Acórdão 33/88
Processo 300/87
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional (T. Const.):
1 - O procurador-geral-adjunto em funções junto do T. Const. requereu, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, e no artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 296/82, de 28 de Julho, que alterou a redacção do artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao Decreto-Lei 43335, de 19 de Novembro de 1960.
Em abono do pedido invoca tão-só o requerente que a norma em causa já foi julgada inconstitucional em seis casos concretos por este mesmo Tribunal, louvando-se, pois, na doutrina expendida nos respectivos acórdãos (Acórdãos n.os 289/86, 32/87, 59/87, 86/87, 93/87 e 94/87, todos publicados no Diário da República, 2.ª série, de 7 de Janeiro, de 7 de Abril, de 15 de Abril, de 8 de Maio e de 13 de Maio de 1987, respectivamente).
Notificado o Governo, nos termos do preceituado nos artigos 54.º e 55.º da Lei 28/82, para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, limitou-se o Primeiro-Ministro a vir oferecer o merecimento dos autos.
Cumpre agora decidir.
2 - Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 281.º da lei fundamental, o T. Const. aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos. E o artigo 82.º da Lei 28/82 esclarece que, sempre que a mesma norma tiver sido julgada inconstitucional em três casos concretos, pode o T. Const., por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público (MP), promover a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstracta sucessiva previsto na mesma lei.
No caso vertente foi o processo desencadeado pelo MP, ao abrigo do referido artigo 82.º da Lei 28/82, cabendo assinalar que a norma cuja declaração de inconstitucionalidade se requer corresponde, efectivamente, à norma julgada inconstitucional nos seis casos concretos a que se reportam os acórdãos mencionados pelo requerente.
Nada obsta, pois, ao conhecimento do fundo da questão.
3 - No artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao já referido Decreto-Lei 43335, estabelecia-se o seguinte:
Art. 49.º - Comissão de peritos. - As dúvidas ou divergências que se levantaram entre o consumidor e o distribuidor sobre a execução ou a interpretação das disposições destas condições gerais, do caderno de encargos da concessão ou da apólice aprovada serão decididas por uma comissão de três peritos-árbitros, um indicado por cada uma das partes e o terceiro designado pelo Secretário de Estado da Indústria.
§ 1.º A constituição da comissão referida no corpo do artigo poderá ser requerida por qualquer das partes à Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos, que fixará um prazo não inferior a quinze dias para a indicação dos peritos-árbitros das partes. A falta de indicação do respectivo perito implica a desistência da reclamação ou a aquiescência a ela, consoante a falta for do requerente ou do requerido. Se nenhuma das partes indicar o seu perito-árbitro, extinguir-se-á o processo.
§ 2.º As despesas feitas com a constituição e funcionamento da comissão, incluindo os honorários dos peritos, depois de aprovadas pelo Secretário de Estado da Indústria, serão pagas pela entidade que decair, na proporção do vencido.
Conforme se relata no preâmbulo do Decreto-Lei 296/82, na aplicação prática deste preceito surgiram «opiniões divergentes quanto à sua extensão, nomeadamente: sobre se ele abrange apenas dúvidas ou divergências de natureza técnica ou também de outras naturezas; sobre se a expressão dúvidas ou divergências inclui ou não a falta de cumprimento de obrigações do distribuidor ou consumidor - como a falta de pagamento por este do preço da energia comprada - e respectivas consequências, como indemnizações ou juros; sobre se devem ser resolvidas pela comissão as dúvidas ou divergências e posteriormente a parte vencedora deverá ainda propor em tribunais ordinárias acção para declaração dos direitos que porventura resultem de interpretações feitas pela comissão».
Consequentemente, e porque o Governo entendeu que o referido artigo 49.º das Condições Gerais de Venda devia ser «interpretado amplamente», de forma que as comissões nele previstas tivessem «competência para resolver definitivamente todos os litígios de qualquer natureza e que, por qualquer motivo», ocorressem «nas relações entre o distribuidor e o consumidor de energia em alta e média tensão, nestas qualidades», veio a dar-lhe nova redacção, através do questionado artigo 1.º do citado Decreto-Lei 296/82.
