Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018
Plenário
Acordam, em Plenário, do Tribunal Constitucional,
I - Relatório
1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro [LTC]), a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da norma que estabelece «a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos», resultante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal (CPP), na redação da Lei 20/2013, de 21 de fevereiro.
Legitima o presente pedido com a circunstância de a referida dimensão normativa já ter sido julgada inconstitucional, por este Tribunal, em pelo menos três casos concretos, facto evidenciado pelo Acórdão n.os 429/2016, proferido em Plenário, seguido das Decisões Sumárias n.º 664/2016 (2.ª Secção), e n.º 132/2018 (1.ª secção).
2 - Notificado em representação do autor da norma para, nos termos do artigo 54.º da LTC, se pronunciar sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República, na sua resposta, além de ter oferecido o merecimento dos autos, enviou uma nota, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, sobre os trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação da Lei 20/2013, de 21 de fevereiro.
3 - Discutido o memorando, a que se refere o artigo 63.º, n.º 1, da LTC, apresentado pelo Presidente do Tribunal, cumpre elaborar o acórdão nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, em conformidade com a orientação que prevaleceu.
II - Fundamentação
a) Verificação dos pressupostos
4 - A fiscalização abstrata da inconstitucionalidade de uma norma pode ser requerida sempre que a mesma tiver sido julgada inconstitucional em três casos concretos pelo Tribunal Constitucional. Trata-se de um processo de generalização, com fundamento na repetição do julgado (artigo 281.º, n.º 3, da Constituição e artigo 82.º da LTC).
No presente processo, verifica-se que a norma objeto do pedido foi efetivamente julgada inconstitucional, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, em pelo menos três casos concretos (o Acórdão 429/2016 e as Decisões Sumárias n.os 664/2016 e 132/2018, cf. ponto 1), pelo que se considera preenchido o pressuposto previsto no artigo 281.º, n.º 3, da Constituição. O processo foi promovido pelo Ministério Público, que tem legitimidade para tal, nos termos do artigo 82.º da LTC.
Cumpre avançar para a análise da questão de constitucionalidade colocada.
b) Delimitação da questão objeto de fiscalização
5 - O pedido de declaração de inconstitucionalidade incide sobre a norma que estabelece «a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos», resultante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal (CPP), na redação da Lei 20/2013, de 21 de fevereiro.
Trata-se de uma das dimensões normativas interpretativamente extraíveis do preceito em causa. Efetivamente, este preceito tem a seguinte redação:
«Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 - Não é admissível recurso:
[...]
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;
[...]»
Resulta claro que este enunciado não foi julgado inconstitucional em toda a sua amplitude nas decisões que estão na base do presente processo de repetição do julgado. O juízo de inconstitucionalidade proferido no âmbito desses processos de fiscalização concreta refere-se apenas aos casos em que a Relação, revertendo uma absolvição em 1.ª instância, condenou o arguido a uma pena de prisão efetiva não superior a cinco anos.
6 - A norma em causa no presente processo possui, pois, dois elementos caracterizadores: (i) a existência de uma decisão absolutória da primeira instância que é revertida pela decisão do Tribunal da Relação e (ii) essa reversão resultar na condenação em pena de prisão efetiva. Tendo em conta a natureza do recurso previsto no artigo 82.º da LTC e o princípio do pedido (artigo 79.º-C da LTC), essa dimensão normativa contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP é, portanto, a única sobre a qual importa emitir um juízo com vista à declaração de inconstitucionalidade, e não qualquer outra, nomeadamente decorrente do mesmo preceito legal.
Desta forma, não é possível confundir a norma objeto de fiscalização com outras dimensões normativas extraídas do mesmo preceito legal que, apesar de terem sido também já objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, ficam excluídas do âmbito de apreciação a empreender no presente acórdão. É o caso, designadamente, das normas que estabelecem a irrecorribilidade, respetivamente, do (i) «acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, revogando a suspensão da execução da pena de prisão decretada pelo tribunal de 1.ª instância» (Acórdão 101/2018); (ii) do «acórdão da Relação que, perante a absolvição ocorrida em 1.ª instância, condene o arguido em pena de multa alternativa, atentando, no âmbito do estabelecimento das consequências jurídicas do crime subjacente a tal condenação, apenas nos factos tidos por demonstrados na sentença absolutória» (Acórdão 672/2017); e, finalmente, (iii) dos «acórdãos proferidos, em recurso pelas Relações que, após decisão absolutória de 1.ª instância, condenem e apliquem pena de multa a arguida pessoa coletiva» (Acórdão 128/2018). Todas estas normas foram objeto de uma apreciação autónoma e distinta da que agora se fará.
c) Enquadramento histórico-legislativo da questão objeto de fiscalização
7 - Desde a aprovação do CPP pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de fevereiro, o sistema de recursos nele previsto foi já objeto de inúmeras alterações. O direito ao recurso das decisões - condenatórias ou absolutórias - proferidas pelo tribunal de 1.ª instância encontra-se estabelecido desde a versão inicial do Código.
Originariamente, no CPP de 1987 só era admitido um grau de recurso, estabelecendo-se uma divisão «horizontal» de competências entre as Relações e o Supremo Tribunal de Justiça: do tribunal singular recorria-se para as primeiras; do tribunal coletivo e do tribunal de júri recorria-se para o Supremo (artigos 427.º e 432.º). Este recurso para o Supremo Tribunal de Justiça respeitava apenas a matéria de direito (artigo 433.º, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.os 2 e 3, que consagrava - e ainda consagra - o chamado modelo de revista alargada). A circunstância de o recurso ser interposto de uma decisão proferida pelo tribunal singular justificava a sua reapreciação por um tribunal colegial segundo as regras tradicionais da apelação. Diferentemente, assegurada a colegialidade do tribunal no julgamento de 1.ª instância, garantido o contraditório e obtida a imediação, o recurso reassumia a característica vincada de remédio jurídico, em que o mecanismo de reapreciação dos factos se reconduzia a uma mera válvula de segurança. Daí que se justificasse o recurso diretamente para o mais elevado órgão jurisdicional conferindo-lhe instrumento para detetar e diligenciar pela correção de situações indicadoras de verificação de erro judiciário (sobre a temática, v. José Narciso da Cunha Rodrigues, «Recursos», Jornadas de Direito Processual Penal, O novo Código de Processo Penal, Almedina, 1989, pp. 393-394). Eram irrecorríveis os acórdãos proferidos pelas Relações em recurso [artigo 400.º, n.º 1, alínea d), do CPP 1987].
A Lei 59/98, de 25 de agosto, viria alterar este estado de coisas, tendo introduzido a possibilidade de se recorrer dos acórdãos proferidos em recurso pela Relação, salvo nos casos em que a lei estabelecesse a irrecorribilidade (artigo 399.º do CPP). Visando possibilitar o recurso em matéria de facto das decisões do tribunal coletivo - antes irrecorríveis - introduziu-se o duplo grau de recurso, passando assim a admitir-se um primeiro recurso para a Relação das decisões do tribunal coletivo (incluindo a matéria de facto) e um segundo recurso da decisão de 2.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça [artigos 400.º, n.º 1, alínea f), 427.º, 428.º, n.º 1 e 432.º, alínea b) do CPP]. A admissibilidade do duplo grau de recurso foi, no entanto, mitigada pela introdução de fatores de limitação do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça baseados na gravidade da pena e na regra da «dupla conforme» (i.e., as decisões da primeira e segunda instância serem conformes).
8 - É neste contexto de contenção dos efeitos ao duplo grau de recurso, tendo em vista prevenir uma excessiva elevação de pendências no Supremo, que surge a alínea e) no elenco estabelecido no n.º 1 do artigo 400.º do CPP, excecionando da regra geral de recorribilidade (artigo 399.º) os «acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infrações, ou em que o Ministério Público tenha usado da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3». As restrições previstas à recorribilidade em segundo grau conduziram a que, apesar do aumento da possibilidade de recurso em matéria de facto, ainda pudessem considerar-se residuais as hipóteses de conversão de uma absolvição em condenação por decisão irrecorrível da Relação.
A alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º foi alterada em 2007, através da Lei 48/2007, de 29 de agosto, tendo o critério da pena abstratamente aplicável (sem prejuízo da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3) sido substituído pelo da pena concretamente aplicada. Em conformidade, a alínea e) passou a estabelecer a irrecorribilidade «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade».
