Acórdão 2/98
Processo 87158. - Acordam os juízes em plenário de secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:
1 - Relatório
Hermenegildo de Campos Curvelo interpôs o presente recurso para o tribunal pleno do Acórdão deste Supremo datado de 3 de Novembro de 1993, proferido no processo 84441 da 1.ª Secção, por ter adoptado posição oposta ao Acórdão do mesmo Tribunal de 14 de Novembro de 1958, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 81, p. 441, relativamente à mesma questão de direito, sendo certo, segundo alega, que esta é que seria a solução legal.
Pretende, assim, que seja revogado o acórdão sob recurso, para que a recorrida seja obrigada a fazer a entrega dos documentos em seu poder, necessários a um exame pericial.
Esclareça-se que o acórdão recorrido respeita a uma acção declarativa de condenação proposta pelo ora recorrente Hermenegildo contra Alberto Gonçalves dos Santos Vasco e mulher, réu que celebrara com ele um contrato de sociedade para a execução de uma empreitada, contrato que o dito réu não teria cumprido por não ter entregue àquele a parte que lhe era devida nos lucros finais da sociedade.
Na fase de instrução, e depois de os réus se terem comprometido a apresentar documentos relativos a essa empreitada, o que, após vários protelamentos, nunca cumpriram - em exame ordenado à escrita dos réus, não tendo os peritos encontrado ou tido acesso a esses documentos -, foi ordenada a uma sociedade de que eles eram sócios, a Alberto Vasco, Lda., que era terceira e na posse de quem estariam esses documentos, que intregasse a escrita relativa à referida empreitada.
Notificada a sociedade, veio esta até ao Supremo a sustentar no processo que não estava obrigada a tal, fundamentalmente porque nem era parte nem tinha interesse ou responsabilidade na questão em debate.
O acórdão recorrido aceitou esta posição, ou seja, que tal obrigação não podia ser exigida da sociedade que não era parte, mas terceiro, e não tinha interesse ou responsabilidade na questão, pelo que não podia ser obrigada a entregar a escrita relativa à referida empreitada, posição divergente da do acórdão fundamento.
Depois de reconhecida a existência de oposição por acórdão da Secção, veio o recorrente apresentar as suas alegações, que finalizou pelas seguintes considerações:
I) O artigo 519.º do Código de Processo Civil estabelece o dever geral de cooperação activa nos tribunais, com vista à melhor e mais perfeita administração da justiça, concretizada no princípio da verdade material;
II) Há que aplicar, assim, o dito artigo 519.º em toda a sua amplitude, sem restrições que não sejam impostas pelo Código de Processo Civil, a fim da realização cabal da função judiciária do Estado;
III) É, pois, de conjugar o disposto no artigo 519.º do Código de Processo Civil com o artigo 43.º do Código Comercial, lícito sendo ao juiz da causa ordenar qualquer exame dos livros e documentação dos comerciantes quando os mesmos tenham dado azo a tal diligência, sejam responsáveis por qualquer acto que a imponha, ainda quando tal diligência seja imprescindível para a descoberta da verdade e ainda quando o comerciante recusa somente a entrega;
IV) O juiz da causa pode sempre e em qualquer caso ordenar a entrega de documentos ou exame dos mesmos, mesmo que em poder do comerciante, incorporados ou não na sua escrita, desde que este não prove que tais documentos lhe pertencem.
A recorrida Alberto Vasco, Lda., apoiou o acórdão recorrido.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público neste Tribunal proferiu douto parecer acerca do conflito, sustentando a confirmação do acórdão recorrido e que se deve uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos: «O artigo 43.º do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 524.º do Código de Processo Civil de 1939 nem pelo artigo 519.º do Código de Processo Civil de 1961.»
2 - Questão prévia
O artigo 3.º do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, revogou o recurso para o tribunal pleno.
Relativamente, porém, aos recursos já intentados, como este, determinam os n.os 2 e 3 do artigo 17.º do mesmo decreto-lei que o seu objecto se circunscreve à resolução em concreto do conflito, com os efeitos decorrentes dos acórdãos que regulam o julgamento ampliado do recurso de revista a que se referem os artigos 732.º-A e 732.º-B da actual lei processual civil, para uniformização da jurisprudência.
