Assento 13/94
Acordam, em tribunal pleno, no Supremo Tribunal de Justiça:
A Companhia de Seguros Império, E. P., veio recorrer para o tribunal pleno nos autos de recurso de revista em que é recorrente com Ana Cândida Guedes da Costa (recurso subordinado), sendo recorridas as mesmas e David Rodrigues.
Tal recurso foi admitido por se considerar haver oposição relevante, sobre idêntica situação, entre o acórdão recorrido e outro deste Supremo Tribunal com a data de 5 de Maio de 1988, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 377, pp. 471 e seguintes.
A recorrente alegou em tempo - cf. fls. 33 e seguintes -, tendo sido oportunamente junto douto parecer do digno procurador-geral-adjunto neste Supremo Tribunal.
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Objecto do recurso
É a seguinte a questão de direito levantada:
Quando em causa, em matéria de juros devidos, o momento da constituição em mora, face à redacção dada pelo Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, ao n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, este assume-se como norma inovadora, aplicando-se, apenas, para futuro ou deverá ser tido como norma interpretativa, sendo, como tal, de aplicação imediata.
No acórdão fundamento entendeu-se que se trata de uma norma inovadora, com todas as consequências daí decorrentes.
Não assim e, contrariamente, no acórdão recorrido em que se julgou ser a referida norma interpretativa e de aplicação imediata.
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Questão preliminar
Oportunamente, decidiu-se pela existência efectiva de oposição entre os referenciados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.
Além do mais, porque:
a) Os dois acórdãos foram proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça em processos diferentes, presumindo-se o trânsito em julgado do acórdão fundamento (requisitos formais);
b) Os problemas de facto foram apreciados por decisões expressas, sendo idênticos e surgindo em oposição sobre a mesma questão fundamental, no domínio da mesma legislação, não alterada desde a publicação do acórdão fundamento até à do acórdão recorrido. (V. artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho) (requisitos substanciais).
Mais precisamente:
No acórdão recorrido, proferido em acção com base em acidente de viação, ocorrido em 10 de Novembro de 1982, decidiu-se ser o momento da citação para a acção aquele que determina a eventual constituição em mora do devedor da indemnização;
No acórdão fundamento julgou-se serem os juros de mora devidos a partir da fixação da indemnização por decisão definitiva do tribunal.
Daí o antagonismo existente nos significados atribuídos à mesma regra jurídica.
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Acórdão fundamento - razões
a) O problema da determinação do momento da constituição em mora do devedor dos juros devidos pôs-se na vigência do Código Civil de 1867, conduzindo a jurisprudência e a doutrina vária.
b) O actual Código Civil veio a tratar a matéria em causa nos n.os 1, 2 e 3 do artigo 805.º, tendo de aquele último número sido alterado (acrescentamento) pelo Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho.
c) No seguimento da anterior problemática levantada sobre a questão formaram-se duas correntes doutrinais de apreciação e decisão:
Uma, procurando a conciliação dos n.os 2 e 3 do citado artigo 805.º do Código Civil, em termos de se considerar que o devedor de juros, por indemnização ilíquida, só incorria em mora, depois de aquela se tornar líquida, mediante convenção das partes ou decisão definitiva do tribunal, a não ser que a iliquidez fosse imputável ao devedor;
Outra, afirmando que a obrigação de indemnização, por facto ilícito, nascia com o mesmo, sendo devidos juros de mora a partir desse momento.
d) A alteração introduzida no artigo 805.º, que consistiu no acrescentamento ao seu referenciado n.º 3, não tem como determinante o anterior conflito de doutrina e jurisprudência, já que o mesmo se esbateu desde a entrada em vigor do novo Código Civil, com o predomínio do entendimento de que não havia mora enquanto o crédito não se tornasse líquido.
e) Os termos da alteração introduzida no n.º 3 do citado artigo 805.º, fixando o momento do início dos juros de mora - não a partir do facto ilícito, nem da liquidação definitiva mas da citação -, tem carácter inovador, sendo, por isso, só aplicável aos factos posteriores ao do começo da sua vigência "precisamente, porque se trata de norma que regula os efeitos dos factos geradores de responsabilidade civil" (cf. artigo 12.º do Código Civil).