Por fim, a Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, introduziu a atual redação da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP. Mantendo o critério da pena concretamente aplicada, alargou, porém, o seu âmbito de aplicação. Além das decisões proferidas, em recurso, pelas Relações que apliquem pena não privativa de liberdade, que já se encontravam abrangidas pela anterior redação, a alínea e) passou a determinar a irrecorribilidade das decisões que apliquem pena de prisão não superior a cinco anos. E isto - como sempre sucedera no âmbito desta alínea - independentemente de haver ou não conformidade entre as decisões da 1.ª instância e da Relação (a chamada «dupla conforme»).
9 - As diferentes alterações ao CPP em 2013, globalmente consideradas, visaram, segundo a exposição de motivos da Proposta de Lei 77/XII (que deu origem a esta reforma), promover o equilíbrio «entre, por um lado, a necessidade da celeridade e eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade e, por outro, a garantia dos direitos de defesa do arguido». Especificamente no que toca ao direito ao recurso, justificou-se a opção legislativa com a intenção de preservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça «para os casos de maior gravidade». Havia uma preocupação com a «crescente massificação do acesso à jurisdição do tribunal situado no topo da hierarquia judiciária, que deveria estar reservado para o conhecimento e decisão das causas criminais mais graves [...] Por razões diversas, de preservação da fisionomia e da capacidade orientadora da jurisprudência dos tribunais supremos - a que acrescem outras mais prosaicas (mas não menos cogentes) de combate à morosidade processual - tem-se entendido ser conveniente adotar medidas que, ressalvando o direito a uma tutela jurisdicional efetiva e às garantias de defesa, permitam a redução do número de recursos, em especial a restrição de acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça» (S. Oliveira e Silva, «As Alterações em matéria de recursos, em especial a restrição de acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça - garantias de defesa em perigo?», in As Alterações de 2013 aos Códigos Penal e de Processo Penal: uma Reforma «Cirúrgica»?, André Lamas Leite (org.), Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp. 263 e s.).
No que diz respeito às razões que em 2013 levaram o legislador a alterar especificamente a alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, deve referir-se a necessidade de dar resposta à controvérsia jurisprudencial relativa à interpretação e aplicação da redação anterior deste preceito. Face à redação de 2007 - que abrangia apenas os acórdãos que aplicassem pena não privativa de liberdade - o Supremo Tribunal de Justiça, em diversos arestos (cf., v.g., Acórdão de 18 de setembro de 2009, processo 09P0102), vinha procedendo ao que designou «redução teleológica» da norma constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), no sentido de, em conjugação com o disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), determinar a irrecorribilidade também dos acórdãos que aplicassem pena de prisão não superior a cinco anos. O recurso a esta operação metodológica era afastado em diversos outros acórdãos do mesmo tribunal (cf. o Acórdão de 25 de junho de 2008, Processo 08P1879), que optavam pela aplicação da norma resultante da interpretação literal da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º, e admitiam, portanto, o recurso dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que aplicassem pena de prisão inferior a cinco anos, desde que não houvesse dupla conforme - caso em que seria de aplicar a alínea f) da mesma disposição.
No Acórdão 591/2012, o Tribunal Constitucional (1.ª Secção) viria, porém, a julgar inconstitucional por violação do princípio da legalidade penal, a interpretação segundo a qual «é irrecorrível o acórdão proferido pelas Relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade». Este julgamento foi confirmado pelo Plenário do Tribunal no Acórdão 324/2013.
Foi neste contexto que a Lei 20/2013 veio consagrar expressamente a solução mais restritiva do âmbito do direito ao recurso.
d) Enquadramento constitucional: o direito ao recurso como garantia de defesa em processo penal prevista no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição
10 - As decisões que estão na base do presente pedido julgaram a norma em referência inconstitucional por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).
11 - A análise deste direito fundamental deve começar pelo seu enquadramento face a outras sedes vinculativas para o ordenamento português.
O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) [aprovado para ratificação por Portugal pela Lei 29/78, de 12 de junho] prevê, no seu artigo 14.º, n.º 5, que «Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença em conformidade com a lei».
Por seu turno, a Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH) [aprovada para ratificação por Portugal pela Lei 65/78, de 13 de outubro] não contempla expressamente o direito ao recurso entre as garantias de defesa do arguido. Tal não deve influenciar, por si só, a interpretação do direito ao recurso estabelecido na Constituição, pois a própria Convenção estabelece, no seu artigo 53.º, que nenhuma das suas disposições pode ser «interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos do homem e as liberdades fundamentais que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Alta Parte Contratante ou de qualquer outra Convenção em que aquela seja parte». Nem faria sentido, no contexto da dogmática dos direitos fundamentais, recorrer à CEDH para fazer uma interpretação restritiva do direito ao recurso constitucionalmente consagrado na República Portuguesa.
Neste contexto, o artigo 2.º do Protocolo 7 à CEDH estabelece o «direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal». No n.º 1 deste preceito consagra-se o direito de acesso de «qualquer pessoa declarada culpada de uma infração penal por um tribunal» a «uma jurisdição superior» que reexamine «a declaração de culpabilidade ou a condenação» - é autorizada igualmente a regulação do seu exercício e dos respetivos fundamentos por lei. Entre as exceções possíveis a este direito, o n.º 2 do mesmo preceito elenca as «infrações menores, definidas nos termos da lei» e as situações em que «o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição» ou as situações em que, após um julgamento que tenha conduzido a uma absolvição, «o interessado tenha sido [...] declarado culpado e condenado» em julgamento de recurso.
Relativamente às garantias de defesa deste julgamento de recurso que, após absolvição, conduz a uma declaração de culpa e condenação do arguido, existe abundante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em especial tendo como parâmetro o artigo 6.º, n.º 1, da Convenção - que consagra o «direito a um processo justo e equitativo» (v., por exemplo, os acórdãos nos casos Constantinescu c. Roménia, n.º 28871/95, §§ 55 e 59, de 27 de junho de 2000; Destrehem c. França, n.º 56651/00, §§ 39 a 47, de 18 de maio 2004; Danila c. Roménia, n.º 53897/00, § 62, 8 de março de 2007; Navoloaca c. Moldávia, n.º 25236/02, § 61, 16 de dezembro de 2008; Suuripää c. Finlândia, n.º 43151/02, § 44, 12 de janeiro de 2010; Lacadena Calero c. Espanha, no 23002/07, § 38, 22 de novembro de 2011; Flueras c. Roménia, n.º 17520/04, § 58, 9 de abril de 2013; Vaduva c. Roménia, n.º 27781/06, § 41, 25 de fevereiro de 2014; Loni c. Croácia, n.º 8067/12, §§ 100 e 101, 4 de dezembro de 2014; Marius Dragomir c. Roménia, n.º 21528/09, §§ 18 a 27, 6 de Outubro de 2015; Moinescu c. Roménia, n.º 16903/12, §§ 33 a 40, 15 de Setembro de 2015; e Sobko c. Ucrânia, n.º 15102/10, § 71, 17 de dezembro de 2015).
Esta jurisprudência transmite a perceção clara de que a reversão, em via de recurso, de uma absolvição em condenação convoca um elevado nível de exigências garantísticas da posição processual do arguido, no quadro da Convenção, no âmbito normativo do direito a um processo justo e equitativo. Assim, as exigências decorrentes da Convenção ultrapassam em muito uma visão formalista do «direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal», envolvendo também as regras processuais aplicáveis nesse contexto. Este enquadramento é pertinente na interpretação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, em especial para uma apreciação rigorosa do âmbito de proteção do direito ao recurso constitucionalmente fundado.
12 - Atendamos, agora, ao texto constitucional português.
O direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal, encontrando-se expressamente inscrito entre os pilares constitucionais do Direito do Processo Penal da República Portuguesa.
A identificação expressa no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição do direito ao recurso como garantia de defesa, resultante da revisão constitucional de 1997, não implicou novidade relativamente ao entendimento que já vinha sendo sustentado pelo Tribunal Constitucional face à sua redação anterior (cf., entre outros, Acórdãos n.os 8/87, do Plenário, ponto 6, 31/87, da 2.ª Secção, pontos 4, 5 e 7, 178/88, da 2.ª Secção, pontos 5 e 6, 259/88, da 2.ª Secção, ponto 2.2, 219/89, da 1.ª Secção, pontos 26 a 28, 401/91, do Plenário, ponto II.2 e 3, 132/92, da 2.ª Secção, pontos 6 e 7, e 322/93, da 2.ª Secção, ponto 6). Esta inscrição não deixou, contudo, de representar o reconhecimento explícito da autonomia conferida a uma tal garantia no contexto geral das garantias de defesa, isto é, um valor de garantia não amortizável pelo reconhecimento de outras garantias processuais, designadamente para defesa do arguido. Efetivamente, «tal explicitação constitucional tem por efeito a garantia (constitucional) da possibilidade de interposição de recurso de decisões que respeitem a direitos, liberdades e garantias, máxime que restrinjam tais direitos» (Acórdão 686/2004, da 2.ª Secção, ponto 6).
