram recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão de fl. 560 a fl. 562, nos termos do artigo 437.º, n.os 2 e 3, do Código de Processo Penal.
Porquanto aquele acórdão mostra-se em oposição com o Acórdão da Relação de Évora de 27 de Abril de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, t. 2, p. 228, segundo o qual a natureza urgente dos processos de abuso de liberdade de imprensa não implica correrem em férias, mas sim, inicialmente, serem reduzidos a metade os respectivos prazos processuais.
No acórdão proferido entendeu-se correrem em férias esses mesmos prazos e, nomeadamente, o de interposição do recurso.
Os assistentes João Bento Raimundo e Maria Dulce Coelho Pires Morgado Raimundo foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 439.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, entendendo e concluindo que «a jurisprudência deve ser fixada nos exactos termos do Acórdão de 21 de Janeiro de 1998 do Tribunal da Relação de Coimbra».
Neste Supremo Tribunal, por Acórdão de 6 de Maio de 1999, apreciando o acórdão, decidiu-se que:
Entre os acórdãos impugnado e fundamento existe, efectivamente, oposição de julgados nos termos apontados pelos recorrentes; isto é,
No domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão de direito o Tribunal da Relação de Coimbra, em 21 de Janeiro de 1998, entendeu que o carácter urgente que é atribuído pelo artigo 52.º da Lei de Imprensa, na versão introduzida pelo Decreto-Lei 377/88, de 24 de Outubro, aos processos por crimes contra a liberdade de imprensa impõe um fundamento idêntico aos processos contra arguidos presos, correndo, consequentemente, em férias;
Enquanto o Acórdão fundamento da Relação de Évora de 27 de Abril de 1993 considera que aquele preceito apenas impõe a redução a metade dos prazos previstos no Código de Processo Penal, não determinando a aplicação do regime previsto para os arguidos presos e consequentemente o decurso processual em férias;
Além de que não era admissível recurso ordinário do acórdão impugnado.
Porque este julgou existente a mencionada contradição.
O recurso prosseguiu, tendo os sujeitos processuais interessados apresentado as respectivas alegações, que concluíram assim:
I - 1 - Com a revogação da Lei 15/95, de 25 de Maio, revoga-se expressamente também a norma que impunha que se assumem em férias judiciais os processos de crime de imprensa; o único resultado legítimo dessa revogação é que o legislador não quis mais que corressem em férias os referidos processos, entendimento este reforçado com a aprovação da nova Lei de Imprensa (Lei 2/98, de 13 de Janeiro).
2 - A antiga Lei de Imprensa, no seu artigo 52.º, prevê um processo urgente de características próprias, que implica, apenas, serem reduzidos a metade os seus prazos.
3 - O artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, expressamente prevê que se mantenha em vigor, para efeitos de remissão gerada pelo n.º 1 do artigo 104.º do Código de Processo Penal, o disposto no artigo 144.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à do referido Decreto-Lei 329-A/95, nada justificando a excepção a esta regra que o douto acórdão impugnado adoptou.
4 - O Código de Processo Penal prevê expressa e tacitamente no seu artigo 103.º, n.º 2, quais os processos que devem correr em férias judiciais, não havendo por isso qualquer razão para ampliar esse elenco com o recurso do processo civil nem qualquer lacuna a integra.
5 - À data da prolação da sentença em 1.ª instância não corriam prazos em férias quando tal pudesse redundar em prejuízo para a defesa (artigo 104.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, redacção do Decreto-Lei 317/95, de 28 de Novembro) - o que era manifestamente o caso.
6 - Uma vez que a antiga Lei de Imprensa é uma lei especial, não admite interpretação por analogia.
7 - O acórdão impugnado viola, entre outras normas, o disposto no artigo 52.º da antiga Lei de Imprensa, os artigos 103.º e 104.º do Código de Processo Penal (na sua actual redacção e na redacção do Decreto-Lei 317/95, de 28 de Novembro), o artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, e o artigo 32.º do Código de Processo Penal.