A redacção do artigo 49.º das Condições Gerais de Venda passou então a ser a seguinte:
Art. 49.º - Comissão arbitral. - As dúvidas, divergências ou, de um modo geral, todos os litígios de qualquer natureza que se levantarem entre o consumidor e o distribuidor sobre a interpretação ou execução de disposições legais ou contratuais aplicáveis às suas relações, incluindo a falta de cumprimento de obrigações e respectivas consequências, serão decididos por uma comissão de três árbitros, um indicado por cada uma das partes e o terceiro por acordo dos outros dois árbitros.
§ 1.º A constituição da comissão referida no corpo do artigo poderá ser requerida por qualquer das partes à Direcção-Geral de Energia, que fixará um prazo não inferior a quinze dias para a indicação dos árbitros das partes. A falta de indicação do árbitro do demandante implica a desistência do pedido. Na falta de indicação do árbitro do demandado, será este designado pelo procurador-geral da República. Não chegando os árbitros nomeados pelas partes a acordo para a designação do terceiro árbitro nos quinze dias seguintes à sua nomeação, será este designado pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
§ 2.º A comissão determinará os termos a seguir na instrução do processo, devendo, porém, ser sempre ouvidas as partes depois da preparação e antes da decisão da causa.
§ 3.º A competência das comissões, como tribunais arbitrais necessários, prevalece sobre a competência de quaisquer tribunais arbitrais voluntários previstos em cláusulas compromissórias, e as suas decisões, das quais não é admitido recurso, têm a mesma força que uma sentença proferida pelo tribunal de comarca e serão executadas pelos tribunais cíveis, quando a execução se efectue nos termos gerais de direito; quando preceitos especiais previrem o pagamento destas dívidas através de ordens de pagamento emitidas pelo Conselho Superior da Magistratura a favor dos respectivos credores ou por meio de deduções de importâncias a transferir pelo Estado para a parte vencida, compete à comissão arbitral que tenha proferido a decisão requisitar aquela ordem ou solicitar aquela dedução.
§ 4.º As despesas feitas com a constituição e funcionamento das comissões, incluindo os honorários dos árbitros, depois de aprovados pelo Ministro da Indústria, Energia e Exportação, sob proposta da Direcção-Geral de Energia, serão pagas pela entidade que decair na proporção do vencido.
4 - Conforme se assinalou no Acórdão 32/87, do cotejo da anterior com a nova redacção do mencionado artigo 49.º resulta que:
a) A comissão passou a ser expressamente designada como «arbitral» e qualificada como «tribunal arbitral necessário»;
b) O terceiro árbitro deixou de ser designado pelo Secretário de Estado da Indústria para passar a ser designado pelos árbitros das partes ou, na falta de acordo destes, pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
c) A falta de indicação de árbitro pelo requerido deixou de implicar aquiescência à reclamação, passando, nesse caso, o árbitro a ser designado pelo procurador-geral da República;
d) A competência da comissão ficou definida como sendo para decidir «as dúvidas, divergências ou, de um modo geral, todos os litígios de qualquer natureza que se levantarem entre o consumidor e o distribuidor sobre a interpretação ou execução das disposições legais ou contratuais aplicáveis às suas relações, incluindo a falta de cumprimento de obrigações e respectivas consequências», quando anteriormente se estabelecia, mais singelamente, que tal competência era para decidir «as dúvidas ou divergências que se levantarem entre o consumidor e o distribuidor sobre a execução ou a interpretação das disposições destas Condições Gerais, do caderno de encargos da concessão ou da apólice aprovada»;
e) Foi atribuída à comissão competência para determinar os termos a seguir na instrução do processo, sem prejuízo da obrigação de audição das partes em certa fase;
f) Ficou determinado que a competência da comissão prevalecia sobre a de quaisquer tribunais arbitrais voluntários previstos em cláusulas compromissórias;
g) Foi estabelecido que as decisões da comissão têm a mesma força que as das sentenças proferidas pelos tribunais de comarca e são executadas pelos tribunais cíveis;
h) Ficou esclarecido que das decisões da comissão não é admitido recurso.
