Processo 1214/23
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. RELATÓRIO
1 - O MINISTÉRIO PÚBLICO requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, doravante “LTC”), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade das normas constantes dos n.os 1 e 2 do Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação introduzida pela Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, na parte em que determinam a incidência e a taxa a aplicar em relação aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas enquadrados no “escalão 2”.
De forma a legitimar o seu pedido, alega o requerente que tais normas foram julgadas inconstitucionais, em mais de três casos concretos, pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos Acórdãos n.os 429/2023, 606/2023, 608/2023 e 609/2023, o que permite ter por verificado o pressuposto previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, já que todas as referidas decisões transitaram em julgado.
2 - Nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, foi notificado para se pronunciar sobre o pedido, o Primeiro-Ministro, uma vez que, na sequência do Decreto do Presidente da República n.º 102-A/2023, de 13 de novembro, e conforme se declara no preâmbulo do Decreto-Lei 108-A/2023, de 23 de novembro, assumira transitoriamente as competências legalmente cometidas ao Ministro das Infraestruturas, invocando, para esse efeito, o disposto no n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei 32/2022, de 9 de maio, na redação atual.
Na sequência dessa notificação, veio o Primeiro-Ministro oferecer o merecimento dos autos e, na hipótese de ser declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas em apreço, requerer que o Tribunal Constitucional determine a restrição temporal dos efeitos de uma tal declaração.
3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos previstos no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Pressupostos de cognição
4 - O artigo 281.º, n.º 3, da Constituição estatui que o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas por ele julgadas inconstitucionais ou ilegais, em três casos concretos. O artigo 82.º da LTC, por seu turno, atribui ao Ministério Público legitimidade para requerer a apreciação abstrata da constitucionalidade ou legalidade de normas julgadas inconstitucionais ou ilegais pelo Tribunal em três casos concretos.
Não se levantam, nesta sede, quaisquer dúvidas sobre a legitimidade ativa do representante do Ministério Público. De igual modo, verifica-se que o pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade formulado nos presentes autos tem por base um número superior aos três casos concretos legalmente exigidos. O requerente invoca quatro decisões proferidas em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, correspondendo a primeira ao Acórdão 429/2023, que julgou “inconstitucionais as normas contidas nos n.os 1 e 2 do Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação introduzida pela Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, na parte em que determinam a incidência e a taxa a aplicar em relação aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas enquadrados no escalão 2, por violação do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição”; o sentido decisório deste aresto foi reiterado nos Acórdãos n.os 606/2023, 608/2023 e 609/2023, de igual forma invocados no pedido.
Note-se, ainda, que, sobre a mesma matéria e com decisões de idêntico teor, foram ainda exarados, posteriormente, diversos arestos, designadamente, os Acórdãos n.os 614/2023, 722/2023, 740/2023, 788/2023, 44/2024, 330/2024, 332/2024 e 334/2024. Anteriores redações da mesma norma, de teor essencialmente idêntico, foram também julgadas inconstitucionais nos Acórdãos n.os 244/2023, 430/2023, 601/2023, 661/2023, 664/2023, 665/2023, 723/2023, 746/2023, 850/2023, 910/2023, 911/2023, 912/2023, 27/2024, 173/2024, 331/2024 e 630/2024.
Nestes termos, é inequívoca a verificação das condições necessárias para a apreciação da citada norma em sede de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade.
B) Mérito
5 - As normas que integram o pedido constam do mencionado Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, e têm a seguinte redação:
“ANEXO II
Taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas [alínea b) do n.º 1 do artigo 105.º da LCE]
1 - O montante da taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público, a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 105.º da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro, é calculado com base no valor dos rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de comunicações eletrónicas relativa ao ano anterior àquele em que é efetuada a liquidação da taxa, de acordo com os escalões indicados na tabela seguinte.
Fórmula de cálculo da taxa T2
2 - O valor da percentagem contributiva t2, resultante da aplicação da fórmula para o escalão 2, é fixado anualmente por deliberação do conselho de administração do ICP-ANACOM, a qual é publicitada no seu sítio de Internet, após apuramento e divulgação do total de custos (gastos) administrativos [C (ano n)] e do montante total de rendimentos relevantes das entidades abrangidas pelo escalão 2 [∑R2 (ano n-1)]”.
Por seu turno, a redação do artigo 105.º da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro, que estabelecia, então, o regime jurídico aplicável às redes e serviços de comunicações eletrónicas e aos recursos e serviços conexos e definia as competências da autoridade reguladora nacional neste domínio, tendo servido de base legal ao Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, é a seguinte:
“Artigo 105.º
Taxas
1 - Estão sujeitos a taxa:
a) As declarações comprovativas dos direitos emitidas pela ARN nos termos do n.º 5 do artigo 21.º;
b) O exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas, com periodicidade anual;
c) A atribuição de direitos de utilização de frequências;
d) A atribuição de direitos de utilização de números e a sua reserva;
e) A utilização de números;
f) A utilização de frequências.