8 - Termos em que deverá fixar-se jurisprudência sobre a questão objecto do recurso no sentido do acórdão do Tribunal da Relação de Évora e anular-se o acórdão impugnado.
II - Os recorridos João Bento Raimundo e Marília Dulce Coelho Pires Morgado Raimundo concluíram, dizendo:
«1 - O Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 21 de Janeiro de 1998, consagrou a tese que, 'tratando-se de processo urgente, o prazo de interposição de recurso não se suspendeu nas férias e, tratando-se, como se trata, de um prazo peremptório, o seu decurso extinguiu o direito de praticar o acto (artigo 195.º, n.º 3, do Código de Processo Civil)'.
Assim, o entendimento já expendido no Acórdão de 5 de Fevereiro de 1997, no recurso n.º 888/96, e em que já se referia que a questão da sua apreciação só podia polemizar-se em relação ao momento do recurso, ali interposto, 'pois que o artigo 144.º do actual Código de Processo Civil aplicável ao processo penal, ex vi do artigo 4.º do respectivo Código, vem normativizar a regra de que, nos processos urgentes, não existe suspensão nas férias judiciais'.
2 - 'A questão a colocar é a de saber se, na interpretação do referido artigo 52.º da Lei de Imprensa, na altura da interposição do recurso, é justificada a criação de um conceito bipolar de processo urgente em que um dos significados seria a não suspensão durante as férias e o outro seria o de significar, apenas, a redução dos respectivos prazos para metade nos termos do n.º 2 daquele artigo 52.º'
3 - '[...] na análise literal do n.º 1 do artigo 52.º supracitado haverá que considerar que o seu n.º 1, ao afirmar que, mesmo que não haja arguidos presos, o processo tem natureza urgente, parece enaltecer a ideia de que o atributo do processo urgente que tem em vista é o típico do dos processos de arguidos presos.
[...] em princípio não haveria lugar à suspensão nas férias judiciais - artigo 103.º do Código de Processo Civil.'
4 - 'Porém, não estará tal conclusão prejudicada pelo facto de o referido artigo 52.º vir expressamente definir em que consiste a natureza urgente do processo de crime de imprensa, ou será que neste tipo de processos o legislador pretendeu criar uma celeridade ainda maior do que nos processos de detidos?
A resposta encontramo-la no n.º 3 do normativo em causa quando vem cominar os prazos de dois meses para o inquérito e de um mês para a instrução do processo de imprensa.
Tais prazos são manifestamente inferiores aos de três meses e de dois meses que os artigos 276.º e 3.º e 6.º criam em situações similares relativamente aos arguidos detidos.'
5 - Parece legítimo concluir que o legislador pretendeu imprimir tal especial celeridade aos processos de imprensa, mesmo em relação aos processos de arguidos detidos.
6 - É fora de dúvida que o legislador quis imprimir celeridade excepcional aos processos por crimes de imprensa.
Foi por isso que no artigo 52.º do Decreto-Lei 85-C/75 prescreveu que 'os processos por crime de imprensa terão natureza urgente, ainda que não haja réus presos'.
7 - É ainda clara a asserção de que os processos por crime de abuso de liberdade de imprensa têm natureza urgente, correndo em férias mesmo que o arguido não esteja preso, encontrando apoio no artigo 52.º, n.º 2, da referida Lei.
'[...] a chamada Lei de Imprensa está de tal forma impregnada de preocupação de brevidade que vai ao ponto de, em assunto de melindre como é o de rejeitar um recurso, ou de tanto trabalho como por vezes são os actos de secretária, surpreendentemente fixar o prazo de vinte e quatro horas [...]'
8 - Entende-se, assim, dever ser fixada jurisprudência no sentido partilhado no acórdão recorrido e, portanto, com sentido de que correm em férias os prazos processuais nos processos de crimes por abuso de liberdade de imprensa.»
III - Finalmente, alegou o Ministério Público, que, em síntese, concluiu:
«1 - A tese do acórdão recorrido tem, notoriamente, maior apoio, quer da letra da lei quer do espírito desta.
