Acórdão 362/94
Processo 346/93
I
1 - O Procurador-Geral da República, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 e da alínea e) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, solicitou que este Tribunal apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação da alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da lei fundamental, das normas constantes dos artigos 18.º a 29.º e 32.º a 46.º, todos do Decreto-Lei 14/93, de 18 de Janeiro.
Fundamentou o seu pedido com base, em síntese, nas seguintes considerações:
a) O decreto-lei em causa, que aprovou a Lei Orgânica da Inspecção-Geral das Actividades Económicas, inseriu, nos seus capítulos IV e V, numerosos preceitos que têm incidência directa na disciplina laboral dos respectivos funcionários, nomeadamente no que tange às carreiras de regime especial, regulamentando a respectiva estrutura, condições de ingresso e acesso e conteúdo funcional, além de, de um lado, instituir matéria respeitante às remunerações do pessoal ao serviço daquela Inspecção-Geral, adoptando uma escala indiciária especial, regulando determinados subsídios ou suplementos de vencimento e normatizando sobre a mobilidade geográfica e regime de duração do trabalho, aposentação e incompatibilidades de tal pessoal e, de outro, proceder ao estabelecimento de um regime transitório destinado a possibilitar a transição do pessoal ao serviço da Direcção-Geral de Inspecção Económica, que extinguiu;
b) Aqueles preceitos constituem, inequivocamente na visão do requerente, legislação relativa a um regime especial da função pública, assumindo-se, pois, como legislação de trabalho desta, motivo pelo qual, por força do que se consagra na aludida alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição, deveria ter sido facultado às associações representativas dos trabalhadores interessados a possibilidade de participarem na elaboração de tais preceitos, sendo certo que a circunstância de os mesmos surgirem sistematicamente inseridos num diploma que visa também a reestruturação orgânica de um serviço da Administração não lhes retira a natureza de legislação de trabalho em termos de precludir o direito de audição dos trabalhadores;
c) O facto de o preâmbulo do diploma em questão não referir uma tal participação leva a presumir que ela não teve lugar, ao que acresce que resulta seguro que na elaboração do decreto-lei em crise não participaram, pelo menos, os sindicatos interessados representados pela Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública.
2 - Notificado o Primeiro-Ministro, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio o mesmo defender a plena constitucionalidade das normas impugnadas, para o que carreou a seguinte argumentação:
a) Muito embora o preâmbulo do Decreto-Lei 14/93 não contenha qualquer menção sobre a audição das associações representativas dos trabalhadores interessados, o que conduziria, segundo alguma jurisprudência deste Tribunal, à presunção de falta de audição, o que é certo é que a omissão dessa menção, relativamente às associações representativas dos trabalhadores da função pública, não implica a presunção legal de inexistência de audição, pois que nenhuma norma, designadamente constante do Decreto-Lei 45-A/84, de 3 de Fevereiro, isso consagra;
b) Sendo assim, não se pode, no caso, dar como provada a falta de audição dos trabalhadores, razão pela qual o requerente, antes de formular o presente pedido, deveria ter comprovado se houve, ou não, efectivamente, omissão daquele dever, uma vez que, se o tivesse feito, «decerto lhe teria sido confirmada a efectivação dessa diligência»;
c) Para efeitos de subsunção ao conceito normativo de «legislação de trabalho» a que se reporta a Constituição, e tendo por referência a especificidade do regime da função pública, tendo em conta o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º e no artigo 12.º, um e outro do falado Decreto-Lei 45-A/84, parece que haverão que ser tidos em consideração os preceitos relativos aos «estatutos gerais ou especiais dos trabalhadores da função pública, na medida em que não constituam a directa projecção de um específico modelo organizativo, de gestão de recursos humanos ou de funcionamento da estrutura da administração», logo carecendo «de audição as regras que preexistem e modelam essa estrutura, que condicionam a opção por um dado modelo organizativo ou de funcionamento»;
d) Perante estes parâmetros, será cabido perguntar se se poderá «legitimamente qualificar a norma de habilitação para a aprovação do quadro de pessoal como integrante do estatuto especial dos trabalhadores da Inspecção-Geral das Actividades Económicas (n.º 1 do artigo 18.º do Decreto-Lei 14/93)» e se o mesmo se poderá seriamente dizer acerca «do n.º 2 do artigo 18.º, que se limita a cumprir a injunção do artigo 25.º do Decreto-Lei 184/89, de 2 de Junho, ou do artigo 19.º, que se limita a remeter para as disposições gerais aplicáveis», igualmente isso assim sucedendo «quanto a muitas das demais disposições impugnadas»;
e) Em «todos estes casos se trata de normas sem conteúdo verdadeiramente substancial, reportadas à futura produção regulamentar ou inseridas para mais clara aplicação dos diplomas pelos serviços», «e que constituem verdadeiras cláusulas de estilo»;
f) Mas, para além destas normas, outras há, de entre as impugnadas, que podem, «até, aparecer como verdadeiras inovações de substância», não o sendo, contudo, senão na aparência;
g) É que, entre as fontes de direito do trabalho, ao lado dos actos inovadores que criam, alteram ou extinguem direitos e deveres das partes, existem outros actos, tais como os regulamentos, «que se limitam a adaptar essa disciplina à especificidade do ambiente em que vai ser aplicada», de entre estes avultando os regulamentos de empresa, os quais não constituem «legislação do trabalho»;
h) A quase totalidade das regras questionadas constituem meras normas de organização interna do funcionamento da Inspecção-Geral das Actividades Económicas, normas essas «que apenas constam de diploma com força de lei porque se trata de uma pessoa colectiva de direito público», mas que, de todo o modo, materialmente, são disposições regulamentares e, como tais, não se encontram abrangidas pela noção «legislação do trabalho».
