Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão do Tribunal Constitucional 68/2024, de 23 de Fevereiro

Partilhar:

Sumário

Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas no artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2020/M, de 2 de outubro, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, e nos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional n.º 1/2021/M, de 25 de janeiro, do Governo da Região Autónoma da Madeira; não restringe os efeitos da referida declaração de inconstitucionalidade e, nomeadamente, a sua eficácia retroativa

Texto do documento

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 68/2024

Sumário: Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas no artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, de 2 de outubro, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, e nos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, de 25 de janeiro, do Governo da Região Autónoma da Madeira; não restringe os efeitos da referida declaração de inconstitucionalidade e, nomeadamente, a sua eficácia retroativa.

Processo 967/22

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - A Procuradora-Geral da República requereu, ao abrigo do disposto no artigos 281.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea e), e 282.º, n.os 1 e 4, ambos da Constituição da República Portuguesa, e dos artigos 51.º e seguintes da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata, sucessiva, e a consequente declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas (i) no artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, que adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei 45/2018, de 10 de agosto, e que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica ("TVDE"), e (ii) nos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, do Governo da Região Autónoma da Madeira, que aprova a regulamentação do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.

2 - Parâmetros da constitucionalidade invocados

A requerente alega que as normas impugnadas constantes do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, se encontram feridas de inconstitucionalidade orgânica, «por violação do espaço material sujeito a reserva legislativa da Assembleia da República, ex vi artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa», do mesmo passo que as normas impugnadas constantes dos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, do Governo da Região Autónoma da Madeira, se encontram feridas de inconstitucionalidade consequente uma vez que têm como pressuposto lógico e necessário as normas do mencionado artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M - cf. artigo 32.º do Requerimento. Mais alega a Requerente, no que especificamente concerne às normas constantes do n.º 8 e do n.º 9 do artigo 8.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, que as mesmas revestem natureza inovadora relativamente à demais normação infraconstitucional, revelando-se, igualmente, organicamente inconstitucionais por violação da reserva legislativa da Assembleia da República consignada no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição - cf. também artigo 32.º do Requerimento.

3 - O pedido assenta nos seguintes fundamentos

Os fundamentos apresentados no pedido para sustentarem as inconstitucionalidades das normas impugnadas são, numa síntese da argumentação nele expendida, os seguintes:

[Quanto ao artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M]

a) A Assembleia da República, no uso da sua reserva relativa de competência legislativa, decretou, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, a Lei 45/2018, de 10 de agosto, que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica.

b) O Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, adaptou à Região Autónoma da Madeira a Lei 45/2018, de 10 de agosto, tendo por objeto, como se pode ler no seu artigo 1.º, n.º 1, a adaptação do regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica, estabelecido pela Lei 45/2018, de 10 de agosto, às especificidades económicas, sociais, culturais e geográficas da Região Autónoma da Madeira.

c) Assim, o artigo 11.º do referido Decreto Legislativo Regional veio determinar, no seu n.º 1, que «o número de averbamentos ou licenças emitidos pela DRETT ao abrigo do presente diploma não excederá o correspondente a 40 veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região, com um máximo de 3 veículos por operador».

d) Mais prescreve o n.º 2 desse preceito legal que «a distribuição do contingente a que se refere o número anterior pode ser fixada por determinadas áreas geográficas da Região, por despacho do membro do Governo Regional responsável pela área dos transportes terrestres».

e) Acontece, porém, que analisando a Lei 45/2018, de 10 de agosto, verifica-se que a mesma não prevê quaisquer normas jurídicas idênticas referentes à possibilidade de fixação de contingentes de licenças a atribuir por áreas geográficas ou referente ao número máximo de veículos por operador.

f) Recentemente, o Tribunal Constitucional foi chamado a debruçar-se, em sede de fiscalização preventiva, para além do mais, sobre norma idêntica do Decreto 1/2022 da Assembleia Legislativa, da Região Autónoma dos Açores, que estabelece o Regime Jurídico da Atividade de Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a Partir de Plataforma Eletrónica na Região Autónoma dos Açores (TVDERAA) - cf. Acórdão 180/2022, de 16 de março.

g) Aquele Decreto 1/2022 continha um artigo 13.º em cujo n.º 1 se dispunha que «o número de averbamentos ou licenças emitidas pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres ao abrigo do presente diploma, de veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região, não excederá o correspondente a 5 % do total de transportes públicos de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros, normalmente designados por transportes em táxi, licenciados em cada ilha, com um máximo de três veículos por operador».

h) Mais determinava o n.º 2 do referido artigo 13.º que «a distribuição do contingente a que se refere o número anterior pode ser fixada por determinadas áreas geográficas da Região, por despacho do membro do Governo Regional responsável pela área dos transportes terrestres».

i) Do mesmo preceito constava ainda um n.º 3, onde se dispunha que «nas ilhas onde o contingente referido no n.º 1 seja inferior a uma unidade é admitido como contingente máximo uma unidade de TVDE».

j) No referido Acórdão 180/2022, entendeu o Tribunal Constitucional, para além do mais, que as normas do artigo 13.º, n.os 1, 2 e 3 do TVDERAA sob sindicância estavam feridas de inconstitucionalidade orgânica, por violação do espaço material sujeito a reserva legislativa da Assembleia da República, ex vi do artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa.

k) Assim, conforme alega a Requerente, decidiu-se naquele aresto que «a limitação do número de licenças a emitir (ou a averbar) significa o encerramento do mercado a novos operadores de TVDE depois de atingido o valor numérico que resulte da aplicação do coeficiente fixado nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 13.º do TVDERAA. Porque do licenciamento depende o acesso à atividade, a norma estabelece, com efeito, um numerus clausus de operadores no subsetor. Vedando por esta forma o acesso de novos agentes ao mercado de transporte de passageiros em regime TVDE, não há dúvidas de que estamos perante medida restritiva da liberdade de iniciativa privada».

l) Conforme invoca também a Requerente, decidiu-se, igualmente, no mesmo aresto do Tribunal Constitucional que «[...] o artigo 13.º, n.º 1, in fine, do TVDERAA impõe um outro limite adicional para que as empresas estejam em condições de aceder ao mercado. Como acima dissemos, o investimento em capitais fixos não pode importar a incorporação na empresa de mais de três viaturas TVDE, sob pena de o licenciamento ser recusado ao agente, bloqueando o acesso ao mercado. Esta é uma limitação da iniciativa empresarial na vertente financeira, já que daqui resulta a impossibilidade de implementar um projeto orientado por economia de escala. De facto, esta medida legal constitui uma condicionante quanto a perspetivas de rendibilidade do investidor e quanto ao limiar temporal de recuperação do capital aplicado, operando por essa via uma restrição de acesso ao subsetor».

m) Em consequência, conforme alega ainda a Requerente, decidiu o Tribunal Constitucional, no referido Acórdão 180/2022, que «[...] o programa normativo constante do artigo 13.º, n.os 1 e 2, do TVDERAA consubstancia uma restrição ao âmbito de tutela da liberdade de iniciativa privada na vertente análoga a direitos, liberdades e garantias (respeitando à liberdade de criar uma empresa e prosseguir uma atividade económica, por um lado, e à liberdade de investimento, por outro), ficando por isso a medida restritiva sujeita ao respetivo regime constitucional, ex vi, do artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa».

n) Continuando a sua alegação fundada no Acórdão 180/2022, invoca a Requerente que aí se concluiu, em suma, que «(...) embora a Região Autónoma dos Açores possua competência legislativa própria para regular, no respetivo âmbito regional, matérias relativas aos serviços de transportes terrestres (e, nessa medida, adaptar o regime contido na Lei 45/2018, de 10 de agosto, às especificidades da RAA), essa competência encontra-se condicionada pelo limite negativo decorrente do artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), e do artigo 228.º, n.º 1, da Constituição, nos termos do qual são excluídas do âmbito da competência legislativa das Regiões Autónomas as matérias reservadas aos órgãos de soberania, nelas se incluindo a regulação de direitos, liberdades e garantias».

o) Aderindo integralmente à doutrina expendida no Acórdão 180/2022, a Requerente entende que a mesma «[...] aplica-se mutatis mutandis ao artigo e diploma que ora nos ocupa que, como vimos supra, também ele limita o número máximo de licenças de TVDE a 40 veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região Autónoma da Madeira, com um máximo de 3 veículos por operador».

p) Assim, sustenta a Requerente que as normas jurídicas em questão, ao limitarem a 40 o número máximo de veículos TVDE na Região Autónoma da Madeira e ao limitarem a 3 os veículos por operador, consubstanciam uma restrição ao âmbito de tutela da liberdade de iniciativa privada na vertente análoga a direitos, liberdades e garantias (respeitando à liberdade de criar uma empresa e prosseguir uma atividade económica, por um lado, e à liberdade de investimento, por outro), ficando por isso a medida restritiva sujeita ao respetivo regime constitucional, ex vi do artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa.

q) Em suma, alega a Requerente que as normas jurídicas constantes do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira estão feridas de inconstitucionalidade orgânica, por violação do espaço material sujeito a reserva legislativa da Assembleia da República, ex vi do artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa.

[Quanto aos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M]

a) O referido Decreto Legislativo Regional foi objeto de regulamentação através dos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M do Governo da Região Autónoma da Madeira.

b) Sendo antecedentemente inconstitucional a fixação de contingentes constante da norma jurídica do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, tal acarretará a inconstitucionalidade consequente daquelas normas do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M do Governo da Região Autónoma da Madeira, na medida em que dependem geneticamente daquela fixação de contingentes.

c) Por outra parte, em qualquer caso, verifica-se que as normas jurídicas constantes do artigo 8.º, n.º 8 e n.º 9, do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, regulam, livre, integral e inovatoriamente, por definição, na medida em que não vigorava qualquer conteúdo legal prévio da matéria sobre licença de operador TVDE, na Região, a mais do que uma pessoa coletiva, sob a forma societária, que seja participante ou associada de outra, ou participada por outra, a favor de que já tenha sido concedida ou averbada, pela DRETT, licença para aquela atividade.

d) De igual forma, não vigorava qualquer conteúdo legal prévio da matéria sobre limitações a sócios ou titulares de órgão social ou de direção pessoa singular ou pessoa coletiva que tenha participação ou seja titular de órgãos de sociedade que requeira licença ou averbamento para a mesma atividade.

e) Pelo que, tais normas jurídicas, ao instituírem, livre, integral e inovatoriamente, aquele regime jurídico, que é matéria abrangida por reserva de lei parlamentar, são, também elas, organicamente inconstitucionais, por violação do espaço material sujeito a reserva legislativa da Assembleia da República, ex vi do artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa.

4 - Resposta dos Órgãos Autores das Normas

4.1 - Notificada, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, através do seu Presidente, vem, no essencial, alegar que «na adaptação da Lei 45/2018, de 10 de agosto, à Região Autónoma da Madeira, o legislador regional, por razões de equidade e de equilíbrio de tratamento de situações existentes face à lei, sentiu a necessidade de consagrar regras que, nomeadamente, acautelassem consequências económico-financeiras e sociais, gravosas, oriundas da introdução, no mercado, de uma nova atividade, concorrente da relativa ao transporte público em veículos ligeiros de passageiros, a qual poderia levar à extinção da atividade até então existente no setor» - cf. artigo 3.º da resposta. Sem contradizer, substancialmente, o fundamento da inconstitucionalidade alegada nos autos, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira vem ainda solicitar que «no caso de proceder o pedido de declaração de inconstitucionalidade ora suscitado pela Senhora Procuradora-Geral da República, atendendo aos efeitos jurídicos já produzidos sobre pedidos de averbamento ou de licenciamento ao abrigo do normativo em referência, por razões de segurança jurídica, no caso de uma eventual declaração de inconstitucionalidade, se esse vier a ser o juízo, seja limitada a produção de efeitos da decisão apenas para o futuro, nos termos do permitido pelo n.º 4 do artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa» - cf. artigo 10.º da resposta.