2 - Os montantes das taxas referidas nas alíneas a) a e) do número anterior são fixados por portaria do membro do Governo responsável pela área das comunicações, constituindo receita da ARN.
3 - A utilização de frequências, abrangida ou não por um direito de utilização, está sujeita às taxas fixadas nos termos do Decreto-Lei 151-A/2000, alterado pelos Decretos-Leis n.os 167/2006, de 16 de agosto, e 264/2009, de 28 de setembro.
4 - Os montantes das taxas referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 são determinados em função dos custos administrativos decorrentes da gestão, controlo e aplicação do regime de autorização geral, bem como dos direitos de utilização e das condições específicas referidas no artigo 28.º, os quais podem incluir custos de cooperação internacional, harmonização e normalização, análise de mercados, vigilância do cumprimento e outros tipos de controlo do mercado, bem como trabalho de regulação que envolva a preparação e execução de legislação derivada e decisões administrativas, como decisões em matéria de acesso e interligação, devendo ser impostos às empresas de forma objetiva, transparente e proporcionada, que minimize os custos administrativos adicionais e os encargos conexos.
5 - A ARN deve publicar um relatório anual dos seus custos administrativos e do montante total resultante da cobrança das taxas a que se referem as alíneas a) a d) do n.º 1 por forma a proceder aos devidos ajustamentos em função da diferença entre o montante total das taxas e os custos administrativos.
6 - As taxas referidas nas alíneas e) e f) do n.º 1 devem refletir a necessidade de garantir a utilização ótima das frequências e dos números e devem ser objetivamente justificadas, transparentes, não discriminatórias e proporcionadas relativamente ao fim a que se destinam, devendo ainda ter em conta os objetivos de regulação fixados no artigo 5.º”.
6 - Na sequência da revogação da Diretiva 2002/20/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março de 2002, pela Diretiva (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que estabelece o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas, foi aprovada uma nova Lei das Comunicações Eletrónicas - 41/2004, de 18 de agosto e 99/2009, de 4 de setembro, e os Decretos-Leis 151-A/2000, de 20 de julho e 24/2014, de 14 de fevereiro, e revogando a Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, e a Portaria n.º 791/98, de 22 de setembro">Lei 16/2022, de 16 de agosto (lei nova, ou “LN”) -, com a consequente revogação da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro, anterior Lei das Comunicações Eletrónicas (lei antiga, ou “LA”).
Atendendo a que a Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, foi aprovada na vigência da LA, poder-se-ia colocar a possibilidade da respetiva caducidade em virtude da sua revogação pela 41/2004, de 18 de agosto e 99/2009, de 4 de setembro, e os Decretos-Leis 151-A/2000, de 20 de julho e 24/2014, de 14 de fevereiro, e revogando a Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, e a Portaria n.º 791/98, de 22 de setembro">Lei 16/2022, de 16 de agosto. Contudo, o legislador resolveu expressamente esta problemática, determinando, no n.º 3 do artigo 10.º da referida 41/2004, de 18 de agosto e 99/2009, de 4 de setembro, e os Decretos-Leis 151-A/2000, de 20 de julho e 24/2014, de 14 de fevereiro, e revogando a Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, e a Portaria n.º 791/98, de 22 de setembro">Lei 16/2022, que a Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, se mantém em vigor “até à sua revogação pela portaria a que se referem os artigos 167.º e 168.º”. Fica, por conseguinte, afastada, em razão desta determinação, a hipótese de caducidade das normas sub judicio.
Noutro plano, poderia questionar-se se, com a disposição normativa de que acaba de dar-se nota, o legislador teria sancionado o conteúdo do referido regulamento administrativo, para o efeito de conferir natureza legislativa ao teor das disposições contidas em tal diploma. Em tal hipótese, ter-se-ia operado, por lei da Assembleia da República, a legalização das normas em apreço, isto é, uma convolação de normas regulamentares em normas legais, com o que deixaria de se colocar um problema de violação da reserva da função legislativa. Deve reconhecer-se, porém, que não há qualquer elemento que sustente uma tal interpretação.
Com efeito, ao determinar, sem mais, que a aludida portaria se mantenha em vigor, o legislador especifica, em termos que não deixam margem para dúvidas, que as respetivas normas continuem em vigor sob a forma de portaria e, como é lícito concluir, com a natureza de regulamento administrativo. A teleologia daquela norma traduz, pois, a intenção normativa de assegurar, no caso vertente, a solução que, em termos gerais, resulta da parte final do n.º 2 do artigo 145.º do Código do Procedimento Administrativo para os regulamentos de execução, qual seja a da manutenção em vigor dos regulamentos “que sejam compatíveis com a lei nova e enquanto não houver regulamentação desta”.
Neste sentido, entende-se não ocorrer in casu uma situação de inutilidade superveniente da lide, potencialmente impeditiva do conhecimento da causa.