Importa, portanto, averiguar se ao Governo era constitucionalmente lícito introduzir, por decreto-lei, estas alterações nas Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, sem que lhe tivesse sido previamente conferida autorização legislativa para o efeito, sendo certo que a competência para legislar sobre a «organização e competência dos tribunais» se encontrava já reservada à Assembleia da República (AR) pela alínea j) do artigo 167.º da versão originária da Constituição - versão face à qual se há-de aferir a constitucionalidade da norma impugnada, uma vez que o Decreto-Lei 296/82 foi editado antes da revisão constitucional de 1982.
5 - Antes de mais, cumpre reconhecer que a «comissão arbitral» em causa se configura como um verdadeiro tribunal arbitral necessário, conforme, aliás, expressamente se afirma no citado artigo 49.º das Condições Gerais de Venda e resulta, inequivocamente, da sua competência e enquadramento institucional (cf. o Acórdão 289/86).
Assim sendo, e tendo em conta que este Tribunal, no Acórdão 230/86, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 12 de Setembro de 1986, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei 243/84, de 17 de Julho, que deu nova regulamentação aos tribunais arbitrais voluntários, com fundamento na violação da alínea g) do n.º 1 do artigo 168.º da lei fundamental - norma que corresponde hoje à originária alínea j) do artigo 167.º -, poder-se-ia ter a questão como necessariamente resolvida.
Com efeito, entendeu-se então que, «mesmo que os tribunais arbitrais não se enquadrem na definição de tribunais enquanto órgãos de soberania (artigo 205.º), nem por isso podem deixar de ser qualificados como tribunais para outros efeitos constitucionais, visto serem constitucionalmente definidos como tais e estarem constitucionalmente previstos como categoria autónoma de tribunais», e que, por outro lado, a norma atributiva da reserva de competência legislativa à AR «não faz qualquer distinção e, não sendo menor ou menos relevante a importância do regime dos tribunais arbitrais, nenhuma razão existe para interpretar restritivamente aquela norma, comprimindo a competência reservada da AR a favor da livre competência legislativa do Governo (que não tem de ser privilegiada)». E, se daí se concluiu que só o parlamento (ou o Governo, por ele autorizado) podia legislar sobre matéria atinente aos tribunais arbitrais voluntários - únicos em causa naquele processo -, logicamente a igual conclusão se haveria de chegar, por maioria de razão, quanto aos tribunais arbitrais necessários.
É bem verdade que a doutrina expendida no citado Acórdão 230/86 não é pacífica. E é igualmente verdade que essa doutrina poderia ainda ser questionada quando estivesse em causa a versão originária da Constituição, a qual não fazia expressa referência aos tribunais arbitrais - isto apesar de quase unanimemente se reconhecer que a existência de tal espécie de tribunais se não encontrava vedada antes da entrada em vigor da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro.
Todavia, ainda que se não subscreva a tese sustentada no referido Acórdão 230/86, a verdade é que não se pode deixar de considerar que a definição da competência dos tribunais arbitrais se inclui na competência exclusiva da AR, sempre que «afecte ou contenda com a definição da competência dos tribunais estaduais», pelo menos «naquele nível ou grau em que ela entre na reserva parlamentar», nível em que se incluem, necessariamente, «as normas que, v. g., distribuam a competência contenciosa entre as diferentes ordens de jurisdição estaduais, delimitem genericamente o respectivo âmbito material de competência ou, ainda, estabeleçam o tipo de conexão que há-de interceder entre os tribunais do Estado e os tribunais arbitrais» (cf. uma das declarações de voto juntas ao mesmo Acórdão 230/86).