4.2 - Por sua vez, o Governo Regional da Madeira, através do respetivo Presidente, e também notificado, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, veio alegar, em síntese, o seguinte:

a) O setor dos transportes encontra-se isento das liberdades consagradas nos Tratados da União Europeia e reforçadas na Diretiva Serviços (Diretiva 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno), por força do n.º 1 do artigo 58.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia - cf. pontos 25 a 27 da resposta.

b) A Lei 45/2018, de 10 de agosto, a cuja adaptação se procedeu, por via dos diplomas regionais agora em causa, ignorou as especificidades próprias das Regiões Autónomas, que estão devidamente assinaladas no preâmbulo do Decreto Legislativo Regional em questão, como ignorou que a implementação, execução e fiscalização desta atividade compete, na Região, à Direção Regional da Economia e Transportes Terrestres - cf. ponto 38 da resposta.

c) Esta omissão, que se traduz, aliás, numa inconstitucionalidade da Lei 45/2018, por violação do n.º 2 do artigo 229.º da CRP e da Lei 40/96, de 31 de agosto, tornou mais necessária, e mesmo premente, a aprovação dos diplomas regionais de adaptação, à Região, daquela Lei, cuja inconstitucionalidade, com força obrigatória geral é agora suscitada, quanto a algumas das suas normas - cf. ponto 39 da resposta.

d) A disciplina jurídica plasmada nas normas impugnadas visou apenas prevenir e evitar, numa área que envolve questões de segurança e de mobilidade fundamentais, que a nova atividade que a Lei 45/2018, de 10 de agosto, regula, beneficie de facilidades relativamente ao tradicional transporte de táxi, com preterição do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), sendo esse o desiderato subjacente a tais normas - cf. ponto 41 da resposta.

e) Aliás, esta última atividade está altamente regulada, envolvendo exigências de segurança, de formação e idoneidade dos motoristas, inspecções e seguros, contingentação, licenciamento municipal e muitos mais requisitos, que não podem ser dispensados ao «transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma electrónica» (V. Decreto-Lei 251/98, de 11 de agosto) - cf. ponto 42 da resposta.

f) A Lei 45/2018, de 10 de agosto, que se pretendeu adaptar à Região, por via dos diplomas agora sindicados, ao não fixar a necessária contingentação do novo tipo de transporte em causa, criou uma situação de desigualdade, que se pretendeu corrigir, com sucesso, no âmbito da sua adaptação à Região, eliminando-se, nesse âmbito, a inconstitucionalidade de que enferma aquela Lei, por falta de audição das Regiões Autónomas, tanto do Governo que elaborou a Proposta de Lei, como da Assembleia da República que a aprovou - cf. ponto 45 da resposta.

g) A integração das questões em causa, no alegado quadro do artigo 61.º, n.º 1, da Constituição - liberdade de iniciativa privada - para daí se passar aos "direitos, liberdades e garantias" e à imputação aos diplomas regionais em causa, da violação da alínea b) do n.º 1, do artigo 165.º da CRP (reserva relativa da Assembleia) constitui uma construção que contradiz a própria Lei 45/2018, que se assume como aprovada na área da chamada competência concorrencial do Governo e da Assembleia da República - alínea c) do artigo 161.º da CRP -, área em que os órgãos de Governo próprio têm plena competência para legislar para a Região, nos termos do artigo 228.º da CRP.

h) As normas dos diplomas regionais acima identificados, e cuja declaração de inconstitucionalidade vem requerida, não são inconstitucionais, pela razão simples de que o justo equilíbrio das soluções adotadas, não atinge, nem de perto, nem de longe, o cerne da liberdade de estabelecimento e, como tais, não se inserem, materialmente, na área dos direitos, liberdades e garantias - alínea b) do n.º 1, do artigo 165.º da CRP), integrando-se nas competências legislativas regionais, designadamente no seu poder de adaptação e regulamentação de leis nacionais - cf. ponto 52 da resposta.

Por fim, requer que, na eventualidade de ser declarada a inconstitucionalidade suscitada, relativamente às normas dos citados diplomas regionais, o Tribunal Constitucional, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da CRP, determine que sejam ressalvados os efeitos já produzidos e consumados, para todos os fins legais, uma vez que estão em causa especiais razões de segurança jurídica, de equidade e de interesse público, tendo a legislação regional em causa resultado da referida falta de audição das Regiões Autónomas por parte do legislador nacional, no âmbito da Lei 45/2018 (artigo 229.º, n.º 2 da CRP) - cf. ponto da resposta 55.

5 - Discutido em Plenário o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.

II - Fundamentação

6 - Legitimidade processual

Assiste legitimidade à requerente para pedir a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas, com força obrigatória geral, por força do disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa.

7 - Questões Prévias ao conhecimento do pedido formulado

7.1 - A irrelevância para o conhecimento do pedido da hipotética inconstitucionalidade da Lei 45/2018, de 10 de agosto

Antes de entrarmos na análise aprofundada da matéria dos autos, importa, desde já, excluir do âmbito dessa análise um conjunto de questões suscitadas, na sua resposta, pelo Governo Regional da Madeira e que, grosso modo, se reconduzem a vícios de inconstitucionalidade formal ou procedimental e também material de que, alegadamente, padeceria a Lei 45/2018, de 10 de agosto, ou, pelo menos, as normas constantes desse diploma legal adaptadas à Região Autónoma da Madeira por via das normas aqui em crise.

É certo que, nos termos da alínea g) do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas, os presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os presidentes dos Governos Regionais podem requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nomeadamente quando estejam em causa normas legais que violem direitos das regiões autónomas.

Contudo, e independentemente do exato alcance que se atribua a essa norma de competência ou legitimidade processual ativa, não é menos certo que tal disposição não permite albergar na audição do órgão autor das normas sindicadas, nos termos do artigo 54.º da LTC, uma faculdade de alargamento ou modificação do objeto de processo de fiscalização sucessiva abstrata, necessariamente balizado pelo princípio do pedido.

Aliás, não se torna sequer necessário fazer aqui qualquer incursão na teoria geral do processo ou apelo à distinção entre a conformação do objeto do processo e o princípio jura novit curia. Na verdade, basta atentar na lapidar formulação literal do n.º 5 do artigo 51.º da LTC: «O Tribunal só pode declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida [...]».

Por outro lado, é apodítico que a eventual inconstitucionalidade das normas constantes da Lei 45/2018 e adaptadas à Região Autónoma da Madeira através das normas sindicadas nunca poderia ser erigida em meio de defesa, ou numa espécie de exceção perentória preclusiva de declaração de inconstitucionalidade das normas ora sindicadas, uma vez que, em nenhum lado, a Constituição fundamenta ou legitima a atividade legiferante das regiões autónomas numa intervenção salvífica destinada a obstar à vigência, no espaço jurídico regional, de leis gerais da República padecentes de inconstitucionalidade. A hipotética inconstitucionalidade de tais leis nunca constituiria critério de legitimação daquela atividade legiferante à margem das regras que, em geral, delimitam o âmbito da competência legislativa das regiões autónomas.

Em suma, não cumpre apreciar, nesta sede, qualquer dos vícios de inconstitucionalidade que os órgãos autores das normas sindicadas imputam à Lei 45/2018, pelo que nos absteremos de tecer, sobre essa matéria, quaisquer outras considerações.

7.2 - O Acórdão 429/2020 e a sua não prejudicialidade para a decisão a proferir nos presentes autos

Na sua resposta, veio o Governo Regional da Madeira referir, além do acima exposto, que, através do Acórdão 429/2020, e no âmbito de um pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade requerida pelo Representante da República para a Região Autónoma da Madeira, este Tribunal já se pronunciou sobre diversas disposições do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, tendo concluído pela improcedência de todas as inconstitucionalidades que vinham alegadas nesses autos.

Cumpre, desde já, esclarecer que também esta circunstância é totalmente irrelevante para a decisão agora a proferir.

Na verdade, o Acórdão 429/2020 teve exclusivamente por objeto as normas constantes do artigo 6.º, n.º 4, alínea c), do artigo 10.º, n.º 4, alínea c), do artigo 10.º, n.º 9, e do artigo 12.º que integravam o Decreto enviado para assinatura como decreto legislativo regional, agora em apreço. Já nos presentes autos, e no que concerne também ao mesmo Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, estão apenas em causa as normas constantes do respetivo artigo 11.º

Ora, e como é consabido, o objeto dos processos de fiscalização da constitucionalidade cinge-se às normas sindicadas, do mesmo passo que a decisão de não inconstitucionalidade é desprovida de eficácia, produzindo, quando muito, caso julgado formal no processo de fiscalização respetivo (cf., inter alia, Jorge Miranda, Fiscalização da Constitucionalidade, Coimbra, 2017, p. 82).

Como se refere no Acórdão 85/1985 «no caso de acórdãos que não se pronunciem pela inconstitucionalidade, o Tribunal não fica impedido de voltar a pronunciar-se sobre a mesma matéria, quer o acórdão tenha sido produzido em fiscalização preventiva, quer também o tenha sido em fiscalização sucessiva. Isso decorre diretamente da natureza do controlo da constitucionalidade, que consiste em apreciar e declarar (ou não) a inconstitucionalidade, e não em declarar a constitucionalidade. Por isso, as únicas decisões do Tribunal Constitucional em matéria de controlo de constitucionalidade que impedem que a questão venha a ser novamente apreciada são as que, em fiscalização sucessiva abstrata, declarem a inconstitucionalidade; mas aí pela simples razão de que então as normas deixam de vigorar, desaparecendo portanto a possibilidade de virem a ser de novo fiscalizadas (cf. artigo 282.º da Constituição)» - (no mesmo sentido, Acórdão 66/1984).

Por tudo isto, o juízo firmado no citado Acórdão 429/2020 carece de qualquer relevância jurídico-processual para a decisão dos presentes autos.

8 - Conhecimento do Pedido

8.1 - Objeto do pedido

O pedido incide sobre as normas contidas (i) no artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, que adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei 45/2018, de 10 de agosto, e que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica ("TVDE"), e (ii) nos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, do Governo da Região Autónoma da Madeira, que aprova a regulamentação do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.

8.2 - Da complexidade do objeto do pedido

O presente pedido de fiscalização de constitucionalidade incide, como se viu, sobre normas distintas que figuram, por um lado, no Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, e, por outro lado, no Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, do Governo da Região Autónoma da Madeira, que aprova a regulamentação do referido Decreto Legislativo Regional 14/2020/M.

Cabe, portanto, recordar que já no Acórdão 105/86 deste mesmo Tribunal se decidiu que «[...] a Lei 28/82, no domínio dos processos de fiscalização abstrata da constitucionalidade de normas jurídicas, dá de pedido uma noção puramente formal, considerando como um só pedido aquele que, embora se dirigindo a várias e diversas normas jurídicas, porventura, localizadas em diferentes diplomas, é expresso em um só requerimento, subscrito por entidade com legitimidade para o fazer».

Ora, que tal solução promove o princípio processual universalmente aplicável da economia processual é coisa que não oferece dúvida, tanto mais que o próprio Código de Processo Civil, no n.º 2 do respetivo artigo 36.º, admite a coligação de autores e de réus - fundada em pedidos diferentes - ainda que a causa de pedir não seja a mesma, quando «a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito ou de cláusulas de contratos perfeitamente análogas».

No caso vertente, a apreciação conjunta das normas objeto do pedido deduzido nos autos serve não só uma finalidade de economia processual, como também uma manifesta finalidade de segurança jurídica e congruência na própria atividade fiscalizadora do Tribunal Constitucional, porquanto, segundo invoca a Requerente, as normas sindicadas constantes do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M constituem mera concretização ou densificação das normas sindicadas pertencentes ao Decreto Legislativo Regional 14/2020/M ou, na parte em que alegadamente aquelas revestem natureza inovadora, partilham exatamente dos mesmos vícios de inconstitucionalidade.

Tendo em conta, pois, a unidade material do pedido e a circunstância de as normas em causa serem impugnadas à luz dos mesmos parâmetros constitucionais, não se vislumbra qualquer questão prévia que precluda a apreciação do pedido na sua globalidade.

Aliás, e embora a apreciação do pedido por parte do Tribunal Constitucional tenha, em regra, de incidir sobre cada uma das normas que lhe são submetidas, perante um pedido em que todas elas estão impugnadas com um mesmo e essencial fundamento nada obsta ao seu confronto conjunto com esses parâmetros constitucionais, independentemente do diploma legal em que se fundem.

8.3 - Contexto normativo e enquadramento do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira

8.3.1 - A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira aprovou, "ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º, no n.º 1 do artigo 228.º e no n.º 1 do artigo 232.º da Constituição da República Portuguesa, e na alínea c) do n.º 1 do artigo 37.º, na alínea ll) do artigo 40.º e no n.º 1 do artigo 41.º do Estatuto Político -Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei 13/91, de 5 de junho, revisto e alterado pelas Leis 130/99, de 21 de agosto e 12/2000, de 21 de junho", o Decreto Legislativo Regional 14/2020/M", que «[a]dapta à Região Autónoma da Madeira a Lei 45/2018, de 10 de agosto, que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica» (doravante, TVDERAM).

O Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, limita a sua eficácia normativa ao âmbito regional (artigo 1.º, n.º 1, do TVDERAM), articulando-se com a Lei 45/2018, de 10 de agosto, que por sua vez introduziu no ordenamento português o «Regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica», com entrada em vigor em 13.08.2018 (cf. artigo 33.º do diploma). O TVDERAM acompanha essencialmente a estrutura e sistematização da Lei da República, mas pretendeu adaptá-la «às especificidades económicas, sociais, culturais e geográficas da Região Autónoma da Madeira» (artigo 1.º, n.º 1, do TVDERAM).

Plagiando aqui em grande medida o Acórdão 180/22 diremos que os dois diplomas constituem a resposta legislativa à introdução na realidade portuguesa de um novo paradigma de atividade, geralmente conhecido por «economia colaborativa», no âmbito da prestação de serviços eletrónicos e de transporte rodoviário de passageiros. Oriundo dos Estados Unidos da América e surgido no final da primeira década do século, este modelo de negócio caracteriza-se, em essência, pela disponibilização de serviços de transporte de passageiros ao público em trajetos urbanos através de um dispositivo digital, geralmente uma aplicação informática de descarga gratuita. Pela interação com a aplicação através de telemóveis inteligentes e disponibilizando dados pessoais e de pagamento, aos utentes é admitido solicitar serviço de transporte de passageiros e, de sua parte, também pela utilização da plataforma eletrónica, operadores empresariais ficam em condições de utilizarem os seus recursos para oferecerem resposta à solicitação através de motoristas ao seu serviço.