7 - O juízo de inconstitucionalidade cuja generalização se visa com os presentes autos começou por ser formulado no Acórdão 429/2023, cujos fundamentos encontram, no essencial, eco na jurisprudência subsequente, que é, aliás, uniforme no sentido desse mesmo juízo.
Em primeiro lugar, explica-se nesse aresto que “o objeto do recurso apresenta alguns pontos de contacto com aquele que foi apreciado pelo Acórdão 152/2022, no qual se decidiu julgar inconstitucionais, por violação das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, as normas constantes dos n.os 2 e 3 do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, na parte em que determinam a incidência objetiva e a taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados no ‘escalão 2’.” Nesse sentido, destacam-se alguns segmentos argumentativos do Acórdão 152/2022, o primeiro dos quais relativo à natureza da taxa em questão:
«Como este Tribunal tem repetidamente afirmado, a questão da natureza de um concreto tributo só pode ser esclarecida através da análise do respetivo regime jurídico, sendo para este efeito irrelevante a designação ou qualificação expressa do tributo como «taxa» ou contrapartida pela prestação de um determinado serviço (neste sentido, v. os Acórdãos n.os 365/2008, 539/2015, 848/2017, 344/2019 e 268/2021).
Ora, ao contrário do que sucede com as «taxas» a que se refere o n.º 1 do artigo 44.º da Lei 17/2012, o facto gerador da TRP não é nenhuma prestação administrativa individualizável, mas sim o conjunto de prestações associadas às atividades de regulação, supervisão e fiscalização das atividades de prestação de serviços postais. É o que resulta dos n.os 3 e 4 do artigo 44.º da lei que cria o tributo ao qual, segundo o n.º 2, estão sujeitos todos os prestadores de serviços postais que exerçam as atividades reguladas e fiscalizadas. Porém, e como adiante se verá, o n.º 2 do Anexo IX da Portaria reduz o universo de sujeitos passivos, ao isentar do pagamento do tributo todos os operadores que, no ano anterior àquele em que a TRP é devida, não demonstrem ter rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de serviços postais superiores a 250 000 € (duzentos e cinquenta mil euros).
No que respeita à incidência objetiva, os tributos a suportar por estes operadores devem, nos termos do n.º 4 do artigo 44.º da Lei 17/2012, ter por base os custos decorrentes da regulação, supervisão e fiscalização das suas atividades, incluindo-se aí os «custos associados às tarefas administrativas, técnicas e operacionais» (v. o n.º 3). O modo como é apurado o montante total de custos a considerar foi, também, objeto de desenvolvimento no Anexo IX da Portaria, constando do Preâmbulo da Portaria 296-A/2013 o seguinte esclarecimento:
«Quanto à taxa referente ao exercício da atividade de prestador de serviços postais, determina-se que o montante total de custos a considerar para apuramento desta taxa em cada ano corresponde ao respetivo valor médio nos três últimos exercícios (sem provisões para processos judiciais) adicionado do valor médio das provisões para processos judiciais no setor postal nos cinco últimos exercícios. Este método permite evitar flutuações acentuadas de taxas por via de alterações dos custos, preservando os princípios da previsibilidade e da transparência.»
Segundo o n.º 3 do Anexo IX, os custos a considerar, apurados segundo este método e com base na contabilidade, são objeto de divulgação anual. O valor da taxa a suportar por cada um dos prestadores de serviços postais não é, todavia, o resultado de uma simples operação de divisão dos custos assim apurados pelo número de operadores autorizados a exercer a atividade regulada. No Anexo IX, seguindo o modelo adotado para o cálculo da taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas [v. o artigo 105.º, n.º 1, alínea b), da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro, e o Anexo II da Portaria 1473-B/2008], optou-se por estabelecer uma diferenciação entre operadores em função dos «rendimentos relevantes» apresentados, além da já mencionada isenção dos prestadores de serviços com rendimentos inferiores a 250 000 €.
[...]
Assim, os prestadores de serviços do escalão 1 são chamados a pagar a taxa fixa de 2500 € (dois mil e quinhentos euros), independentemente do concreto valor dos «rendimentos relevantes» que tenham auferido no ano anterior ou do montante global dos custos apurados pela ANACOM para o ano em que é devido o tributo, enquanto os sujeitos passivos abrangidos pelo «escalão 2» devem pagar um montante variável, igual ao produto da multiplicação do coeficiente t2 pelos rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de serviços postais apurados no período anterior àquele em que a taxa é devida, a que se subtrai a «parcela a abater». A fórmula de cálculo desse coeficiente, ou da «percentagem contributiva dos operadores do escalão 2 no ano a que se reporta o tributo», visa assegurar que, subtraindo o montante a pagar pelas entidades do escalão 1 ao valor global dos custos de regulação a cobrir em cada ano, o remanescente é prestado por cada operador do «escalão 2», em função dos rendimentos relevantes que auferiram no ano anterior, de modo a assegurar a total cobertura dos custos de regulação.