3 - Ponderando a consideração constante da pronúncia do Primeiro-Ministro atrás sintetizada no n.º 2, alínea a), solicitou o relator que o mesmo informasse este Tribunal sobre se, na realidade, no processo de edição do diploma em cujo articulado se inserem as normas impugnadas houve audição das associações representativas dos trabalhadores interessados e, na afirmativa, que fosse remetida a pertinente e demonstrativa documentação.
Em resposta, aquela entidade, em 27 de Janeiro de 1994, informou o Tribunal de que «a aprovação do diploma foi precedida de extensos contactos com as associações sindicais representativas dos trabalhadores em causa, nomeadamente com a Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública», enviando, do mesmo passo, fotocópia de vário expediente documental de onde, inequivocamente, se extrai que, no decorrer do processo que haveria de conduzir à edição do Decreto-Lei 14/93, foram tidos, entre a administração governamental e as Associação Nacional dos Funcionários da Inspecção Económica (ANFIE) e Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública, vários contactos, tendo sido dado conhecimento a estes organismos representativos dos trabalhadores do (ou dos) projecto(s) de diploma elaborado(s).
De posse destes dados de facto, cumpre analisar o pedido.
II
1 - Como se viu, o requerente fundamenta o pedido que formulou na circunstância de, devendo as normas acima referidas ser consideradas como integrando o conceito de legislação do trabalho, e tendo em conta que no respectivo processo de edição não participaram as associações sindicais representativas dos trabalhadores interessados, as mesmas enfermam do vício de inconstitucionalidade formal.
Impõe-se, consequentemente, que, em primeira linha, seja objecto de análise a questão de saber se as normas em crise, todas elas, se podem perspectivar como «legislação do trabalho» para os efeitos consignados na alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição.
E somente se refere esta disposição constitucional e não aqueloutra ínsita na alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º da lei fundamental, justamente pelo facto de, como se abarca do n.º 1 daquele artigo, o direito de os trabalhadores constituírem «comissões de trabalhadores para defesa dos seus interesses e intervenção democrática na vida da empresa» só ser constitucionalmente garantido àqueles que, por conta de outrem, laborem em organizações que se assumam como empresas (cf., sobre esta questão, por entre outros, o Acórdão deste Tribunal n.º 185/89, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 8 de Março de 1989).
Ora, no presente caso, e antes da vigência do Decreto-Lei 14/93, postávamo-nos perante um serviço da administração central [a Direcção-Geral de Fiscalização Económica (DGFE), primeiro, e a Direcção-Geral de Inspecção Económica (DGIE), depois] que se não encontrava organizado de tal sorte que pudesse ser considerado como um modelo de organização estruturado de molde a prosseguir determinados fins económicos, pelo que inexistia, constitucionalmente, a consagração do direito dos trabalhadores desse serviço a constituírem «comissões de trabalhadores».
1.1 - O decreto-lei onde se incluem as normas em apreciação destinou-se, como resulta do seu preâmbulo, a condensar num único diploma as normas que regiam a orgânica da antecedentemente denominada «Direcção-Geral de Inspecção Económica», normas essas dispersas por «um número de diplomas desajustadamente grande para disciplinar um só organismo da administração central» e, além disso, a mudar «a estrutura orgânica» daquele serviço de jeito «a torná-la um organismo capaz de dar inteira resposta, na área das suas atribuições, à nova realidade jurídica e económica resultante da integração de Portugal na Comunidade Europeia e implementação do mercado interno».