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Acórdão recorrido - razões
a) Nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil existe mora do devedor - independentemente de interpelação - se a obrigação provier de facto ilícito.
b) Um acidente de viação é um facto ilícito quando viola direitos de terceiro, por culpa do violador.
c) Atenta a modificação introduzida no n.º 3 do artigo 805.º e à circunstância de, na hipótese sub judice, ter sido invocado, no momento da propositura da acção, o direito a juros com o pedido de contagem a partir da petição inicial, o direito a indemnização e o correspondente dever de indemnizar reportam-se ao cometimento do facto ilícito (o acidente teve lugar em 1982), considerados o tempo em que se verificou e as suas consequências.
d) A constituição do devedor em mora reporta-se ao momento em que o dever correspondente ao direito devia ser cumprido, sendo certo que uma coisa é o dever de indemnizar - para o qual existe um momento em que tem de ser cumprido - outro é o dever de pagar juros de mora, quando aquele dever não foi cumprido no momento em que o devia ter sido.
e) O Decreto-Lei 262/83 estabeleceu para futuro um momento especial de constituição em mora pelo devedor da indemnização por facto ilícito, qual seja o da sua citação para a acção.
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Considerações históricas
Ao artigo 805.º do actual Código Civil correspondiam na matéria em análise os artigos 711.º e 732.º do Código Civil de 1867.
A alteração introduzida no artigo 805.º, citado, pelo Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, consistiu no acrescentamento ao seu n.º 3 da determinação de que:
[...] tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.
Em reporte temporal (antes de mais), face a tal alteração introduzida no n.º 3 do artigo 805.º, impõe-se saber se a mesma se assume com carácter e natureza inovadora ou meramente interpretativa.
E, de algum modo, o porquê da alteração.
Parece claro poder-se concluir que (v. preâmbulo do Decreto-Lei 262/83) se considerou menos justa - nas suas consequências, naturalmente - a lei na redacção inicial dada ao n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil.
Assim, o legislador, enquanto originariamente consagrava que "sendo ilíquido o crédito proveniente de facto ilícito, não haveria mora enquanto (o mesmo) se não tornasse líquido, salvo se a falta de liquidez fosse imputável ao devedor", veio com o Decreto-Lei 262/83 consignar "que o devedor por crédito ilíquido derivado de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco se constituía em mora desde a citação, a menos que já então haja mora por a falta de liquidez ser imputável ao próprio devedor".
Na sequência, em consonância com a ratio legis - como se disse -, uma questão:
A de saber se a alteração da lei (acrescentamento) se assumia - e assume - com carácter inovador ou, contrariamente, tão-só interpretativo (com todas as consequências daí decorrentes).
Ao longo dos anos, alguma jurisprudência - mais, a dos Tribunais das Relações de Lisboa e de Évora - vem defendendo o carácter interpretativo da norma alterada (cf. sumário, Boletim do Ministério da Justiça, n.os 340, p. 436; 363, p. 593, e 369, p. 619, mais precisamente os Acórdãos das Relações de Lisboa, de 10 de Janeiro de 1984 e de 20 de Maio de 1986, e de Évora, de 13 de Março de 1986, entre outros).
Agora e mais o Acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 1991.
Outra jurisprudência - de longe a dominadora - vem considerando que a norma, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 262/83, é inovadora, aplicando-se apenas para futuro (e não retroactivamente).
Em tal sentido (entre outros) Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Fevereiro de 1985, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 344, p. 427, de 5 de Fevereiro de 1987, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 304, p. 819, e de 19 de Fevereiro de 1987, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 364, p. 845, e da Relação de Lisboa de 9 de Janeiro de 1986, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 360, p. 650.
E ainda naturalmente o Acórdão fundamento de 5 de Maio de 1988, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 377, p. 471.
Considerando (nesse sentido v. o acórdão fundamento), a despeito do supra-referenciado, não existir qualquer controvérsia jurídica efectiva, ao tempo do acrescentamento feito ao n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, há que concluir não se justificar uma lei interpretativa da norma existente.
Tanto que, se o problema da aplicação da lei referenciada no tempo surgisse, a solução bem poderia ser conseguida através do funcionamento dos princípios legais consagrados (nomeadamente) nos artigos 12.º e 13.º do Código Civil (v. Prof. Baptista Machado, Sobre a Aplicação das Leis no Tempo).