Nesta conformidade se decidirá.
3 - A oposição
A necessidade de uniformização pressupõe a existência de oposição de um acórdão com jurisprudência anteriormente firmada no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
Estar-se-á, no caso concreto, perante uma oposição de acórdãos com tais características?
O cerne da questão constante do acórdão recorrido consistia em saber se uma sociedade comercial que não era parte no processo em que se discutia a partilha de lucros relativos a outra sociedade que fora constituída por autor e réu para a execução de uma empreitada (e não teria eventualmente interesse ou responsabilidade nela) poderia ser obrigada judicialmente a apresentar os documentos dessa empreitada, constantes da sua escrita, para exame - que recebeu resposta negativa, ao abrigo dos artigos 41.º, 42.º e 43.º do Código Comercial e a despeito do artigo 519.º do Código de Processo Civil de 1961 (acórdãos de fl. 7 a fl. 16).
Já no acórdão fundamento foi decidido positivamente no sentido de que podia ser ordenado o exame à escrita de uma sociedade comercial que não era parte na acção nem tinha interesse ou responsabilidade na questão, porque devia considerar-se revogado o artigo 43.º do Código Comercial, face ao disposto no artigo 524.º do Código de Processo Civil de 1939 (acórdão a fl. 24).
O conflito patenteia-se se se observar que, na essência, se entendeu no acórdão fundamento que o artigo 43.º do Código Comercial fora revogado pelo artigo 524.º do Código de Processo Civil de 1939 (aprovado pelo Decreto-Lei 29637, de 28 de Maio), enquanto se decidiu no acórdão recorrido que esse artigo 43.º não fora revogado pelo artigo 519.º, n.º 1, na versão de 1967 (do Decreto-Lei 47690, de 11 de Maio), e que originalmente era o artigo 520.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961 (aprovado pelo Decreto-Lei 44129, de 28 de Dezembro), sendo certo que as disposições processuais citadas contêm, no que toca ao problema, idêntica norma jurídica.
Com efeito, dispunha, na parte que ora interessa, aquele artigo 524.º: «Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua cooperação para a descoberta da verdade e a boa administração da justiça, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções que forem julgadas necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.»
O artigo 519.º, n.º 1, passou a dispor: «Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.»
Existe, pois, oposição relevante.
4 - Fundamentos Está em causa saber se uma sociedade comercial que não é parte e não se mostra que tenha interesse ou responsabilidade na questão em debate pode ser obrigada a exibir, para exame, em processo civil, os seus livros e documentos.
A existência do segredo profissional, em geral, apresenta-se como necessária, se se quiser a manutenção de um mínimo de segurança por parte dos profissionais e daqueles com quem eles entram em relação que permita consolidar a confiança que deve existir no funcionamento do respectivo sector de actividade e na sociedade.
Embora haja profissões mais exigentes do que outras na discrição ou reserva que impõem - haja em vista, no campo comercial, os bancos e as seguradoras -, o comércio, em geral, não pode constituir excepção, entendendo-se que os comerciantes e seus clientes devem ver protegidos pelo segredo determinados objectos e actuações.
Com este segredo procura-se proteger «a privacidade do comerciante de afastar os seus bens da cobiça alheia e de evitar que a sua actividade seja afectada por informações sobre a sua situação e as prespectivas do negócio» (L. Brito Correia, Direito Comercial, I, p. 309).
A matéria relativa ao segredo da escrituração mercantil e documentos dos comerciantes encontra-se prevista nos artigos 41.º, 42.º e 43.º do Código Comercial, donde resulta que o primeiro proíbe o varejo para exame da arrumação da escrita, o segundo limita a casos restritos a exibição judicial por inteiro dos livros e documentos e o terceiro estabelece as condições em que se pode proceder a exame dos livros e documentos dos comerciantes.