Foi, pois, com base neste desiderato que se procedeu à revogação dos diplomas que regulavam a orgânica da DGFE, que se determinou a extinção desta (cf. artigos 47.º e 49.º) e que, como órgão central do Ministério do Comércio e Turismo, se criou um serviço dotado de autonomia administrativa, revestido de poderes de autoridade e com características de órgão de polícia criminal, denominado «Inspecção-Geral das Actividades Económicas» (IGAE), cujo objectivo é o de «velar pelo cumprimento das leis, regulamentos, instruções, despachos e demais normas que disciplinam as actividades económicas» (cf. artigo 1.º).
1.1.1 - No Decreto-Lei 14/93, após se ter definido a sede, competência territorial e atribuições da IGAE (cf. capítulo II, artigos 2.º a 6.º), e regulado a respectiva estrutura e organização (cf. capítulo III, artigos 7.º a 17.º), dedicou-se todo um capítulo (o IV, artigos 18.º a 39.º) respeitante ao pessoal daquele organismo.
Assim, no artigo 18.º definiu-se que o quadro, constituído por pessoal dirigente, técnico superior, de inspecção superior, de inspecção, de informática, técnico-profissional, administrativo e auxiliar, constaria de portaria conjunta dos Ministros das Finanças e do Comércio e Turismo, relegando-se para o mapa I anexo a estrutura das carreiras de inspecção superior, de inspecção e de consultor jurídico.
Por intermédio do artigo 19.º foi sublinhado que, salvo o especialmente disposto nesse diploma, ao pessoal da IGAE era, no que concerne às formas de recrutamento e provimento, aplicável a normação constante da lei geral.
E, em consequência da excepção ali consignada, veio-se a dispor no artigo 20.º que o pessoal de inspecção superior e de inspecção era integrado em carreiras de regime especial - precisamente as de inspecção superior e de inspecção (cf. artigo 21.º), regulando-se nos artigos 22.º, 23.º, 24.º e 28.º, respectivamente, a estrutura, condições de ingresso e de acesso nestas carreiras e o conteúdo funcional das mesmas. Como, de entre as condições de ingresso e acesso, casos existem em que uma delas é a de aprovação em estágios e a frequência de acções de aperfeiçoamento e reciclagem profissional, os artigos 25.º, 26.º e 27.º curaram desses estágios e acções e cursos a eles equiparados.
No artigo 29.º estatuiu-se que as estruturas indiciárias das carreiras de inspecção superior e de inspecção constavam do anexo II, comandando-se que os funcionários responsáveis pelo Serviço Especial de Inspecção e pelas delegações distritais «serão remunerados pelo índice correspondente ao da sua categoria e escalão, majorado por um impulso de 55 pontos, até ao limite do índice 900», enquanto os responsáveis pelos núcleos de apoio daqueles Serviço e delegações «vencem pelo índice imediatamente superior ao que detêm ou, caso estejam posicionados no último escalão, por um índice correspondente a um acréscimo de 10 pontos».
No artigo 32.º estabeleceu-se a manutenção do direito (já anteriormente existente) ao suplemento mensal de risco - equivalente a 20% do respectivo vencimento - relativamente aos inspector-geral, subinspector-geral, directores regionais, pessoal das carreiras de inspecção superior, de inspecção, técnico-profissional, agentes sanitários e motoristas de ligeiros quando em apoio de funções inspectivas ou de investigação e enquanto dure esse exercício.
No artigo 33.º, depois de se definir a regra segundo a qual a mobilidade do pessoal da IGAE para localidade diferente daquela onde exerce funções se pode fazer a pedido do funcionário ou na sequência de promoção, nos termos do respectivo concurso (cf. n.º 1), foi prevista a possibilidade de o pessoal das carreiras de inspecção superior e de inspecção - por conveniência de serviço, mediante despacho fundamentado do inspector-geral, o qual deve obedecer a determinadas condições -, sem a sua anuência, ser colocado em localidade diversa.
No artigo 34.º, n.º 2, e contrariamente ao que se rege para o pessoal em geral da IGAE, estabeleceu-se que o pessoal das carreiras de inspecção superior e de inspecção, porque prestam serviço em carácter de permanência, tem a obrigatoriedade de desempenhar funções a qualquer hora do dia ou da noite, incluindo os dias de descanso e feriados, consoante as necessidades de serviço.