Constituindo uma garantia essencial de defesa, constitucionalmente reconhecida, o direito ao recurso representa, portanto, um inegável limite à liberdade conformadora do legislador quanto à delimitação das decisões de que cabe recurso e quanto à definição do regime de recursos em processo penal.
13 - O direito ao recurso ínsito no artigo 32.º, n.º 1, tem, pois, apenas uma dimensão de garantia de defesa do arguido, não se situando no mesmo plano da possibilidade de recurso assegurada à acusação. Independentemente de a Constituição assegurar noutros lugares a proteção do ofendido e o seu direito de intervir no processo (artigo 32.º, n.º 7), e de ser necessário salvaguardar que o Ministério Público - por regra, a acusação - possa cumprir o seu papel constitucional (artigo 219.º, n.º 1), a verdade é que, na lei constitucional, o direito de recurso em processo criminal apenas se encontra expressamente previsto no contexto das garantias de defesa do arguido.
Este destaque não é fruto do acaso. É que, como se disse no Acórdão 429/2016, do Plenário, ponto 22, «na configuração dos graus de recurso em processo penal não deve perder-se de vista que da circunstância de o arguido não poder ter menos direitos do que a acusação, não significa que não possa ter mais. Diante da desigualdade material de partida entre a acusação, apoiada no poder institucional do Estado, e o arguido, alvo de perseguição judiciária, aceita-se "'uma orientação para a defesa' do processo penal" o que "revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem neles um limite infrangível" (J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra Editora, 4.ª ed. revista, 2007, p. 516)».
14 - De outro lado, cabe ainda salientar que a garantia do direito ao recurso não deve ser confundida com a garantia de um duplo grau de jurisdição.
Como se escreveu no Acórdão 429/2016, ponto 16, estes são «conceitos autónomos e não confundíveis. Por "direito ao recurso" entende-se - de um modo geral - a faculdade conferida à parte vencida de suscitar o reexame de uma decisão que lhe foi desfavorável e da qual discorda com o intuito de corrigir erros e de ver proferida uma decisão que vá ao encontro das suas expetativas. Por seu lado, com a menção a "duplo grau de jurisdição" pretende-se significar a possibilidade de reexame efetuado por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao que apreciou a causa pela primeira vez, com prevalência sobre este».
É certo que a existência de uma hierarquia de tribunais judiciais, constituída pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelos tribunais judiciais de primeira e de segunda instância, encontra também referência expressa no texto constitucional, designadamente anos artigos 209.º, n.º 1, alínea a), e 210.º Não merece igualmente contestação que existe «uma forte ligação entre o direito ao recurso e a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição», desde logo porque «pelo menos ao nível das exigências de um processo justo - [...] o "duplo grau de jurisdição" é pressuposto do exercício do direito ao recurso» e porque a jurisprudência do Tribunal Constitucional «reconhece também a possibilidade de o direito ao recurso se consumar através da existência desse duplo grau de jurisdição» (cf. Acórdão 429/2016, ponto 16).
De todo o modo, como se observou ainda no Acórdão 429/2016, ponto 16, enquanto «a Constituição consagra expressamente o direito de recurso em processo penal, nada refere, todavia, sobre os graus de jurisdição exigíveis para concretizar o direito ao recurso. A garantia de defesa constitucionalmente prevista é, com efeito, autónoma em relação aos graus de recurso». Assim, apesar da forte ligação entre ambos os conceitos, esta «não significa que baste o duplo grau de jurisdição para se considerar sempre assegurado o direito ao recurso. Sendo conceitos interligados, eles não devem, porém, ser confundidos, sob pena de diluição do valor próprio e autónomo que a Constituição reconhece, no artigo 32.º, n.º 1, ao direito ao recurso no contexto das garantias de defesa».
Efetivamente é de rejeitar uma leitura redutora de ambas as figuras, que reconduz o direito ao recurso à mera garantia de um duplo grau de jurisdição em matéria penal. Uma tal leitura implica uma interpretação restritiva do direito ao recurso, expressamente previsto na Constituição como uma garantia do arguido, que não encontra fundamento constitucional em qualquer outro texto normativo vinculativo da República Portuguesa. A distinção conceptual entre as figuras, aliás, tem resultado da jurisprudência do Tribunal Constitucional, como referido no Acórdão 429/2016, ponto 16:
«Assim, embora o direito de recurso, "imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição", deva ser entendido "no quadro das 'garantias de defesa' - só e quando estas garantias o exijam" (Acórdão 30/2001, n.º 7), deve-lhe ser reconhecido "um valor garantístico próprio e não 'dissolúvel' em outras garantias de defesa" (Acórdão 686/2004, n.º 4).
Como o Tribunal reconheceu no Acórdão 628/2005, onde se julgou não inconstitucional a norma que previa a irrecorribilidade de um acórdão da Relação que confirma pena de 6 anos de prisão em crime punido com moldura penal entre 4 e 12 anos de prisão, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota na dimensão que impõe a previsão pelo legislador ordinário de um grau de recurso, pois "tal garantia, conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer - mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios (assim, vejam-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 1229/96 e 462/2003 [...])" (n.º 7 do Acórdão). No Acórdão 324/2013, anterior à alteração do CPP operada pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, referente a norma que previa a irrecorribilidade de acórdão proferido pela Relação que aplique pena de prisão não superior a cinco anos, em recurso de decisão de primeira instância que tenha aplicado pena não privativa da liberdade, o Tribunal Constitucional reafirmou que "muito embora se aceite que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, preciso é que 'com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido', devendo a limitação dos graus de recurso ter 'um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado'. Porquanto a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota naquela dimensão. Esta garantia, 'conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer - mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios' (Acórdãos n.os 189/2001 e 628/2005. E, ainda, Acórdão 64/2006)" (n.º 3 do Acórdão, sublinhado aditado).»
A distinção entre as duas figuras permite afirmar que a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota na existência de duplo grau de jurisdição. No entanto, existem situações em que «a garantia de duplo grau de jurisdição concretiza o direito de recurso». Para que tal se verifique e seja compatível com as exigências da Constituição «é indispensável - e como tal tem sido reconhecido na jurisprudência do Tribunal Constitucional - que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto se apresente como tutela suficiente das garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Ou seja, assumindo a Constituição o direito ao recurso do arguido como integrando as suas garantias de defesa, a liberdade conformadora do legislador na definição da recorribilidade das decisões judiciais e do regime de recursos em processo penal não pode deixar de encontrar como limite aquele direito» (Acórdão 429/2016, ponto 16). Neste contexto, o Tribunal tem entendido que «sendo certo que o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição impõe que se consagre o direito de recorrer de decisões condenatórias e de atos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido, é admissível que o legislador determine a irrecorribilidade de outros atos judiciais desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa (cf. Acórdãos n.os 8/87, 31/87 e 177/88 [...]) e a limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal» (cf. Acórdão 610/96, ponto 13, sublinhado aditado). Como se reconheceu no Acórdão 429/2016, ponto 16, a «inclusão no "conteúdo essencial das garantias de defesa" do direito de recorrer de decisões condenatórias e de atos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido resulta, assim, claramente reconhecida na jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf. os Acórdãos n.os 31/87 [n.º 5], 265/94 [n.º 7], 265/94 [n.º 7], 30/2001 [n.º 7], 189/2001 [n.º 6], 235/2010 [n.º 8], 107/2012 [n.º 3])».
Em suma, se o direito ao recurso pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição, pode não se bastar com ele.
e) Enquadramento constitucional: o Acórdão 429/2016
15 - O Acórdão 429/2016, que esteve na origem do presente "processo aplicável à repetição de julgado", veio reverter a jurisprudência do Tribunal relativamente à constitucionalidade da norma sub juditio no âmbito da normal atividade do Tribunal Constitucional. O referido acórdão foi proferido pelo Plenário do Tribunal na sequência do recurso, interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do n.º 1 do artigo 79.º-D da LTC, do Acórdão 412/2015, da 1.ª Secção, tendo por fundamento a divergência entre o juízo de inconstitucionalidade aí contido e o Acórdão 163/2015, da 3.ª Secção, que indeferia a reclamação e confirmava uma decisão sumária, cuja fundamentação remetia, no essencial, para o Acórdão 49/2003, da 3.ª Secção. Este último aresto está na base de múltiplos julgamentos de não inconstitucionalidade, nomeadamente do Acórdão 682/2006, também citado no Acórdão 163/2015, relativos a diversas versões que o artigo 400.º, n.º, 1, alínea e), do CPP foi conhecendo e abrangendo diferentes dimensões normativas (cf., designadamente, os Acórdãos n.os 255/2005, da 1.ª Secção, ponto 2, 487/2006, da 2.ª Secção, ponto 2, 682/2006, da 2.ª Secção, ponto 5, 424/2009, da 3.ª Secção, ponto 4, 353/2010, da 3.ª Secção, ponto 7, 778/2013, da 1.ª Secção, ponto 6, 245/2015, da 2.ª Secção, pontos 8 e 9, e 398/2015, da 1.ª Secção, pontos 2.2 e 2.3).