Os fluxos financeiros relativos ao serviço, incluindo os pagamentos em abono do explorador da plataforma e dos transportadores, são inteiramente realizados através da aplicação, que assim suporta e é veículo de todos os termos da contratação e de cumprimento, com exceção da efetivação do transporte. O gestor da plataforma eletrónica constitui, portanto, o núcleo em torno do qual gravitam utentes e entidades operacionais do setor do transporte rodoviário de passageiros, controlando também os movimentos de cash flow envolvidos no modelo.

Trata-se, enfim, de um paradigma de negócio que assenta no poder atrativo das aplicações eletrónicas e na elasticidade das suas virtudes funcionais para localizar procura e fazê-la encontrar adequada oferta, assim fazendo convergir empresas de transporte com o respetivo público-alvo. Aliviando custos fixos para os operadores, permitindo a captação de prestadores de serviço (motoristas) de cariz mais ou menos ocasional - mas disponíveis a constituir mão-de-obra utilizável em escala -, oferecendo comodidade de pagamento e fazendo-se usar do amplo potencial de exposição e publicidade proporcionado pelo espaço web, não tardou a que este arquétipo obtivesse grande sucesso e se disseminasse pelos mercados mundiais, do que são exemplos empresas como a «Uber», a «Lift», a «Sidecar», a espanhola «Cabify», a francesa «LeCab» e a inglesa «Hailo», entre outras.

A emergência de empresas tecnológicas que oferecem este tipo de serviços em contexto português colocou de imediato problemas de compatibilidade entre a implementação do modelo e a legislação nacional, maxime pelo confronto que importava para com o Decreto-Lei 251/98, de 11 de agosto (acesso à atividade e ao mercado dos transportes em táxi). As entidades envolvidas na importação deste novo paradigma pretenderam poder operar no mercado português à margem da disciplina reguladora do transporte de passageiros em viaturas com motorista, dispensando-se da observância dos requisitos de acesso e de exercício impostos aos operadores já no mercado (serviços «táxi»). A disputa por espaços de mercado congéneres e a desigualdade de condições, pela pretensa inaplicabilidade do espartilho administrativo referente ao transporte rodoviário de passageiros em meio urbano, levou à deflagração de oposição enérgica à implementação do modelo no território pelas instituições associativas de empresas tradicionais, gerando insegurança sobre a viabilidade do projeto no contexto português.

Por outro lado, à semelhança do que foi sucedendo um pouco por toda a Europa, a adoção do modelo inspirou ainda preocupações sobre o impacto que representava para a segurança do transporte de passageiros e para os direitos de consumidores e de trabalhadores envolvidos. Do ponto de vista jurídico, a qualificação das relações negociais estabelecidas entre utentes e empresas gestoras das plataformas eletrónicas foi causa de especial foco de controvérsia, designadamente se seria possível entendê-las como simples mediadoras entre contratantes, ou se efetivamente se poderiam dizer adstritas a vínculos obrigacionais gerados pelas declarações eletrónicas coevas à utilização da aplicação e à contratação do transporte. Da caracterização dos efeitos jurídicos e sua classificação dogmática foi igualmente dependendo a qualificação das empresas exploradoras de plataformas eletrónicas como operadores no setor de transportes, do que, por sua vez, dependeria a necessidade de observância de regulamentação administrativa nacional. Dessa qualificação dependeria igualmente a extensão do perímetro de intervenção admitido aos legisladores nacionais à sombra do Direito da União Europeia, caso pretendessem fixar condicionantes específicas à atividade.

A jurisprudência dos Tribunais europeus (com exceção do caso francês) veio consolidando o entendimento de que as empresas gestoras de plataformas eletrónicas efetivamente operam no setor do transporte rodoviário de passageiros e que o esquema negocial definido importa a sua vinculação obrigacional perante utentes aos contratos de transporte constituídos através da utilização das aplicações (Em Espanha: Juzgado de lo Mercantil n.º 2 Madrid, Recurso 707/2014, 09/12/2014; Sección n.º 28 de la Audiencia Provincial de Madrid - Recurso de Apelación - 494/2016; Em Itália: Tribunale di Milano, Sezione specializzata in materia d'impresa, Ordinanza 25 maggio 2015, Procedimento cautelare n. 16612/2015 R.G; Ordinanza 2 luglio 2015, PROC. R.G. 36491/2015; Tribunale di Torino, Prima Sezione Civile, Sezione Specializzata in materia di Impresa, Sentenza 1-24 marzo 2017, n.º 1553; tribunale civile di Roma, Sez. nona Specializzata in materia d'impresa, R.G. 76465/2016 del 07/04/2017; Na Alemanha: Hamburgisches OVG, Beschluss vom 24. September 2014, Az. 3 Bs 175/14; VG Berlin, Beschluss vom 26. September 2014 · Az. 11 L 353.14; OVG Berlin-Brandenburg, Beschluss vom 10. April 2015 · Az. OVG 1 S 96.14; LG Frankfurt am Main, Urteil vom 18. März 2015 · Az. 3-08 O 136/14, 3-8 O 136/14, 3-8 O 136/14, 3-08 O 136/14; Oberlandesgericht Frankfurt am Main, Urteil vom 09.06.2016, Az.: 6 U 73/15; Landgericht Berlin, Urteil vom 11. April 2014 - 15 0 43/14; Kammergericht, Urteil vom 11. Dezember 2015 - 5 U 31/15; No Reino Unido: London Employment Tribunal, 28 October 2016, Aslam, Farrar and Others - v. Uber (Case 2202551/2015); Employment Appeal Tribunal, 10 November 2017, Uber BV and Others v. Mr. Y. Aslam and Others, Appeal N.º UKEAT/0056/17/DA). Entre nós, foi também essa a tendência que se veio observando nas abordagens doutrinais e jurisprudenciais disponíveis (v. Joana Campos Carvalho, "Enquadramento Jurídico da Atividade da Uber em Portugal", Revista de Concorrência e Regulação, Ano VII, n.º 26, abril/junho 2016, sentença de 25.06.2015 da 1.ª Secção Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Processo 7730/15.0T8LSB).

Localizando a atividade no setor do transporte de passageiros, por esta via se reforçou o entendimento de quem observava o protótipo como fonte de tensão com um extenso leque de interesses de ordem pública, regulatórios e de segurança, que comummente são associados a essa área de atividade. A caracterização dos sujeitos jurídicos envolvidos como operadores neste setor também significou que este subsetor seria de entender permeável à introdução de quadros de legislação estadual que impusessem a observância de requisitos de exercício e de acesso à atividade aos agentes económicos envolvidos.

É o caso do regime jurídico aplicável aos operadores de plataformas eletrónicas, que a Lei 45/2018, de 10 de agosto, previu nos seus artigos 16.º a 20.º A definição de plataformas eletrónicas, consta do artigo 16.º, o qual estabelece que as mesmas consistem nas «[...] infraestruturas eletrónicas da titularidade ou sob exploração de pessoas coletivas que prestam, segundo um modelo de negócio próprio, o serviço de intermediação entre utilizadores e operadores de TVDE aderentes à plataforma, na sequência de reserva efetuada pelo utilizador por meio de aplicação informática dedicada». Apesar de esta definição se focar particularmente no papel de intermediação desempenhado por estes operadores, tal não significa que os mesmos sejam considerados como meros intermediários dos serviços de transporte prestados pelos operadores de TVDE. Com efeito, tanto o artigo 1.º, n.º 2 (o qual prevê que os operadores das plataformas eletrónicas «[...] organizam e disponibilizam aos interessados a modalidade de transporte referida no número anterior»), como o artigo 20.º, n.º 1 (que estabelece que estes operadores são solidariamente responsáveis perante os utilizadores pelo pontual cumprimento das obrigações resultantes do contrato) apontam para a qualificação destes operadores como verdadeiros prestadores de serviços de transporte, em conformidade com a interpretação do pertinente Direito da União pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)».

8.3.2 - Como se relatou no Acórdão 429/2020 deste Tribunal Constitucional, o Tribunal de Justiça da União Europeia tomou parte na controvérsia em duas decisões decorrentes de pedidos de pronúncia prejudicial de tribunais estaduais (de Espanha e de França).

Um princípio estrutural do Direito da União reside na liberdade de prestação de serviços, desde logo, patenteado nos artigos 56.º e 57.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). No domínio do direito derivado, a Diretiva 2006/123 CE (do Parlamento Europeu e do Conselho) orientou-se neste sentido, com o escopo de garantir a efetividade do "exercício da liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e a livre circulação dos serviços" (artigo 1.º, n.º 1). Este diploma estabeleceu um conjunto significativo de limitações aos legisladores estaduais neste âmbito, designadamente pela proibição de subordinação do início de atividade de operadores no setor a autorizações administrativas (artigos 9.º, n.º 1, 10.º, 11.º e 14.º a 16.º). A Diretiva 2000/31/ CE (do Parlamento Europeu e do Conselho), de seu lado, veio garantir também aos agentes económicos de prestação de serviços no setor do comércio eletrónico a libertação de condicionantes administrativas de direito interno para o acesso a atividade (artigo 4.º, n.º 1), oferecendo grau autónomo de proteção contra regulamentação restritiva pelos Estados-membros.

Não obstante, o TFUE e o legislador europeu sentiram necessidade de acautelar questões de ordem pública referentes a certas categorias de serviços de especial interesse para os Estados. Entre eles, o setor dos transportes que recebeu estatuto jurídico particular no âmbito da política comum (artigos 58.º, n.º 1 e 90.º-100.º, todos do TFUE). Em consonância, a Diretiva 2006/123 CE subtrai expressamente do seu âmbito disciplinador o setor dos transportes (artigo 2.º, n.º 1, alínea d)) e a Diretiva 2000/31/CE igualmente sinaliza preocupações relativas a autorizações administrativas que não sejam peculiares aos serviços de comércio eletrónico, que exceciona do princípio de não-autorização prévia (artigo 4.º, n.º 2).

Assim, o problema colocado ao Tribunal de Justiça era, essencialmente, aquele com que se confrontavam os tribunais estaduais: cabia compreender se os operadores de plataformas eletrónicas de transporte rodoviário de passageiros, de acordo com o modelo de economia partilhada que aportara no continente europeu, podiam ser entendidos como agentes económicos no setor dos transportes, ou se, pelo contrário, seriam qualificáveis como prestadores de serviços no mercado digital, para assim concluir pelo âmbito de intervenção legislativa consentida aos Estados-membros.

O Tribunal de Justiça tomou posição no primeiro sentido, entendendo por isso inaplicável ao subsetor o artigo 56.º do TFUE e as Diretivas 2006/123/CE e 2000/31/CE, facto que tem relevância, como se assinalou, no que respeita à competência da União Europeia na matéria. Desta forma, ficou franqueado o caminho aos legisladores estaduais para aprovarem quadros legais de regulamentação do novo modelo de atividade económica:

"um serviço de intermediação como o que está em causa no processo principal, que tem por objeto, através de uma aplicação para telefones inteligentes, estabelecer a ligação, mediante remuneração, entre motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio veículo e pessoas que pretendam efetuar uma deslocação urbana, deve ser considerado indissociavelmente ligado a um serviço de transporte e, por conseguinte, abrangido pela qualificação de "serviço no domínio dos transportes", na aceção do artigo 58.º, n.º 1, TFUE. Tal serviço deve, portanto, ser excluído do âmbito de aplicação do artigo 56.º TFUE, da Diretiva 2006/123 e da Diretiva 2000/31»" (acórdão do TJUE de 20.12.2017, Asociación Professional Elite Taxi c. Uber Systems Spain, SL, proc. C-434/15)

"uma legislação nacional que prevê [...] um sistema que estabelece a ligação entre clientes e pessoas que fornecem prestações de transporte rodoviário de passageiros a título oneroso com veículos de menos de dez lugares [...] refere(-se) a um "serviço no domínio dos transportes", na medida em que se aplica a um serviço de intermediação prestado através de uma aplicação para telefones inteligentes e que faz parte integrante de um serviço global cujo elemento principal é o serviço de transporte. Esse serviço está excluído do âmbito de aplicação destas diretivas [referindo-se às Diretivas 2006/123 CE e 2000/31 CE]»" (acórdão do TJUE de 20.12.2017, no Proc. C-434/15)

Sendo certo que, na medida em que possa ser abrangida pelas demais liberdades comunitárias (como a liberdade de estabelecimento), as normas nacionais apenas as podem restringir caso se verifiquem os respetivos pressupostos.

Cabe ainda anotar que a Comissão Europeia tomou posição na controvérsia, também exibindo idêntico entendimento, embora não tenha deixado de assinalar que "proibições absolutas ou restrições quantitativas ao exercício de uma atividade constituem medidas de último recurso, devendo unicamente ser aplicadas na ausência de outros instrumentos menos restritivos para atingir os objetivos de interesse público" (Comissão Europeia, «Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das regiões - Uma Agenda Europeia para a Economia Colaborativa», 2.6.2016, COM (2016), p. 5).