Em face destes preceitos, Mário de Figueiredo, in Lições de Direito Comercial, 1928, p. 180, sinteticamente, sustentava que a escrituração mercantil era secreta, só podendo ser ordenada a exibição por inteiro ou a apresentação parcial em favor de interessados.
Dispõe, com efeito, e no que ora interessa, isto é, na chamada «apresentação, ou exame judicial limitado», o corpo desse último artigo: «Fora dos casos previstos no artigo precedente [casos limitados em que é permitida a exibição por inteiro dos livros e documentos], só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte ou de ofício, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.»
O que quer dizer que, segundo o artigo 43.º do Código Comercial, o exame é permitido apenas quando a pessoa a quem pertençam tais elementos tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.
E não é necessário que o apresentante seja parte no processo, podendo ser terceiro estranho a ele (cf. Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, 2.ª ed., I, p. 563, e Abel Delgado, «O carácter secreto da escrituração comercial», R. D. E. S., ano XVII, n.os 2-3-4, p. 105).
Tem sido discutido o fundamento jurídico da obrigação de apresentação de livros e documentos. Ora se fala em que os lançamentos são coisa comum a todas as partes, ora que a função própria dos registos se destina a reconstituir em qualquer momento os factos em que se desenvolve a exploração mercantil do comerciante, o que explicaria que a escrita ficasse ao alcance de todos os interessados como um meio de prova organizado por lei (Pinto Furtado, Disposições Gerais do Código Comercial, p. 114).
Mas não pode esquecer-se que essa obrigação radica no próprio fundamento que justifica o sigilo profissional, que é procurado por uns, numa teoria contratualista, embora implícita, de defesa dos interesses recíprocos do comerciante e do cliente, por outros, no reconhecimento de que todo o sujeito jurídico tem o direito de preservar a sua vida privada, e, por outros ainda, na existência de um dever profissional legalmente imposto. Como quer que seja, o direito ao segredo deve ceder perante um interesse público superior, e é na problemática desta fronteira ou limite que a questão se põe.
E assim, face a um potencial conflito de interesses, por um lado, o do segredo comercial e, por outro, o do dever geral de colaboração com a administração da justiça, o que se procura averiguar nestes autos é a extensão que a lei, afinal, confere a esse sigilo profissional.
O acórdão fundamento, ao considerar revogado o citado artigo 43.º pelo artigo 524.º da lei processual de 1939 (que corresponde ao n.º 1 do artigo 519.º de 1961, na versão de 1967), entendeu que ele eliminara as restrições que o Código Comercial estabelecia à apresentação judicial dos livros e documentos. Assim, ao juiz teria passado a ser lícito ordenar qualquer exame dos livros e documentos dos comerciantes, independentemente da circunstância de estes terem interesse ou responsabilidade na questão em litígio.
O acórdão fundamento firma a sua posição, essencialmente, em que se está perante uma norma de instrução do processo que obriga todas as pessoas a prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, sejam ou não partes na causa, sendo certo que no mesmo lugar se deixou expressamente ressalvado o que já se encontrava disposto quanto à exibição judicial por inteiro dos livros e documentos dos comerciantes. Esta norma estabeleceria um dever geral de cooperação activa para melhor e mais perfeita administração da justiça, que radicava no artigo 28.º da Constituição Política (de 1933), que impunha a todos os cidadãos a obrigação de prestar ao Estado cooperação e serviços em harmonia com as leis.
Trata-se de uma posição que ficou isolada e que o artigo a que se encosta, da Constituição vigente ao tempo, nem favorece, já que ele subordina tal dever de cooperação às leis.
Tanto a doutrina como a jurisprudência têm pacificamente entendido que o artigo 43.º se mantém em vigor, quando restringe a exibição dos livros e documentos a questões em que tenha interesse ou responsabilidade a pessoa a quem eles pertençam.
Esta interpretação é a que se afigura correcta.
Com efeito, desde logo é de observar que o artigo 519.º, que no n.º 1 impõe o dever de cooperação para a descoberta da verdade, logo ressalva, no n.º 3, da sua aplicação, expressamente, os casos em que a recusa será legítima se importar, além de outros motivos, violação do sigilo profissional.