Afastando-se da orientação até então sufragada na jurisprudência constitucional, diante da natureza da pena privativa da liberdade e do contexto normativo substancialmente diferente, o Acórdão 429/2016 entendeu não haver suficiente valia para justificar a compressão do direito fundamental ao recurso do arguido na eliminação da possibilidade de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça. O referido Acórdão aceitou como interesse público prosseguido, justificativo da compressão do direito ao recurso, a necessidade de limitar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, de forma a prevenir a sua eventual paralisação, na linha da jurisprudência que de há muito vinha sendo seguida por este Tribunal na esteira do Acórdão 49/2003, da 3.ª Secção. O Acórdão 429/2016 rejeitou, todavia, por incompatível com o parâmetro de controlo extraído do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, a possibilidade de tal finalidade ser alcançada «à custa do sacrifício do conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido» (ponto 15), o que concluiu verificar-se na norma em apreciação.
16 - Concluiu-se, no Acórdão 429/2016, que o direito de defesa do arguido face a uma condenação em pena de prisão efetiva, na 2.ª instância, não se encontra suficientemente protegido pela norma em análise. Ao permitir a imediata execução da pena de prisão em que foi condenado, sem que elementos decisivos da condenação que o priva da liberdade possam ser sindicados, deixando-os à margem de qualquer impugnação ou mesmo contraditório, a norma em apreciação representa uma concretização insuficiente das garantias de defesa do arguido consubstanciadas no direito ao recurso, configurando uma «ablação total» daquele direito do arguido, em violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, por não lhe permitir sindicar a condenação proferida na Relação, depois de lhe ser compreensivelmente vedado, desde logo por falta de interesse ou legitimidade, recorrer da decisão de primeira instância (Acórdão 429/2016, ponto 21).
f) Análise da questão de constitucionalidade
17 - Como se deixou já amplamente referido, enquanto expressão autónoma que é das garantias de defesa do arguido, o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição impõe ao legislador que, no âmbito do espaço de conformação que lhe é reconhecido na definição dos graus de recurso, adote soluções que, para além de justificadas por valores relevantes e dignos de proteção, não limitem de forma desrazoável, arbitrária ou desproporcionada as possibilidades de recorrer, nem atinjam «o conteúdo essencial das garantias de defesa» do arguido. Trata-se de algo que o Tribunal Constitucional tem insistentemente afirmado: «muito embora se aceite que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, preciso é que "com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido", devendo a limitação dos graus de recurso ter "um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado"» (v. Acórdão 324/2013, do Plenário, ponto II.3, sublinhado aditado, citando o Acórdão 189/2001, 1.ª Secção, ponto 7).
Ora, a limitação do direito ao recurso imposta no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP vem sendo justificada pelo legislador com o intuito de assegurar a celeridade processual e uma eficiente organização do sistema de administração da justiça, designadamente através da racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, cuja intervenção se considera dever ser limitada aos casos de maior merecimento penal. Entende o legislador que a garantia constitucional do direito ao recurso - corolário da garantia de acesso ao direito e aos tribunais - deve conjugar-se também com um desígnio de celeridade associado à presunção de inocência e à descoberta da verdade material. Este intuito insere-se no contexto de revisão da lei processual penal iniciado em 2007, pela Lei 48/2007, de 29 de agosto, a que acima já se aludiu, que introduziu uma nova disciplina do julgamento de recurso com o propósito expresso de «restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal» (cf. exposição de motivos da Proposta de Lei 109/X, que deu origem à referida Lei 48/2007). O mesmo desiderato viria a ser prosseguido também com a revisão empreendida pela Lei 20/2013, em que foi dada a atual redação ao artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP.
A restrição do recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça adotada pelo legislador encontra, portanto, justificação em interesses de celeridade e eficiência da administração da justiça penal, dignos de proteção à luz do texto constitucional. Apesar disso, indispensável será, ainda, que a compressão do direito fundamental em causa na solução da limitação do recurso, para além de adequada e mesmo necessária, tendo em vista, designadamente, resguardar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal, não se apresente como excessiva para assegurar os fins prosseguidos, designadamente tendo em vista os efeitos que produz na garantia de defesa do arguido.
18 - Não se duvida da razoabilidade formal que o fundamento para a limitação dos graus de recurso encontra na pretensão de salvaguardar o acesso ao tribunal que ocupa o topo da hierarquia na organização judiciária dos tribunais criminais, reservando-o para os casos de maior merecimento penal, bem como nos valores constitucionalmente protegidos da eficácia e a celeridade da administração da justiça. No entanto, a verdade é que no confronto do grau de compressão do direito de recurso enquanto garantia de defesa do arguido decorrente da norma em análise, com os ganhos por ela adquiridos para os fins de celeridade e racionalidade do sistema de recursos, em especial na componente de limitação do acesso à mais alta instância (Supremo Tribunal de Justiça), a proibição de recurso contida na norma em análise sempre deverá ser considerada uma concretização insuficiente das garantias de defesa do arguido consubstanciadas no direito ao recurso.
Acompanha-se, pois, a conclusão do Acórdão 429/2016 no sentido da inconstitucionalidade da norma em apreciação. Independentemente de se configurar a proteção insuficiente da garantia de defesa do arguido que é o direito ao recurso resultante da norma em apreciação como uma ablação total daquele direito, como foi sustentado no Acórdão 429/2016, ponto 21, ou como uma restrição excessiva do mesmo, o resultado é sempre o da sua invalidade constitucional.
19 - Na verdade, para se aferir sobre a respetiva conformidade constitucional importa determinar em que medida a norma sub judicio afeta as garantias de defesa do arguido. Neste plano, na linha do que acima se deixou consignado a respeito da relação existente entre direito ao recurso e duplo grau de jurisdição, é imprescindível verificar se a norma permite a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto, para depois determinar se corresponde a uma tutela suficiente das garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
Logo no primeiro momento, da verificação de um duplo grau de jurisdição, é de identificar um problema. Como se sublinha no Acórdão 429/2016, ponto 19:
«Nos casos em que existe uma absolvição da primeira instância revogada por decisão condenatória em pena de prisão da segunda instância, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime. Trata-se, pelo contrário, de uma decisão inovadora com consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade, relativamente à qual é negado o acesso a uma reapreciação por um tribunal superior.
Na verdade, uma situação em que a uma absolvição de primeira instância sucede a condenação em pena de prisão, no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova: o processo decisório concernente à determinação da medida da pena a aplicar. A decisão que define a pena de prisão é proferida pelo Tribunal da Relação sem que anteriormente, designadamente em primeira instância, haja qualquer apreciação sobre a pena a impor ao arguido. O arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Existem, portanto, nesta situação, dimensões do juízo condenatório que não são objeto de reapreciação. Pelo menos quanto a estas matérias, existe uma apreciação pela primeira vez apenas na instância de recurso, sem que exista a previsão legal de um segundo grau de jurisdição.
Neste contexto, aceitar a irrecorribilidade da decisão condenatória, em situações como a configurada pela norma em apreciação, seria admitir que o direito fundamental ao recurso, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, não garante sequer a reapreciação por uma segunda instância da decisão que define a pena de prisão efetiva. Esta seria, assim, uma decisão do juiz que se apresentaria como livre de qualquer controlo».
É de realçar, a este propósito, que na norma em apreciação apenas se encontram abrangidos casos em que o tribunal de 2.ª instância procede ele mesmo à determinação da sanção - «condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos» - , não reenviando o processo para o tribunal de 1.ª instância. Essa é, aliás, a regra interpretativamente estabelecida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016, que fixou a seguinte jurisprudência: «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a Relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal».