Pelo artigo 35.º foram criados subsídios de deslocação e de residência aos funcionários colocados em localidades diferentes daquelas onde exerciam funções, quer por promoção, quer por conveniência de serviço (com três excepções respeitantes aos casos de os funcionários deslocados terem habitação própria ou do cônjuge a menos de 30 km do local onde foram colocados ou a mudança não implicar deslocação superior àquela distância, e de o cônjuge do funcionário já beneficiar do subsídio, dele não prescindir e estar colocado a menos de 30 km da residência), enquanto, pelo artigo 36.º, n.º 1, foi consagrado o direito de transporte por conta do Estado aquando da transferência, colocação, por efeitos de promoção ou comissão de serviço, em localidade diferente, deslocação temporária por motivos de serviço ou de prestação de provas de selecção e de frequência de cursos ou outras acções de formação e aperfeiçoamento profissional.
No artigo 37.º foram fixadas regras sobre o limite de idade do pessoal das carreiras de inspecção superior e de inspecção [60 anos (cf. n.º 1)], excepto se desempenharem, em comissão de serviço, funções dirigentes e nada requererem (n.º 3), estabelecendo-se uma bonificação de 20% do tempo de serviço para efeitos de aposentação por limite de idade ou invalidez, bonificação também aplicável ao tempo de serviço prestado no exercício de cargos dirigentes (n.os 2 e 4), permitindo-se ainda àquele pessoal que se aposente com a idade mínima de 55 anos, desde que conte com, pelo menos, cinco anos de serviço, para cuja contagem não conta a aludida bonificação.
1.1.2 - Por fim, o capítulo V do diploma em apreço veio versar sobre normas de transição de pessoal e contagem de tempo de serviço, atenta a extinção da Direcção-Geral de Inspecção Económica e a sua substituição pela IGAE (artigos 39.º a 43.º e 44.º), dispondo-se que, com a entrada em vigor daquele diploma [que ocorreu em 1 de Fevereiro de 1993 (cf. artigo 50.º)], eram dadas por findas as comissões de serviço do pessoal dirigente da mencionada Direcção-Geral e, bem assim, as requisições, destacamentos e comissões de serviço do pessoal que se encontrasse ali a prestar serviço, excepto nas situações resultantes de concursos (artigo 43.º). Igualmente em tal capítulo foi determinado que, a título transitório e durante um período de três anos, poderiam ser atribuídas aos inspectores técnicos de 2.ª classe as funções de direcção e orientação das delegações distritais, orientação da instrução dos processos por crimes ou contra-ordenações que corram termos naquelas delegações, asseguramento da legalidade dos actos de investigação nos ditos processos e de representação das mencionadas delegações que, pelo artigo 28.º, n.º 4, são cometidas especialmente aos técnicos especialistas, inspectores técnicos principais e inspectores técnicos de 1.ª classe (artigo 45.º).
Por último, no artigo 46.º comandou-se a validade dos concursos e estágios que decorressem à data da entrada em vigor do Decreto-Lei 14/83 (n.º 1), o que era aplicável aos funcionários que transitassem para a carreira de inspecção superior (n.º 2), prevendo-se a possibilidade de, com a manutenção daquela validade, os actuais estagiários poderem ser providos na carreira de inspecção superior, desde que o requeressem no prazo de 15 dias a contar da data da publicação do despacho de homologação da lista de classificação final.
1.2 - Saber o que deverá ser considerado como «legislação do trabalho» é questão acerca da qual se tem já debruçado quer a doutrina quer a jurisprudência deste Tribunal, reportadamente ao direito constitucionalmente cometido às associações sindicais pelo artigo 56.º, n.º 2, alínea a), da lei fundamental (sobre o ponto, verbi gratia, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 296, Barros Moura, Direito do Trabalho - Notas de Estudo, pp. 189 a 197, e Compilação de Direito de Trabalho Sistematizada e Anotada, pp. 39 e 40, Monteiro Fernandes, Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, 1.º vol., pp. 28 e 29, parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 219/78, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 286, pp. 147 e seguintes, e, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.os 31/84, no Diário da República, 1.ª série, de 17 de Abril de 1984, 117/86, idem, idem, de 19 de Maio de 1986, 451/87, idem, idem, de 14 de Dezembro de 1987, 15/88, idem, idem, de 3 de Fevereiro de 1988, 107/88, idem, idem, de 21 de Junho de 1988, 201/89, idem, 2.ª série, de 21 de Janeiro de 1981, 262/90, idem, 1.ª série, de 20 de Dezembro de 1990, 64/91, idem, idem, de 11 de Abril de 1991, e 430/93, idem, idem, de 22 de Outubro de 1993).