Regressando ao pedido de fiscalização e base normativa em causa, o surgimento da Lei 45/2018, de 10 de agosto, e do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M (TVDERAM) compreendem-se neste contexto. Os dois diplomas estabelecem o regime jurídico, no domínio nacional e regional (Região Autónoma da Madeira), respetivamente, dos operadores envolvidos neste esquema de negócio e da sua atividade, estabelecendo, para além do mais, os requisitos formais e materiais a que ficam sujeitos os respetivos acesso e exercício.

8.3.3 - Vertendo agora diretamente para a legislação em mãos, a atividade económica de que se ocupam os dois atos legislativos coenvolve, em consonância com o exposto, a disponibilização ao público de plataforma digital, instalada e gerida por um sujeito ("operador de plataforma eletrónica") que permite ao público a solicitação de serviços de transporte rodoviário de passageiros junto de operadores ("operador TVDE"). O serviço solicitado pelo utente (de transporte do ponto «A» para o ponto «B») será efetivado por "motorista de TVDE" ao serviço do segundo dos operadores tipificados. Para o efeito, o motorista terá de realizar registo prévio na mesma plataforma eletrónica e proceder à competente aceitação da reserva através da aplicação.

Esta estrutura básica da atividade regulamentada pode ser observada pela análise sistemática dos artigos 2.º, n.º 2 e 5.º a 9.º, todos da Lei 45/2018, de 10 de agosto (que o TVDERAM adapta à Região Autónoma da Madeira) e os dois diplomas exibem uma disciplina legal semelhante também no que tange à definição tripartida de agentes que desempenham funções no modelo económico. Os diplomas estabelecem igualmente a necessidade, de todos os sujeitos e entidades envolvidas, obterem licenciamento para o desempenho das respetivas atividades, de reunirem requisitos específicos para o efeito e de se acharem dotados de idoneidade adequada.

É assim quanto a plataformas eletrónicas e seus operadores (artigos 16.º-19.º da Lei 45/2018, de 10 de agosto e artigos 7.º e 10.º do TVDERAM), quanto a operadores de TVDE (artigos 2.º-4.º da Lei 45/2018, de 10 de agosto e artigo 10.º da TVDERAM) e quanto a motoristas de TVDE (artigos 10.º e 11.º da Lei 45/2018, de 10 de agosto e artigos 7.º e 8.º da TVDERAM).

8.4 - Apreciação das inconstitucionalidades por violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República

A requerente pede ao Tribunal, em específico, a fiscalização das normas contidas i) no artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, que adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei 45/2018, de 10 de agosto, e que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica ("TVDE"), e (ii) nos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, do Governo da Região Autónoma da Madeira, que aprova a regulamentação do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira. Os preceitos possuem a seguinte redação, destacando a bold os excertos direta ou implicitamente abrangidos pelo pedido de sindicância:

[Decreto Legislativo Regional 14/2020/M]

Artigo 11.º

Fixação de contingentes

1 - O número de averbamentos ou licenças emitidas pela DRETT ao abrigo do presente diploma não excederá o correspondente a 40 veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região, com um máximo de 3 veículos por operador.

2 - A distribuição do contingente a que se refere o número anterior pode ser fixada por determinadas áreas geográficas da Região, por despacho do membro do Governo Regional responsável pela área dos transportes terrestres.

[Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M]

Artigo 4.º

Do acesso à atividade de operador TVDE

1 - O acesso à atividade de operador TVDE, na Região, e a atribuição da respetiva licença têm lugar:

a) Por licenciamento a requerer à DRETT, nos termos dos n.os 2 e 4 do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M;

b) Por averbamento a requerer à DRETT, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, por operador, em exercício na Região licenciado pelo IMT I. P., nos termos do RJTVDE.

2 - O licenciamento e o averbamento referidos no número anterior estão subordinados ao contingente global e ao número de veículos a atribuir por operador previstos no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, e condicionados ao estabelecido nos artigos 8.º e 9.º do presente diploma.

Artigo 8.º

Contingentação

1 - Para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, a DRETT subordina o averbamento da licença concedida pelo IMT, I. P., ao máximo de três veículos, por operador, que indicará a identificação das viaturas, dentro daquele limite, a afetar à atividade em causa.

2 - O mesmo procedimento é adotado, pela DRETT, relativamente aos pedidos para obtenção de licença previstos no n.º 2 do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M.

3 - Sempre que pretenda substituir os veículos afetos à atividade em causa nos termos dos números anteriores, o operador tem de o requerer à DRETT, indicando os elementos de identificação e as características das respetivas viaturas, com vista a obter a necessária autorização.

4 - O operador deve, igualmente, informar a DRETT, no prazo máximo de 15 dias, quando deixe de afetar à atividade em causa qualquer veículo, ou veículos, para tanto autorizados.

5 - Em caso algum serão averbadas ou concedidas licenças pela DRETT com base nos n.os 1 e 2 do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, que excedam o limite legal de três veículos por operador.

6 - Para prevenir a preterição das regras da concorrência, no tocante ao contingente fixado pelo n.º 1 do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, a DRETT, relativamente aos operadores organizados sob a forma societária, para além dos elementos previstos nas alíneas f) e g) do n.º 4 do artigo 6.º do citado diploma, pode solicitar ainda os pactos sociais, estatutos e identificação dos titulares dos órgãos sociais de empresas participantes ou associadas da entidade requerente, e das que sucessivamente sejam identificadas como integrantes de eventual grupo empresarial.

7 - A DRETT fixará prazo não inferior a 15 dias para a apresentação, pelo requerente, dos documentos solicitados ao abrigo do número anterior, o que suspende os demais prazos no âmbito dos procedimentos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M.

8 - Em caso algum será concedida ou averbada licença de operador TVDE, na Região, a mais do que uma pessoa coletiva, sob a forma societária, que seja participante ou associada de outra, ou participada por outra, a favor de que já tenha sido concedida ou averbada, pela DRETT, licença para aquela atividade.

9 - Confirmado que qualquer entidade titular de licença para operador de TVDE, na Região, integra como sócio ou titular de órgão social ou de direção pessoa singular ou pessoa coletiva que tenha participação ou seja titular de órgãos de sociedade que requeira licença ou averbamento para a mesma atividade, tal obsta à concessão da licença ou averbamento requeridos.

Artigo 9.º

Prioridade

1 - A DRETT respeita na atribuição das licenças previstas no artigo 4.º conjugadamente com o número de veículos a autorizar, em conformidade com o artigo 8.º, a prioridade decorrente da ordem de entrada dos respetivos requerimentos.

2 - A prioridade prevista no número anterior não será mantida nos casos em que, por inércia ou outra razão imputável ao requerente, venham a ser concluídos processos com entrada posterior, respeitando-se a respetiva ordem.

3 - Esgotado o contingente a que se refere o artigo 8.º, as novas autorizações relativas a veículos que venham a ser desafetados da atividade são atribuídas de acordo com os critérios seguintes:

a) São notificados, por escrito e por ordem de antiguidade, os operadores que tenham pretendido um número de veículos superior ao que lhes foi atribuído, a fim de informarem, no prazo de 15 dias, se mantêm interesse na atividade e nas autorizações relativas ao veículo ou veículos disponíveis;

b) Excluída a situação prevista na alínea anterior, é notificado por escrito o requerente do mais antigo processo pendente para, no prazo de 15 dias, informar se mantém interesse no procedimento e se pretende que lhe seja atribuída autorização para o veículo, ou veículos, desafetados da atividade;

c) Excluídas as situações previstas nas alíneas anteriores, procede-se à notificação do requerente do subsequente processo pendente mais antigo, para informar, no prazo de 15 dias, se mantém interesse no procedimento e se pretende a autorização do veículo, ou veículos, disponíveis e assim, sucessivamente, até que sejam esgotadas as respetivas autorizações.

4 - A falta de resposta dos interessados nos prazos referidos nas alíneas anteriores é havida como renúncia ao direito conferido, para todos os efeitos.

Como já se referiu, a Requerente sustenta, no essencial, que as normas sindicadas padecem de inconstitucionalidade orgânica, consubstanciando uma violação da reserva legislativa da Assembleia da República consignada no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, porquanto restringem a liberdade de iniciativa privada (cf. artigo 61.º da Constituição) na vertente análoga a direitos, liberdades e garantias e sujeitam-se, portanto, ao regime material e orgânico dos direitos, liberdades e garantias.

Concretizando o objeto do pedido de fiscalização a Requerente pede a fiscalização da norma de contingentação constante do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M (bem como das normas dos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º ínsitas no Decreto Regulamentar Regional 14/2020/M). O n.º 1 do aludido artigo 11.º estabelece dois limites ao número máximo de veículos que podem estar subjacentes às licenças concedidas a operadores TVDE: por um lado, impõe-se um limite absoluto por operador TVDE, proibindo que a entidade obtenha licenciamento caso integre mais de três veículos na empresa (artigo 11.º, n.º 1, in fine); por outro, os veículos explorados por operadores licenciados não podem exceder o correspondente a 40 veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região no seu conjunto (artigo 11.º, n.º 1). O n.º 2 do artigo 11.º do TVDERAM permite ainda que o contingente de veículos TVDE passível de ser licenciado de acordo com estes limites seja distribuído por áreas geográficas mediante despacho do membro do Governo Regional responsável pela área de transportes terrestres.

Na sustentação do pedido, a Requerente baseia-se, em larga medida, no Acórdão 180/2022, onde se concluiu, efetivamente, pela inconstitucionalidade, com esses fundamentos, da norma constante do artigo 13.º do Decreto 1/2022, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, em cujo n.º 1 se estatuía o seguinte:

«1 - O número de averbamentos ou licenças emitidas pela direção regional com competência em matéria de transportes terrestres ao abrigo do presente diploma, de veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região, não excederá o correspondente a 5 % do total de transportes públicos de aluguer em veículos automóveis ligeiros de passageiros, normalmente designados por transportes em táxi, licenciados em cada ilha, com um máximo de três veículos por operador.»

Vê-se, assim, que a norma constante do n.º 1 daquele artigo 13.º, estabelecendo uma limitação quantitativa ao desempenho da atividade de TVDE na Região Autónoma dos Açores, apresenta um flagrante paralelismo ou, até, uma identidade material com a norma constante do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, ora em crise, onde se prescrevia que «o número de averbamentos ou licenças emitidos pela DRETT ao abrigo do presente diploma não excederá o correspondente a 40 veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região, com um máximo de 3 veículos por operador». E é também evidente que as demais normas em apreço nos autos, incluindo as constantes do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, se inserem nesta mesma problemática.

Consequentemente, e não perdendo de vista a decisão e os fundamentos subjacentes ao mencionado Acórdão 180/2022, apenas haverá que aquilatar, em seguida, da verificação in casu de uma restrição da liberdade de iniciativa privada tutelada pelo artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e das regras de competência legislativa a que deveria obedecer tal restrição.

8.4.1 - Ingerências na Liberdade de Iniciativa Privada

8.4.1.2 [sic] - A Requerente, conforme já assinalado, alega que as aludidas normas consubstanciam uma restrição à liberdade de iniciativa económica privada acolhida no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição e, portanto, padecem de inconstitucionalidade orgânica, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.

Estaremos perante uma restrição legal nos casos em que "o âmbito de proteção de um direito fundado numa norma constitucional é direta ou indiretamente limitado através da lei. De um modo geral, as leis restritivas de direitos «diminuem» ou limitam as possibilidades de ação garantidas pelo âmbito de proteção da norma consagradora desses direitos e a eficácia de proteção de um bem jurídico inerente a um direito fundamental" (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.ª Ed., Almedina, p. 1276; sobre o conceito, em sentido mais amplo, v., também, Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2003, pp. 157). Cabe, pois, abordar as normas sindicadas tendo em vista aferir se a regulamentação sujeita a fiscalização é produtora deste tipo de efeito no perímetro de defesa do direito assinalado.

No Acórdão 180/2022, com relevância para a presente decisão e a respeito desta liberdade, deixou-se impresso o seguinte:

«A liberdade de iniciativa privada consagrada no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa - «A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral» - conforma também um direito fundamental - embora não-incluído no catálogo de direitos, liberdades e garantias -, este com evidente correlação com os princípios de organização económica postulados pela Lei Fundamental (artigo 80.º, alínea c) da Constituição da República Portuguesa). Esta liberdade compreende, por um lado, o direito a iniciar uma atividade económica (liberdade de realização de investimento e de aplicação de capitais, liberdade de criação de estabelecimento e liberdade de constituição de instrumentos jurídicos para o efeito) e, por outro, a liberdade de exercício de uma atividade económica, por vezes apelidada de liberdade de empresa. Nesta última dimensão, a liberdade de iniciativa privada manifesta-se contra interferências e ingerências externas na governação de agentes económicos, localizando-se por isso na esfera da entidade empresarial (seja individual ou coletiva) e resultando por isso dotada de um sentido «institucional» que é derivação necessária, pois, da especial qualidade de agente económico por que se caracteriza o sujeito jurídico que dela beneficia (v., sobre o assunto, J. J. Canotilho e Vital Moreira, op. cit.; na jurisprudência constitucional, v., entre outros, acórdãos n.os 545/2014, 220/2015, 538/2015, 545/2015 e 329/2020).