Nestas circunstâncias, a irrecorribilidade do acórdão do tribunal de 2.ª instância tem como consequência que a tão relevante matéria da determinação da espécie e medida da pena seja apreciada uma única vez - pelo tribunal de recurso - e escape, assim, ao controlo de uma segunda instância (destaca este ponto Damião Cunha, «Algumas questões do atual regime de recursos em processo penal», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 22, n.º 2, abril-junho 2012, p. 298). Nessa parte, não se encontra garantindo, na verdade, um duplo grau de jurisdição.
20 - Ora, o apuramento da proporcionalidade de uma qualquer restrição ao direito ao recurso não pode alhear-se, desde logo, do tipo de intervenção do tribunal superior que assegura o duplo grau de jurisdição. Do ponto de vista das garantias de defesa do arguido, quanto maior for o conteúdo inovatório da decisão condenatória do tribunal de 2.ª instância, tanto mais insustentável será a sua irrecorribilidade.
No caso da norma em apreciação, o tribunal de 2.ª instância não procede a uma reapreciação de matéria já apreciada pelo tribunal de 1.ª instância, mas sim a uma apreciação ex novo: pronunciando-se o tribunal a quo pela absolvição do arguido, não chega, naturalmente, a apreciar a matéria da sanção, que pressupõe uma decisão positiva quanto à questão da culpabilidade (cf. artigos 368.º e 369.º do CPP). Essa parte da decisão da 2.ª instância é, por definição, inovatória. Desta forma, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime.
Sendo de há muito dado adquirido na dogmática das consequências jurídicas do crime que a determinação judicial da pena concreta constitui «estruturalmente aplicação do direito», deixando «por toda a parte de ser considerado como uma questão relevando exclusiva ou predominantemente da subjetividade do julgador, da sua arte de julgar» (cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas - Editorial Notícias, 1993, pp. 40-41, no mesmo sentido, v. Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, p. 13), não se afigura sustentável uma ausência absoluta de controlo do processo decisório de escolha e determinação da medida da pena de prisão, como se concluiu no Acórdão 429/16, ponto 19.
21 - Mais decisivo para a questão de constitucionalidade que importa aqui resolver, em todo o caso, é que tal ausência de controlo compromete excessivamente as garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas.
Desde logo, importa notar que uma tal solução não se apresenta como inevitável para alcançar os fins prosseguidos. Dentro da discricionariedade deixada ao legislador para definir o regime processual de recursos, são, com efeito, diversificadas as soluções configuráveis no sistema de recursos em processo penal com vista à harmonização do interesse na otimização dos recursos e o célere funcionamento da justiça com os direitos de defesa do arguido, designadamente o direito de recorrer de uma condenação em pena privativa da liberdade (para uma perspetiva das várias soluções avançadas pela doutrina, v. Sandra Oliveira e Silva, ob. cit., pp. 283 e ss.). Ponto é que a racionalização do acesso ao Supremo não seja alcançada à custa da negação da possibilidade de exercício do direito ao recurso, enquanto direito fundamental de defesa do arguido, designadamente quando está em causa o valor da sua liberdade.
Para além disso, esse sacrifício do direito ao recurso não é compensado pela possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público ou assistente da decisão absolutória da 1.ª instância ou através da garantia do contraditório. Nestes casos de reversão no tribunal de recurso de uma absolvição em condenação as consequências jurídicas do crime só são definidas no julgamento do recurso. Assim, apesar de o duplo grau de jurisdição facultar ao arguido a possibilidade de contra-alegar no âmbito do recurso interposto da sentença absolutória, esta faculdade não lhe assegura a possibilidade de sindicar o processo decisório subjacente à escolha e à determinação da medida concreta da pena de prisão que será aplicada no futuro e a consequente reapreciação dos respetivos fundamentos. Na verdade, o arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo.
Desta forma, além de deixar livre de qualquer controlo parte da decisão condenatória, a norma em apreciação implica uma intensa e grave restrição ou compressão do direito ao recurso, uma vez que resulta totalmente excluído da sua proteção o poder de recorrer de uma parte da decisão, precisamente aquela que acarreta o maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido.
22 - Levado ao limite, este argumento poderia parecer impor a garantia da recorribilidade de qualquer decisão condenatória que se apresente como inovatória, independentemente da pena concretamente aplicada. Poder-se-ia argumentar que, num caso de condenação que reverte uma absolvição de 1.ª instância, o direito ao recurso é tão afetado com a aplicação de pena de multa como com a aplicação da pena máxima de 25 anos de prisão.
Um tal raciocínio ad consequentiam - que visa refutar a necessidade de recurso da condenação que, revertendo uma absolvição de 1.ª instância, aplica pena de prisão pelas supostas consequências indesejáveis que poderia acarretar para a eficácia e celeridade do sistema de justiça penal ao implicar também o acesso ao recurso da condenação que, revertendo absolvição de 1.ª instância, aplica uma pena de multa - baseia-se, no entanto, num paralogismo inaceitável desde logo porque a restrição do direito ao recurso em ambos os casos não é equivalente.
Existe, com efeito, uma diferença qualitativa entre a pena de prisão e todas as outras penas que deve ser relevada na verificação do respeito pelo direito ao recurso, enquanto garantia de defesa do arguido. Ignorar as particularidades da pena de prisão efetiva, é desprezar a correlação existente entre o direito fundamental ao recurso e os direitos fundamentais caracteristicamente restringidos pela pena, o que não pode ser aceite, já que é a gravidade da pena que se reflete na esfera pessoal do arguido. Quanto mais grave for a pena aplicada (i.e., quanto mais intensa for a potencial violação dos direitos fundamentais do arguido), maior necessidade existe de garantir o direito ao recurso - ou de, em compensação, contrabalançar a afetação da posição processual do arguido com a proteção de um interesse público igualmente valioso.
Ora, a norma em apreciação, e que foi julgada inconstitucional pelo Acórdão 429/2016, refere-se à condenação em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos. Uma tal pena não pode considerar-se como uma pena de menor gravidade dentro do universo das penas abstratamente aplicáveis. Desde logo, porque a pena de prisão constitui a mais intensa restrição a direitos fundamentais admissível no ordenamento jurídico-penal português, comprometendo o valor da liberdade. Além de se revestir de uma conotação fortemente pejorativa por se encontrar associada a uma ideia de infâmia social o que a torna na pena mais estigmatizante de todas as sanções, não será excessivo lembrar que o cumprimento da pena de prisão - diferentemente de outro tipo de penas, designadamente não detentivas, implica inevitavelmente a «dessocialização» do condenado que se vê forçado ao afastamento do meio familiar, profissional e social.
Independentemente de se poder ou não retirar do texto constitucional uma ordenação rígida de bens jurídicos, é incontestável que a Constituição dispensa uma tutela especialmente intensa ao direito à liberdade, que aprofunda o regime geral aplicável a todos os direitos fundamentais, contido no artigo 18.º São reveladoras desta posição de destaque do direito à liberdade as disposições contidas nos artigos 27.º e 31.º da Constituição. Desta forma, a Constituição perspetiva a pena de prisão - qualquer pena de prisão - como uma restrição muito grave do direito à liberdade do arguido. Do princípio da preferência pelas reações criminais não privativas da liberdade, corolário do princípio constitucional da necessidade e subsidiariedade da intervenção penal, resulta que a pena de prisão é uma sanção que só deve ser aplicada como ultima ratio, em concretização da ideia essencial da reintegração social e socialização do arguido condenado - que a jurisprudência constitucional identifica, na falta de disposição constitucional expressa, a partir do princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 25.º, n.º 1) e das normas constitucionais constantes dos artigos 2.º, 9.º, alínea d), e 18.º, todos da Constituição (v., entre outros, os Acórdãos n.os 336/2008 e 427/2009, ponto 4). As disposições em questão revelam igualmente que a Constituição é tributária de uma tradição humanista e liberal em matéria político-criminal que rejeita tanto a pena de morte (no que Portugal foi pioneiro), como a pena de prisão perpétua (artigos 24.º, n.º 2, e 30.º, n.º 1) e tem horror à privação injusta de liberdade. São emanações claras desse postulado de princípio a consagração expressa do mecanismo do habeas corpus e da indemnização por privação de liberdade ilegal (artigos 31.º e 27.º, n.º 5, da Constituição).
23 - Esta distinção entre as penas privativas e não privativas da liberdade, aliás, resulta evidenciada em recentes acórdãos do Tribunal Constitucional que se debruçaram sobre dimensões extraídas do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, referentes a condenação em pena de multa. É o caso, designadamente, do Acórdão 672/2017, da 3.ª Secção, em que o Tribunal não julgou inconstitucional a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, perante a absolvição ocorrida em 1.ª instância, condene o arguido em pena de multa alternativa, atentando, no âmbito do estabelecimento das consequências jurídicas do crime subjacente a tal condenação apenas nos factos tidos por demonstrado na sentença absolutória, e o Acórdão 128/2018, da 1.ª Secção, que não julgou inconstitucional a norma que estabelece a irrecorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que, após decisão absolutória de 1.ª instância, condenem e apliquem pena de multa a arguida pessoa coletiva.