Uma conclusão - a despeito do tal posicionamento (constituição em mora, no momento da citação, nos casos de obrigações de indemnização derivadas de factos ilícitos) não ser já novidade, porquanto defendido por jurisprudência anterior ao Decreto-Lei 262/83 - parece ser de tirar do n.º 3 do preâmbulo daquele mesmo decreto, qual seja a de que a alteração legislativa em causa tem natureza inovadora.
Trata-se de elemento histórico que se impõe.
Certo que, no demais, é bem mais complicada a determinação da chamada voluntas legislatoris, escopo fundamental da interpretação.
Por exemplo, no caso concreto, parece que o elemento lógico da interpretação, nas suas subdivisões (racional e sistemática), leve à possibilidade de que se tire uma consideração útil.
É que não pode perder-se de vista que nenhuma disposição constitui uma regra isolada dentro do sistema jurídico, particularmente com as que integram o mesmo instituto, ou com as que regulam problemas logicamente relacionados (elemento sistemático) (cf. Prof. Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, p. 109).
E assim acontece existir no Código Civil uma norma integrante do mesmo instituto em análise que deve considerar-se em vigor (v. parecer do digno Procurador-Geral junto), não sendo despicienda na matéria.
Trata-se do artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil, onde se consagra que:
[...] a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos.
Dizem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela no Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., p. 66, comentando-a, que:
Desde que a situação patrimonial hipotética a que o n.º 2 do artigo 566.º se refere, como aditivo na diferença patrimonial que há-de ser reparada ao lesado, envolva a eliminação de todos os danos causados pelo facto lesivo a partir da verificação desse facto, é evidente que o critério geral estabelecido naquela disposição legal é, em princípio, mais favorável para o lesado e mais severo para o lesante que a nova regra inserida pelo Decreto-Lei 262/83, na parte final do n.º 3 do artigo 805.º, que apenas põe a cargo do devedor (responsável pelo facto ilícito ou pelo risco) os danos (moratórios) verificados, após a citação, na acção de condenação.
Tudo visto.
Considerando que todo o sistema legal configurado como o de obrigação de indemnização, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, leva depois a que se estatuam normas de realização desse mesmo direito, afigura-se-nos (dentro do enquadramento supra-referenciado) que o n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil deve ser tido e qualificado como um "modo" de realização de um direito e não como "constitutivo" desse mesmo direito (cf. citado parecer, p. 49).
Esse seria o critério fundamental de análise a ter em conta na consideração do problema levantado.
Ademais, a antecipação do momento da mora, em casos de responsabilidade civil resultante do facto ilícito, poderia ser uma solução pior para o lesado "do que as alcançáveis mediante um cálculo que atenda aos prejuízos efectivos" (cf. Dr. Simões Patrício, "As novas taxas de juro do Código Civil", in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 305).
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Conclusões
a) Tendo em conta o referenciado, deve ter-se como critério geral, no ponto em estudo, a norma decorrente do estatuído no n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, em que se permite se tomem em linha de consideração todos os factos que recaiam sobre o património do lesado até à data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal.
b) Todavia, face ao disposto no n.º 3 do artigo 805.º e ao decorrente do critério geral citado inserto no artigo 566.º, n.º 2, pode cair-se numa "duplicação dificilmente justificával no plano de conciliação dos interesses em jogo" consequente ao "terem-se feito incidir os juros moratórios sobre uma indemnização que de si (dado o desfasamento temporal a que se atende) já inclui os juros compensatórios" (cf. Dr. Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, citado no parecer).
c) Assim, a nova norma decorrente do acrescentamento feito ao n.º 3 do artigo 805.º tem de ser qualificada, não como um "novo" direito indemnizatório que se somaria aos já constantes da lei, mas sim como uma "alternativa" dada ao lesado de pedir indemnização por danos posteriores à data da propositura da acção, consequentes do protelamento da liquidação (cf. Dr. Ribeiro de Faria, ob. cit., e parecer).
d) Pelo que o lesado, ao pedir juros desde a citação, tem apenas direito aos danos verificados no momento da propositura da acção, renunciando (implicitamente) aos, eventualmente passíveis de consideração, que possam ter lugar entre a data da propositura da acção e a da liquidação (cf. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, p. 67, em que se sustenta "que o intérprete avisado há-de acrescentar à ressalva expressamente formulada na nova redacção do n.º 3 do artigo 805.º a dos casos em que o lesado prefira a aplicação do critério geral estabelecido no n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil).