Ora, conforme se assinalou no Acórdão 32/87, «recordando o teor das alterações introduzidas pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 296/82 ao artigo 49.º das Condições Gerais de Venda aqui em apreço, não pode deixar de reconhecer-se que as principais e mais significativas de entre elas se encontram indiscutivelmente nessa situação - isto é, contendem com, ou incorporam manifestamente, a regulamentação de matérias que têm já a ver com a definição da competência dos tribunais estaduais. É o caso, nomeadamente e pelo menos, dos novos termos em que se enuncia a competência (jurisdição) da comissão arbitral (no corpo do artigo), da sua expressa caracterização como tribunal arbitral necessário (corpo do artigo e § 3.º), da definição da força jurídica das suas decisões (§ 3.º) e da exclusão de qualquer possibilidade de recurso destas últimas (ainda § 3.º) - pontos, todos estes, que são, na verdade, cardeais da nova regulamentação».
Daí «tem de concluir-se que a normação atinente a tais pontos entrava na reserva da AR, reserva que, por isso, foi invadida pelo Governo, ao emiti-la sem autorização parlamentar. E porque os pontos em causa, atento o seu significado e relevo, são verdadeiramente essenciais na economia da regulamentação introduzida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 296/82, haverá, por consequência e de todo o modo, de concluir-se pela inconstitucionalidade orgânica deste preceito no seu conjunto» (Acórdão 32/87, cit.).
Em suma, o Governo não podia editar a norma questionada, sob pena de violação do disposto na alínea j) do artigo 167.º da Constituição, na sua versão originária, quer porque se entenda que a referência ali feita à «organização e competência dos tribunais» abrange também os tribunais arbitrais, quer porque se entenda que, no caso vertente, se procedeu à regulamentação de matérias que contendem com a definição da competência dos tribunais estaduais.
6 - Em sentido contrário não se pode invocar que o Governo, ao alterar a redacção do artigo 49.º das Condições Gerais de Venda através do artigo 1.º do Decreto-Lei 296/82, se limitou, afinal, a efectuar a interpretação autêntica daquela disposição, porquanto mais não fez que esclarecer e fixar o seu verdadeiro sentido e alcance.
É que, como se assinalou no Acórdão 59/87, ainda que assim tivesse acontecido, a verdade é que só pode ter legitimidade constitucional para interpretar autenticamente uma certa norma quem detiver competência constitucional para a emitir, na medida em que a interpretação autêntica «é algo que integra o próprio exercício da função normativa» (Acórdão 32/87, cit.). E porque, como vimos, o Governo não podia emitir a normação em causa, forçoso se torna concluir que também não podia exercer, nesse domínio, qualquer actividade interpretativa com força obrigatória geral.
7 - Nestes termos, decide-se declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 296/82, de 28 de Julho.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 1988. - Luís Nunes de Almeida - Martins da Fonseca - José Manuel Cardoso da Costa - Vital Moreira - Raul Mateus - Messias Bento - José Magalhães Godinho (vencido, conforme declaração, que junto) - Antero Alves Monteiro Dinis (vencido, nos termos da declaração junta) - Armando M. Marques Guedes. - (Tem voto de conformidade do Exmo. Conselheiro Mário Afonso, que não assina por, entretanto, ter cessado o exercício de funções neste Tribunal, e do Exmo. Conselheiro Mário de Brito, que não assina por não estar presente.) - Luís Nunes de Almeida.