2 - A alteração introduzida no artigo 52.º do Decreto-Lei 377/88 baseou-se na intenção de reforçar a urgência.
3 - É clara a intenção do legislador em que as férias não suspendem a marcha processual. Solução que tem justificação, tendo em conta a natureza dos valores protegidos pelo ilícito em causa.
4 - O acórdão recorrido deve manter-se, fixando-se jurisprudência que considere que 'os prazos processuais nos processos de abuso de liberdade de imprensa, no domínio do Decreto-Lei 85-C/75, de 26 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 377/88, de 24 de Outubro, não se suspendem em férias'.»
Cumprido o disposto no artigo 442.º, n.º 3, parte final, do Código de Processo Penal, vieram os autos à conferência para julgamento.
A questão de fundo do presente recurso consiste em saber se os prazos processuais nos processos de abuso de liberdade de imprensa, no domínio do Decreto-Lei 85-C/75, de 26 de Fevereiro, com as alterações do Decreto-Lei 377/88, de 24 de Outubro, se suspendem, ou não, em férias.
No Acórdão da Relação de Coimbra de 21 de Janeiro de 1998, recorrido, decidiu-se que, tratando-se de processo urgente, como se trata, o prazo de interposição de recurso não se suspende nas férias e o seu decurso extinguiu o direito de praticar o acto.
Por sua vez, no Acórdão da Relação de Évora de 27 de Abril de 1993, fundamento, decidiu-se que a natureza urgente destes processos implica a redução dos prazos processuais em metade, mas não que lhe seja aplicado o regime dos arguidos presos ou dos actos indispensáveis à garantia de liberdade das pessoas, constante da alínea a) do n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal.
Por isso, anteriormente, foi verificado que sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação foram adoptadas soluções opostas, ocorrendo os pressupostos para a fixação de jurisprudência.
É determinante para a resolução desta questão considerar os termos em que se encontra redigido o artigo 52.º do Decreto-Lei 85-C/75, de 26 de Fevereiro, que foi o primeiro diploma a regular a matéria relativa à imprensa.
Dispõe, então, o referido artigo 52.º:
«Os processos por crime de imprensa, mesmo que não haja réus presos, terão natureza urgente, com prioridade sobre todos os demais processos, ainda que urgentes.»
Mas, novo diploma, o Decreto-Lei 181/76, de 9 de Março, veio introduzir as primeiras alterações àquele dispositivo, passando aquele artigo 52.º a ter a redacção seguinte:
«1 - Os processos por crimes de imprensa terão natureza urgente, ainda que não haja réus presos, não havendo lugar a instrução contraditória.
2 - Os prazos para despachos, termos e mandados são os previstos na legislação processual penal para processos com réus presos.
3 - Concluído o inquérito ou a instrução, os autos serão remetidos directamente ao tribunal competente para julgamento.»
Daqui se infere que o legislador sentiu necessidade de assegurar, ainda mais, a celeridade processual já consagrada no primitivo diploma sobre a matéria, estabelecendo, agora, explicitamente a equiparação entre os processos por crime de abuso de liberdade de imprensa e os de arguidos presos no que respeita a prazos.
Após a entrada em vigor do Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o novo Código de Processo Penal, introduziram-se alterações à Lei de Imprensa, publicando-se o Decreto-Lei 377/88, de 24 de Outubro, referindo-se na respectiva proposta de lei, particularmente no respeitante ao objectivo da celeridade processual, que a alteração do artigo 52.º se justificara por razões de adaptação à terminologia da nova lei processual penal, acrescentando-se que essas adaptações ocorreriam sem prejuízo do estabelecimento do encurtamento dos prazos normais da lei geral, assim se honrando em termos razoáveis «o particular interesse da celeridade processual».
Assim, passou o artigo 52.º da Lei de Imprensa a ter a redacção seguinte:
«1 - Os processos por crimes de imprensa têm natureza urgente, ainda que não haja arguidos presos.