Trata-se, pois, de uma técnica de repartição: o montante global da receita a receber é, no essencial, predeterminado em função dos custos apurados segundo a contabilidade e repartido pelos sujeitos passivos não isentos em função dos rendimentos relevantes em duas fases. Na primeira, apura-se o valor global dos tributos a pagar pelos operadores inseridos no «escalão 1»; na segunda, o remanescente da receita a receber é repartido pelos operadores inseridos no «escalão 2» segundo a percentagem contributiva apurada para esse escalão e aplicada aos rendimentos relevantes de cada operador. Mas a receita final não será tanto maior, quanto maiores forem os rendimentos relevantes recebidos pelos operadores inseridos no «escalão 2», antes resultará num valor global aproximadamente igual ao montante dos custos suportados pela ANACOM.
Por último, importa referir que, nos termos do n.º 3 do artigo 44.º da Lei 17/2012, o montante das «taxas» liquidadas e cobradas constitui receita da ANACOM».
Seguidamente, conclui-se no Acórdão citado, com clareza, que a taxa em análise «[...] é uma verdadeira contribuição financeira, e não um imposto, de modo que normas sindicadas não se encontram sob o domínio de incidência do n.º 2 do artigo 103.º da Constituição». O Tribunal alcançou tal conclusão à luz do duplo critério (finalístico e estrutural) já adotado em jurisprudência precedente (cf., inter alia, Acórdão 268/2021), assinalando, por um lado, que estas taxas «[...] constituem receita da ANACOM e não é questionado pelas partes que visem compensar os custos decorrentes da regulação, supervisão e fiscalização das suas atividades [...]» e que, por outro lado, «[...] se afigura razoável fazer recair sobre o grupo de prestadores de serviços postais o ónus de suportar a TRP, uma vez que os operadores integrados nesse universo não só contribuem, com o exercício da sua atividade económica, para agravar os custos que para o Estado resultam da necessidade de intervir na regulação e supervisão do mercado, como é razoável presumir que esses operadores económicos retirarão um especial benefício, ainda que difuso, do regular exercício pela ANACOM das funções que a lei lhe comete neste âmbito».
Aspeto igualmente relevante, também assinalado no referido aresto, é o de saber se «[...] a circunstância de os vários operadores serem chamados a suportar tributos de montante diverso, em função dos rendimentos relevantes apurados, não denuncia uma quebra na relação que deve subsistir entre o tributo e o custo presumidamente provocado (ou o benefício presumidamente aproveitado) por cada sujeito passivo», o que conduziria à qualificação do tributo em causa como imposto e não já como contribuição financeira.
Respondendo à questão enunciada, entendeu-se na jurisprudência para a qual aqui se remete, estabelecendo um paralelismo com anteriores decisões deste Tribunal Constitucional sobre a «Taxa de Segurança Alimentar Mais» - veja-se, a este respeito, e por exemplo, o teor do Acórdão 539/2015 -, que «[...] o nível de rendimentos relevantes auferidos por um prestador de serviços postais pode, neste contexto, ser tomado como um critério razoável de diferenciação, uma vez que se pode supor que os operadores com maiores rendimentos, por terem um maior volume de negócios e uma posição mais saliente no mercado, geram custos de regulação e supervisão não comparáveis com aqueles que são gerados por prestadores de serviços cuja atividade tem uma expressão menor no setor». Assim, acrescenta-se, e «na medida em que tais rendimentos constituem um indício relevante da participação proporcional que cada operador deve ter na cobertura dos custos a que presumivelmente dá origem, não fica prejudicada a comutatividade característica das contribuições financeiras».
Ainda sobre esta matéria, e respondendo a alegações da então recorrente, nos termos da qual as normas em causa consubstanciariam, precisamente, um imposto, reiterou-se no Acórdão 429/2023:
«O tributo em causa visa o exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas [artigo 105.º, n.º 1, alínea b), da LCE, na aludida redação], constitui receita da ANACOM e visa compensar os custos decorrentes da regulação, supervisão e fiscalização da atividade em causa.
À semelhança do que se concluiu no Acórdão 152/2022 relativamente aos prestadores de serviços postais, “afigura-se razoável fazer recair sobre o grupo de [fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas] o ónus de suportar [o tributo], uma vez que os [fornecedores] integrados nesse universo não só contribuem, com o exercício da sua atividade económica, para agravar os custos que para o Estado resultam da necessidade de intervir na regulação e supervisão do mercado, como é razoável presumir que esses operadores económicos retirarão um especial benefício, ainda que difuso, do regular exercício pela ANACOM das funções que a lei lhe comete neste âmbito”.
Por outro lado, o escalonamento do tributo com base nos rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de comunicações eletrónicas não o descaracteriza, só por si, “[na] medida em que tais rendimentos constituem um indício relevante da participação proporcional que cada [fornecedor] deve ter na cobertura dos custos a que presumivelmente dá origem” (último acórdão cit.).