Por outro lado, a norma do artigo 554.º, § 4, do Código de Processo Civil de 1939, que passou ao artigo 550.º, n.º 4, na versão original do de 1961 e culminou no artigo 534.º após a revisão de 1967, compreendida na secção II, relativa à prova por documentos, do capítulo III, sobre a instrução do processo, estabelece que as normas adjectivas referidas nesta secção não são aplicáveis aos livros de escrituração comercial nem aos documentos a ela relativos.
Tudo inculca, pois, que estas normas processuais não permitem postergar o desejado grau de confiança e a correspondente garantia nas transacções comerciais, que conferem as aludidas regras substantivas da reserva na exibição dos livros e documentos.
Na doutrina podem consultar-se, neste sentido, entre outros, Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, XIII, p. 559, J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Explicado, p. 354, e Código de Processo Civil Anotado, III, p. 330, e IV, p. 49, J. G. Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, I, 2.ª ed., p. 559, Revista dos Tribunais, ano 77.º, p. 61, criticando o acórdão fundamento, e ano 81.º, p. 188, reafirmando a mesma posição, Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2.ª ed., pp. 354 e segs., que critica igualmente o acórdão fundamento, e Pinto Furtado, Disposições Gerais do Código Comercial, p. 119.
Na jurisprudência, basta referenciar as seguintes decisões mais recentes no mesmo sentido: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1963, 5 de Junho de 1970, 23 de Outubro de 1991 e 15 de Junho de 1993, respectivamente no Boletim do Ministério da Justiça, 123.º, p. 578, 198.º, p. 156, 410.º, p. 649, e 428.º, p. 607, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1993, na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, t. III, p. 55, além, como é evidente, do acórdão recorrido.
Anote-se, finalmente, que a lei processual civil agora saída do Decreto-Lei 329-A/95 e do Decreto-Lei 180/96, no mesmo artigo 519.º regula em termos mais cuidados e exaustivos a conciliação entre o dever de cooperação e o dever de sigilo, que deverão ser compatibilizados, em última análise, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante.
5 - Decisão
Em face do exposto:
a) Nega-se provimento ao recurso, condenando-se o recorrente nas custas;
b) E, para uniformização de jurisprudência, decide-se:
O artigo 43.º do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 519.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, de modo que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.
Lisboa, 22 de Abril de 1997. - Ramiro Vidigal Miranda Gusmão - Martins da Costa - Machado Soares - Costa Soares - Pais de Sousa (com a declaração de que votei a decisão pressupondo que os documentos em causa não são apenas detidos pela sociedade Alberto Vasco, Lda.) - Mário Cancela - Aragão Seia - Sampaio da Nóvoa - Costa Marques - Cardona Ferreira (com a declaração de que pressuponho o não esclarecimento de que os documentos dos réus estão em posse de terceiro) - Herculano de Lima - Fernandes Magalhães (no pressuposto de que os documentos dos réus estão na posse de terceiro) - Sousa Inês (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro César Marques, que acompanho) - Lopes Pinto - Pereira da Graça (aderi à declaração do conselheiro Figueiredo de Sousa) - César Marques (vencido. Não há oposição entre os acórdãos. Os documentos estão apenas na posse de Alberto Vasco, Lda., e a entrega da escrita não diz respeito a esta última sociedade. Por isso, nos termos do artigo 519.º, n.º 1, do Código Civil, devia facultá-los para exame, e o corpo do artigo 43.º do Código Comercial não é aplicável) - Nascimento Costa (subscrevo a declaração anterior) - Almeida e Silva (vencido nos termos da douta declaração de voto do Exmo. Juiz Conselheiro Dr. César Marques) - Tomé de Carvalho - Ribeiro Coelho - Silva Paixão - Torres Paulo - Figueiredo de Sousa (votei a decisão no pressuposto de que os documentos em causa integram a escrita da sociedade notificada) - Fernando Fabião (vencido nos termos da declaração de voto do conselheiro César Marques) - Roger Lopes (com a declaração do Exmo. Colega Pais de Sousa).