O Tribunal Constitucional tem entendido que na primeira das dimensões compreendidas no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa a liberdade de iniciativa privada se pode entender análoga a direitos, liberdades e garantias, partilhando do respetivo regime constitucional (cf. artigo 17.º da Constituição da República; v., sobre esta matéria, acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 76/85, 187/2001, 358/2005, 304/2010, 274/2012, 75/2013 e 545/2015). Empresta-se reforço a esta noção quando se leve em conta que a liberdade de escolha e de exercício de profissão e a liberdade de iniciativa privada possuem um espaço de sobreposição, concorrendo por vezes à proteção de uma mesma posição jurídica. De facto, o direito a escolher profissão e o direito a iniciar uma atividade económica operam ambos nos casos em que dado profissional pretende iniciar uma atividade dotada de alcance económico. O direito a abrir uma loja de comércio, um estabelecimento de carpintaria ou uma oficina de mecânica, por exemplo, tanto recebe cobertura da liberdade de escolha de profissão (de lojista, de carpinteiro, de mecânico, etc.), como da liberdade de iniciativa económica, já que a atividade profissional escolhida importa também a criação de uma estrutura de meios apta ao desenvolvimento de uma atividade nesses termos que opera como aplicação de capitais, possuindo por isso atributos enquanto investimento que exorbitam o âmbito estritamente ocupacional do seu titular (notando esta incidência, v. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, op. cit., p. 656).

Impõe-se assim, com segurança e em coerência, a aplicabilidade do regime constitucional conferido aos direitos, liberdades e garantias também quanto à liberdade de iniciativa privada, uma vez que respeita, nesta vertente, à mesma realidade».

Também Evaristo Mendes salienta que a iniciativa privada a que alude o artigo 61.º, n.º 1, da Constituição é uma «[...] iniciativa económico-produtiva de carácter empresarial; quer dizer, envolve a produção e a comercialização de bens, assim como o fornecimento de serviços, para o mercado, através de uma organização autónoma constituída para o efeito, funcionalmente adequada e convenientemente implantada nos mercados relevantes dos bens e/ou serviços em causa - a empresa» - cf. Constituição Portuguesa Anotada (org. Jorge Miranda/Rui Medeiros), tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1182.

Em termos mais analíticos, entende que a liberdade de iniciativa económica privada «respeita ao desenvolvimento de uma ou mais atividades empresariais, o que abarca: (i) em primeiro lugar, a livre opção pelo seu exercício e a livre seleção das mesmas (liberdade de escolha); (ii) em segundo lugar, a prática - sem interferência de terceiros, incluindo o Estado - de todos os atos nelas compreendidos, considerados necessários ou convenientes (liberdade operacional, ou liberdade de exercício "stricto sensu"); (iii) em terceiro lugar, a livre escolha dos veículos de identificação e comunicação comercial, do espaço de atuação, bem como do local ou dos locais de implantação, geográfica e institucional (ou seja, no território e nos mercados relevantes), e a livre efetivação desta implantação (liberdade de estabelecimento, em sentido restrito); em quarto lugar, igualmente sem ingerências externas, a formação ou constituição, a conformação e a gestão das organizações julgadas pertinentes, incluindo entidades empresariais personificadas, e o direito ao reconhecimento destas (liberdade de organização e gestão); (v) e, finalmente, em articulação com essas várias vertentes, a liberdade de investir e desinvestir (liberdade de investimento)» - ibidem, p. 1207.

Sendo assim, afigura-se inequívoco que as normas sindicadas, ao imporem uma restrição quantitativa (contingentação) no acesso à atividade de TVDE na Região Autónoma da Madeira (o número de averbamentos ou licenças emitidos pela DRETT ao abrigo do presente diploma não excederá o correspondente a 40 veículos para a prestação de serviços de TVDE na Região, com um máximo de 3 veículos por operador), contendem com a liberdade de iniciativa económica privada, nomeadamente, no que concerne às subdimensões da liberdade de exercício, da liberdade de estabelecimento em sentido restrito e, até, da liberdade de investimento (esta última, no que concerne ao limite de três veículos por operador imposto pelo artigo 11.º, n.º 1, do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M).

Neste sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no Acórdão 180/2022 perante, como se disse, normas idênticas às aqui sindicadas:

«Já no que respeita à disposição do artigo 13.º, n.os 1, 2 e 3 do TVDERAA, resulta do supra exposto que o diploma restringe o número de licenças passíveis de serem emitidas (ou averbadas, no caso de entidades já licenciadas a nível nacional ao abrigo da Lei 45/2018, de 10 de agosto) recorrendo à estrutura fixa de empresas de transporte no mercado: o licenciamento do operador de TVDE não será legalmente admissível caso o total de veículos de operadores congéneres represente mais de 5 % do total da frota de táxis (de empresas licenciadas) em cada ilha açoriana (n.º 1). Por outro lado, mediante decisão do Governo Regional, o número autorizado de veículos TVDE resultante da aplicação do coeficiente sobre o parque de viaturas-táxi pode ser alterado para certas áreas geográficas específicas, potencialmente restringindo o licenciamento em grau superior nessas circunscrições territoriais (n.º 2).

A limitação do número de licenças a emitir (ou a averbar) significa o encerramento do mercado a novos operadores de TVDE depois de atingido o valor numérico que resulte da aplicação do coeficiente fixado nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 13.º do TVDERAA. Porque do licenciamento depende o acesso à atividade, a norma estabelece, em efeito, um numerus clausus de operadores no subsetor. Vedando por esta forma o acesso de novos agentes ao mercado de transporte de passageiros em regime TVDE, não há dúvidas de que estamos perante medida restritiva da liberdade de iniciativa privada.

Finalmente, cabe relembrar que o artigo 13.º, n.º 1, in fine, do TVDERAA impõe um outro limite adicional para que as empresas estejam em condições de aceder ao mercado. Como acima dissemos, o investimento em capitais fixos não pode importar a incorporação na empresa de mais de três viaturas TVDE, sob pena de o licenciamento ser recusado ao agente, bloqueando o acesso ao mercado. Esta é uma limitação da iniciativa empresarial na vertente financeira, já que daqui resulta a impossibilidade de implementar um projeto orientado por economia de escala. De facto, esta medida legal constitui uma condicionante quanto a perspetivas de rendibilidade do investidor e quanto ao limiar temporal de recuperação do capital aplicado, operando por essa via uma restrição de acesso ao subsetor.

Em consonância com o que acima se expôs sobre o perímetro de defesa da liberdade de iniciativa privada recenseada no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o programa normativo constante do artigo 13.º, n.os 1 e 2, do TVDERAA consubstancia uma restrição ao âmbito de tutela da liberdade de iniciativa privada na vertente análoga a direitos, liberdades e garantias (respeitando à liberdade de criar uma empresa e prosseguir uma atividade económica, por um lado, e à liberdade de investimento, por outro), ficando por isso a medida restritiva sujeita ao respetivo regime constitucional, ex vi, artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa».

Por outro lado, também parafraseando o aludido Acórdão 180/2022, dever-se-á assinalar que "para além de condicionar o investidor e as condições de investimento, como se disse, a limitação de três viaturas por operador TVDE atinge também a liberdade de empresa, cerceando a autonomia de gestão da entidade económica pela necessidade de observância desta condicionante estrutural durante o período de atividade, ou seja, no período de exercício e já depois de obtido o licenciamento. A norma é, por isso, invasiva da liberdade de iniciativa privada também na segunda dimensão de tutela acima destacada, já que sinaliza um importante condicionamento da atividade e das opções de governo da empresa-objeto". É manifestamente o caso com que nos deparamos.

8.4.2 - O Regime Orgânico das Medidas Legislativas sobre Direitos, Liberdades e Garantias (e Direitos Fundamentais Análogos)

8.4.2.1 - Tendo em conta que o principal problema de fundo subjacente ao pedido de fiscalização de constitucionalidade incide sobre o âmbito das competências da Região Autónoma da Madeira, e, em particular, sobre o exercício do poder legislativo por parte da Assembleia Legislativa Regional, importa começar por fazer um breve enquadramento sobre esta temática.

A requerente funda o seu pedido na invasão, pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, de competências legislativas sobre matéria inserida na reserva relativa da Assembleia da República - a matéria prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa: direitos, liberdades e garantias. O artigo 227.º, n.º 1, alínea a) da Lei Fundamental, por seu lado, atribui às regiões autónomas competências próprias no exercício do poder legislativo, ao dispor que as mesmas dispõem da faculdade de "legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania". Esta competência é reforçada no artigo 228.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, quando prevê que "a autonomia legislativa das Regiões Autónomas incide sobre as matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania", bem como no n.º 4 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa, ao preceituar que "[o]s decretos legislativos têm âmbito regional e versam sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da respetiva região autónoma que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 227.º".

A jurisprudência deste Tribunal tem vindo consistentemente a interpretar estas normas constitucionais no sentido de estabelecerem dois diferentes tipos de limitações às competências legislativas das regiões autónomas. Como foi salientado no Acórdão 450/2019: "o poder legislativo das regiões autónomas - cometido às Assembleias Legislativas Regionais - encontra-se sujeito a um duplo limite: um limite positivo, no sentido em que apenas pode versar, no âmbito regional, sobre matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo; e um limite negativo, no sentido em que não pode incidir sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania (artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, [da Constituição])".

No que respeita ao limite positivo acima expresso, importa referir que o domínio dos transportes é uma das matérias que se encontra enunciada no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM). O artigo 37.º, n.º 1, alínea c), preceitua, de forma geral, que «Compete à Assembleia Legislativa Regional, no exercício de funções legislativas: c) Legislar, com respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para a Região que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania», especificando-se no artigo 40.º, alínea ll), que «Para efeitos de definição dos poderes legislativos ou de iniciativa legislativa da Região, bem como dos motivos de consulta obrigatória pelos órgãos de soberania, nos termos do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição, constituem matérias de interesse específico, designadamente: ll) Vias de circulação, trânsito e transportes terrestres». Significa isto que a Região Autónoma da Madeira possui competência legislativa própria para regular, no respetivo âmbito regional, matérias relativas aos serviços de transportes terrestres, sendo neste domínio que se incluem tanto a atividade de operador de TVDE como de operador de plataforma eletrónica.

Porém, como avançado supra, o exercício do poder legislativo por parte das Assembleias Legislativas Regionais tem ainda de respeitar um limite negativo: a atividade legislativa do órgão não pode incidir sobre matérias reservadas a órgãos de soberania. Embora mitigado pela cláusula prevista no artigo 227.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, quando prevê que as Assembleias Legislativas Regionais podem "legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta [...]", a verdade é que a própria norma constitucional afasta expressamente a possibilidade de essa autorização parlamentar se referir a algumas matérias que se encontram enunciadas no artigo 165.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Uma dessas matérias é, precisamente, a que consta da alínea b) do n.º 1 desse artigo, segundo a qual é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre direitos, liberdades e garantias. Isto significa que a regulação de direitos, liberdades e garantias é uma das matérias sobre as quais as Regiões Autónomas não podem em caso algum legislar - nem mediante autorização parlamentar -, uma vez que a mesma se encontra reservada aos órgãos de soberania. Ou seja, nas palavras do Acórdão 374/2013, a «[a]utonomia legislativa das Regiões Autónomas encontra-se limitada pelas reservas de competência dos órgãos de soberania», estando a região autónoma impedida de legislar sobre matéria incluída na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República - no caso, pelo artigo 165.º, n.º 1, alínea b). «A necessidade de respeito por parte das Assembleias Legislativas, no exercício da autonomia legislativa, pelas matérias reservadas aos órgãos de soberania decorre, aliás, igualmente do artigo 228.º, n.º 1, da CRP».

Por conseguinte, embora a Região Autónoma da Madeira possua competência legislativa própria para regular, no respetivo âmbito regional, matérias relativas aos serviços de transportes terrestres (e, nessa medida, adaptar o regime contido na Lei 45/2018, de 10 de agosto, às especificidades da RAM), essa competência encontra-se condicionada pelo limite negativo decorrente do artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), e do artigo 228.º, n.º 1, da Constituição, nos termos do qual são excluídas do âmbito da competência legislativa das Regiões Autónomas as matérias reservadas aos órgãos de soberania, nelas se incluindo a regulação de direitos, liberdades e garantias.

Por outras palavras, ressalvando os casos de autorização legislativa ao Governo (artigos 161.º, alínea d) e 166.º, n.º 3, ambos da Constituição da República Portuguesa), apenas a Assembleia da República pode definir quadros legais que representem intervenções conformadoras nesta categoria de direitos, tanto mais assim quando se traduzam em restrições ao seu exercício. Por esse motivo, o ato legislativo que ab-rogue esta regra essencial de repartição da competência legiferante entre órgãos constitucionais estará ferido de inconstitucionalidade orgânica:

"Como resulta da expressa enunciação da alínea b) do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição - «É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: b) direitos, liberdades e garantias» - e, bem assim, da jurisprudência exarada neste Tribunal, a reserva de competência legislativa parlamentar ali consagrada não se confina às bases ou ao regime geral dos direitos liberdades e garantias, abrangendo toda a intervenção legislativa reportada à matéria em causa, sendo que, para mais, não se mostra a reserva confinada à emissão de leis restritivas de direitos liberdades e garantias, embora assuma neste domínio uma fundamental importância (cf., designadamente, Acórdãos n.os 128/2000, 255/2002, 563/2003, 620/2007, 119/2010, 362/2011, 578/2014 e 509/2015)." (v. acórdão do TC n.º 502/2019; para além dos citados neste aresto, v., entre muitos outros, acórdãos do TC n.os 329/99, 187/2001, 491/2002, 358/2005, 211/2007, 310/2009, 176/2010, 304/2010, 311/2012, 75/2013, 578/2014 e 545/2015).