e) A nova redacção do n.º 3 do artigo 805.º dá ao lesado a possibilidade de pedir apenas o pagamento da indemnização respeitante ao dano verificado na data da propositura da acção, renunciando, desse modo, ao maior benefício que resultaria da sua opção pelo critério geral do n.º 2 do artigo 566.º (cf. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit.).
f) A vantagem decorrente para o lesado pela sua opção pelo uso da faculdade que lhe é dada pela nova redacção do n.º 3 do artigo 805.º resultaria de não ter de fazer prova de qualquer facto para ser indemnizado por danos posteriores à data da citação, por mero decurso do tempo.
g) Assim, o n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil (na sua formulação acrescentada) não vem dar ao lesado um direito novo mas um modus operandi diverso (processual) para uma mais fácil obtenção da indemnização por danos consequente à demora no processo.
h) Tal indemnização era já devida ao lesado (por direito), tendo o mesmo, porém, de fazer a prova dos danos que causa.
i) A concessão dada ao lesado cifra-se na possibilidade de optar por uma avaliação abstracta dos danos indemnizáveis, em substituição de uma avaliação concreta dos mesmos (cf. Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, p. 116, nota 2).
Nestes termos, há que concluir - e, como tal, se conclui - que a norma do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil se configura como um meio dado ao lesado para conseguir a satisfação integral da parte respeitante aos danos (moratórios) posteriores à propositura da acção e anteriores à sua liquidação.
Pode definir-se como uma "norma intrumental", devendo ser tida com uma "norma de processo", com todos os efeitos consequentes, nomeadamente quanto à sua aplicação no tempo, a processar de modo idêntico às normas de direito adjectivo (cf. Prof. Baptista Machado, ob. cit., p. 23, e parecer junto aos autos).
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Assim, porque se assume como processual, a norma em causa é de aplicação imediata às relações jurídicas já constituídas, todavia, subsistentes à data da sua entrada em vigor (cf. n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil).
Concretamente, no caso de leis novas que venham estabelecer um novo modo de constituição de mora do devedor de um crédito não sujeito a prazo fixo, as mesmas são de aplicação imediata.
Caso dos autos (cf. Prof. Baptista Machado, ob. cit.).
Pelo que, considerando:
Que, na hipótese em análise, o facto ilícito ocorreu em 18 de Novembro de 1982, tendo a acção sido proposta em 28 de Outubro de 1985;
Que a alteração ao n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, resultante do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, não contém qualquer prazo especial para a sua entrada em vigor;
tem-se a norma em causa como de aplicação imediata e, como tal, reguladora do caso dos autos, com todas as consequências daí decorrentes.
Nega-se, assim, provimento ao recurso interposto.
Custas pela recorrente.
Acordam, mais, os deste Supremo Tribunal em firmar o seguinte assento:
A norma do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, é de aplicação imedita a obrigações de indemnização derivadas de factos ilícitos ocorridos anteriormente, mas subsistentes à data da sua entrada em vigor.
Lisboa, 15 de Junho de 1994. - Gelásio Rocha - Cura Mariano - Miguel Montenegro - Costa Pereira - Teixeira do Carmo - Araújo Ribeiro - Carlos Caldas - Figueiredo de Sousa (vencido conforme declaração de voto que junto) - Silva Reis - Fernando Fabião (vencido conforme declaração de voto que junto) - Ferreira Dias - Cardona Ferreira (com a declaração de que, a meu ver, a norma em causa é instrumental, mas não chega a ser processual) - Sá Couto - Faria de Sousa - Ferreira Vidigal - César Marques (vencido nos termos do voto do Exmo. Conselheiro Figueiredo de Sousa) - Dias Simão (com a mesma declaração de voto) - Santos Monteiro - Sá Ferreira (vencido pelos fundamentos indicados na declaração de voto do Exmo. Conselheiro Figueiredo de Sousa) - Cardoso Bastos - Roger Lopes -Castanheira da Costa - Mário Cancela -Amado Gomes - Costa Raposo - Miranda Gusmão - Correia de Sousa - Sousa Guedes - Calixto Pires - Mário Noronha - Joaquim de Matos (vencido nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Figueiredo de Sousa) - Machado Soares - Pereira Cardigos - Coelho Ventura - Chichorro Rodrigues - Sousa Macedo (conforme declaração de voto que junto) - Ramiro Vidigal - Lopes Melo - Oliveira Branquinho - Sá Nogueira (vencido nos termos da declaração que junto) - Martins da Costa - Martins da Fonseca - Raul Mateus - Sousa Inês - José Miranda Gusmão (voto o assento por ter interpretado o relatório no sentido de ter sido considerada inovadora a norma em causa, norma de aplicação imediata a todas as obrigações de indemnização decorrentes de responsabilidade civil existentes à data da sua entrada em vigor por a mesma não "bulir" com a fonte dessas obrigações - artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil) - Pais de Sousa (vencido nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Figueiredo de Sousa).