Declaração de voto
Vencido. Continuo a entender, tal como expressei e desenvolvi na declaração de voto no Acórdão 32/87, de 28 de Janeiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 81, de 7 de Abril de 1987, que o tribunal arbitral é assim designado por mera tradição e comodidade, nas não pode, mesmo quando necessário, ser considerado tribunal no sentido técnico e próprio da palavra. É que as suas decisões não são proferidas por magistrados, nem são executadas pelo próprio tribunal arbitral, os árbitros não são nomeados nem remunerados pelo Estado, mas sim pelas próprias partes, perante eles não funciona o MP, os conflitos que dirime são tão-só os que a ele sejam submetidos exclusivamente por lei especial a arbitragem necessária, não está incluído na orgânica dos tribunais, não está sujeito ao Conselho Superior da Magistratura, não é órgão de soberania, não funciona em instalações próprias, não cabe na hierarquia dos tribunais. Não é, pois, órgão de soberania, nem administra justiça em nome do povo, pois se limita a dirimir conflitos de natureza privada, no interesse exclusivo das partes em litígio. Nestas condições, não pode entender-se, nem tal se compreenderia, que a organização e competência de tal «tribunal», que mais curialmente se deveria designar simplesmente por «comissão de arbitragem», se deva considerar abrangida pela reserva cedida à AR para legislar em tal matéria, antes se deve entender não lhe poder ser aplicável a disposição da alínea g) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição da República, pois não tem as características nem a especial dignidade de um tribunal, tal como a nossa organização judiciária o concebe. - José Magalhães Godinho.
Declaração de voto
1 - Na sequência do entendimento já expresso na declaração de voto produzida no Acórdão 230/86 (Diário da República, 1.ª série, de 12 de Setembro de 1986), que, com força obrigatória geral, houve por inconstitucionais as normas do Decreto-Lei 243/84, de 17 de Julho (novo regime jurídico da arbitragem voluntária), também agora não se acompanha a presente decisão no sentido de declarar a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 296/82, de 28 de Julho.
2 - A Constituição, tanto na sua versão originária como na versão actual, no título respeitante aos tribunais, dispunha, como dispõe, no domínio dos princípios gerais, sobre as grandes linhas que inspiram estes órgãos de soberania, acentuando, no artigo 205.º, com veemência, o princípio nuclear essencial deles definidor: «os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo».
A seguir, já no plano da organização, o texto constitucional originário não previa sequer a existência de tribunais arbitrais, o que, porém, veio a suceder com a revisão de 1982, na qual se introduziu essa menção no artigo 212.º, n.º 2, onde se faz expressa referência à possibilidade de existência de tribunais arbitrais.
Simplesmente, estes tribunais, «que não são tribunais como os outros», como não deixou de se reconhecer no já citado Acórdão 230/86, não dispõem de estatuto nem de estrutura organizatória tais que hajam de ser considerados para efeitos da regra da competência reservada da AR prevista na alínea j) do artigo 167.º da Constituição, na sua primitiva redacção [artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da actual versão].
3 - Na verdade, o texto constitucional, numa visão sistemática e omnicompreensiva desta matéria, ao definir os tribunais como órgãos de soberania (conceito específico e próprio), impõe a utilização dessa dimensão caracterizadora como parâmetro de referência noutros planos constitucionais, como seja o atinente à reserva de competência parlamentar.
É certo que a norma do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), não faz qualquer distinção entre os tribunais e os tribunais que não são tribunais como os outros, sendo, porém, manifesto que a razão de ser desta reserva se radica na especial relevância atribuída pela Constituição à matéria relativa à organização e competência dos órgãos de soberania tribunais, como também especial relevância foi concedida ao estatuto dos titulares dos órgãos de soberania (logo, dos tribunais que comparticipam dessa natureza), incluído na reserva absoluta da competência parlamentar [artigo 167.º, alínea g)].
Assim sendo, não se pode falar, no domínio da actual versão, em interpretação restritiva da norma do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), à qual é atribuído o alcance imposto pela leitura global e concertada do texto constitucional, revelando-se ainda, se possível, mais inadequado tal entendimento na versão originária, na qual os chamados «tribunais arbitrais» nem sequer eram objecto de qualquer previsão no texto constitucional.
4 - Na sequência do exposto e por força desta perspectiva das coisas, não se acompanhou a declaração de inconstitucionalidade decretada no presente acórdão. - Antero Alves Monteiro Dinis.