Também não o descaracteriza a circunstância de no seu cálculo serem contabilizadas provisões da ANACOM para processos judiciais em curso, intentados contra o regulador, visto que o contencioso se integra no âmbito da respetiva atividade normal.
Ademais, quanto aos rendimentos relevantes, a previsão do n.º 3 do Anexo II, que determina que os rendimentos relevantes “não devem incluir a venda de equipamentos terminais ou receitas provenientes de outras atividades que não a de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas” obvia à distorção descaracterizadora invocada pela recorrida, pois centra o critério essencial na atividade regulada.
Assim, mantém-se ajustada ao tributo previsto no Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, a conclusão de que se trata de uma contribuição financeira. Com tal qualificação, improcede também o argumento da recorrida no sentido de que o artigo 105.º da LCE “apenas prevê a cobrança de “taxas”, pelo que não assumindo o tributo sub judice a natureza de “taxa”, mas sim de “imposto”, não tem cobertura naquele preceito” - a LCE, com maior ou menor precisão, refere-se à matriz dos tributos bilaterais (a taxa), sendo esta previsão compatível com a existência de uma contribuição financeira».
8 - Caraterizado desta forma o tributo em apreço, o Acórdão 429/2023, citando o Acórdão 152/2022, começou por clarificar o regime de reserva parlamentar aplicável às contribuições financeiras e o alcance, quanto a elas, do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, tendo em conta a circunstância de não ter sido aprovado o regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a que essa disposição se refere. Assim, estribando-se também já em jurisprudência anterior e, nomeadamente, nos Acórdãos n.os 268/2021, 539/2015 e 152/2013, ali se explicou o seguinte:
«Relembre-se que, na ausência do enquadramento legislativo geral a que se refere a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º, o Tribunal tem reconhecido ao Governo a possibilidade de exercer uma competência concorrente em matéria de contribuições financeiras, mas - como se salvaguardou no Acórdão 539/2015 - «sem prejuízo da Assembleia sempre poder revogar, alterar ou suspender o respetivo diploma, no exercício dos seus poderes constitucionais». Esta salvaguarda aponta para a exigência de que os elementos essenciais das contribuições financeiras sejam definidos por ato legislativo do Parlamento ou do Governo. Com efeito, ao determinar que o regime geral das contribuições financeiras integra a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, a Constituição atribui, pelo menos de modo implícito, natureza legislativa a toda a matéria das contribuições na ausência de um regime geral. Esta exigência de que a matéria seja regulada por ato legislativo é da maior relevância, pois não obstante o mesmo órgão - o Governo - ter simultaneamente competência legislativa e regulamentar, há diferenças significativas entre o regime constitucional dos decretos-leis e dos regulamentos, seja qual for a forma que estes revistam. Como se explica no Acórdão 474/2021, a propósito da distinção entre decretos-leis e decretos regulamentares:
“A Constituição impõe que os regulamentos independentes revistam a forma de decreto regulamentar (n.º 6 do artigo 112.º), tal se devendo ao facto, não apenas de estes serem assinados pelo Primeiro-Ministro (n.º 3 do artigo 201.º) - ao contrário das portarias ou dos despachos dos membros do Governo -, como ainda - ao contrário do que sucede também com as resoluções do Conselho de Ministros com conteúdo normativo - de carecerem da promulgação do Presidente da República [alínea b) do artigo 134.º] e implicarem recurso obrigatório do Ministério Público para o Tribunal Constitucional em caso de recusa de aplicação de norma (n.º 3 do artigo 280.º). Estes traços de regime aproximam os decretos regulamentares, em boa medida, do regime constitucional dos decretos-leis; mas há certas qualidades procedimentais, relevantes do ponto de vista da legitimidade democrática e da separação de poderes, que só estes possuem. Com efeito, ao contrário dos decretos regulamentares, os decretos-leis, mormente em matéria de competência legislativa concorrencial, devem ser aprovados em Conselho Ministros [alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º], estão sujeitos a apreciação parlamentar (artigo 169.º) e podem ser objeto de fiscalização preventiva da constitucionalidade [alínea g) do artigo 134.º]”».
Foi, pois, fundamentalmente, à luz destas considerações que as normas sindicadas foram, então, julgadas inconstitucionais por este Tribunal, conforme se explicita ainda no mencionado Acórdão 429/2023, seguindo o Acórdão 152/2022:
«Ora, as normas do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008 aqui em apreço regulamentam, é certo, a Lei 17/2012, mas em termos que, face à delimitação da incidência subjetiva e objetiva que resulta dos n.os 2 a 4 do artigo 44.º deste diploma, não podem deixar de ser considerados substancialmente inovatórios. No que respeita, em especial, à parte em que é determinada a incidência objetiva e a taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados no «escalão 2» (única dimensão normativa que constitui o objeto do presente recurso) é a Portaria que cria escalões, que define o universo de sujeitos passivos que integram o «escalão 2» e que elege como critério determinante da repartição dos custos a compensar os rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de serviços postais apurados no ano anterior àquele a que a taxa se reporta, do qual resulta a taxa concretamente aplicada aos prestadores de serviços postais enquadrados neste escalão.
