Assento 6/95
N.º 81043 - 1.ª Secção
Acordam em tribunal pleno do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1 - O Exmo. Magistrado do Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 776.º e 764.º do Código de Processo Civil, interpôs recurso para o tribunal pleno do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Junho de 1988 proferido no processo de regulação do poder paternal n.º 8-A/84 do Tribunal Judicial de Viana do Castelo (recurso n.º 21837 daquela Relação, sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 378, p. 783), com o fundamento de tal aresto estar em oposição com o Acórdão do mesmo Tribunal da Relação de 28 de Janeiro de 1988 proferido no processo de regulação do poder paternal n.º 99-A/88 (recurso n.º 22729 daquela Relação) também do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, encontrando-se este acórdão publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XIII, t. I, p. 201.
Segundo o ilustre magistrado, a oposição reside no facto de, no primeiro aresto, se ter decidido que, pedindo o Ministério Público, em acção para nova regulação do poder paternal, apenas a alteração da prestação alimentícia a cargo de um dos progenitores fixada em anterior acção de alimentos, o outro progenitor é parte ilegítima, enquanto, no segundo, em idêntica situação, se decidiu em sentido contrário, por haver um litisconsórcio necessário passivo.
2 - Seguiu o processo os seus termos regulares.
A fls. 38 e seguintes, decidiu-se, por Acórdão de 12 de Maio de 1992, na questão preliminar, que havia oposição entre dois acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito, tendo ambos os acórdãos sido proferidos no domínio da mesma legislação, já que, durante o intervalo da sua prolação, não ocorreu qualquer modificação legislativa que interferisse, directa ou indirectamente, na questão de direito controvertida, sendo em ambos os acórdãos idêntica a situação de facto, já que o menor estava confiado aos cuidados da mãe e o devedor dos alimentos era o pai.
3 - A fls. 42 e seguintes encontram-se juntas as alegações do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, nas quais se conclui com a proposta da formulação do assento a proferir.
O recorrido não contra-alegou.
II
1 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Previamente, há que referir, nos termos do n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil, que existe a oposição de acórdãos reconhecida no acórdão da secção.
Em nenhum dos processos referidos era admissível recurso de revista ou de agravo para este Supremo Tribunal de Justiça por motivo estranho à alçada do tribunal [artigo 150.º da Organização Tutelar de Menores (Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro) e n.º 3 do artigo 764.º do Código de Processo Civil], pelo que era admissível recurso para o Supremo, funcionando em tribunal pleno, dos dois acórdãos em oposição.
2 - De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 182.º da Organização Tutelares de Menores, quando se torne necessário alterar o que estiver estabelecido, por acordo ou por decisão final, na regulação do poder paternal dos menores qualquer dos progenitores ou o curador podem requerer ao tribunal que no momento for territorialmente competente nova regulação do poder paternal.
A questão a decidir aqui é precisamente a de saber se, estando apenas um dos pais sujeito à prestação de alimentos ao menor, essa acção de alteração da regulação do poder paternal proposta pelo Ministério Público deve ser também intentada contra o outro pai.
No acórdão em que se decidiu pela ilegitimidade do progenitor não sujeito à prestação de alimentos argumentou-se que este progenitor não tinha interesse directo em contradizer, porque a sua esfera jurídica em nada podia ser atingida com a procedência do pedido, sendo, pelo contrário, esse progenitor sempre beneficiado com a condenação do requerido.
Ao invés, no outro acórdão em oposição considerou-se o seguinte: o único interesse directo em jogo na acção é o do menor que o Ministério Público representa, e não o da sua mãe, pelo que ambos os progenitores devem ser ouvidos sobre tudo o que lhe respeita (artigo 1878.º do Código Civil); a alteração da pensão de alimentos reflecte-se, ainda que indirectamente, no próprio progenitor que tem a seu cargo o menor. O processo é de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, e verifica-se litisconsórcio necessário passivo porque, embora aparente e directamente nada se peça contra o progenitor que tem a seu cargo o menor, ele tem, na realidade, inequívoco e absoluto interesse na alteração, a qual se repercute na sua economia.