Sobre a aplicabilidade da reserva parlamentar estabelecida no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa a direitos análogos a direitos, liberdades e garantias, como é aqui o caso, não desconhecemos que uma parte da doutrina afasta o regime de equiparação patenteado no artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa deste âmbito mediante uma interpretação restritiva do texto constitucional (v., neste sentido, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 2008, Coimbra Ed., pp. 160-163). No entanto, o entendimento deste Tribunal há muito se consolidou no sentido de conferir amplitude máxima à reserva de competência parlamentar ínsita na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, de modo a abranger também os direitos análogos do artigo 17.º, sem vozes dissidentes (v., acórdãos do TC n.os 329/99, 187/01, 491/02, 358/05, 304/10, 75/2013 e 545/2015). A analogia substancial que acima se assinalou entre direitos fundamentais expressamente qualificados pela Constituição como direitos, liberdades e garantias e os direitos fundamentais de natureza análoga a que se refere o artigo 17.º da Lei Fundamental - ao menos quando uns e outros constem da própria Constituição - justifica a aplicação aos segundos, não só do regime material dos primeiros, como também do respetivo regime orgânico-formal, em especial no que se refere à reserva de competência legislativa da Assembleia da República prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (nesse sentido, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, anot. IV ao artigo 17.º, pp. 372-373; e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa, p. 187).

Importa ainda anotar, de outra parte, que a jurisprudência constitucional sedimentou-se no sentido de entender que o vício de inconstitucionalidade orgânica ficará afastado quando a norma conformadora de direitos, liberdades e garantias aprovada por outros órgãos constitucionais possua carácter redundante face a legislação em vigor emanada pela Assembleia da República. Caso o programa normativo invasivo da reserva parlamentar possua caráter não-inovatório, limitando-se a reproduzir a disciplina legal produzida pelo órgão competente, não se pode entender introduzida no ordenamento uma diferente modelação das matérias por aquela acobertadas. Descaracterizando-se, por essa via, o ato legislativo como uma iniciativa conformadora de direitos, liberdades e garantias (já que se cinge a transpor um sistema normativo introduzido no ordenamento de acordo com o programa constitucional), ter-se-á por afastado o vício de inconstitucionalidade orgânica: "debruçando-se um dado normativo - não emanado pela Assembleia da República nem pelo Governo, com autorização legislativa - sobre matéria atinente a direitos, liberdades e garantias (a), a sua conformidade constitucional, a nível competencial, está dependente do caráter "não inovatório" - rectius, puramente "executivo" - das prescrições que ele contenha (b) - cf. os acórdãos n.os 307/88 e 258/06)" (Acórdão do TC n.º 578/2014).

Sucede, porém, que a Lei 45/2018, de 10 de agosto, não prevê qualquer disposição congénere às que aqui se fiscalizam, razão por que se impõe concluir que as normas sindicadas e os limites quantitativos (contingentação) por elas impostos, revestindo carácter inovatório por não constituírem, enfim, mera refração de norma restritiva de direitos, liberdades e garantias - ou, no caso, de direito de natureza análoga (artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) - já vigente na ordem jurídica, estão feridas de inconstitucionalidade orgânica, por violação do espaço material sujeito a reserva legislativa da Assembleia da República, ex vi do artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa.

8.4.2.2 - Em reforço do que se acabou de expor, podemos ainda acrescentar que os direitos, liberdades e garantias - e, dada a sua natureza análoga, a liberdade de iniciativa privada - «são uma daquelas matérias em que o nível de competência legislativa reservada à Assembleia da República é mais "exigente", porquanto diz respeito a toda a regulamentação legislativa e não apenas às bases ou ao regime geral de um dado domínio (cf. a taxonomia proposta por J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra Editora, 4.ª ed. revista, 2010, p. 325, reiterada, entre outros, nos acórdãos n.os 494/99, 258/06 e 793/13, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Essa maior exigência - que vale tanto para as restrições (sendo certo, dizemos nós, que a existência da quotização ou contingentação é uma das formas mais graves e restritivas de acesso à liberdade de iniciativa privada), como para a restante intervenção normativa conformadora, acondicionadora ou até ampliadora de direitos, liberdades e garantias - traduz-se, desde logo, na circunstância de estes domínios não poderem, com exceção do decreto-lei autorizado, ser objeto de diploma legislativo, configurando-se o poder regulamentar do Governo e dos órgãos regionais como meramente "executivo"».

O mesmo é dizer, portanto, que debruçando-se um dado normativo - não emanado pela Assembleia da República nem pelo Governo, com autorização legislativa - sobre matéria atinente a direitos, liberdades e garantias (a), a sua conformidade constitucional, a nível competencial, está dependente do caráter "não inovatório" - rectius, puramente "executivo" - das prescrições que ele contenha (b) - cf. os acórdãos n.os 307/88 e 258/06, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).» - Ac. 578/2014.

Esta intensa restrição à liberdade de iniciativa privada ínsita nos diplomas regionais aqui em apreço é incompatível com o princípio do Estado unitário e com os objetivos e fundamentos da autonomia regional (artigos 6.º e 225.º da CRP), visando todo e qualquer cidadão do território nacional que fica limitado, senão impossibilitado, de criar uma empresa, de prosseguir uma atividade económica e até de investir, numa atividade económica a desenvolver na Região Autónoma da Madeira.

Na verdade, de acordo com o artigo 6.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa o Estado Português é unitário (e não um Estado Federal) e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública. Nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio, sem prejuízo da unidade do Estado.

Este princípio articula-se na ordem constitucional portuguesa com a ideia de autogoverno regional circunscrito às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira», sendo que o regime autonómico insular engloba várias «autonomias», nomeadamente autonomia como autonomia normativa, traduzida na competência legislativa e regulamentar (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 360).

No entanto, porque «as regiões autónomas não possuem um poder legislativo originário e genérico, há matérias que, mesmo quando se circunscrevem ao âmbito regional, são reservadas aos órgãos centrais, ou porque afetem o princípio da soberania (v. g., amnistias, estado de sítio ou de emergência, águas territoriais, cidadania, Direito penal, tribunais), ou porque contendem com o regime político democrático (v. g., direitos, liberdades e garantias, eleições referendos, tribunais) ou porque, simplesmente, vão bulir com interesses ou valores que o Estado entende ser ele a definir e proteger (v. g., estado e capacidade das pessoas, responsabilidade civil da Administração, domínio público) (-)»[Jorge Miranda, «A Autonomia legislativa das regiões autónomas após a revisão constitucional de 2004», Scientia Ivridica, Tomo LIV, n.º 302 (Abril-Junho), 2005, p. 203]. Daí serem os órgãos de soberania, os únicos com competência para legislarem sobre as matérias aqui em apreciação, na medida em que estamos no campo dos direitos, liberdades e garantias, sendo certo que a matéria em avaliação tem caráter "inovatório".

Acrescentamos ainda que, independentemente de saber se poderia reconhecer-se às Regiões Autónomas uma atuação conformadora e concretizadora dos direitos, liberdades e garantias (na qual a reserva de lei da Assembleia da República para com as Regiões Autónomas seria menos intensa do que com os demais órgãos), aqui está em causa uma restrição bastante intensa e, por isso, está na reserva da Assembleia da República.

9 - Em remate: a inconstitucionalidade orgânica das normas sindicadas e a correspondente procedência do pedido

Em suma, todas as normas sindicadas devem ser consideradas organicamente inconstitucionais, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.

Isto é por demais manifesto quanto à norma contida no artigo 11.º, n.º 1, do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, em cujo n.º 1 se estabelece a já mencionada «fixação de contingentes» para a prestação de serviço de TVDE na Região Autónoma da Madeira, impondo um limite global máximo de 40 veículos e um limite por operador de 3 veículos.

Já o n.º 2 do mesmo preceito legal é meramente operativo ou complementar da norma constante do n.º 1, prevendo que a distribuição do contingente aí estabelecido pode ser fixada por determinadas áreas geográficas da Região, por despacho do membro do Governo Regional responsável pela área dos transportes terrestres. Sendo geneticamente indissociável da norma do n.º 1 e retirando dela a sua razão de ser, a norma do n.º 2, obviamente, partilha com aquela o seu pecado original ou vício de inconstitucionalidade.

E o mesmo se diga das normas impugnadas contidas nos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, que, materialmente, não revestem mais do que natureza meramente regulamentar executiva da norma contida no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, estabelecendo, no essencial, a forma, o critério de prioridade dos requerimentos, a tramitação e os prazos a observar no procedimento administrativo destinado à emissão das licenças ou dos averbamentos a licenças pré-existentes em que se haveria de corporizar a «fixação de contingentes» no acesso à atividade de TVDE na Região Autónoma da Madeira. Tais normas, como alega a Requerente, padecem assim de inconstitucionalidade consequente, no sentido em que deriva da inconstitucionalidade primária ou principal que inquina a norma do n.º 1 daquele artigo 11.º (cf., inter alia, Jorge Miranda, Fiscalização da Constitucionalidade, cit., pp. 40-41).

Das normas sindicadas constantes do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M apenas se destacam, pelo seu caráter inovador e não meramente executivo - como acertadamente alega a Requerente -, as constantes dos n.os 8 e 9 do respetivo artigo 8.º No n.º 8 deste artigo, estabelece-se uma proibição de emissão ou averbamento a licença de operador de TVDE a «mais do que uma pessoa coletiva, sob a forma societária, que seja participante ou associada de outra, ou participada por outra, a favor de que já tenha sido concedida ou averbada, pela DRETT, licença para aquela atividade». Já no n.º 9, estatui-se que «confirmado que qualquer entidade titular de licença para operador de TVDE, na Região, integra como sócio ou titular de órgão social ou de direção pessoa singular ou pessoa coletiva que tenha participação ou seja titular de órgãos de sociedade que requeira licença ou averbamento para a mesma atividade, tal obsta à concessão da licença ou averbamento requeridos».

Mas, tal como vem alegado - e independentemente da questão de saber se, em tese, este Decreto Regulamentar Regional poderia conter norma inovadora em face do próprio Decreto Legislativo Regional regulamentado -, não oferece dúvida que o teor dos n.os 8 e 9 do artigo 8.º do Decreto Regulamentar Regional, estabelecendo restrições adicionais à liberdade de iniciativa económica privada sem lugar paralelo na Lei 45/2018 que as pudesse credenciar à luz do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, incorre, desde logo, no mesmo vício de inconstitucionalidade orgânica.

Consequentemente, também aqui se adere à posição sufragada no Acórdão 180/2022, onde, perante a inconstitucionalidade orgânica de todas as normas aí sindicadas, se considerou prejudicado o conhecimento de vícios de inconstitucionalidade material - que, aliás, a Requerente não invoca nos presentes autos.

Com efeito, e como se lê nesse mesmo aresto, «isto é assim, não apenas porque a pronúncia quanto a estes últimos nada acrescentaria a título de efeitos (cf. artigo 61.º da Lei 28/82, de 15 de novembro e artigo 279.º, n.os 1 a 3, da Constituição da República Portuguesa), mas também porque, tratando-se de invasão da reserva parlamentar sobre direitos, liberdades e garantias (e direitos fundamentais a eles análogos), qualquer intervenção legislativa autónoma da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores sobre a matéria colocada terá de se entender inconstitucional em termos idênticos aos ora explanados».

10 - A eventual restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade

O processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade de normas tem por objetivo a eliminação do ordenamento jurídico das normas inconstitucionais, mediante declaração com força obrigatória geral: «o efeito principal da declaração da inconstitucionalidade em fiscalização abstrata sucessiva é o efeito invalidatório, ou seja, a eliminação retroativa da norma declarada inconstitucional» (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003, p. 1012).

Isto mesmo resulta, literalmente, do n.º 1 do artigo 282.º da Constituição, onde se prescreve que «a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado».

Todavia, o n.º 4 do citado artigo 282.º concede ao Tribunal Constitucional a faculdade de, fundadamente, fixar os efeitos do declarado vício de inconstitucionalidade, de forma a que a sua abrangência seja mais restrita do que a decorrente do n.º 1 do mesmo artigo, desde que tal seja justificado por razões ligadas com a segurança jurídica, a equidade ou interesse público de excecional relevo, de forma a afastar a eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade, como pretendem in casu os órgãos autores das normas sindicadas. Apesar do conhecimento por parte do Tribunal Constitucional da faculdade ínsita no n.º 4 do citado artigo 282.º da Constituição da República Portuguesa ser da sua competência exclusiva (não sendo, portanto, determinante ou necessário para a apreciação de tal questão qualquer pedido formulado pelos requerentes) - vide o Acórdão 208/2002 - não deixaremos de nos debruçar sobre a questão.