Assim, forçoso é reconhecer que certos elementos da TRP, determinantes da quantificação do tributo, foram objeto de normação primária por via regulamentar, ou seja, através do exercício da função administrativa. Acontece que esses elementos integram a reserva de função legislativa, reserva essa cujo desiderato, na ausência de um regime geral das contribuições financeiras constante de lei parlamentar ou decreto-lei devidamente autorizado, é o de assegurar um certo nível de coerência, transparência, equidade e legitimidade na criação desses tributos. Claro está que, se a matéria em causa integra o domínio da competência legislativa concorrencial da Assembleia da República e do Governo, não está em causa simplesmente a violação da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, cujo alcance é o de delimitar o domínio reservado ao legislador parlamentar em matéria tributária. Em causa está antes a invasão pelo poder administrativo de um domínio que a ordem constitucional reserva ao poder legislativo, ou seja, em que esta não é indiferente a que a regulação da matéria - os elementos essenciais das contribuições financeiras − conste de decreto-lei ou de mero regulamento. O problema essencial, como é bom de ver, prende-se com a legalidade da Administração Pública, relevando do inciso inicial do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, não na dimensão de preferência de lei - que, por ser uma questão de legalidade, em que o parâmetro imediato de controlo é a lei ordinária, extravasa os poderes de cognição da jurisdição constitucional −, mas na dimensão de reserva de lei - que, por dizer respeito a saber se as normas regulamentares invadem um domínio que a Constituição reserva ao legislador, consubstancia uma questão de constitucionalidade. Ora, as normas constantes dos n.os 2 e 3 do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, ao regularem de forma inovatória elementos essenciais da taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados no «escalão 2», violam essa reserva de função legislativa que se pode extrair das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição. Essa a razão pela qual, ainda que com fundamentos distintos, cabe negar provimento ao recurso».
Por fim, e especificamente sobre as taxas aplicáveis em relação aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónica, acrescentou-se, ainda, no Acórdão 429/2023:
«Quanto à violação do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, importa assinalar que o artigo 105.º da LCE não oferece um critério minimamente preciso para a determinação do valor do tributo previsto na alínea b) do seu n.º 1. Da lei resulta apenas que se trata de tributar “a atividade”.
Do n.º 4 daquele artigo 105.º resulta apenas que o montante do tributo é determinado “em função dos custos administrativos decorrentes da gestão, controlo e aplicação do regime de autorização geral, bem como dos direitos de utilização e das condições específicas referidas no artigo 28.º, os quais podem incluir custos de cooperação internacional, harmonização e normalização, análise de mercados, vigilância do cumprimento e outros tipos de controlo do mercado, bem como trabalho de regulação que envolva a preparação e execução de legislação derivada e decisões administrativas, como decisões em matéria de acesso e interligação”, o que apenas nos diz quais os custos relevantes do lado do regulador. No mais, apenas se prevê que devem ser “impostos às empresas de forma objetiva, transparente e proporcionada, que minimize os custos administrativos adicionais e os encargos conexos”, exigências que, estando inscritas à partida no regime constitucional e legal dos tributos, pouco mais são do que redundantes.
Consequentemente, a previsão por via regulamentar de todos os demais elementos, designadamente, os escalões, as taxas aplicáveis e todos os pressupostos de que depende o cálculo da taxa T2 não pode deixar de ser vista como uma concessão ao Governo de uma margem quase absoluta de modelação tributária. Valem aqui, mutatis mutandis, as palavras do Acórdão 348/2023 (e, por via deste, do Acórdão 152/2022):
“[...]
Não se trata, apenas, de a lei “[...] não [entrar] no detalhe das opções subjacentes à distribuição dos custos de regulação pelos operadores postais, remetendo essa matéria para portaria, precisamente porque pretendeu atribuir ao Governo margem de escolha quanto à forma de repartição desses custos de regulação”. Do que se trata é de a “falta de detalhe” da lei ser tal que a “margem de escolha” do Governo se reconduz, desde logo, a escolher, por sua única iniciativa, como vai repartir o universo de sujeitos passivos pelos escalões que entender criar, bem como todos os critérios de apuramento dos custos relevantes da ANACOM, de um lado, dos rendimentos relevantes dos operadores, que, num e noutro caso, a lei não delimita minimamente. Tal margem de conformação normativa não pode, assim, deixar de ser entendida como essencialmente inovadora, em termos não compagináveis com as exigências de densificação mínima por via legislativa a que estão sujeitas as contribuições financeiras.