Aquele direito, garantido constitucionalmente, impõe, como se disse no citado Acórdão 430/93, a «ideia de que as posições a tomar pelos trabalhadores aquando da sua participação na elaboração da legislação do trabalho possa, de alguma sorte, determinar a solução que o legislador venha a consagrar», o que o mesmo é dizer, e ainda usando as palavras utilizadas em tal aresto, que, «sem que a audição dos trabalhadores por intermédio das respectivas associações sindicais e comissões signifique que a faixa de soberania e liberdade de conformação do legislador fique hipotecada, mister é, face aos comandos constantes das citadas normas da lei fundamental, que aquele legislador não se limite a apresentar soluções normativas 'verdadeiramente e significativamente tomadas' [...]; a forma como o legislador, neste particular, deverá actuar terá, pois, de ser aquela de onde resulte que o que apresenta aos trabalhadores como projecto de intenção legislativa não passe disso mesmo, ou seja, de intenções instituticionais que busquem a assunção de figurinos consensuais».
Trata-se, enfim, de um direito institucional e orgânico das reportadas associações sindicais dos trabalhadores (e não um direito individual ou subjectivo deste último), que visa garantisticamente assegurar a representação dos interesses destes aquando da tomada de opções pelo poder normativo, embora a participação decorrente desse direito não possa ser entendida como vinculante quanto a tais opções (cf. o Acórdão deste Tribunal n.º 220/90, in Diário da República, 1.ª série, de 20 de Dezembro de 1990, onde se assinala que aquele direito, afinal, compagina o princípio representantivo dos órgãos de decisão política com a democracia participativa e com o acautelamento dos direitos dos trabalhadores).
Por isso, o procedimento condutor à edição de um diploma que seja visualizável como «legislação do trabalho» há-de integrar a intervenção formal das organizações dos trabalhadores (cf., em sede de legislação infraconstitucional, o que se normatiza na Lei 16/79, de 26 de Maio, e no Decreto-Lei 45-A/84, de 3 de Fevereiro).
Por um tal tipo de legislação, e de harmonia com os ensinamentos que são retiráveis da doutrina e jurisprudência a que acima se fez referência, não pode deixar de ter-se em conta, designadamente atendendo à enumeração exemplificativa constante do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 16/79 (que, seguramente, constitui importante subsídio para a caracterização em causa) e ao que se consagra nos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei 45-A/84, que nela se há-de integrar a normação que regule os direitos dos trabalhadores enquanto tais e as suas organizações, direitos esses reconhecidos na Constituição e na lei, abarcando, por isso, a regulamentação das relações individuais e colectivas de trabalho e, no que releva quanto à função pública, o que se estatui em matéria de regime geral e especial dessa espécie de vínculo de trabalho subordinado, condições de trabalho, vencimentos e demais prestações de carácter remuneratório, regime de aposentação ou de reforma e regalias de acção social e de acção social complementar.
1.3 - Parametrizado assim o conceito de «legislação do trabalho», impõe-se agora o tratamento da questão de saber se as normas sub iudicio têm, todas elas, inevitavelmente, de ali ser integradas.
A resposta a essa questão deve sofrer, desde logo, resposta negativa.
Na verdade, logo em primeira linha, torna-se nítido que o que se consagra nos artigos 18.º, 19.º e 28.º do Decreto-Lei 14/93 constitui uma decorrência da reorganização do serviço em causa que, necessariamente, haverá de ter repercussão na estruturação desse serviço ao nível do respectivo quadro de pessoal, atribuição de competências e repartição de funções pelas categorias existentes no criado quadro, sendo de anotar que, pela lei geral [Decreto-Lei 184/89, de 2 de Junho (cf. artigo 25.º)], a fixação dos quadros de pessoal dos serviços há-de inserir-se na legislação pertinente a cada um - que indicará as carreiras, categorias, bem como regimes de provimentos das não previstas na lei geral ou na normação relativa aos corpos especiais -, não podendo aquela legislação conter categorias ou carreiras não previstas nas mencionadas lei geral ou normação referente a corpos especiais ou, ainda, na regulamentação específica do próprio serviço ou organismo.
Em consequência, não se poderá dizer que a matéria ali tratada deva ser objecto de negociação ou participação das associações representativas dos trabalhadores da função pública na sequência do direito garantido na alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º do diploma básico.