Declaração de voto
1 - Tanto no acórdão fundamento como no acórdão recorrido a situação litigiosa - vista do lado que ora interessa particularmente considerar - era, e em síntese, a seguinte:
Em ambos os casos era pedido um capital indemnizatório em conexão com a prática de um facto ilícito (ocorrido antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho), e, em ambos os casos, por mora no cumprimento de tal obrigação de indemnização (obrigação principal), e acessoriamente eram pedidos ainda juros moratórios a partir da citação (citação que veio a ocorrer já depois da entrada em vigor daquele mesmo diploma legal);
No acórdão fundamento, ao contrário do que se verificou no acórdão recorrido, entendeu-se que a norma da segunda parte do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil (redacção actual) não era de imediato aplicável à situação jurídica em apreciação (que se visualizou, erradamente, como um complexo que abarcaria indissoluvelmente tanto a obrigação de capital como a obrigação de juros).
2 - Neste quadro, e face a tal conflito jurisprudencial, votei a seguinte proposta de assento:
À obrigação de juros - acessória da obrigação de indemnização por facto ilícito ocorrido antes do início de vigência do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho - é aplicável, sendo o devedor citado após o início de vigência desse mesmo diploma legal, a norma da segunda parte do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil (redacção actual).
E votei que nestes termos se resolvesse o apontado conflito jurisprudencial, porquanto, assim se entendendo, se estaria, pura e simplesmente, a dar cumprimento à determinação constante do primeiro trecho do n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil, segundo a qual a lei só dispõe para o futuro.
3 - Na verdade, e de acordo com tal proposta de assento, estar-se-ia apenas a dar relevo, na aplicação da nova redacção do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, a um facto (facto de citação) posterior à entrada em vigor dessa nova redacção, que, naquele n.º 3 do artigo 805.º, fora introduzida pelo Decreto-Lei 262/83. E isto, por esse facto, facto citativo, que dera origem à obrigação de juros, ter criado, ao cabo e ao resto, uma nova situação jurídica, que, embora ligada a uma situação jurídica anterior (à obrigação de indemnização por facto ilícito), com ela se não poderia nunca confundir (sobre a independência da obrigação de juros em relação à obrigação de capital, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6.ª ed., p. 845).
Haveria, pois, que visualizar individualmente estas duas situações jurídicas e, nesta perspectiva individualizadora, haveria que concluir, como se concluiu, na proposta de assento que votei, que a norma da segunda parte do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil (redacção actual) era imediatamente aplicável, nas circunstâncias apontadas, à obrigação de juros, pois que, desse modo, estar-se-ia apenas a sujeitar àquela nova regulamentação legal uma situação jurídica nascida, e por inteiro, à sua sombra. Ou, por outras palavras, estar-se-ia, e tão-somente, a aplicar para o futuro tal regulamentação (como estipula, e antes de mais, a citada regra da primeira parte do n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil). - Raul Mateus.
Declaração de voto
Vencido, com a declaração de que formularia o assento de maneira a frisar que a norma do artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, tem natureza interpretativa e não inovadora, pelo que é de aplicação imediata a todos os casos pendentes à data da entrada em vigor deste.
O objecto do assento é, precisamente, a fixação de doutrina sobre a natureza interpretativa ou inovadora de tal alteração legislativa, pelo que, salvo o devido respeito, me parece incorrecto que se chegue a uma solução do mesmo mediante o recurso aos efeitos de uma norma de natureza processual, que, por si só, e por natureza, não confere nem pode conferir quaisquer direitos substantivos.
No caso em discussão, o cerne da questão gira em torno de direitos de natureza substantiva (contagem do início do prazo para a constituição em mora do devedor), os quais não podem, como me parece evidente, ser solucionados pela via processual de se dizer que a referida mora do devedor se inicia com a respectiva citação para o processo em que é pedida a indemnização.