Vale o exposto por dizer, regressando ao Acórdão 152/2022, que elementos essenciais do tributo “[...] foram objeto de normação primária por via regulamentar, ou seja, através do exercício da função administrativa”, elementos esses que “integram a reserva de função legislativa, reserva essa cujo desiderato, na ausência de um regime geral das contribuições financeiras constante de lei parlamentar ou decreto-lei devidamente autorizado, é o de assegurar um certo nível de coerência, transparência, equidade e legitimidade na criação desses tributos. Claro está que, se a matéria em causa integra o domínio da competência legislativa concorrencial da Assembleia da República e do Governo, não está em causa simplesmente a violação da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, cujo alcance é o de delimitar o domínio reservado ao legislador parlamentar em matéria tributária. Em causa está antes a invasão pelo poder administrativo de um domínio que a ordem constitucional reserva ao poder legislativo, ou seja, em que esta não é indiferente a que a regulação da matéria - os elementos essenciais das contribuições financeiras − conste de decreto-lei ou de mero regulamento. O problema essencial, como é bom de ver, prende-se com a legalidade da Administração Pública, relevando do inciso inicial do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, não na dimensão de preferência de lei - que, por ser uma questão de legalidade, em que o parâmetro imediato de controlo é a lei ordinária, extravasa os poderes de cognição da jurisdição constitucional -, mas na dimensão de reserva de lei - que, por dizer respeito a saber se as normas regulamentares invadem um domínio que a Constituição reserva ao legislador, consubstancia uma questão de constitucionalidade. Ora, as normas constantes dos n.os 2 e 3 do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, ao regularem de forma inovatória elementos essenciais da taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados no «escalão 2», violam essa reserva de função legislativa que se pode extrair das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição”.
[...]”.
Os argumentos que a recorrente traz nas suas alegações não são aptos a afastar esta conclusão.
Não pode afirmar-se, designadamente, que o padrão de densidade normativa em causa esbate a fronteira entre impostos e contribuições financeiras, uma vez que, no caso, se trata de uma indefinição quase absoluta dos termos da tributação. Por outro lado, sendo certo que cabe ao legislador parlamentar “a criação das contribuições financeiras individualmente consideradas”, a verdade é que, no caso da contribuição questionada neste processo, o legislador não a criou, propriamente, porque o tributo está previsto na LCE sem elementos minimamente definidores, deixando toda essa tarefa para o plano regulamentar.
Não há, pois, desenvolvimento de um tributo preexistente, mas sim a criação de um tributo pelo Governo (designadamente quanto às suas incidência e taxa), que da lei só traz pouco mais do que a sua designação. A recorrente apela, reiteradamente, a uma ideia de exigência de densificação máxima, mas trata-se de o legislador não ter respeitado uma densificação mínima.
A falta de definição por via legal dos elementos mínimos do tributo não pode dar-se por suprida por uma vaga referência do considerando 31 da Diretiva n.º 2002/20/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 7 de março de 2002 relativa à autorização de redes e serviços de comunicações eletrónicas (diretiva autorização) a um certo modelo tributário, ao prever que “[como] exemplo de uma alternativa justa, simples e transparente para os critérios de atribuição de encargos poder-se-ia recorrer a uma chave de repartição baseada no volume de negócios. Nos casos em que os encargos administrativos são muito baixos, poderia também ser adequado aplicar uma taxa uniforme ou combinar uma base de taxa uniforme com um elemento relacionado com o volume de negócios”.
A este propósito, é intransponível para o caso dos presentes autos, ao contrário do invocado pela recorrente, a apreciação do Acórdão 80/2014 quanto ao grau de densificação por via legislativa, estando em causa a transposição de uma diretiva. É que, em tal aresto, estava em causa um regime em que “[...] a norma da diretiva é de tal modo precisa, clara e incondicional quanto às “penalizações” que devem recair sobre as emissões excedentárias, fixando o seu quantitativo exato, que não deixa ao Estado Português qualquer margem de apreciação, pelo que a eventual existência de um regime geral aprovado pela Assembleia da República não seria suscetível de interferir nas opções do legislador. Aliás, de acordo com o artigo 8.º, n.º 4, da Constituição, as normas da diretiva sempre prevaleceriam sobre eventuais normas legais que lhe fossem contrárias”, o que, manifestamente, não ocorre com o tributo previsto no Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro.
Pode, então, concluir-se, à semelhança do Acórdão 244/2023, que a contribuição a que se refere o Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, “não apresenta particularidade de relevo em relação àquele que foi apreciado nos Acórdãos n.º 152/2022 e n.º 754/2022 acima indicados, nem qualquer outra razão que justifique apreciação diversa da que ali foi adotada. Na verdade, o concreto problema em causa - o facto de se tratar de normas que definem, na prática, e em termos inovatórios, a incidência objetiva e subjetiva e a taxa, elementos fundamentais na determinação do tributo em questão - é em tudo idêntico ao que naqueles arestos se apreciou”.
Encontrando-se os elementos essenciais do tributo e a fórmula de cálculo no n.º 1 do Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, a inconstitucionalidade referida ao n.º 2 do referido anexo é consequencial, por se tratar de preceito que completa aquela primeira previsão, quanto à fixação de alguns elementos da referida fórmula».
9 - Em suma, em face do Acórdão 429/2023, as normas sindicadas foram julgadas inconstitucionais, tendo-se então por base uma argumentação que se firmara já a propósito da taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais, assente nas seguintes premissas: (i) o tributo em causa é qualificável como contribuição financeira e não como imposto; (ii) na ausência de um regime geral relativo a esses tributos, o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da Constituição impõe uma reserva de função legislativa - ainda que não uma reserva de competência legislativa da Assembleia da República quanto a cada uma das contribuições financeiras criadas; e; (iii) a contribuição financeira concretamente em apreço incorreu numa violação dessa reserva de função legislativa, por se ter feito uso da via regulamentar para conformar, inovatoriamente, a incidência objetiva e a taxa a aplicar em relação aos enquadrados no “escalão 2” a que aludem as normas sindicadas. Ao proceder-se a essa conformação por via regulamentar, entendeu o Tribunal Constitucional, terem sido violados os parâmetros constitucionais resultantes das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º, ambos da Constituição.
A jurisprudência subsequente, de que acima se deu nota, não se afastou nem do juízo de inconstitucionalidade, nem, substancialmente, da respetiva fundamentação. Com efeito, nota-se, em todos os restantes Acórdãos mencionados (Acórdãos n.os 606/2023, 608/2023, 609/2023, 614/2023, 722/2023, 740/2023, 788/2023, 44/2024, 330/2024, 332/2024 e 334/2024), um entendimento essencialmente uniforme no que respeita quer à qualificação do tributo, quer ao enquadramento constitucional atinente às contribuições financeiras, quer, por fim, quanto às consequências desse quadro paramétrico para o juízo de conformidade constitucional das normas ora questionadas.
Deste modo, reiterando o sentido daquela jurisprudência, resta proceder à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 1 e 2 do Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro.
10 - De acordo com o n.º 1 do artigo 282.º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado. Deste preceito resulta que, com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, os efeitos direta ou indiretamente produzidos pela norma inconstitucional desde a sua entrada em vigor serão destruídos, assim se assegurando a máxima efetividade das normas constitucionais e, bem assim, a plena reintegração da constitucionalidade violada. O n.º 3 do mesmo artigo determina, entretanto, a subsistência ipso iure dos casos julgados, salvo decisão em contrário deste Tribunal Constitucional quando a norma declarada inconstitucional respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.
Reconhecendo, todavia, que, em certas situações, outros valores e interesses constitucionalmente relevantes deverão poder prevalecer sobre a efetividade das normas constitucionais violadas, o n.º 4 do artigo 282.º da Constituição habilita o Tribunal Constitucional a restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, quando o exigirem a segurança jurídica, razões de equidade ou um interesse público de excecional relevo. É, precisamente, com estes fundamentos que, no caso vertente, o Primeiro-Ministro, na sua pronúncia, requer a mencionada limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Alega, designadamente, que “atentos os valores globais (...) uma transferência para o Estado e, por consequência, para a generalidade dos contribuintes, dos custos com o financiamento da regulação do sector postal” abalaria “seriamente o interesse público e o equilíbrio das contas públicas que lhe inere”; mais acrescenta que a declaração de inconstitucionalidade poderia ainda vulnerar “a medida do valor da equidade” e a segurança jurídica.
Porém, não se crê que sejam procedentes os argumentos do Primeiro-Ministro. É importante lembrar que os efeitos ex tunc resultam de norma constitucional expressa, representando a escolha do legislador constituinte. Para os afastar, não bastam, pois, alegações de teor genérico acerca de riscos para a segurança jurídica e para a equidade. Na verdade, estes verificar-se-ão na maioria dos casos e foram já, certamente, objeto de ponderação na opção constitucional relativa aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Por outro lado, o peso económico-financeiro da decisão, neste caso concreto, a que alude igualmente o Primeiro-Ministro, tão pouco se tem por total, ou em larga medida, evitável, atento o elevado número de impugnações judiciais dos atos de liquidação do tributo aqui em causa, parte das quais seguem ainda o normal curso jurisdicional. Nestes termos, e na medida em que a regra, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, é a declaração de inconstitucionalidade produzir efeitos retroativos à data de entrada em vigor da norma, uma decisão em contrário por parte deste Tribunal exige uma certeza e uma preponderância dos fundamentos para tal que não pode ter-se verificada neste caso.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 1 e 2 do Anexo II da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, na parte em que determinam a incidência e a taxa a aplicar em relação aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas enquadrados no ‘escalão 2’, por violação do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e no n.º 2 do artigo 266.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Sem custas.
Lisboa, 29 de outubro de 2024. - Mariana Canotilho - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão - António José da Ascensão Ramos - João Carlos Loureiro - José Eduardo Figueiredo Dias - Rui Guerra da Fonseca - Maria Benedita Urbano - José Teles Pereira - Carlos Medeiros de Carvalho - Gonçalo Almeida Ribeiro - Dora Lucas Neto - José João Abrantes.
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