Nestes acórdãos o Tribunal relevou as diferenças de que se reveste o processo decisório de aplicação de uma pena de prisão relativamente à aplicação de uma pena de multa (designadamente uma pena de multa alternativa ou uma pena de multa a uma arguida pessoa coletiva) e o reflexo que essas diferenças têm na possibilidade de antecipação da defesa do arguido, concretamente em sede de contra-alegações no recurso interposto da sua absolvição. Reconheceu que, tal como sucede nos casos de aplicação de uma pena de prisão efetiva, também nos casos de aplicação de uma pena de multa o direito ao recurso que ao arguido é constitucionalmente reconhecido, ao esgotar-se na garantia do duplo grau de jurisdição, fica limitado à faculdade de influir ex ante no juízo decisório que o Tribunal ad quem terá de desenvolver para fixar os termos da respetiva responsabilidade, sem contemplar a faculdade de impugnar o resultado de tal processo. O Tribunal considerou, porém, que nas situações então em apreço o arguido tivera ainda a possibilidade de influenciar a medida da pena através dos argumentos articulados no âmbito das contra-alegações ao recurso interposto da decisão absolutória proferida em primeira instância, uma vez que estava em causa apenas a fixação do número de dias da pena de multa e respetiva taxa diária. Em conformidade concluiu que, apesar de não corresponder à mais ampla ou eficaz modalidade de concretização do direito ao recurso, a verificação da possibilidade de condicionar esse juízo não coloca tal direito aquém do ponto constitucionalmente prescrito pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Diferentemente da condenação em pena de multa, no caso de condenação em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos definida pelo Tribunal da Relação, «a dimensão inovatória da decisão proferida por aquele Tribunal inclui, para além da determinação da medida concreta da pena aplicada, outros dois momentos, igualmente compreendidos no processo decisório pressuposto pelo estabelecimento das consequências jurídicas do crime: um momento anterior, caracterizado pelo afastamento da pena de multa alternativa, sempre que esta se encontrar prevista no tipo legal aplicável; e um momento posterior, coincidente com a opção de não substituir a pena de prisão fixada em medida não superior a cinco anos por qualquer uma das penas de substituição previstas no Código Penal e aplicáveis ao caso. Tendo em conta a especial amplitude do juízo cuja revisibilidade é nestes casos excluída e, em particular, o facto de nela irem justamente implicadas ambas as operações jurídicas que, a montante e a jusante, conduziram a uma decisão de privação da liberdade, compreende-se que a mera possibilidade de influenciar o processo decisório que, em caso de revogação da decisão absolutória proferida em primeira instância, o Tribunal da Relação terá de levar a cabo para estabelecer as consequências jurídicas do crime, corresponda a uma concretização insuficiente ou deficitária das garantias de defesa do arguido incluídas no direito ao recurso» (cf. Acórdão 672/2017, ponto 14).
A diferença adensa-se se pensarmos na elasticidade que caracteriza a execução da pena de multa (ou mesmo qualquer pena não detentiva). Pense-se, v.g., na possibilidade de pagamento diferido da multa ou em prestações (artigo 47.º, n.º 3, do CP), na faculdade de requerer a substituição, total ou parcial, da pena de multa por prestação de dias de trabalho a favor da comunidade (artigo 48.º, n.º 1, do CP) ou na prorrogação do prazo de suspensão da execução da pena de prisão (artigo 55.º, alínea d), do CP), para citar apenas algumas das possibilidades previstas na lei. Em contraste com a execução coativa das penas não detentivas, a execução da pena de prisão efetiva não pode ser condicionada por qualquer decisão adicional. Não existe qualquer outro meio de defesa ao dispor do condenado para impedir, atenuar ou sequer adiar a execução da prisão efetiva em que é definitivamente condenado. Por conseguinte, a ausência de possibilidade de recurso implica a imediata restrição forçada da sua liberdade o que demonstra o imperativo de se reconhecer ao condenado o direito ao recurso enquanto valor garantístico próprio - e único! - no quadro das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas ao arguido.
Ademais, tendo o direito ao recurso, enquanto garantia de defesa, uma função primordial precisamente na prevenção da condenação injusta, não se exigindo dupla conforme na norma em apreço, a probabilidade de haver erro judiciário é naturalmente maior - ceteris paribus - do que nas situações em que a Relação confirma a decisão de primeira instância.
24 - O desvalor constitucional que se identifica na impossibilidade de interpor recurso da condenação em pena de privação da liberdade proferida pelo tribunal de recurso em reversão da absolvição de 1.ª instância, não tem paralelo nos casos em que à revogação da sentença absolutória proferida em primeira instância se segue a aplicação de uma pena de multa.
Diante destas circunstâncias, a compressão do conteúdo do direito ao recurso traduzida na impossibilidade de impugnar as consequências jurídicas do crime impostas na primeira decisão condenatória quando estas se saldam na imposição de uma pena de prisão representa um sacrifício dos direitos fundamentais do arguido de tal ordem que não encontra já fundamento suficiente no propósito em si legítimo de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
Deste modo, ainda que, no contexto em questão, a Constituição não atribua ao direito ao recurso uma proteção absoluta, negar ao arguido a possibilidade de se defender - ex post facto - desta decisão constitui uma afetação de tal modo relevante da posição da defesa que sempre exigiria, como contrapeso valorativo, a justificação num interesse público de relevo equivalente.
25 - Em suma, ao negar o acesso a uma reapreciação por um tribunal superior (no caso o Supremo Tribunal de Justiça) a norma atinge o direito ao recurso de forma excessivamente gravosa porquanto de consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade. É, por isso, inconstitucional por violar o artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição.
III - Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição.
Lisboa, 13 de novembro de 2018. - Maria de Fátima Mata-Mouros - Gonçalo Almeida Ribeiro (com declaração) - José Teles Pereira - Lino Rodrigues Ribeiro - Joana Fernandes Costa - Claudio Monteiro - João Pedro Caupers - Maria Clara Sottomayor - Maria José Rangel de Mesquita (vencida, nos termos da declaração de voto aposta ao Acórdão 429/2016) - Fernando Vaz Ventura (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - Catarina Sarmento e Castro (Vencida. Mantenho a posição assumida no Acórdão 163/2015 e na declaração de voto aposta o Acórdão 429/2016) - Pedro Machete (vencido nos termos da declaração junta) - Manuel da Costa Andrade (com declaração de voto).
Declaração de voto
Subscrevi a decisão de inconstitucionalidade por imperativos de segurança e de integridade. Com efeito, tendo o plenário do Tribunal Constitucional, intervindo no âmbito de recurso de «oposição de julgados» previsto no artigo 79.º-D da LTC, julgado inconstitucional, através do Acórdão 429/2016, a dimensão normativa objeto do presente processo - ou seja, há cerca de dois anos - , seria incompreensível que se promovesse agora uma nova inversão de jurisprudência, ainda que na atual composição se formasse uma maioria nesse sentido. É certo que o Acórdão 429/2016, prolatado num processo de fiscalização concreta, não constitui uma pronúncia com força obrigatória geral; mas constitui uma pronúncia do plenário sobre a exata questão que agora se lhe colocou no âmbito de um processo de fiscalização abstrata aplicável à «repetição de julgados», nos termos do artigo 82.º da LTC.
Creio que uma jurisdição constitucional responsável cultiva aquele mínimo de stare decisis sem o qual as suas decisões não constituem uma verdadeira e própria jurisprudência, obedecendo apenas aos ventos da opinião e aos caprichos do momento. Não quero com isto dizer - e isto merece ser enfatizado - que as inversões jurisprudenciais são ilegítimas; na verdade, mesmo nos sistemas jurídicos em que os tribunais reconhecem força jurídica ao precedente, não é invulgar os tribunais superiores alterarem jurisprudência que reputam obsoleta ou injusta. Nem de outro modo se pode conceber o dever de administrar a justiça. Mas o ponto de referência de tudo isto é a instituição, sede duradoira de autoridade pública, e não os indivíduos que transitoriamente a protagonizam. Não são admissíveis mutações jurisprudenciais em curtíssimos intervalos de tempo, ditadas exclusivamente pela contingência da opinião, sem que tenham surgido quaisquer dados ou argumentos que não tenham sido ponderados nas decisões anteriores e sem que estas constituam, no entendimento dos juízes que são chamados a apreciar a questão ex novo, erros ou injustiças tão graves que o dever de promover a sua correção prevaleça sobre os imperativos de segurança e de integridade que reclamam o respeito pelo acquis jurisprudencial.