E chegaria à conclusão de a norma em análise ter natureza interpretativa pela história das condições que a originaram, uma vez que é público que a citada alteração do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil teve como causa um propósito claro do legislador de vincar o seu entendimento de querer que fosse considerada como correcta uma das três soluções possíveis que, até então, e perante os textos legais vigentes até essa altura, tinham sido adoptadas pelos tribunais.
Efectivamente, é sabido que, na década de 60, começaram a surgir determinados processos baseados em acidentes de viação, em que os pedidos indemnizatórios ultrapassavam os valores até então correntes e habituais (foi o caso, por exemplo, do pedido formulado pelo Prof. Idálio de Oliveira, na ordem dos 7000000$00, e de um pedido formulado na comarca de Benavente, por lesados estrangeiros, superior a 1000000$00).
Em consequência da dedução de pedidos desses montantes, começaram também os demandados, com especial incidências para as companhias seguradoras, mas não só por parte delas, a tentar protelar o andamento dos processos em que eles eram formulados, para dessa forma, através de uma adequada gestão do correspondente capital e dos juros ou rendimentos obtidos a partir da mesma, poderem minimizar ou até eliminar os prejuízos resultantes do desembolsar de tão elevadas quantias.
E isso porque surgiu nos tribunais uma corrente que entendia que, no caso dos acidentes de viação, a determinação do valor dos danos deles decorrentes, quer dos danos de natureza não patrimonial, quer dos de natureza patrimonial, só poderia ser fixada pela decisão final da 1.ª instância (quanto aos primeiros, por só nessa altura ser determinada, uma vez que a fixação do seu montante é matéria de direito, e, quanto aos segundos, por ser igualmente matéria de direito a matéria da determinação da culpa do demandado ou da concorrência de culpa entre ele e o lesado e por só em julgamento se poderem apreciar esses pontos, bem como a extenção dos prejuízos sofridos pelo demandante), pelo que a mora do devedor só se iniciaria com o trânsito em julgado desta, ou, eventualmente, com a prolação dessa mesma decisão, como resulta da interpretação sistemática dos artigos 483.º a 510.º e 562.º a 572.º do Código Civil.
Ao mesmo tempo, porém, outra parte da jurisprudência veio defender que, por força dos preceitos dos artigos 804.º e 805.º, n.º 2, alínea b), do mesmo diploma, o devedor da indemnização por acidente de viação as constituía em mora a partir do momento da prática do facto ilícito (o acidente de viação).
E, simultaneamente, gerou-se uma terceira corrente que defendia que a mora do devedor se iniciava com a citação para a acção, nos termos dos artigos 805.º, n.º 1, do Código Civil, e 481.º, alínea a), do Código de Processo Civil, corrente esta fundada, sobretudo, em razões de índole processual e na consideração do facto de que os devedores principais eram as companhias seguradoras, a quem, por via de regra, não era dado oportuno conhecimento do acidente e que só vinham a ter conhecimento, pelo menos da extensão dos danos causados, através da citação que lhes era feita no processo em que se pedia a indemnização.
Implantaram-se, assim, quatro posições distintas na prática judiciária (início da mora no momento do acidente, no momento da citação, no momento da decisão da 1.ª instância e no momento do trânsito em julgado da decisão condenatória final) e a adopção de cada uma delas conduzia a soluções díspares na fixação dos juros moratórios que fossem devidos, com as consequentes incertezas do direito e possibilidade de protelamento injusto e dilatório dos correspondentes processos.
Estas posições jurisprudenciais foram-se mantendo, não obstante o n.º 5 do artigo 22.º do Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro, que regulou novamente o regime de seguro obrigatório instituído pelo Decreto-Lei 165/75, de 28 de Março (aliás, nunca entrado em vigor), já ter expressamente consignado que o prazo para a dedução, no processo penal, do pedido cível de indemnização, ao abrigo do artigo 67.º, n.º 2, do Código da Estrada, se contava de uma notificação que especialmente deveria ser feita aos lesados para esse fim, o que só poderia fazer sentido se a intenção do legislador fosse a de, pelo menos, afastar a corrente que defendia que o devedor da indemnização por acidente de viação se constituía em mora desde o momento do acidente (na verdade, não faria sentido que a mora se contasse desde essa altura e que o credor só pudese formular o respectivo pedido a partir de um momento consideravelmente posterior).