De igual modo, a matéria respeitante à estruturação e modos de funcionamento e frequência das acções de aperfeiçoamento e reciclagem profissional e a equiparação às mesmas - tudo como forma de dação, por banda da entidade patronal Estado, de formação profissional adequada -, não poderá ser perspectivada como integrante do conceito de «legislação do trabalho» - no atinente à função pública -, pelo que se haverá de concluir que para a edição das normas em análise, constantes dos artigos 26.º e 27.º, não se tornava necessária a participação das associações sindicais.
Pelas mesmas razões se sustentará que livremente se inserirá na liberdade conformativa do legislador governamental (dentro de uma liberdade de entendimento sobre o modo adequadamente cabido de proporcionar uma válida formação profissional tendo em atenção o que estruturalmente exige das várias categorias profissionais com que conta dotar o serviço que pretende criar), sem necessidade de audição das organizações sindicais, a possibilidade de manter como válidas anteriores acções de formação, aperfeiçoamento e reciclagem.
Por isso, também neste agrupamento de preceitos se hão-de compreender as normas do artigo 46.º
Tocantemente ao subsídio de risco reportado nos n.os 1 e 3 do artigo 32.º, porque se trata da manutenção de uma regalia já anteriormente concedida aos inspector-geral, subinspector-geral, directores regionais e pessoal das carreiras de inspecção superior, inspecção e técnico-profissional, consequentemente nada sendo alterado nesse particular, também se terá de concluir que, aqui, não era imposta a audição dos organismos representativos dos trabalhadores, e isto a perfilhar-se o entendimento de que a concessão de tal subsídio se integrará quer em sede de sistema remuneratório, quer em sede de um conceito mais amplo de acção social complementar.
Também haverá que reconhecer que o que consta do n.º 1 do artigo 33.º e do n.º 1 do artigo 34.º - que nenhuma disciplina diferente da existente para o regime geral da função pública impõem, postando-se, assim, como uma tautológica regulamentação -, porque nada inova ou acrescenta, não imporia qualquer prévia auscultação das associações sindicais.
No que concerne à norma do n.º 1 do artigo 43.º, e porque ela tem por destinatário tão-somente o pessoal dirigente, não se deve olvidar o que, a propósito, foi dito no Acórdão deste Tribunal n.º 146/92 (Diário da República, 2.ª série, de 24 de Julho de 1992).
Efectivamente, aí se mencionou (após se reconhecer que «os trabalhadores da Administração Pública são trabalhadores como os outros, gozando, no essencial, dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores em geral e dos outros direitos fundamentais que a Constituição outorga a estes», e que, para o efeito, era relevante «tão-só o trabalho subordinado») que era «seguro que da protecção constitucional não goza o pessoal dirigente».
Ora, perante uma tal postura, que se reitera, então ser-se-á conduzido à conclusão de que, quanto a tal norma, não será, pois, exigível a participação, na respectiva elaboração, dos organismos sindicais representativos dos trabalhadores.
1.3.1 - Restam-nos, desta sorte, as normas consagradoras:
De uma carreira de regime especial, abarcando o pessoal de inspecção superior e de inspecção, que se integrará nessas carreiras (artigos 20.º e 21.º);
Do desenvolvimento de tais carreiras (artigo 22.º);
Das condições de ingresso e acesso nas referidas carreiras (artigos 23.º e 24.º);
Da frequência do estágio para ingresso nessas carreiras, na medida em que a regulamentação de tal condição de ingresso, depende da sua exigência consagrada nos n.os 1 e 2 do artigo 23.º (artigo 25.º);
Das remunerações do pessoal (artigo 29.º);
Da atribuição do subsídio de risco aos motoristas de ligeiros da IGAE, quando no apoio de funções inspectivas ou de investigação e enquanto dure esse exercício (artigo 32.º, n.º 2);
Da colocação, por conveniência de serviço, do pessoal das carreiras de inspecção superior e inspecção, em local diferente daquele onde exercem funções (n.os 2 e 3 do artigo 33.º);
Do regime de disponibilidade permanente do pessoal das carreiras de inspecção superior e inspecção, que implica a obrigatoriedade da prestação de serviço a qualquer hora do dia ou da noite, incluindo os dias de descanso e feriados, consoante as necessidades de serviço (artigo 34.º, n.º 2);
Da atribuição aos funcionários da IGAE de subsídios de deslocação e de residência e do direito de transporte por conta do Estado aquando da sua transferência, colocação ou deslocação, atribuição essa não idêntica à consagrada no artigo 38.º, n.º 3, do Decreto-Lei 412-G/75, de 7 de Agosto (artigos 35.º e 36.º);
De regras especiais concernentes à aposentação e assunção do limite de idade (artigo 37.º);
De incompatibilidades (artigo 38.º);
Das regras que regulam a transição do pessoal (artigos 39.º, 40.º e 41.º);
De recrutamento transitório de pessoal para a carreira de inspecção superior (artigo 42.º);
Da cessação das requisições, destacamentos e comissão de serviço de pessoal que desempenhava funções na Direcção-Geral de Inspecção Económica e desde que se não trate de pessoal dirigente (artigos 43.º, n.º 2);
De contagem do tempo de serviço (artigo 44.º);
E de permissão de atribuição aos inspectores técnicos de 2.ª classe das funções que, pelo diploma em apreço, são especialmente cometidas aos técnicos especialistas, inspectores técnicos principais e inspectores técnicos de 1.ª classe (artigo 45.º).