Por esta razão, subscrevo a declaração de inconstitucionalidade da norma, extraída da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que condena o arguido absolvido em 1.ª instância em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos. - Gonçalo de Almeida Ribeiro.
Declaração de voto
1 - Vencido, pois mantenho o entendimento que assumi no Acórdão 429/2016, cuja doutrina é renovada no presente aresto, aderindo à declaração de voto da Conselheira Maria Lúcia Amaral aposta no Acórdão 412/2015.
Continuo a entender que o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, é assegurado através da efetivação de um duplo grau de jurisdição sobre a causa, não implicando a vinculação do legislador a consagrar um novo grau de recurso (triplo grau de jurisdição), nas circunstâncias delimitadas na norma em apreço.
2 - A posição que fez vencimento considera que, no sistema vigente, a dimensão normativa em exame não comporta verdadeiramente a garantia um duplo grau de jurisdição, uma vez que, pronunciando-se o tribunal de 1.ª instância pela absolvição, não chega a conhecer da matéria sancionatória (espécie e medida da pena). Não haveria, então, nessa situação, um reexame das consequências jurídicas do crime, antes uma apreciação ex novo pelo tribunal ad quem, diminuindo intoleravelmente as garantias de defesa do arguido. Elementos decisivos da condenação em pena privativa da liberdade permanecem - afirma-se - «à margem de qualquer impugnação ou mesmo contraditório» (ponto 16 do Acórdão).
Não acompanho a visão fragmentária do exercício da jurisdição sobre uma causa penal que decorre desse entendimento. A decisão absolutória não deixa, por o ser, de comportar o julgamento da pretensão punitiva, de acordo com a delimitação temática operada pela acusação e pronúncia (previamente apreendida pelos visados), independentemente de se verificar um nexo de prejudicialidade entre as várias questões a decidir, designadamente entre o bloco de questões atinentes à culpabilidade (artigo 368.º do CPP) e as questões relativas à determinação da sanção (artigo 369.º do CPP), pois estas pressupõem um juízo positivo de culpabilidade. Do mesmo jeito, perante impugnação por via de recurso de uma decisão absolutória, pedindo a sua reversão e emissão de juízo de condenação, o tribunal da relação, habilitado a conhecer de facto e de direito (artigo 428.º do CPP), e vinculado a substituir a decisão por aquela que considere ser a legal [como é próprio de um sistema de substituição vigente, ainda que limitado pela possibilidade de reenvio em casos pontuais e não evitáveis por outro procedimento (artigos 426.º e 430.º do CPP), e não de cassação], exerce igualmente com plenitude a sua jurisdição no julgamento do recurso e emissão de decisão condenatória (ou absolutória). Nesse sentido, qualquer decisão proferida pela relação em sede de recurso de decisão final representa uma segunda apreciação (um reexame) sobre o mérito da causa penal (unitária) por um tribunal superior.
Problema diferente é saber se, na conformação do exercício da jurisdição em segunda instância, o legislador assegurou o respeito das garantias de defesa do arguido, sempre que o tribunal ad quem adquira resposta positiva às questões de culpabilidade e perspetive as questões de determinação das consequências jurídicas do crime. Efetivamente, pode suceder que, por opção de defesa, o arguido tenha escolhido não abordar cautelarmente essa matéria na resposta ao recurso, receoso de que viesse por essa via a credibilizar um eventual desfecho condenatório do recurso, ou o acervo de factos constante dos fundamentos da decisão absolutória seja insuficiente, ou, ainda, que esse acervo sofra modificação por efeito de impugnação da decisão em matéria de facto e/ou renovação da prova (sobre tais problemas, cf. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, n.º 4/2016, proferido pelo STJ em 21/01/2016, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 36; cf. em especial pontos 3.6. a 3.10.).
Todavia, esse feixe de questões interpela, não a norma de irrecorribilidade da decisão condenatória do tribunal da relação, mas as normas que disciplinam o julgamento feito em segunda instância, quando decide em recurso de decisão absolutória e determina a espécie e a medida da sanção. Normas essas cuja conformidade constitucional não se encontra em equação no presente processo, como não esteve em qualquer das decisões invocadas no pedido de generalização, e cujos eventuais défices garantísticos não são supridos por via do alargamento do acesso a um terceiro grau de jurisdição, no vértice da hierarquia dos tribunais judiciais (com evidente afetação da racionalidade e funcionalidade do sistema judiciário), para mais limitado nos seus poderes de cognição à matéria de direito, ainda que com controlo de vícios dos fundamentos de facto, desde que evidenciados no texto da decisão recorrida, assim como de nulidades, previsto nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º do CPP. - Fernando Vaz Ventura.
Declaração de voto
Votei vencido, no essencial, pelas razões já invocadas na minha declaração junta ao Acórdão 429/2016, agora reforçadas em razão da generalização do juízo positivo de inconstitucionalidade aí formulado e, bem assim, da explicitação de valorações antes apenas implícitas.
Com efeito, na presente decisão, o Tribunal coteja a interpretação normativa do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal considerada, não apenas com o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, mas também com o princípio da proporcionalidade das restrições consignado no artigo 18.º, n.º 2, do mesmo normativo. Daí afirmar expressamente (e, agora, de forma clarificadora e coerente, por comparação com o que sucedeu em 2016) que tal interpretação normativa constitui uma restrição desproporcionada do direito ao recurso. Contudo, do mesmo passo, a maioria admite a legitimidade de restrições não desproporcionadas da mesma garantia fundamental - nomeadamente, sempre que a reversão da anterior absolvição não resulte numa condenação dos arguidos em pena de prisão efetiva (mas, antes, por exemplo, numa pena de multa - cf. o n.º 24 do acórdão - ou numa pena de prisão suspensa na sua execução). E isto apesar de o referido artigo 18.º, n.º 2, apenas admitir restrições de direitos, liberdades e garantias «nos casos expressamente previstos na Constituição».
Em meu entender, estas inconsistências têm origem no modo como a questão de inconstitucionalidade é equacionada a partir do direito infraconstitucional e por ele é condicionada de modo decisivo. No fundo, a decisão que fez vencimento generaliza uma «solução de amparo» para casos mais chocantes, abstraindo da necessidade de uma perspetiva jurídico-constitucional sistémica. Procedendo desse modo, o Tribunal acaba por ir além da sua função de controlo negativo, estabelecendo ele próprio algumas diretrizes estruturantes dos equilíbrios próprios do sistema de recursos penais.
1 - Liminarmente, cumpre esclarecer que não está em causa a autonomia conceptual do direito ao recurso (por referência ao duplo grau de jurisdição) - trata-se de uma figura processual bem conhecida - nem, tão-pouco, a admissibilidade constitucional de um conceito alargado de direito ao recurso (faculdade de pedir sempre o reexame por um tribunal superior de uma primeira decisão desfavorável, nomeadamente se estiver em causa uma condenação que implique a privação da liberdade do arguido). Contudo, já é mais difícil aceitar que o direito ao recurso, neste entendimento mais alargado - que parece ser o sufragado pela maioria - , não deva ter sempre o mesmo conteúdo, admitindo distinções consoante o tribunal de recurso: reexame da decisão recorrida quanto à matéria de facto e de direito, incluindo, portanto, a possibilidade de renovação da prova, no caso das relações; e mera revista alargada, no caso do Supremo Tribunal de Justiça (cf. o artigo 434.º do Código de Processo Penal).
Por outro lado, afigura-se incontornável reconhecer a autonomia recíproca, sem prejuízo de todas as conexões, entre as garantias de defesa do arguido e o direito ao recurso: as primeiras não se esgotam nem são consumidas pelo segundo; e este, só por si, não constitui condição suficiente de uma defesa efetiva, sem prejuízo de consubstanciar uma garantia essencial de defesa. Ou seja, e como afirmei na declaração de 2016, mesmo quando consagrado o direito ao recurso nos termos defendidos pela presente decisão, tal não constitui garantia de uma tutela suficiente da defesa do arguido; e, inversamente, mesmo quando se reconduz a garantia constitucional do direito ao recurso ao direito a um segundo grau de jurisdição - como tem sucedido na ordem constitucional portuguesa - não se pode dizer que o arguido não tenha a sua defesa garantida nos termos constitucionalmente exigidos. A consequência a retirar é óbvia: sendo o direito ao recurso uma garantia essencial da defesa do arguido, o "conteúdo essencial" de tal garantia não se reduz ao direito ao recurso. É à luz desta autonomia que se deve entender o sentido da jurisprudência constitucional anterior ao Acórdão 429/2016:
«[O] que tem sido afirmado relativamente ao direito ao recurso previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição - foi-o, designadamente, no Acórdão 49/2003 - é que, por razões de ordem sistémica, se tem de entender, como garantia constitucional mínima do direito de defesa do arguido, a possibilidade de recorrer de uma qualquer decisão condenatória proferida pelos tribunais de primeira instância (cf. o artigo 210.º, n.º 3, da Constituição). Cumprido esse mínimo, compete ao legislador zelar pelo equilíbrio entre os valores da defesa do arguido, da racionalidade processual e da funcionalidade do sistema judiciário e, consequentemente, definir os termos do eventual acesso a um terceiro grau de jurisdição, sempre com respeito pelos princípios constitucionais próprios de um Estado de direito» (v. a minha declaração junta ao Acórdão 429/2016).