2 - A natureza urgente dos processos por crimes de imprensa implica redução a metade de qualquer prazo previsto no Código de Processo Penal, salvo se este for de vinte e quatro horas, sem prejuízo da execução imediata de ordens, despacho ou diligência quando a lei ou a autoridade competente assim o determinarem.
3 - Os prazos serão, no entanto, de dois meses para o inquérito e de um mês para a instrução, caso seja requerida.»
E o Tribunal Constitucional, no Acórdão 393/95, de 27 de Junho (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol., p. 615), interpretando aquele artigo, refere que «na prática o que se teve em vista foi a manutenção de regime idêntico ao dos réus presos (v. artigo 52.º, n.º 1), para efeitos de os processos correrem em férias, e a manutenção da redução a metade dos prazos nos tribunais superiores».
Posteriormente a Lei de Imprensa veio a sofrer novas alterações através da Lei 15/95, de 25 de Maio, da Lei 8/96, de 14 de Março, e, por último, da Lei 2/99, de 13 de Janeiro, mantendo-se, no essencial, nomeadamente com esta nova Lei de Imprensa, os princípios relativos à celeridade processual.
Para além do acórdão do Tribunal Constitucional citado no referido acórdão recorrido, devem salientar-se:
O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 1 de Abril de 1992, processo 40619/91;
O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de Janeiro de 1993, processo 50273/93;
O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de Fevereiro de 1997, processo 888/96; e
O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Maio de 1998, processo 25585.
No que respeita à doutrina sobre a matéria subjacente à questão suscitada, ou seja, sobre os específicos critérios de celeridade processual na área de liberdade de imprensa, encontra-se na obra A Lei de Imprensa Comentada e Anotada, de José Manuel Valentim Peixe e Paulo Silva Fernandes, a seguinte interessante referência (p. 329 da citada obra):
«Mas, quais as razões que assistem à adopção ou abolição da celeridade?
Como é consabido, o crime de abuso de liberdade de imprensa, ao ser praticado através do meio que é, não se limita aos efeitos restritos que o mesmo crime alcança quando cometido normalmente.»
E «quanto mais rapidamente for apurada a verdade, quanto mais rapidamente for detectada a decisão, numa palavra, quanto mais proximamente do momento em que é difundida a matéria inicial, maior é o efeito útil de tal protesto.
Mas, mesmo na óptica do autor da notícia, quanto mais rapidamente for provada a verdade da mesma (ou, pelo menos, não for contrariada), mais eficácia tem a mesma e maior credibilidade tem.
Estas as razões que justificam a celeridade.»
Nesta conformidade e por tudo quando expendido fica, se acolhe o parecer do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal quando afirma:
«É, pois, clara a intenção do legislador em que as férias não suspendem a marcha processual. Solução que tem justificação, tendo em conta a natureza dos valores protegidos pelo ilícito em causa. Na verdade, a liberdade de imprensa, instituição essencial da democracia, tem necessariamente como limite os valores protagonizados pelos direitos fundamentais, nomeadamente os direitos ao bom nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, valores estes que mantêm uma dialéctica conflitual com o direito de informar.»
Face ao exposto, acorda-se em:
1) Confirmar o acórdão recorrido;
2) Uniformizar a jurisprudência no sentido que:
«Os prazos processuais nos processos de abuso de liberdade de imprensa, no domínio do Decreto-Lei 85-C/75, de 26 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 377/88, de 24 de Outubro, não se suspendem em férias.»
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 8 UC.
Lisboa, 4 de Novembro de 1999. - Álvaro José Guimarães Dias - António Gomes Lourenço Martins - Virgílio António da Fonseca Oliveira - Sebastião Duarte de Vasconcelos da Costa Pereira - António Abranches Martins - António Sousa Guedes - José Pereira Dias Girão - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira - Armando Acácio Gomes Leandro - Emanuel Leonardo Dias - José Damião Mariano Pereira - João Henrique Martins Ramires - Luís Flores Ribeiro - Norberto José Araújo de Brito Câmara - António Luís de Sequeira Oliveira Guimarães - Dionísio Manuel Dinis Alves - Hugo Afonso dos Santos Lopes.