Estas providências legislativas, e outras com elas relacionadas, como a obrigatoriedade de constituição pelas seguradoras de um fundo de reserva para garantia do pagamento das indemnizações devidas, a partir da citação na acção respectiva (Decretos-Leis 413/76, de 27 de Maio e 471/77, de 11 de Novembro, entre outros), são elementos importantes na determinação do real propósito do legislador de considerar como mais justa uma das soluções para que se inclinava, como referi, parte da jurisprudência, propósito esse que, por fim, veio a ser claramente expresso com a alteração de 1983 do n.º 3 do mencionado artigo 805.º do Código Civil.
Daí que defenda que essa alteração teve um mero carácter interpretativo e não inovador.
Pelas razões expostas, teria formulado o assento com a seguinte redacção:
A alteração da norma do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, operada pelo Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, tem natureza interpretativa, pelo que é aplicável a todas as relações jurídicas já constituídas à data da sua entrada em vigor que ainda não tivessem sido definitivamente julgadas.
Sá Nogueira.
Declaração de voto
Colocada inicialmente a questão de saber se a norma do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, introduzido pelo Decreto-Lei 262/83, se assume como inovadora ou interpretativa, deveria ser respondido que se trata de preceito inovador, esclarecendo-se, porém, que o facto relevante para a sua aplicação é o momento da citação e não o da ocorrência do facto gerador de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.
O assento a lavrar, na formulação proposta, não é esclarecedor quanto a outras questões que se suscitam relativamente a factos geradores de responsabilidade ocorridos antes da entrada em vigor do referido preceito.
A sua imediata aplicabilidade significa que o devedor fica constituído em mora desde a citação, ainda que esta também tenha tido lugar antes da entrada em vigor do preceito?
Se não, serão devidos juros desde a sua entrada em vigor?
Nesta ordem de ideias, proporia para o assento a seguinte ou idêntica redacção:
A norma do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, introduzido pelo Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, aplica-se aos factos ocorridos anteriormente à sua vigência, desde que a citação tenha lugar depois da sua entrada em vigor.
Figueiredo de Sousa.
Declaração de voto
Entende-se que o n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei 262/83, na parte relativa ao caimento em mora por efeito da citação na acção de responsabilidade civil por facto ilícito ou por risco, aplica-se às citações que lhe sejam posteriores, ainda que a obrigação de indemnizar lhe seja anterior, com o fundamento em que tal normativo vem estabelecer uma nova modalidade para a queda em mora do devedor de uma obrigação não sujeita a prazo fixo, dispondo sobre a obrigação de indemnizar, mas abstraindo dos factos que lhe deram origem, tudo nos termos da segunda parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil. - Sousa Macedo.
Declaração de voto
A fundamentação do assento está, em parte, desfasada do cerne da questão - trata-se apenas de saber desde quando o devedor se constitui em mora nos casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco - ou é desnecessária, ou até mesmo incorrectamente interpreta o acórdão recorrido.
Com efeito, pode dizer-se:
Não interessa chamar à colação o n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, já que este texto pode ter interesse para a questão de saber se podem cumular-se os juros compensatórios com os juros moratórios, mas não dá qualquer contributo decisivo para o efeito de se saber desde quando o devedor se constitui em mora, nos termos da segunda parte do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho (artigo 1.º);
Porque os dois acórdãos em oposição concordam em que o texto legal referido é inovador, é pura perda de tempo tecer considerações sobre a sua natureza inovadora ou interpretativa;
O acórdão recorrido não considerou interpretativo o texto legal em causa, como se afirma a pp. 2 e 9, muito embora, verdade seja, já parece dizer-se o contrário quando, a p. 6, se diz que ele estabeleceu para o futuro (sublinhado meu) um momento especial de constituição em mora;
Por outro lado, a parte decisória está redigida em termos algo vagos, susceptíveis de gerar dúvidas no tocante ao problema de saber quando é que as obrigações de indemnização ainda se podem considerar subsistentes.
Por isto teria redigido a parte decisória assim:
Nos temos do preceituado na segunda parte do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, o devedor, nas obrigações de indemnização por facto ilícito ou pelo risco, constitui-se em mora desde a data da citação para a respectiva acção, se esta for posterior à data da entrada em vigor daquele texto.
Fernando Fabião.