2 - Na verdade, a Constituição consagra expressamente o direito ao recurso sem nada referir quanto aos graus de jurisdição exigíveis para o concretizar (artigo 32.º, n.º 1). E também é exato que o duplo grau de jurisdição constitui uma condição necessária, mas não suficiente, de tal direito (cf. o n.º 14, in fine, do presente acórdão), visto que este último corresponde, ele próprio, a uma garantia de defesa do arguido. Nesse sentido, tal garantia constitui um limite externo à liberdade de conformação do legislador, porquanto o regime legal tem de permitir uma efetiva defesa do arguido, incluindo por via do exercício do direito ao recurso. Simplesmente, o legislador pode fazê-lo por diversos modos, sendo a consagração de um 3.º grau de jurisdição apenas um dos modos possíveis.
Ora, não é a modificação do «contexto normativo» infraconstitucional - cf. os n.os 7 a 9 do acórdão - que altera o sentido e alcance do parâmetro constitucional nem, mesmo, uma dada interpretação jurisprudencial - cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2016 referido no n.º 19 da decisão - que o pode impor. Diferentemente, a possibilidade de aceder ao tribunal supremo da ordem dos tribunais judiciais para resolver o problema específico da reversão, em via de recurso, de uma absolvição em condenação (em pena privativa da liberdade ou em qualquer outra pena), constitui, a meu ver, uma opção político-legislativa, e não uma consequência necessária da garantia constitucional do direito ao recurso, porquanto a defesa do arguido - objetivo último de tal garantia - pode ser satisfeita por outras vias (designadamente, pelo reenvio do processo para o tribunal de 1.ª instância para apreciação das questões novas a decidir e da matéria de facto conexa, não apreciada pela decisão então recorrida). Valem, por isso, aqui - até reforçadamente, atenta a natureza abstrata do presente processo de fiscalização da constitucionalidade - as seguintes considerações feitas pela Cons.ª Maria Lúcia Amaral:
«Se, na verdade, o estado atual do direito infraconstitucional leva a supor que o recurso para uma segunda instância não salvaguarda todas as garantias de defesa do arguido em processo penal, que, por causa desse deficit da regulação de direito ordinário, pode vir a ser "surpreendido" por uma condenação por tribunal superior que reverte anterior absolvição e face à qual não teve hipótese de se defender, o problema de constitucionalidade existe e é grave. Contudo, tal problema tem como objeto, não a norma que consagra a irrecorribilidade das decisões de segunda instância, mas o conjunto de normas que, alterando um sistema antes presumivelmente harmonioso, diminuíram as possibilidades de defesa do arguido no recurso da decisão de primeira instância. Se o estado atual do direito infraconstitucional tornou ineficaz, para uma integral garantia dos direitos fundamentais consagrados, não apenas no artigo 32.º, mas também no artigo 20.º da CRP, a existência do duplo grau de jurisdição, o problema reside, evidentemente, na modelação dada pela legislação ordinária à forma como esse duplo grau se processa e não em qualquer outro lado. Pensar que o aniquilamento das garantias dadas por esse duplo grau, tornado pelo legislador ordinário não significativo ou irrelevante, se resolve pela conclusão segundo a qual a Constituição portuguesa imporá a existência de um terceiro grau - para substituir o segundo, que já não serve - não é apenas um erro de perspetiva. É um verdadeiro non sequitur lógico, que tem a consequência, a meu ver grave, de sacrificar inteiramente um valor que a jurisprudência constitucional portuguesa sempre sublinhou - o da necessária salvaguarda da racionalidade do sistema de justiça.
Com efeito, encontram-se aqui imbricadas duas questões diferentes que não podem ser confundidas. Uma é a questão de saber se as alterações entretanto introduzidas no sistema de recursos fixado pela lei processual penal satisfazem plenamente as exigências decorrentes do direito a um duplo grau de jurisdição. Outra a questão de saber em que circunstâncias é que se deve entender que, existindo julgamento em segunda instância, ainda assim impõe a Constituição que se abra nova via de recurso para tribunal superior.
Não se contesta que, nos casos em que tenha havido absolvição em primeira instância, a lei processual penal tem o especial dever de modelar o recurso para a segunda instância, e o julgamento que nela se processa, de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido. Isso mesmo o tem dito a jurisprudência do TEDH, em aplicação conjunta do disposto quer no artigo 6.º da CEDH (direito a um processo equitativo) quer no artigo 2.º do Protocolo 7 à Convenção (direito a um duplo grau de jurisdição). A forma como se devem aplicar as regras do processo equitativo ao julgamento em segunda instância penal - de modo a tornar efetivo o direito a um duplo grau de jurisdição - tem sido na verdade tema abundantemente tratado pelo Tribunal de Estrasburgo [...]. No entanto, note-se, não era essa a questão que, no caso presente, se encontrava em julgamento.
No caso presente estava em juízo diferente questão - a de saber se era ou não inconstitucional a norma do Código de Processo Penal que consagra a irrecorribilidade para o Supremo do acórdão da Relação que, inovatoriamente face a absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos. Julgar inconstitucional a norma com fundamento em problema diverso, e no caso não colocado - a saber, os eventuais vícios existentes na modelação do recurso do tribunal de primeira instância para a Relação e na forma como nesta última se processa o julgamento - não me parece acertado. Sobretudo, quando por esta via se desfaz uma jurisprudência anterior consolidada, e que, a meu ver, realizava o equilíbrio que, nesta matéria e segundo creio, a Constituição exige» (v. a respetiva declaração junta ao Acórdão 412/2015).
3 - Acresce que a ponderação realizada na decisão a propósito da aplicação do princípio da proporcionalidade - além de inconsistente com o próprio direito ao recurso enquanto garantia processual acolhida constitucionalmente no sistema de direitos, liberdades e garantias - torna ainda mais evidente que, na busca do necessário equilíbrio entre garantias de defesa do arguido e racionalidade do sistema judiciário, o Tribunal afirmou positivamente o seu próprio entendimento quanto ao modo de o concretizar, extravasando, por isso, e na ausência de demonstração de redução a zero do espaço de conformação legislativa, da sua função de mero controlo negativo. - Pedro Machete.
Declaração de voto
Votei a decisão, com que concordo inteiramente. No estádio atual das coisas, não me sobram dúvidas quanto à inconstitucionalidade de uma norma que recusa ao arguido o recurso de decisão da Relação que, revertendo uma sentença absolutória da primeira instância, condena o mesmo arguido numa pena de prisão efetiva. Esta é, de resto, a constelação típica em que o problema ganha uma expressão paradigmática e se reveste de maior e mais óbvio relevo prático-jurídico.
Considero, porém, que, do lado da fundamentação, se adscreve um peso porventura excessivo ao problema de determinação da sanção. Isto à custa de uma relativa subvalorização do direito fundamental ao recurso, consignado no n.º 1 do artigo 32.º da Lei Fundamental, precisamente o comando constitucional que oferece o parâmetro ao juízo de inconstitucionalidade. Nesta linha e vistas as coisas à luz do direito ao recurso - sc. posta em parênteses a questão lógica e normologicamente posterior da determinação da sanção - , não me parece que haja uma diferença decisiva ditada pela natureza da pena, em definitivo aplicada. Do ponto de vista teleológico e político-criminal, em matéria de recurso há uma grande comunicabilidade entre a condenação em prisão efetiva e, por exemplo, a condenação em multa. O que me leva a acreditar - e esperar - que em ulteriores pronunciamentos, o Tribunal Constitucional reequacione o alargamento do alcance do seu exame e dos seus juízos na direção que fica sugerida. Pelo menos, na direção da multa aplicada a pessoa singular. - Manuel da Costa Andrade.
111862697