É que, quanto a estas, não se poderá dizer que as mesmas mais não representam do que um verdadeiro «regulamento de empresa» quanto à especificidade da IGAE.
De facto, com aquela normação vai ser criada, inovatoriamente e em diploma primário (e, certamente, de uma maneira que, há que reconhecê-lo, é, na globalidade, mais favorável aos funcionários a que ela se destina), uma carreira de regime especial, com particularidades nos respectivos acesso, progressão, local e duração de trabalho, vão ser fixadas condições de carácter remuneratório e de acção social complementar, e são estabelecidos desvios aos normais regimes de aposentação, limite de idade e incompatibilidades, o que vale por dizer que cura tal normação de matéria que substancialmente contende com o conteúdo de direitos fundamentais dos trabalhadores da Administração Pública, não representando uma mera decorrência da opção do legislador sobre determinado modelo organizatório a que entendeu dever obedecer o serviço agora instituído por transformação do anteriormente existente, e isto para além de as normas inseridas no capítulo V visarem uma mudança da situação funcional dos trabalhadores da DGIE à data da entrada em vigor do novo diploma.
Daí que, por via do que se consagra na alínea d) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição e tem expressão, ao nível da legislação ordinária, no Decreto-Lei 45-A/84, se impusesse a intervenção dos organismos representativos dos trabalhadores naquilo que a Comissão Constitucional no seu parecer 17/78 (in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 6.º, pp. 30 e seguintes) apelidou de intervenção na «zona prévia e diversa da decisão legislativa formal» que conduziu à edição das indicadas disposições.
2 - A afirmação do requerente segundo a qual dos elementos obtidos resulta «seguro que no processo de elaboração do diploma em causa não participaram, pelo menos, os sindicatos interessados representados pela Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública» é, assim, posta em crise pelos elementos recolhidos pelo Tribunal e a que acima se fez alusão.
Desses elementos, porém, também resulta que, no processo legislativo que conduziu à edição do Decreto-Lei 14/93, não participaram, pelo menos, o Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública - SINTAP, o Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado, o Sindicato dos Economistas (o primeiro e o segundo filiados na União Geral de Trabalhadores - UGT e o terceiro participante no Conselho Geral da Confederação Nacional de Sindicatos de Quadros - FENSIQ e ainda filiado na UGT em Maio de 1992), o Sindicato Nacional da Administração Pública Central, Regional e Local - SINACEL e o Sindicato de Quadros - SNSIQ (estes últimos filiados na Convenção Sindical Independente - CSI).
3 - Todos os referidos sindicatos potencialmente representam trabalhadores que seriam interessados nos preceitos de que agora nos ocupamos, insertos no criado órgão central do Ministério do Comércio e Turismo.
Ora, quer se entenda que, para os efeitos de cumprimento do dever de audição dos organismos representativos dos trabalhadores, basta a participação das centrais ou confederações sindicais que agrupem as federações ou sindicatos que potencialmente abranjam aqueles a quem a legislação se destina (posição defendida pelo Tribunal, por maioria, no citado Acórdão 430/93), quer se entenda que aquele dever implica a participação das organizações sindicais de base ou de primeiro grau, o que é certo é que, in casu, não ocorreu uma ou outra dessas participações, como decorre do referido no anterior número.
E, sendo assim, haverá de entender-se padecerem as normas acima elencadas de vício de inconstitucionalidade formal.
4 - A declaração de inconstitucionalidade acarretará, em regra, que, ex tunc, cesse a vigência das normas por tal declaração abrangidas (cf. artigo 282.º, n.º 1, da Constituição).