Adianta-se, desde já, que não se vislumbra que razões de segurança jurídica ou de excecional interesse público justifiquem, no caso vertente, uma limitação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, do mesmo passo que razões de equidade se mostram insuscetíveis de invocação perante uma situação como a dos autos, que envolve a restrição de um direito fundamental por órgãos não habilitados a legislar sobre essa matéria.

Assim, e apesar da natureza relativamente indeterminada daqueles conceitos, cumpre recordar, com Jorge Miranda, que «[...] a decisão ao abrigo do artigo 282.º, n.º 4, está condicionada por um princípio de proporcionalidade na sua tríplice vertente de necessidade, adequação e racionalidade», de tal forma que «[...] não basta para justificar a limitação de efeitos que a declaração de inconstitucionalidade envolva alguma incerteza para o mundo do direito e para a vida social dele dependente», revelando-se essencial «[...] que a investida contra a segurança jurídica resultante de inconstitucionalização seja de grau elevado» - cf. Fiscalização da Constitucionalidade, cit., pp. 348-349.

Dito de outro modo, como cedo afirmou este tribunal, «ao declarar a inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória geral, o Tribunal Constitucional contribui para o reequilíbrio do sistema jurídico. Mas ao mesmo tempo, e quase paradoxalmente, há que reconhecê-lo, o exercício dessa mesma competência constitui um fator de incerteza e insegurança do direito» - cf. Acórdão 272/86. Todavia, não é qualquer incerteza ou insegurança jurídica motivada pela própria declaração de inconstitucionalidade que justifica uma restrição dos respetivos efeitos, a qual não pode ser alheia, nem à dimensão ou natureza das suas consequências práticas, nem a uma ponderação axiológica enformada pelos valores constitucionais pertinentes.

Isto mesmo é ainda explicitado na seguinte síntese de Joaquim de Sousa Ribeiro: «A declaração de inconstitucionalidade serve valores e interesses que a Constituição garante, assegurando a sua efetividade. A atribuição de poderes jurisprudenciais de determinação restritiva dos efeitos da declaração parte do reconhecimento de que há outros valores e interesses - também eles, de forma mais ou menos imediatamente visível, com assento constitucional - que podem ser afetados pela declaração. E a outorga ao julgador desses poderes significa que o legislador constituinte considerou estar ele em melhor situação para medir, no contexto concreto de cada decisão, as consequências da declaração, como ponto de partida para a identificação de um eventual conflito de valores e, se ele existir, para a tarefa da sua conciliação» - cf. "O diferimento da eficácia no tempo da declaração de inconstitucionalidade», in AA.VV., Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Rui Moura Ramos, vol. I, Coimbra, 2016, p. 207.

Ora, na situação vertente - e sem que se torne necessário tomar aqui posição sobre o exato alcance da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral sobre o caso decidido, ou seja, sobre a estabilidade dos atos administrativos praticados com fundamento em norma inconstitucional e não impugnados -, é manifesto que a eventual ressalva ou salvaguarda dos efeitos jurídicos produzidos a coberto das normas sindicadas apenas poderia visar a conservação de situações de exclusão do acesso de operadores económicos à atividade de TVDE e, portanto, de materialização da restrição do respetivo direito de iniciativa económica privada, com base em disciplina normativa emanada em termos constitucionalmente inidóneos.

Nenhumas expectativas legítimas seriam, assim, tuteladas, pois os únicos beneficiários da preservação deste statu quo não poderiam deixar de ser os interessados que lograram obter uma licença ou averbamento a uma licença habilitante da atividade de TVDE, em preterição de outros operadores e com sacrifício de um direito fundamental destes últimos equiparável a um direito, liberdade e garantia.

A pretendida restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade seria, portanto, desproporcionada ou mesmo valorativamente inaceitável, pelo que não deve ser concedida, não se encontrando preenchidos os pressupostos ou requisitos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição.

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas no artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, e nos artigos 4.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M, do Governo da Região Autónoma da Madeira, com fundamento na violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência ao direito de iniciativa económica privada, acolhido no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição;

b) Não restringir os efeitos da referida declaração de inconstitucionalidade e, nomeadamente, a sua eficácia retroativa, nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

Lisboa, 23 de janeiro de 2024. - António José da Ascensão Ramos - João Carlos Loureiro - José Eduardo Figueiredo Dias - Rui Guerra da Fonseca (com declaração) - Maria Benedita Urbano - José Teles Pereira (sem prejuízo da declaração que exarei no Acórdão 180/2022) - Carlos Medeiros de Carvalho - Gonçalo Almeida Ribeiro - Mariana Canotilho (afastando-me parcialmente da fundamentação constante do ponto 8.4.2.2) - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão - José João Abrantes.

Declaração de voto

Acompanho a decisão, mas considero relevantes algumas considerações a respeito da interpretação de alguns dos parâmetros convocados na fundamentação, no contexto do que a parte final do ponto 8 entreabre.

1 - O Acórdão 180/2022, sobre o qual a presente decisão em larga medida se apoia, reverberava uma linha jurisprudencial que assenta numa certa leitura conjugada do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), do artigo 227.º, n.º 1, alínea b), e também do artigo 228.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa ("CRP"). Tal leitura é, no essencial, coerente com os seus próprios pressupostos, mas tem implicações em várias direções. Uma delas, a mais imediata, é a seguinte: as Assembleias Legislativas das regiões autónomas - o legislador regional - não podem sequer tocar matérias de direitos, liberdades e garantias. Uma vez que o artigo 227.º, n.º 1, alínea b), não permite que o legislador regional possa sequer ser autorizado pela Assembleia da República a legislar sobre tais matérias, não poderiam existir atos legislativos regionais (decretos legislativos regionais) de qualquer modo respeitantes a direitos, liberdades e garantias. Por maioria de razão, se assim é, menos ainda seriam admissíveis restrições a direitos, liberdades e garantias através de decreto legislativo regional.

É de questionar, porém, se uma tal linha hermenêutica (e respetivas conclusões) se adequa a uma - necessária - interpretação da Constituição que leve em conta o nosso sistema constitucional, ou uma concretização mais completa do Estado de Direito Democrático, considerando os seus elementos, o seu tempo e a sua praticabilidade - com a autonomia regional como sua concretização e que nele vai implicada (até mesmo como limite material de revisão constitucional (artigo 288.º, alínea o) da CRP).

2 - Como é sabido, a atual redação da alínea b) do artigo 227.º, n.º 1 da CRP resultou da revisão constitucional de 2004, que passou então a dispor ser da competência do legislador regional «[l]egislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta, com exceção das previstas nas alíneas a) a c), na primeira parte da alínea d), nas alíneas f) e i), na segunda parte da alínea m) e nas alíneas o), p), q), s), t), v), x) e aa) do n.º 1 do artigo 165.º». Por seu turno, o artigo 161.º, alínea e) passou a contemplar a competência parlamentar para conferir tais autorizações legislativas às Assembleias Legislativas das regiões autónomas. O artigo 165.º, porém, não foi tocado na revisão constitucional de 2004, o que significa que aqueles preceitos se relacionam, desde então, com uma norma, o artigo 165.º, que foi sendo objeto de alterações ao longo de várias revisões constitucionais, mas não nesta de 2004. Quaisquer incoerências ou dificuldades interpretativas emergentes do artigo 165.º da CRP, fruto desde logo da sua própria evolução, passaram também a ser relevantes para esta nova relação normativa conformadora da competência legislativa regional.

Atentemos, primeiramente, em alguns aspetos problemáticos emergentes da conexão entre artigo 165.º, n.º 1, e o artigo 227.º, n.º 1, alínea b) da CRP.

Desta conexão, numa leitura imediata, resulta que, para além da exclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º, as regiões autónomas não podem ser autorizadas a legislar sobre diversas matérias de ou diretamente relevantes para direitos, liberdades e garantias. Com efeito, "estado e capacidade das pessoas" (alínea a)), "definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos, bem como processo criminal" (alínea c)), "regime geral da punição de infrações disciplinares" (alínea d)), "criação de impostos e sistema fiscal (...)" (alínea i)), "(...) garantias dos administrados e responsabilidade civil da Administração" (alínea s)), são apenas alguns dos exemplos mais evidentes de matérias de ou diretamente relevantes para direitos, liberdades e garantias que o artigo 227.º, n.º 1, alínea b) exclui da possibilidade de autorização legislativa às regiões autónomas. Mas uma vez que tal exclusão já resultaria da vedação de autorização legislativa para legislar sobre direitos, liberdades e garantias, há que perguntar pela razão de uma dupla proibição. Não sendo a Constituição "didática", mas antes normativa, poderia dizer-se que a referência ao artigo 165.º, n.º 1, alínea b) importaria então uma proibição de autorização relativamente às restantes matérias de ou diretamente relevantes para direitos, liberdades e garantias para além das que resultam das demais alíneas.

3 - Mas entre as possibilidades de autorização legislativa às regiões autónomas contam-se também matérias de ou diretamente relevantes para direitos, liberdades e garantias, em razão de o artigo 227.º, n.º 1, alínea b) as não excluir na relação com o artigo 165.º, n.º 1: são disso exemplo os "atos ilícitos de mera ordenação social e do respetivo processo" (parte final da alínea d)); "regime geral da requisição e da expropriação por utilidade pública" (alínea e)); "bases do sistema de proteção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural" (alínea g)); "regime geral do arrendamento urbano" (alínea h)); "definição dos setores de propriedade dos meios de produção, incluindo dos setores básicos nos quais seja vedada a atividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza" (alínea j)); "meios e formas de intervenção, expropriação, nacionalização e privatização dos meios de produção e solos por motivos de interesse público, bem como critérios de fixação, naqueles casos, de indemnizações" (alínea l)); "regime dos planos de desenvolvimento económico e social" (primeira parte da alínea m)); "bases da política agrícola, incluindo a fixação dos limites máximos e mínimos das unidades de exploração agrícola" (alínea n)); "bases gerais do estatuto das empresas públicas e das fundações públicas" (alínea u)); "bases do ordenamento do território e do urbanismo" (alínea z)).

É inequívoco que estas "não exclusões" permitem às regiões autónomas legislar, mediante autorização da Assembleia da República, sobre diversas matérias de ou diretamente relevantes para direitos, liberdades e garantias, entre as quais relevam sobretudo, para o caso dos autos, as que tocam o direito de iniciativa económica privada e o direito de propriedade - artigos 61.º e 62.º da CRP - direitos fundamentais análogos aos direitos, liberdades e garantias.

Mais uma vez, não sendo a Constituição "didática", mas antes normativa, pode dizer-se que estas últimas permissões de autorização legislativa habilitam as regiões autónomas a legislar, se para tal autorizadas, sobre estas matérias de ou diretamente relevantes para direitos, liberdades e garantias, com exclusão de todas as outras.

4 - Dos dois pontos antecedentes, resulta que a expressa exclusão dos direitos, liberdades e garantias da possibilidade de legislação regional autorizada se depara com o seguinte:

i) Tal exclusão não afasta, afinal, que possa existir legislação regional autorizada sobre matérias de ou diretamente relevantes para direitos, liberdades e garantias, visto que o próprio artigo 227.º, n.º 1, alínea b) o permite, numa leitura necessariamente conjunta com o artigo 165.º, n.º 1 alínea b) da CRP.

ii) Tal exclusão está duplicada a respeito de certas matérias (supra, 2), o que, na necessária busca pela normatividade própria de cada segmento constitucional autónomo, implica questionar o sentido, o âmbito e a extensão da exclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º de entre aquelas mencionadas no artigo 227.º, n.º 1, alínea b) que podem acobertar legislação regional autorizada.

Uma leitura apenas do texto constitucional corre o risco de se tornar circular, contribuindo para uma obnubilação que nos afaste do tempo e da praticabilidade. Daí que me pareça relevante recorrer aos contributos de outros elementos do sistema constitucional.

5 - Confiramos atenção aos estatutos político-administrativos das regiões autónomas. Mas não sem antes antecipar a objeção de que se entraria assim no caminho da interpretação da Constituição à luz do direito infraconstitucional. No caso, não é disso que se trata. Como é sabido, estabelece o artigo 227.º, n.º 1 da CRP, que as regiões autónomas podem legislar sobre matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania. Para o legislador constitucional, a autonomia legislativa regional tem, pois, uma dimensão não exequível por si mesma, que apela à compleição por parte dos estatutos político-administrativos de cada região autónoma. Tal dinâmica de compleição pode, é claro, suscitar questões de constitucionalidade dos próprios estatutos político-administrativos face ao parâmetro da Constituição, pois aqueles não perdem a sua posição infraconstitucional apesar do seu valor reforçado. Mas, independentemente de questões específicas dessa ordem (que estiveram em causa, por exemplo, no Acórdão 403/2009), os estatutos político-administrativos refletem a opção do legislador soberano quanto ao âmbito da autonomia legislativa regional - opção essa que a própria Constituição vincula o legislador soberano a fazer por força de uma certa conformação da autonomia legislativa regional com assento constitucional no artigo 228.º, n.º 1 da CRP.