3 - Nos termos do n.º 1 do artigo 1878.º do Código Civil, compete a ambos os pais prover ao sustento dos filhos menores.
Nos casos de divórcio, separação de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento e na separação de facto dos pais, essa obrigação mantém-se (artigos 1905.º e 1909.º do Código Civil).
De harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa, «os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos». Consagra-se aqui o princípio da igualdade dos cônjuges quanto a direitos e deveres.
Foi o Decreto-Lei 497/77, de 25 de Novembro, que veio harmonizar o Código Civil com a Constituição da República Portuguesa e no n.º 35 do seu preâmbulo explica a disciplina do exercício do poder paternal informado pelo princípio constitucional da igualdade dos cônjuges quanto aos poderes e deveres relativamente aos filhos.
Quando em nova regulação do poder paternal se vem pedir a alteração dos alimentos devidos ao filho menor de pais separados ou divorciados contra o progenitor que os presta, esse pedido pode ser formulado pelo outro progenitor ou pelo curador de menores (artigo 186.º da Organização Tutelares de Menores). Se a acção é proposta pelo curador, terá de ser intentada também contra o outro progenitor, porque a própria natureza da relação jurídica assim o exige para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
Com efeito, como os pais estão, e de igual modo, obrigados a alimentar os filhos menores, cada um deles tem um interesse directo na fixação do montante com que o outro contribuirá para esse fim, pois, quanto ao que cada um não dará nem poderá dar, terá o outro de suprir essa falta na medida das suas possibilidades.
Por outro lado, não se pode decidir nada quanto a qualquer conteúdo do poder paternal, sem que os seus dois titulares sejam demandados.
Mas há mais. Como a regulação do poder paternal foi decidida, tendo ambos os pais na acção como partes, é lógico que qualquer alteração só poderá ser tomada com os dois presentes como partes na nova acção.
Trata-se de um caso de litisconsórcio necessário passivo, nos termos do n.º 2 do artigo 28.º do Código de Processo Civil, pelo que a falta de intervenção na acção de um dos progenitores é motivo de ilegitimidade.
4 - Para o acórdão em que se decidiu a ilegitimidade do progenitor não sujeito à prestação de alimentos, o argumento ali usado foi o de que, nada sendo pedido contra ele, a sua esfera jurídica em nada podia ser atingida. Quer dizer, nesta visão do problema a legitimidade só poderia aferir-se pelo facto de ser dirigido um pedido contra alguém.
Mas esta não é a concepção legal, pois é o próprio artigo 26.º do Código de Processo Civil (onde se expressa o conceito de legitimidade) que nos diz que é do interesse em demandar ou em contradizer que deriva tanto a legitimidade activa como a passiva (seu n.º 1). O n.º 2 desse artigo 26.º refere que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
E o progenitor não sujeito à prestação de alimentos podia sofrer prejuízos se não interviesse na acção, se não pudesse articular as razões quanto à fixação do novo montante de alimentos a pagar pelo outro progenitor ao filho menor de ambos.
O Prof. Antunes Varela diz-nos que a lei define a legitimidade (como poder de dirigir o processo) através da titularidade do interesse em litígio (Manual de Processo Civil, edição de 1984, p. 128).
E no caso trata-se de nova regulação do poder paternal quanto à fixação dos alimentos devidos pelo progenitor que não tem à sua guarda o menor. A regulação do poder paternal é da titularidade de ambos os pais e nada se pode decidir a este respeito sem serem ouvidos ambos.
5 - A alteração do regime estabelecido na regulação do poder paternal está prevista no artigo 182.º da Organização Tutelar de Menores e é uma das características dos processos de jurisdição voluntária (artigo 1411.º do Código de Processo Civil). E os processos tutelares cíveis são considerados de jurisdição voluntária (artigo 150.º da Organização Tutelar de Menores).
Mas o facto de se tratar de um processo de jurisdição voluntária em nada interfere nos pressupostos processuais, designadamente quanto à legitimidade das partes (artigos 1410.º e seguintes do Código de Processo Civil; Prof. Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, pp. 307 e seguintes).
6 - Como consequência do exposto, formula-se o seguinte assento:
Sob pena de ilegitimidade, por se tratar de um litisconsórcio, deve ser proposta também contra o progenitor que tenha a seu cargo a guarda do menor a acção intentada pelo Ministério Público para nova regulação do poder paternal para alteração da pensão de alimentos devida ao menor pelo outro progenitor;
7 - Este assento não tem influência alguma no acórdão recorrido.
Sem custas, nos termos do n.º 1 do artigo 37.º do Código das Custas Judiciais.
Lisboa, 4 de Julho de 1995. - Santos Monteiro (relator) - Oliveira Branquinho - Sá Ferreira (com a declaração de preferência pela redacção proposta pelo Exmo. Conselheiro Lopes Pinto) - Mário Cancela - Sampaio da Nóvoa - Costa Marques - Joaquim de Matos - Sousa Inês - Afonso de Melo - Lopes Rocha - Costa Soares - Metello de Nápoles - Correia de Sousa - Herculano Lima - Carvalho Pinheiro (com a declaração de preferência pela redacção proposta pelo Exmo. Conselheiro Lopes Pinto) - Araújo dos Anjos - Moura da Cruz (com a declaração de preferência pela redacção proposta pelo Exmo. Conselheiro Lopes Pinto) - Vaz dos Santos - Lopes Pinto (daria ao assento a seguinte redacção: «A alteração de pensão de alimentos devidos a menor pedida pelo Ministério Público deverá, por configurar litisconsórcio necessário, ser proposta contra ambos os progenitores.») - Cortez Neves - Ferreira Vidigal - Torres Paulo - Pedro Marçal - Miguel Montenegro - Figueiredo de Sousa - Fernando Fabião (vencido consoante declaração de voto que junto) - César Marques - Sá Nogueira - Roger Lopes - Ramiro Vidigal - Martins da Costa - Pais de Sousa - Miranda Gusmão (com a declaração de que daria ao assento a seguinte redacção: «A acção intentada pelo Ministério Público para nova regulação do poder paternal com vista à pensão de alimentos devida por um progenitor deve ser intentada contra ambos os progenitores, sob pena de legitimidade passiva.») - Sá Couto (com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Gusmão de Medeiros) - Silva Reis - Cardona Ferreira - Carlos Caldas (vencido pelas razões expostas pelo Exmo. Conselheiro Fernando Fabião).
Declaração de voto
Votei vencido, porque entendo que o progenitor não sujeito à prestação de alimentos é parte ilegítima na acção intentada pelo Ministério Público contra o outro progenitor, para alteração da prestação de alimentos devidos ao menor, pelas razões seguintes:
a) O réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer (artigo 26.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), interesse directo, frisa-se, e não meramente reflexo, e o progenitor a quem não é pedida a alteração da pensão alimentar não tem interesse directo em contradizer;
b) Aliás, um progenitor contra o qual nada é pedido e à guarda de quem presumivelmente estará o menor sempre poderá intervir no processo como assistente, ao lado do Ministério Público, nos termos do artigo 335.º do Código de Processo Civil;
c) Tanto o n.º 3 do artigo 182.º como o n.º 2 do artigo 187.º, ambos da Organização Tutelar de Menores, falam em requerido apenas, o que deixa adivinhar que do lado passivo da acção está apenas o progenitor obrigado à prestação alimentar, para além de que este último texto manda notificar para a conferência a pessoa que tiver o menor à sua guarda, se não for o autor, o que aponta no mesmo sentido e significa que o progenitor não obrigado à prestação alimentar também assiste à conferência;
d) O artigo 186.º, n.º 1, da Organização Tutelar de Menores admite que o progenitor a quem não é feito o pedido seja o requerente do processo como representante legal ou pessoa à guarda de quem o menor está, o que dá a entender que esse progenitor, a intervir, o faça do lado activo;
e) O julgador só poderá usar dos poderes conferidos pelo artigo 1410.º do Código de Processo Civil, ou seja, não obedecer aos critérios de legalidade estrita, se tal o impuser a conveniência ou a oportunidade em nome dos interesses do menor, mas, para tal, não há necessidade de violar o disposto sobre a legitimidade das partes no citado artigo 26.º do Código de Processo Civil.