Contudo, em casos como o presente, é perfeitamente figurável que existam situações já criadas ao abrigo da estatuição delas constante e cuja destruição, que seria operada pela declaração de inconstitucionalidade, se postaria como iníqua, pois que afrontariam posições já antecedentemente adquiridas, e isto tanto mais que algumas das normas abrangidas pela proferenda declaração, e como acima se teve a ocasião de sublinhar, representam a consagração de um regime mais favorável para determinadas categorias de pessoal da IGAE comparativamente aos demais funcionários da Administração Pública, tendo já criado situações que dificilmente seria aceitável para esse pessoal serem perdidas.
Em face destas razões torna-se, por conseguinte, aconselhável que o Tribunal, usando da faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, tendo em atenção razões de segurança jurídica, senão também de equidade, fixe os efeitos da declaranda inconstitucionalidade com alcance mais restrito do que o previsto no n.º 1 daquele artigo, de molde a ressalvar as situações já constituídas à sombra das normas em questão.
III
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 18.º, 19.º, 26.º, 27.º, 28.º, 32.º, n.os 1, 3 e 4, 33.º, n.º 1, 34.º, n.º 1, 43.º, n.º 1, e 46.º, todos do Decreto-Lei 14/93, de 18 de Janeiro;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação da alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º da Constituição, das normas constantes dos artigos 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 29.º, 32.º, n.º 2, 33.º, n.os 2 e 3, 34.º, n.º 2, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, n.º 2, 44.º e 45.º, todos do aludido diploma;
c) Determinar que a produção de efeitos da presente declaração ocorra apenas a partir da publicação deste acórdão.
Lisboa, 3 de Maio de 1994. - Bravo Serra - Antero Alves Monteiro Dinis - Fernando Alves Correia - Luís Nunes de Almeida - Maria da Assunção Esteves - Alberto Tavares da Costa - Vítor Nunes de Almeida - Messias Bento - José de Sousa e Brito - Armindo Ribeiro Mendes - Guilherme da Fonseca (com declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Votei o acórdão, mas alargaria a declaração de inconstitucionalidade constante do n.º III, alínea b) (parte decisória), às normas dos artigos 27.º, 28.º e 33.º, n.º 1, do questionado Decreto-Lei 14/93, de 18 de Janeiro, por considerar tratar-se ainda de «legislação do trabalho», contendendo com o conteúdo de direitos fundamentais dos trabalhadores da Administração Pública, a exigir também a intervenção dos organismos representativos desses trabalhadores, talqualmente se expressa o acórdão.
Com efeito, aderindo à posição do acórdão de que aí se abarca «a regulamentação das relações individuais e colectivas de trabalho e, no que releva quanto à função pública, o que se estatui em matéria de regime geral e especial dessa espécie de vínculo de trabalho subordinado, condições de trabalho, vencimentos e demais prestações de carácter remuneratório, regime de aposentação ou de reforma e regalias de acção social e de acção complementar», não é preciso muito esforço para ver que as ditas normas também se podem incluir naquele regime geral e especial.
Assim, a regra de equiparação de outros cursos fixada no artigo 27.º, em matéria respeitante ao acesso nas carreiras de inspecção, conforme resulta da conjugação com o artigo 24.º, n.º 2, alínea d), deveria ter sido objecto de negociação ou participação das associações representativas dos trabalhadores da função pública, na medida em que a opção do legislador passa por um elenco de cursos que não se atem a uma mera liberdade de entendimento desse legislador.
Por seu turno, a norma do artigo 28.º, respeitante ao conteúdo funcional do pessoal das várias carreiras, não é, como se diz no acórdão, uma mera «decorrência da reorganização do serviço em causa», antes contende com um núcleo tão sensível para os trabalhadores como é a definição das suas funções, sobretudo, como é o caso, quando pode até haver áreas conflituantes das várias carreiras. Daí não poder afirmar-se que se está aqui perante uma «liberdade conformativa do legislador governamental».
Por fim, a norma do artigo 33.º, n.º 1, relativa à mobilidade geográfica do pessoal, não se confina ao regime geral da função pública (aliás, não identificado no acórdão), nem para ele simplesmente remete, como acontece com o artigo seguinte (artigo 34.º, n.º 1), e antes fixa as situações em que se pode verificar tal mobilidade, o que nada impedia - antes impunha - que fosse objecto de prévia auscultação das associações sindicais (o n.º 2 do artigo 23.º do Decreto-Lei 184/89, de 2 de Junho, limita-se a remeter para legislação própria os «instrumentos de mobilidade geográfica»).
Guilherme da Fonseca.