O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores ("EPARAA"), aprovado pela Lei 39/80, de agosto, na redação da Lei 2/2009, de 12 de janeiro, contém diversas disposições relevantes e reveladoras daquela opção do legislador soberano. Na economia destas linhas, cinjamo-nos às imediatamente mais relevantes. É nos artigos 49.º e seguintes do EPARAA que especificamente se encontra o elenco das matérias de competência legislativa própria da Assembleia Legislativa Regional dos Açores. Aí se referem múltiplas matérias que diretamente entroncam nos direitos, liberdades e garantias ou cuja satisfação não é possível, na prática, sem os tocar. É o caso, desde logo, das matérias de âmbito tributário (artigo 50.º), que, ainda que com cobertura constitucional e legal (no âmbito da lei de finanças das regiões autónomas), implicam afetações negativas de situações jurídicas à partida protegidas por direitos, liberdades e garantias ou direitos de natureza análoga - mormente, o direito de propriedade. Mas, para além disso, é também o caso das competências legislativas em matéria de: "recursos piscatórios e outros recursos aquáticos, incluindo a sua conservação, gestão e exploração", "aquicultura e transformação dos produtos da pesca em território regional", "embarcações de pesca que exerçam a sua actividade nas águas interiores e mar territorial pertencentes ao território da Região ou que sejam registadas na Região", "tripulações", etc. (artigo 53.º); no domínio do comércio e indústria, "funcionamento dos mercados regionais e da actividade económica", "promoção da concorrência", "licenciamento e fiscalização da actividade industrial", "resolução alternativa de litígios relacionados com o consumo", etc. (artigo 54.º); tantas outras matérias aí referidas no âmbito do turismo, infraestruturas, transportes e comunicações, ambiente e ordenamento do território, etc. (artigos 55.º e seguintes); até ao elenco geral de matérias não tematicamente agrupadas (artigo 67.º), onde pontificam as "políticas de género e a promoção da igualdade de oportunidades" (alínea g)).

É, na prática, impossível desenvolver atividade legislativa sobre este extenso e ambicioso leque de matérias sem tocar direitos, liberdades e garantias ou direitos fundamentais de natureza análoga, designadamente os direitos de iniciativa económica privada e de propriedade. Mais, um dos objetivos fundamentais da autonomia, de acordo com o artigo 3.º, alínea h) do EPARAA, é a "efetivação dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados", o que a região só poderá fazer através do exercício das suas competências funcionais, político-legislativa e administrativa. Seria absurdo, de resto, considerar que tal "efetivação", que sempre implicará tocar certos direitos, liberdades e garantias, se faria apenas através da função administrativa regional, com exclusão da (político-)legislativa.

O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira ("EPARAM") pertence ainda a uma "geração estatutária" anterior, pois foi aprovado pela Lei 13/91, de 5 de junho, alterada pela Lei 130/99, de 21 de agosto, mas ainda sem adequação posterior à revisão constitucional de 2004. Por isso é aqui referido depois do EPARAA, que é mais detalhado quanto a estes aspetos. O artigo 40.º do EPARAM refere-se ainda a «matérias de interesse específico», uma categoria eliminada do texto constitucional com a revisão constitucional de 2004. Mas as matérias aí referidas convocam o mesmo tipo de considerações: assim, com a "política demográfica, de emigração e estatuto dos residentes" (alínea a)); "pescas e aquicultura" (alínea f)); "regime jurídico de exploração da terra, incluindo arrendamento rural" (alínea h)); "políticas de solos, ordenamento do território e equilíbrio ecológico" (alínea i)); "energia de produção local" (alínea l)); "expropriação, por utilidade pública, de bens situados na Região, bem como requisição civil" (alínea v)); "mobilização de poupanças formadas na Região com vista ao financiamento de investimentos nela efetuados" (alínea dd)); "vias de circulação, trânsito e transportes terrestres" (alínea ll)); "manutenção da ordem pública" (alínea rr)); entre outros exemplos possíveis.

É evidente que o legislador soberano pretendeu dotar as regiões autónomas de competência legislativa num vastíssimo leque de matérias que inevitavelmente tocam direitos, liberdades e garantias (mormente, a iniciativa económica privada e o direito de propriedade). Sublinhe-se que o legislador soberano é aqui o legislador infraconstitucional, mas em concretização do que o legislador constitucional lhe solicita, por via do disposto no artigo 228.º, n.º 1 da CRP (supra).

6 - Além disso, no âmbito do nosso sistema constitucional, não pode dizer-se que a jurisprudência constitucional tenha sempre reagido imediata e negativamente, ao primeiro indício de interferência do legislador regional no âmbito dos direitos, liberdades e garantias. Cabe fazer uma referência ao Acórdão 232/03. Neste caso, o (então) Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores requeria a apreciação preventiva da constitucionalidade da norma constante do n.º 7 do artigo 25.º do Regulamento do Concurso do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e Ensinos Básico e Secundário (aprovado pelo artigo 1.º do Decreto da Assembleia Legislativa Regional dos Açores n.º 26/2003, bem como da norma constante do artigo 2.º desse Decreto), na medida em que estabelecia uma redação provisória para o n.º 4 do artigo 23.º daquele Regulamento, aplicável ao concurso do pessoal docente para o ano letivo de 2003/2004. Em muito reduzida síntese, as normas em causa estabeleciam uma discriminação positiva para certos docentes com ligação à Região Autónoma dos Açores, e o parâmetro eleito pelo requerente foi o princípio da igualdade no acesso à função pública - artigos 13.º e 47.º, n.º 2 da CRP; portanto, um direito fundamental inserido no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, na sua relação com um princípio geral em matéria de direitos fundamentais.

O Tribunal Constitucional decidiu então pronunciar-se pela inconstitucionalidade de certo segmento de uma das normas em causa, mas não de outros. Relativamente a estes, que o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucionais, disse-se:

«Não é desrazoável pensar que uma especial ligação aos Açores possa favorecer a radicação nesta Região e por aí a estabilização dos seus quadros docentes. Resta pois indagar se os termos por que tal ligação é concretizada desnaturam o objectivo prosseguido e, revelando-se arbitrários ou carecidos de adequada fundamentação, nos termos supra indicados, constituem uma discriminação constitucionalmente proibida em relação àqueles cuja candidatura é preterida pela actuação do comando que analisamos.

[...]

[...] Não se afigura pois que, ao atentar na efectiva ou potencial prestação de serviço docente na Região, e na opção em sede de habilitação profissional, por área considerada como carenciada na Região Autónoma dos Açores, reveladas pela concessão de bolsa de estudo de que o candidato beneficiou, o legislador regional haja ultrapassado a discricionariedade legislativa que lhe é consentida ao utilizar um critério objectivo e racional, na medida em que exprime uma ligação àquela Região Autónoma.

O mesmo se diga das segunda e terceira razões de preferência a que alude a alínea a) do n.º 7 do artigo 25.º e que se referem, respectivamente, à prestação de pelo menos três anos de serviço docente, como docente profissionalizado no respectivo grupo ou nível de docência em escola da rede pública na Região Autónoma dos Açores, e à realização de estágio profissionalizante, mesmo quando este não seja remunerado, em escola da mesma rede. Trata-se aqui de elementos objectivos, reveladores de uma ligação à Região Autónoma dos Açores, que não envolvem qualquer privilégio de naturalidade, origem ou residência e cuja eleição, para os efeitos em vista, se enquadra pois manifestamente na liberdade de conformação que não pode deixar de ser reconhecida ao legislador.»

Em suma, o Tribunal Constitucional considerou que o legislador regional prosseguia finalidades que lhe eram legítimas e, simultaneamente, justificativas de uma discriminação positiva não arbitrária e, por conseguinte, constitucionalmente aceitável.

Fica claro, desde logo, que o Tribunal Constitucional, não alterando o parâmetro que lhe vinha proposto pelo requerente (o que podia ter feito, de acordo com o artigo 51.º, n.º 5 da LTC, pesem embora as particularidades do processo de fiscalização preventiva, em caso de evidência), aceitou uma disposição legislativa regional em (ou com reflexos em) matéria de direitos, liberdades e garantias (igualdade no acesso à função pública). De resto, muito embora este aresto a isso não se tenha referido, é de admitir uma certa conformação com efeitos compressivos correlatos da discriminação positiva aí em apreço, dada a "escassez" que por natureza caracteriza o bem envolvido: no caso, vagas (vejam-se, aliás, as dúvidas constantes da declaração de voto da Senhora Conselheira Maria Fernanda Palma, que se prendem, justamente, com a escassez do bem e efeitos da norma). Mutatis mutandis, como assinala Jorge Reis Novais a respeito do princípio da igualdade, «(...) havendo, é certo, diferenciações positivas que não se reflectem negativamente na esfera jurídica de outrem, já se, no acesso a posições ou bens escassos, há alguém que é positivamente discriminado por causa da sua raça ou género, há outro alguém que reflexamente, por facto de ter outra raça ou género, pode estar a ser discriminado negativamente» (cf. Princípios Estruturantes de Estado de Direito, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2023, p. 72).

Mas essa era, ainda assim, uma mera eventualidade ou contingência. No caso dos presentes autos, a norma objeto não é de discriminação positiva, pois estabelece diretamente, não uma vantagem, mas uma limitação imediata para os respetivos destinatários (pese embora, ao atentar-se no preâmbulo do Decreto Legislativo Regional 14/2020/M, se perceba que a motivação do legislador regional foi a salvaguarda do setor do táxi). Daí que, o tipo de objeto normativo dos presentes autos não seja sobreponível ao do Acórdão 232/03. Todavia, é uma conclusão evidente, a de que não se recusou uma norma regional por interferência com direitos, liberdades e garantias: pelo contrário, entendeu-se que uma tal interferência estava justificada, nos termos brevissimamente relatados. - Rui Guerra da Fonseca

117381218

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5655356.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1980-08-05 - Lei 39/80 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-09-18 - Acórdão 272/86 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, e por violação do disposto no artigo 56.º, n.os 1, 2, alínea b), e 4, da Constituição da República Portuguesa [a que correspondia, na redacção primitiva da Constituição, o artigo 57.º, n.os 1, 2, alínea b), e 4], a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 9.º da Portaria n.º 367/72, de 3 de Julho(As cadernetas fornecidas pelos sindicatos representativos dos profissionais de farmácia, serão propriedade destes), e limita os efeitos desta declaração, de forma que (...)

  • Tem documento Em vigor 1991-06-05 - Lei 13/91 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.

  • Tem documento Em vigor 1996-08-31 - Lei 40/96 - Assembleia da República

    Regula a audição dos órgãos de Governo próprio das Regiões Autónomas, nos termos do nº 2 do art. 231º da Constituição da República Portuguesa. Define as situações de audição, sua forma, competência, informação, prazo, alterações, bem como o seu incumprimento e obrigatoriedade de referência em actos normativos.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-11 - Decreto-Lei 251/98 - Ministério do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território

    Regulamenta o acesso à actividade e ao mercado dos transportes em táxi.

  • Tem documento Em vigor 1999-08-21 - Lei 130/99 - Assembleia da República

    Revê o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 2000-06-21 - Lei 12/2000 - Assembleia da República

    Altera (segunda alteração) o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91 de 5 de Junho.

  • Tem documento Em vigor 2002-07-08 - Acórdão 208/2002 - Tribunal Constitucional

    Declara inconstitucionais, com força obrigatória geral, as normas dos artigos 9.º, n.º 1, e 16.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 184/98, de 6 de Julho, que aprova a Lei Orgânica do Centro de Gestão da Rede Informática do Governo, e, em consequência, as normas constantes dos n.ºs 2, 3 e 4 do referido artigo 9.º, limitando parcialmente os efeitos da inconstitucionalidade (Proc.º 111/2000, tem incorporado o Proc.º 523/2000).

  • Tem documento Em vigor 2009-01-12 - Lei 2/2009 - Assembleia da República

    Aprova a terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, e procede à sua republicação

  • Tem documento Em vigor 2018-08-10 - Lei 45/2018 - Assembleia da República

    Regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica

  • Tem documento Em vigor 2020-02-07 - Decreto Regulamentar Regional 14/2020/M - Região Autónoma da Madeira - Presidência do Governo

    Segunda alteração do Decreto Regulamentar Regional n.º 7/2006/M, de 16 de junho, que aprova a orgânica da Direção Regional de Educação e altera a orgânica da Secretaria Regional de Educação, aprovada pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 20/2015/M, de 11 de novembro

  • Tem documento Em vigor 2020-10-02 - Decreto Legislativo Regional 14/2020/M - Região Autónoma da Madeira - Assembleia Legislativa

    Adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica

  • Tem documento Em vigor 2021-01-25 - Decreto Regulamentar Regional 1/2021/M - Região Autónoma da Madeira - Presidência do Governo

    Aprova a regulamentação do Decreto Legislativo Regional n.º 14/2020/M, de 2 de outubro, que adapta à Região Autónoma da Madeira a Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto, que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica

  • Tem documento Em vigor 2022-01-05 - Decreto 1/2022 - Presidência do Conselho de Ministros

    Classifica como bens de interesse nacional o Cravo, João Batista Antunes, século XVIII (1789), MNM 373, e o Pianoforte, Henri-Joseph Van Casteel, século XVIII (1763), MNM 425, e como conjunto de interesse nacional os três bustos imperiais provenientes da Villa Romana de Milreu: Agrippina minor, Adriano e Galieno, sendo-lhes atribuída a designação de «tesouro nacional»

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda