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Acórdão 429/2016, de 6 de Outubro

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Sumário

Julga inconstitucional a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal

Texto do documento

Acórdão 429/2016

Processo 1002/14

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional I. Relatório 1 - Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrentes Avelino Abel Vaz Maia e Hugo Rafael Rebelo Isidro e são recorridos o Ministério Público e Manuel Santos do Val, foi interposto recurso ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal de 25 de setembro de 2014.

2 - Em 29 de setembro de 2015, a 1.ª Secção deste Tribunal Constitucional acordou em

«

julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal (CPP), resultante da revisão realizada pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos de prisão, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal (artigo 32.º, n.º 1 da Constituição)

»

, no Acórdão 412/2015.

3 - Notificado deste acórdão, o Ministério Público interpôs dele recurso obrigatório para o plenário deste Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, invocando que

«

sobre a constitucionalidade daquela norma, também na redação dada pela Lei 20/2013, já anteriormente o Tribunal Constitucional se pronunciara proferindo um juízo negativo de inconstitucionalidade

»

. É identificado o Acórdão 163/2015, de 4 de março, da 3.ª Secção, que confirmou a Decisão Sumária proferida no sentido de que

«

não viola o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa a interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, no sentido da irrecorribilidade, para o Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão proferido em recurso, pelo Tribunal da Relação, que aplique pena de prisão não superior a cinco anos, ainda que a decisão da 1.ª Instância seja absolutória

»

. O recorrente sustenta que

«

Apesar das formulações serem diferentes, as dimensões normativas apreciadas pelos dois arestos coincidem

» o que, de resto, é reconhecido expressamente no acórdão ora recorrido (cf. n.º 15 do Acórdão 412/2015).

4 - Admitido o recurso, o Ministério Público alegou, formulando as seguintes conclusões:

«

1 - A norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal (CPP), resultante da revisão introduzida no Código de Processo Penal pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, não viola o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.

2 - Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso

»

.

5 - Os agora recorridos contraalegaram, formulando, por sua vez, as seguintes conclusões:

«

1 - Bem andou este Colendo Tribunal Constitucional na prolação da decisão do Ac. 412/2015;

2 - De facto, a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal (CPP), resultante da revisão introduzida no Código de Processo Penal pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, viola o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, sendo por isso, inconstitucional. 3 - Nestes termos e nos mais de direito, deve ser julgado improcedente o presente recurso julgando-se inconstitucional a referida norma, assim se fazendo …Justiça!

»

.

6 - Realizada a discussão em Plenário, tendo por base a decisão recorrida (o Acórdão 412/2015), e tomada a decisão, nos termos previstos no n.º 5 do artigo 79.º-D da LTC, cumpre agora formulála. II. Fundamentação a) Admissibilidade do recurso ao abrigo do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC

7 - O presente recurso para o Plenário é interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, com fundamento na contradição de julgados entre o Acórdão 163/2015, da 3.ª Secção, de 4 de março, e o Acórdão 412/2015, de 29 de setembro, proferido na 1.ª Secção.

Segundo o artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC,

«

se o Tribunal Constitucional vier julgar a questão da inconstitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adotado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o plenário do Tribunal

»

.

É o que se verifica nos presentes autos. As 1.ª e 3.ª Secções do Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.os 412/2015 e 163/2015, julgaram em sentido divergente a questão de saber se é conforme à Constituição

«

a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do CPP, resultante da revisão introduzida no Código de Processo Penal pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos

»

.

Nada obsta, por conseguinte, a que se conheça do objeto do recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional

b) Delimitação do objeto do recurso 8 - A norma cuja constitucionalidade se vai apreciar no presente processo, por ter sido objeto de julgamentos divergentes referentes à sua conformação com a Constituição, é a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, resultante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro.

Tendo em conta a natureza do recurso previsto no artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC e o princípio do pedido (artigo 79.º-C da LTC), essa dimensão normativa extraível da alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º do CPP é a única que importa apreciar no julgamento a realizar pelo Plenário nos presentes autos, e não qualquer outra, nomeadamente decorrente do mesmo preceito legal, interpretado isoladamente ou em conjunto com outros preceitos.

Os elementos caracterizadores da norma que cumpre apreciar são o facto de, no caso presente, ter existido uma decisão absolutória da primeira instância que é revertida pela decisão do Tribunal da Relação e essa reversão resultar na condenação em pena de prisão efetiva. É sobre esta dimensão normativa, resultante da interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, que o Tribunal Constitucional se vai pronunciar.

c) O direito ao recurso como garantia de defesa em processo penal prevista no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição e a jurisprudência do Tribunal Constitucional

9 - O Acórdão 412/2015 julgou a norma em referência inconstitucional por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição). Foi à luz do mesmo parâmetro constitucional que diferente secção deste Tribunal formulou um juízo negativo de inconstitucionalidade daquela norma, no Acórdão 163/2015 que confirmou a Decisão Sumária n.º 7/2015, proferida por remissão para a fundamentação do Acórdão 49/2003.

10 - Deve começar por referir-se que o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal, como tem sido invariavelmente repetido na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Nesse aspeto, o direito ao recurso encontra-se expressamente inscrito entre os pilares constitucionais do Direito do Processo Penal da República Portuguesa.

A identificação expressa no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição do direito ao recurso como garantia de defesa, resultante da revisão constitucional de 1997, não tendo implicado novidade relativamente ao entendimento que vinha já sendo feito pelo Tribunal Constitucional da sua redação anterior (cf., entre outros, Acórdãos n.os 8/87 [n.º 6], 31/87 [n.º 5 e 7], 178/88 [n.º 5], 259/88 [n.º 2.2], 401/91 [n.º II.1 a 3], 132/92 [n.º 7], 322/93 [n.º 6]), não deixou, contudo, de representar o reconhecimento explícito da autonomia conferida a uma tal garantia no contexto geral das garantias de defesa, isto é, um valor de garantia não amortizável pelo reconhecimento de outras garantias processuais, designadamente para defesa do arguido.

«

Tal explicitação constitucional tem por efeito a garantia (consti-tucional) da possibilidade de interposição de recurso de decisões que respeitem a direitos, liberdades e garantias, máxime que restrinjam tais direitos

»

(Acórdão 686/2004 [n.º 6]).

11 - Integrando o direito ao recurso do arguido, constitucionalmente reconhecido, uma garantia essencial de defesa, este não pode deixar de ser um limite à liberdade conformadora do legislador quanto à delimitação das decisões de que cabe recurso e quanto à definição do regime de recursos em processo penal. É este o contexto que importa reter na análise da norma objeto de julgamento de constitucionalidade no presente processo.

Quanto à questão que nos ocupa, o Tribunal Constitucional tem vindo a aceitar como conforme à Constituição a possibilidade de a decisão de condenação na Relação, em segunda instância, ser irrecorrível, mesmo se proferida em sede de recurso interposto de decisão absolutória de primeira instância. Trata-se, com efeito, de uma matéria que conta com expressiva jurisprudência deste Tribunal que invariavelmente se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade de uma solução normativa em certa medida semelhante à que agora é objeto de análise, embora num contexto normativo anterior à Lei 20/2013, de 21 de fevereiro. É paradigmático, neste âmbito, o Acórdão 49/2003 que, ao julgar a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redação dada pela Lei 59/98, de 25 de agosto, no contexto do regime aplicável aos recursos em causa, não encontrou qualquer violação do artigo 32. º, n.º 1 da Constituição (v. também os Acórdãos n.os 255/2005 [n.º II.2], 487/2006 [n.º 2], 682/2006 [n.º 5], 424/2009 [n.º 4], 353/2010 [n.º 7]).

De acordo com o Acórdão 49/2003 [n.º 4]:

«

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade para salientar, por diversas vezes, que o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal.

Este direito assenta em diferentes ordens de fundamentos. Desde logo, a ideia de redução do risco de erro judiciário. Com efeito, mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais, a hipótese de um erro de julgamento - tanto em matéria de facto como em matéria de direito - é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem dúvida proporcionar a deteção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo.

Mais do que isso, o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a proceder à apreciação da decisão proferida, o que, naturalmente, tem a virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida nesta nova sede.

Por último, está ainda em causa a faculdade de expor perante um tribunal superior os motivos - de facto ou de direito - que sustentam a posição jurídicoprocessual da defesa. Neste plano, a tónica é posta na possibilidade de o arguido apresentar de novo, e agora perante um tribunal superior, a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável, por forma a que a nova decisão possa ter em consideração a argumentação da defesa.

Resulta do exposto que os fundamentos do direito ao recurso entroncam verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição.

A ligação entre o direito ao recurso e o duplo grau de jurisdição é, pois, evidente [...]

»

.

12 - Neste contexto, pode dizer-se que

«

o Código conviveu quase sempre, nomeadamente até 2007, com a possibilidade de uma condenação em pena de prisão efetiva ditada pela primeira vez pela Relação ficar imune à garantia do recurso

»

, sendo que,

«

confrontado com o problema no passado, o Tribunal Constitucional não divisou aí qualquer inconstitucionalidade:

cf. por outros os Acs. do TC 49/2003 e 353/2010

»

, como observa Figueiredo Dias (Jorge de Figueiredo Dias, “Por onde vai o Processo Penal Português”, in As Conferências do Centro de Estudos Judiciários, Almedina, 2014, p. 79 e nota 32). Mas, como assinala também o mesmo Autor,

«

não deve perder-se de vista que o contexto era então todo um outro, em especial, na primeira década de vigência do Código:

a margem para uma revisão da matéria de facto pela 2.ª instância era substancialmente menor, sendo que, no caso de julgamento por tribunal colegial, muitas vezes só seria admissível recurso de revista alargada (art. 410.º-2); e o quadro de atuação em audiência, que privilegia o contraditório e antes era a regra do julgamento em 2.ª instância, passou entretanto a ser exceção

»

(Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., loc cit.). Na versão originária do Código de Processo Penal, a possibilidade de verificação de uma condenaçãosurpresa na Relação constituía

«

uma hipótese mais circunscrita e com menor projeção simbólica

»

, sendo reduzida a expressão do recurso em matéria de facto o que

«

tornava improvável uma radical alteração do sentido da decisão pelas Relações

»

(Sandra Oliveira e Silva, “As Alterações em Matéria de Recursos, em Especial a Restrição de Acesso à Jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça - Garantias de Defesa em Perigo?”, in As Alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal:

uma Reforma “Cirúrgica”?, André Lamas Leite (org.), Coimbra Editora, 2013, pp. 257-297, pp. 274). Efetivamente, não pode ser esquecido que o contexto normativo em que o Acórdão 49/2003 foi proferido sofreu alterações quer pela revisão do CPP de 2007 (Lei 48/2007, de 29 de agosto), que introduziu uma nova disciplina na arquitetura do julgamento de recurso, quer pela alteração ao CPP realizada em 2013 (Lei 20/2013, de 21 de fevereiro) que introduziu a norma objeto de fiscalização. De facto, nesta alteração, prosseguindo o desiderato a que se propusera já em 2007, de restringir o acesso ao Supremo aos casos de “maior merecimento penal” (definidos como aqueles em que tenha sido aplicada, por alguma das instâncias, pena de prisão superior a cinco anos), o legislador modificou a alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º do CPP, aditando expressamente à lista de decisões irrecorríveis os acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que apliquem pena de prisão não superior a cinco anos. Esta alteração foi também uma resposta à jurisprudência do Tribunal Constitucional, que considerou inconstitucional a interpretação dos tribunais comuns que determinava a irrecorribilidade de acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que aplicassem pena de prisão não superior a cinco anos, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal, em primeiro lugar no Acórdão 591/2012, julgamento aquele posteriormente confirmado pelo Plenário do Tribunal, no Acórdão 324/2013.

A consagração na letra da lei da solução anteriormente preconizada pelos tribunais comuns ultrapassou o julgamento de inconstitucionalidade desta solução, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal, pelo Tribunal Constitucional. Mas, como observa Bruna Ribeiro de Sousa,

«

o facto de a norma estar expressamente consagrada [não] implica a sua conformidade constitucional

»

(in “Da inconstitucionalidade da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal (na redação da Lei 20/2013, de 21 de fevereiro)”, in Revista do Ministério Público, ano 35, n.º 138, p. 145). Na verdade, ao adicionar a irrecorribilidade a condenações em penas de prisão efetiva até cinco anos, a alteração de 2013 ao CPP reacendeu a problemática de saber se, dentro do atual enquadramento constitucional, a norma que impede o recurso do arguido de acórdão proferido pela Relação que o condena em pena de prisão não superior a cinco anos, na sequência de absolvição em primeira instância, assegura devidamente as suas garantias de defesa em processo penal, nomeadamente o direito ao recurso do arguido.

Digno de nota neste enquadramento será, finalmente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização n.º 4/2016, pelo qual foi recentemente decidido que

«

em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a Relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal

»

.

d) A violação do direito ao recurso previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, pela norma objeto de análise

13 - Analise-se então a norma objeto do presente processo. A norma que prevê a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão proferido em recurso, pelo Tribunal da Relação, que aplique pena de prisão não superior a cinco anos, após decisão absolutória da 1.ª Instância, extraível do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP (na redação introduzida em 2013), julgada inconstitucional pelo Acórdão 412/2015, ora recorrido, foi objeto de um juízo negativo de inconstitucionalidade pelo Acórdão 163/2015. Fêlo por adesão a

«

argumentos aduzidos em acórdãos anteriores, nomeadamente nos Acórdãos n.os 49/2003 e 682/2006

»

(n.º 5 do Acórdão). É neste contexto que importa revisitar a fundamentação destes arestos.

No Acórdão 49/2003 - cuja argumentação foi acolhida e renovada no Acórdão 682/2006-, o Tribunal Constitucional, analisando a alínea e), do n.º 1, do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei 59/98, de 25 de agosto, concluiu que a norma em causa não desrespeitava o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição porque

«

o acórdão da relação, proferido em 2.ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso

» já que
«

tais acórdãos resultam justamente da reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa

»

[n.º 5]. Em conformidade com o quadro de análise descrito, o Tribunal considerou que

«

estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias. Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralisação, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada

» e, em face disso, entendeu o Tribunal não se poder considerar infringido o n.º 1, do artigo 32.º da Constituição pela norma ali objeto,
«

já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas

»

[n.º 5].

14 - O Acórdão 49/2003 reconhece estar perante uma limitação do direito de recurso, mas considera que esta restrição não é inconstitucional. A argumentação deste aresto passa pela aceitação de que, existindo duplo grau de jurisdição, não é desconforme à Constituição a não consagração do direito de recorrer da decisão da segunda instância, porquanto se verificam dois fundamentos que justificam aquela limitação:

por um lado,

«

a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada

» e, por outro lado,
«

a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralisação

»

.

Ora, relativamente ao primeiro fundamento apontado, cumpre desde logo assinalar que o campo de aplicação da dimensão normativa do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP ora sob juízo excede aquele que foi considerado naquele aresto.

Com efeito, a revisão do CPP, introduzida em 2007 (pela Lei 48/2007, de 29 de agosto), substituiu o critério para aferir a irrecorribilidade da decisão da Relação proferida em recurso baseado na “pena abstratamente aplicável” pelo critério da “pena concretamente aplicada” (artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP). Esta alteração permitiu a aplicação da irrecorribilidade à condenação por qualquer crime punível com pena de prisão, inclusivamente aqueles que são puníveis com a mais grave moldura penal abstratamente prevista. O fundamento da restrição de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça no caso de decisão condenatória de segunda instância em pena de prisão, antecedida de absolvição na primeira instância, reduz-se, assim, a uma dimensão assente na gravidade da pena concretamente aplicada, independentemente da natureza ou da gravidade do crime que justifica a condenação.

Assim, a norma objeto do presente recurso deixou de se dirigir apenas a crimes de “gravidade não acentuada”.

15 - O segundo fundamento utilizado pelo Acórdão 49/2003 que, diante do cumprimento do duplo grau de jurisdição, permite afirmar que a norma em análise constitui uma limitação “em termos razoáveis” do direito de recurso, assenta no objetivo de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (n.º 5 do Acórdão 49/2003).

Ora, a contenção do acesso ao Supremo é um elemento de racionalidade do sistema digno de proteção à luz do texto constitucional. Não se nega que uma compressão do direito ao recurso pode ser justificada por interesses legítimos como a racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça. É essencial a racionalização do acesso ao Supremo, permitindo a tomada de decisões em tempo útil. Mas este não pode ser visto como um valor isolado dos demais com tutela constitucional. De facto, sendo razoável limitar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, prevendo apenas um duplo grau de jurisdição, de forma a prevenir a sua eventual paralisação, tal não deve, todavia, ser alcançado à custa do sacrifício do conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido.

16 - Apesar da sua interligação, deve distinguir-se a garantia do “direito ao recurso” da garantia da existência de um “duplo grau de jurisdição”.

Trata-se de conceitos autónomos e não confundíveis. Por “direito ao recurso” entende-se - de um modo geral - a faculdade conferida à parte vencida de suscitar o reexame de uma decisão que lhe foi desfavorável e da qual discorda com o intuito de corrigir erros e de ver proferida uma decisão que vá ao encontro das suas expetativas. Por seu lado, com a menção a “duplo grau de jurisdição” pretende-se significar a possibilidade de reexame efetuado por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao que apreciou a causa pela primeira vez, com prevalência sobre este. Enquanto a Constituição consagra expressamente o direito de recurso em processo penal, nada refere, todavia, sobre os graus de jurisdição exigíveis para concretizar o direito ao recurso. A garantia de defesa constitucionalmente prevista é, com efeito, autónoma em relação aos graus de recurso.

Existe, no entanto, uma forte ligação entre o direito ao recurso e a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição. Não merece contestação - pelo menos ao nível das exigências de um processo justo - que o “duplo grau de jurisdição” é pressuposto do exercício do direito ao recurso. A jurisprudência do Tribunal Constitucional, como se viu, reconhece também a possibilidade de o direito ao recurso se consumar através da existência desse duplo grau de jurisdição.

Tal não significa que baste o duplo grau de jurisdição para se considerar sempre assegurado o direito ao recurso. Sendo conceitos interligados, eles não devem, porém, ser confundidos, sob pena de diluição do valor próprio e autónomo que a Constituição reconhece, no artigo 32.º, n.º 1, ao direito ao recurso no contexto das garantias de defesa. Assim, embora o direito de recurso,

«

imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição

»

, deva ser entendido

«

no quadro das “garantias de defesa” - só e quando estas garantias o exi-jam

»

(Acórdão 30/2001, n.º 7), develhe ser reconhecido

«

um valor garantístico próprio e não “dissolúvel” em outras garantias de defesa

»

(Acórdão 686/2004, n.º 4).

A garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota, portanto, na existência de duplo grau de jurisdição. Para se verificar que a garantia de duplo grau de jurisdição concretiza o direito de recurso, é indispensável - e como tal tem sido reconhecido na jurisprudência do Tribunal Constitucional - que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto se apresente como tutela suficiente das garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Ou seja, assumindo a Constituição o direito ao recurso do arguido como integrando as suas garantias de defesa, a liberdade conformadora do legislador na definição da recorribilidade das decisões judiciais e do regime de recursos em processo penal não pode deixar de encontrar como limite aquele direito. ou de outros direitos fundamentais do arguido resulta, assim, da jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf. os Acórdãos n.os 31/87 [n.º 5], 265/94 [n.º 7], 265/94 [n.º 7], 30/2001 [n.º 7], 189/2001 [n.º 6], 235/2010 [n.º 8], 107/2012 [n.º 3]).

17 - O direito de recurso encontra, aliás, outras sedes vinculativas para o ordenamento português, que podem auxiliar a interpretar o con-teúdo normativo deste direito.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) [aprovado para ratificação por Portugal pela Lei 29/78, de 12 de junho] prevê, no seu artigo 14.º, n.º 5, que

«

Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença em conformidade com a lei

»

.

Por seu turno, a Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH) [aprovada para ratificação por Portugal pela Lei 65/78, de 13 de outubro] não contempla expressamente o direito ao recurso entre as garantias de defesa do arguido. No artigo 2.º do Protocolo 7 à CEDH estabelece-se, neste contexto:

Artigo 2.º

(Direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal)

1 - Qualquer pessoa declarada culpada de uma infração penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei.

2 - Este direito pode ser objeto de exceções em relação a infrações menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição.

No n.º 1 deste preceito consagra-se, assim, o direito de acesso a

«

uma jurisdição superior

» que reexamine
«

a declaração de culpabilidade ou a condenação

»

. Entre as exceções possíveis a este direito, o n.º 2 elenca a situação em que, após um julgamento que tenha conduzido a uma absolvição,

«

o interessado tenha sido [...] declarado culpado e condenado

» em julgamento de recurso. Relativamente às garantias de defesa deste julgamento de recurso que, após absolvição, conduz a uma declaração de culpa e condenação do arguido, existe abundante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em especial tendo como parâmetro o artigo 6.º, n.º 1, da Convenção - que consagra o “direito a um processo justo e equitativo” (v., por exemplo, os acórdãos nos casos Constantinescu c. Roménia, n.º 28871/95, §§ 55 e 59, de 27 de junho de 2000;

Destrehem c. França, n.º 56651/00, §§ 39 a 47, de 18 de maio 2004;

Dănilă c. Roménia, n.º 53897/00, § 62, 8 de março de 2007;

Năvoloacă c. Moldávia, n.º 25236/02, § 61, 16 de dezembro de 2008;

Suuripää c. Finlândia, n.º 43151/02, § 44, 12 de janeiro de 2010;

Lacadena Calero c. Espanha, no 23002/07, § 38, 22 de novembro de 2011;

Flueraş c. Roménia, n.º 17520/04, § 58, 9 de abril de 2013;

Văduva c. Roménia, n.º 27781/06, § 41, 25 de fevereiro de 2014;

Loni c. Croácia, n.º 8067/12, §§ 100 e 101, 4 de dezembro de 2014;

Marius Dragomir c. Roménia, n.º 21528/09, §§ 18 a 27, 6 de outubro de 2015;

Moinescu c. Roménia, n.º 16903/12, §§ 33 a 40, 15 de setembro de 2015; e Sobko c. Ucrânia, n.º 15102/10, § 71, 17 de dezembro de 2015).

Esta jurisprudência transmite a perceção clara de que a reversão, em via de recurso, de uma absolvição em condenação convoca um elevado nível de exigências garantísticas da posição processual do arguido. Essas exigências, no quadro da Convenção, situam-se, é verdade, no âmbito normativo do direito a um processo justo e equitativo. Independentemente de saber se o direito português satisfaz, ou não, essas exigências, dado o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, é incontornável a apreciação do respeito pelo direito ao recurso.

Aliás, a própria Convenção estabelece, no seu artigo 53.º, que nenhuma das suas disposições pode ser

«

interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos do homem e as liberdades fundamentais que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Alta Parte Contratante ou de qualquer outra Convenção em que aquela seja parte

»

.

18 - No caso da norma em apreciação no presente recurso, o arguido é confrontado com uma decisão da Relação, em segunda instância, que revogando acórdão absolutório da primeira instância, o condena em pena de prisão efetiva não superior a 5 anos. Perante esta decisão condenatória, resultado de recurso de outro sujeito processual face à decisão de absolvição, que o priva da liberdade por um período de tempo que pode ir até cinco anos, é negado pela lei ao arguido o direito de interpor recurso.

A tutela constitucional do direito de recorrer de decisões condenatórias e de decisões que restringem direitos fundamentais (como é o caso de uma condenação em pena de prisão efetiva, que restringe, designadamente, a liberdade do arguido) em processo penal imporia, prima facie, a possibilidade de uma reapreciação dessa decisão por uma outra instância, o que, no caso, não teve concretização. Argumenta-se que, nesse caso, o direito de recurso do arguido teria sido assegurado pela existência de um segundo grau de jurisdição, na medida em que o seu direito de defesa se encontra protegido pela possibilidade de contraalegar no âmbito do recurso interposto da decisão absolutória de primeira instância.

Não se pode acompanhar esta posição. Na situação em presença, o segundo grau de jurisdição não assegura o respeito devido pelo direito de recurso decorrente do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. São vários os motivos para esta conclusão.

19 - Nos casos em que existe uma absolvição da primeira instância revogada por decisão condenatória em pena de prisão da segunda ins-tância, não é assegurada no julgamento do recurso uma reapreciação das consequências jurídicas do crime. Trata-se, pelo contrário, de uma decisão inovadora com consequências fundamentais na posição jurídica do arguido, designadamente na sua liberdade, relativamente à qual é negado o acesso a uma reapreciaçao por um tribunal superior.

Na verdade, uma situação em que a uma absolvição de primeira ins-tância sucede a condenação em pena de prisão, no tribunal de recurso, implica necessariamente o surgimento de uma parte da decisão que se apresenta como integralmente nova:

o processo decisório concernente à determinação da medida da pena a aplicar. A decisão que define a pena de prisão é proferida pelo Tribunal da Relação sem que anteriormente, designadamente em primeira instância, haja qualquer apreciação sobre a pena a impor ao arguido. O arguido vê-se confrontado com uma pena de privação de liberdade cujo fundamento e medida não tem oportunidade de questionar em sede alguma. Neste caso, os critérios judiciais de determinação, em concreto, da medida adequada da pena escapam a qualquer controlo. Existem, portanto, nesta situação, dimensões do juízo condenatório que não são objeto de reapreciação. Pelo menos quanto a estas matérias, existe uma apreciação pela primeira vez apenas na instância de recurso, sem que exista a previsão legal de um segundo grau de jurisdição.

Neste contexto, aceitar a irrecorribilidade da decisão condenatória, em situações como a configurada pela norma em apreciação, seria admitir que o direito fundamental ao recurso, enquanto expressão das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, não garante sequer a reapreciação por uma segunda instância da decisão que define a pena de prisão efetiva. Esta seria, assim, uma decisão do juiz que se apresentaria como livre de qualquer controlo.

A ausência absoluta de controlo do processo decisório de escolha e determinação da medida da pena de prisão é, porém, inaceitável. É de há muito dado por adquirido na dogmática das consequências jurídicas do crime que a determinação judicial da pena concreta constitui

«

es-truturalmente aplicação do direito

»

, deixando

«

por toda a parte de ser considerado como uma questão relevando exclusiva ou predominantemente da subjetividade do julgador, da sua arte de julgar

»

(cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas - Editorial Notícias, 1993, pp. 40-41; no mesmo sentido, v. Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, p. 13).

20 - Num outro plano, tem o Tribunal igualmente reiteradamente afirmado que o exercício do

«

direito ao recurso implica, naturalmente, que o recorrente tenha a possibilidade de analisar e avaliar os fundamentos da decisão recorrida, com vista ao exercício consciente, fundado e eficaz do seu direito

»

(v. Acórdão 148/2001, n.º 5). A tanto postula o direito de recurso, as garantias de defesa e o princípio do contraditório no âmbito do processo penal (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição):

os destinatários de uma decisão jurisdicional devem ter ou poder ter conhecimento do seu conteúdo, nomeadamente para contra ela poderem reagir através dos meios processuais adequados (v., entre outros, Acórdãos n.os 384/98 [n.º 8], 87/2003 [n.º II.3], 186/2004 [n.º 2]). Esta dimensão é reconhecida por este Tribunal também no domínio do processo civil (v., entre outros, Acórdãos n.os 606/2007 [n.º 2], 243/2013 [n.º 11]).

No caso da norma sob escrutínio, porém, o arguido só toma conhecimento do fundamento, tipo e quantum da pena em que vai condenado através do acórdão do Tribunal da Relação, que o condena. Apenas nesse momento está logicamente em condições para recorrer dessa decisão, já que antes ela nem sequer existe.

O direito do arguido ao recurso da sua condenação, neste caso, não se pode bastar com o exercício do contraditório no recurso interposto pelo Ministério Público da sua absolvição. O conteúdo típico do direito ao recurso abrange o efetivo poder de suscitar uma reapreciação da decisão jurisdicional desfavorável. Para tal, o arguido tem de poder ter acesso aos fundamentos dessa decisão que só são conhecidos no momento da sua prolação, não em momento anterior, nas alegações de recurso. A norma em apreciação implica uma compressão deste conteúdo desde logo porque a decisão condenatória integra, regra geral, matéria não abrangida pela decisão de primeira instância, designadamente no que respeita ao acervo factual relevante para a escolha e determinação da medida da pena aplicada. Mesmo que esse processo decisório se sustente apenas nos factos apurados em primeira instância, ele implicará necessariamente uma valoração assente num critério de doseamento da medida da pena que ao arguido só é revelado com a sua condenação. Ora, pelo menos quando está em causa a restrição ao direito à liberdade que implica a condenação a uma pena de prisão efetiva, uma ablação desta natureza do direito ao recurso é inadmissível. Neste caso, só após a decisão ser proferida pode existir verdadeiro exercício do direito de recurso quanto a essa decisão pois, caso contrário, o desconhecimento do critério/tipo de sanção - por a condenação em segunda instância ter sido antecedida de absolvição - não permite reagir contra a pena de prisão efetivamente imposta pelo tribunal. Trata-se de uma situação em que as garantias de defesa exigem o acesso a uma nova instância.

A tese do acórdão fundamento considera que o direito de defesa do arguido face a uma condenação a pena de prisão efetiva, na segunda instância, se encontra protegido pela simples possibilidade de contraalegar no âmbito do recurso interposto da decisão absolutória de primeira instância. Uma vez que, em processo criminal, a dedução da acusação pressupõe sempre a possibilidade de ser proferida uma decisão de condenação, a substituição de uma sentença absolutória por uma sentença condenatória mais não representaria do que uma simples reversão do resultado decisório. Não é de aceitar esta tese. Se o “facto provado” ainda pode ter-se como o reverso do “facto não provado”, tal não dispensa, todavia, a motivação da convicção na prova produzida, e essa fundamentação não pode ser antecipada diante de um juízo de não culpabilidade como o que resultou afirmado pelo primeiro julgador. De todo o modo, para além da motivação, há sempre uma parte inteiramente nova na sentença condenatória da Relação que reverte a absolvição da primeira instância:

a relativa à escolha da pena. E sendo assim, a tese do acórdão fundamento permite que elementos da condenação fiquem por sindicar, à margem de qualquer impugnação ou contraditório. Aceita-se que o arguido exerceu o seu direito de recurso face a uma decisão inovatória que o privou da liberdade, antes mesmo dessa decisão condenatória ter sido proferida e sem que, portanto, ele a pudesse conhecer.

Desta forma, a parte da decisão com maior potencial de lesão dos direitos fundamentais do arguido fica à margem do recurso, sendo aceite como livre de qualquer controlo. E, no entanto, como expressivamente salientado por Sousa Brito,

«

em nenhum outro momento, o juiz incorpora tão dramaticamente a Justiça como quando fixa a pena aplicável. Pois não é essa a altura em que empunha a espada que desfere golpes nos mesmos bens da vida que se pretendem defendidos pelo direito e, em última instância, pelo próprio direito penal?

»

(José de Sousa e Brito, “A Medida da Pena no Novo Código Penal”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Boletim da FDUC, 1984, p. 555).

21 - Resulta do enquadramento constitucional a discricionariedade do legislador quanto ao regime processual de recursos, onde se inclui a determinação das decisões recorríveis. Nesse âmbito, são diversificadas as soluções configuráveis no sistema de recursos em processo penal com vista à harmonização do interesse na otimização dos recursos e o célere funcionamento da justiça com os direitos de defesa do arguido, designadamente o direito de recorrer de uma condenação em pena privativa da liberdade (para uma perspetiva das várias soluções avançadas pela doutrina, v. Sandra Oliveira e Silva, “As alterações em matéria de recursos, em especial a restrição de acesso à jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça - Garantias de Defesa em perigo?”, citado, pp. 283 e ss.). Indispensável é que a racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça não seja alcançada à custa do sacrifício absoluto dos direitos fundamentais de defesa do arguido. Tanto mais quando está em causa o valor da liberdade.

No caso de uma condenação em pena de prisão definida pelo tribunal de segunda instância, após absolvição em primeira instância, impedir o arguido de rebater, com argumentos próprios, os fundamentos da medida da privação da sua liberdade, que pode estender-se até cinco anos, consubstancia uma ablação total daquele direito que é inadmissível pois atinge as suas garantias essenciais de defesa ao inviabilizar a possibilidade de contraditar os critérios de escolha e determinação da medida da pena.

A norma objeto do presente processo, ao determinar a irrecorribilidade do acórdão da segunda instância que, em recurso de decisão absolutória, condena em pena de prisão efetiva, constante do artigo 400. º, n.º 1, alínea e), do CPP, procede a uma restrição do direito do recurso do arguido que leva à sua total ablação, por não lhe permitir sindicar a condenação proferida na Relação, depois de lhe ser compreensivamente vedado, desde logo por falta de interesse ou legitimidade, recorrer da decisão de primeira instância.

Ao resolver contra o arguido a situação de contradição entre a decisão de primeira e segunda instâncias, recusandolhe a possibilidade de reação a uma condenação em pena de prisão efetiva, esta norma viola concretamente o seu direito ao recurso, levando à sua total ablação. Estando em causa uma pena de privação da liberdade, essa solução é manifestamente excessiva. Nesse sentido, é inconstitucional por violar o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

22 - Não se ignora que a possibilidade de recurso, neste caso, pode levar à assimetria do regime em favor da defesa. Todavia, na configuração dos graus de recurso em processo penal não deve perder-se de vista que da circunstância de o arguido não poder ter menos direitos do que a acusação, não significa que não possa ter mais. Diante da desigualdade material de partida entre a acusação, apoiada no poder institucional do Estado, e o arguido, alvo de perseguição judiciária, aceita-se

«

“uma orientação para a defesa” do processo penal

» o que
«

revela que ele não pode ser neutro em relação aos direitos fundamentais (um processo em si, alheio aos direitos do arguido), antes tem nele um limite infrangível

»

(J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra Editora, 4.ª ed. revista, 2007, p. 516).

Para além disso, deixa-se claro o reconhecimento de uma larga discricionariedade do legislador quanto à definição do rol das decisões recorríveis e ao regime do respetivo recurso. Que não haja dúvidas:

não resulta do presente julgamento que o direito ao recurso nunca possa ser satisfeito pela garantia de um duplo grau de jurisdição. A Constituição não obriga à previsão de recurso face a uma qualquer decisão desfavorável. No entanto, a discricionariedade do legislador conhece como limite o dever de não ablação do direito ao recurso nas situações referidas pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. No presente caso, em que existe uma condenação e uma decisão de privação de liberdade, proferida pela segunda instância, após uma absolvição, pela primeira instância, estamos perante uma violação desse dever.

23 - Como enfatizado por Figueiredo Dias, a consagração constitucional do direito ao recurso entre as garantias de defesa do arguido

«

significa que o direito a um recurso é manifestação jurídicoconstitucionalmente vinculante de um direito, liberdade e garantia pessoal da defesa. Ela não pode ser posta em causa em hipótese alguma, mesmo sob a alegação de que se verifica in concreto uma qualquer outra garantia de defesa sucedânea legalmente admissível. Sempre que, num concreto caso judicial de qualquer espécie, a lei denegue ao arguido condenado o direito a um recurso, a lei é materialmente inconstitucional e não pode, como tal, ser aplicada

»

(Jorge de Figueiredo Dias, “Por onde vai o Processo Penal Português”, in As Conferências do Centro de Estudos Judiciários, Almedina, 2014, p. 80).

Imperioso é concluir que a norma sindicada viola as garantias de defesa em processo penal, em especial o direito ao recurso, decorrentes do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, ao prever a inadmissibilidade de recurso do acórdão da Relação, que invertendo o julgamento absolutório proferido pelo tribunal de julgamento em primeira instância, afirmando um juízo de culpabilidade do arguido, o condena em pena de prisão efetiva até cinco anos de prisão.

III. Decisão Em face do exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.

b) Negar provimento ao recurso Sem custas. Lisboa, 13 de julho de 2016. - Maria de Fátima MataMouros - João Cura Mariano (revendo posição anterior refletida na fundamentação de acórdãos por mim subscritos neste tribunal em que se equiparou a garantia constitucional do direito ao recurso à existência de um duplo grau de jurisdição) - Lino Rodrigues Ribeiro (com declaração junta) - João Pedro Caupers - Carlos Fernandes Cadilha - Teles Pereira - Pedro Machete (vencido nos termos da declaração que junto) - Catarina Sarmento e Castro (vencida, nos termos da declaração de voto que junto) - Ana Guerra Martins (vencida, conforme declaração que junto) - Maria Lúcia Amaral (vencida, conforme declaração que anexo) - Maria José Rangel de Mesquita (vencida, conforme declaração que se junta) - Fernando Vaz Ventura (vencido; pronuncieime por julgamento de não inconstitucionalidade da norma sindicada, no essencial pelas razões constantes da declaração de voto aposta no acórdão recorrido pela Sr.ª Conselheira Maria Lúcia Amaral, para a qual remeto) - Joaquim de Sousa Ribeiro.

Declaração de voto Votei a decisão revendo anterior posição, designadamente a tomada no acórdão fundamento - Acórdão 163/15. Realmente, a decisão de segunda instância que condena em pena de prisão efetiva um arguido que havia sido absolvido em primeira instância decide uma questão nova que não foi objeto do processo de primeiro grau:

a determinação da medida concreta da pena.

No que se refere aos elementos constitutivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, a decisão de segunda instância contém uma reapreciação da questão decidida pelo tribunal a quo; mas quanto à escolha da espécie e medida da pena há apreciação de uma questão nova não suscitada na primeira instância. Naquela situação, ainda que se tome conhecimento de novas provas ou de novos factos, há identidade entre o objeto do processo de primeiro grau e o de segundo grau, o que assegura a garantia do duplo grau; mas quando o tipo de recurso permite obter decisões em matéria nova, em virtude do alargamento dos poderes de cognição do tribunal superior a questões novas, viola-se o princípio do duplo grau, o que constitui uma diminuição dos direitos de defesa do arguido.

De facto, a garantia do duplo grau só pode funcionar se a decisão do recurso for em toda a extensão uma nova definição da situação decidida pelo tribunal recorrido, ou seja, um reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida e não o julgamento de questões novas. Daí que admitir o jus novorum, como é o caso da determinação da medida concreta da pena, seja afastar o duplo grau, permitindo que o tribunal ad quem se pronuncie primariamente sobre questões não decididas pelo tribunal a quo.

Num recurso deste tipo, cuja estrutura permite ao tribunal superior proceder à determinação da espécie e medida da pena, em caso de revogação da decisão absolutória da primeira instância (cf. Acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência 4/2016), só não haverá violação do princípio do duplo grau se relativamente a essa questão nova se entender que o tribunal superior funciona em primeira instân-cia, abrindo-se assim a porta à garantia do segundo grau de jurisdição. Por isso, quando o tipo de recurso comporta a extensão dos poderes de cognição a questões novas, a garantia do direito ao recurso estabelecida no n.º 1 do artigo 32.º da CRP só estará assegurada se a lei possibilitar ao arguido o recurso da decisão que for tomada sobre essa matéria nova. - Lino Rodrigues Ribeiro.

Declaração de voto Votei vencido por considerar que a nova compreensão constitucional do direito ao recurso afirmada pela maioria não se afigura consistente nem consequente.

Contrariamente a toda a jurisprudência constitucional anterior, entende a maioria que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição deve agora ser interpretado no sentido de que o direito ao recurso corresponde à faculdade de pedir sempre e em qualquer circunstância a reapreciação por um tribunal superior de uma primeira decisão desfavorável, nomeadamente se se tratar de uma condenação que implique a privação da liberdade do arguido, e que, nestes termos, tal direito se reconduz ao

«

conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido

»

(v., em especial, o n.º 16). Por ser assim, toda a disciplina legal que limite o direito ao recurso do arguido reveste necessariamente caráter restritivo, estando sujeita aos critérios do artigo 18. º, n.os 2 e 3, da Constituição (este aspeto é omitido na decisão, mas está presente ao longo da fundamentação, quer na análise da jurisprudência constitucional anterior - cf. o n.º 14 - quer na afirmação dos limites ao poder de conformação do legislador - cf. os n.os 16 e 21).

A verdade, porém, é que as garantias de defesa do arguido não são consumidas pelo direito ao recurso nem este constitui, por si só, condição suficiente de uma defesa efetiva. Que é assim comprova-o, desde logo, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o próprio regime da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em que a garantia do direito ao recurso em processo penal se reconduz ao direito a um duplo grau de jurisdição (cf. o artigo 2.º do Protocolo 7, transcrito no n.º 17). Ou seja, mesmo quando consagrado o direito ao recurso nos termos defendidos pela decisão que fez vencimento, tal não constitui garantia de uma tutela suficiente da defesa do arguido; e, inversamente, mesmo quando reconduzido o direito ao recurso (apenas) ao direito a um segundo grau de jurisdição - como tem sucedido na ordem constitucional portuguesa - não se pode dizer que as garantias de defesa do arguido não se encontrem asseguradas. A consequência a retirar é óbvia:

sendo o direito ao recurso uma garantia essencial da defesa do arguido, o “conteúdo essencial” - conceito carecido, neste contexto, de explicação adequada - de tal garantia não se reconduz ao direito ao recurso.

Por outro lado, esta reorientação jurisprudencial não se pode justificar com modificações ocorridas no “contexto normativo” infraconstitucional (cf. o n.º 12); aliás, tal corresponderia a uma inversão metódica (inter-pretar a Constituição em função da lei ordinária). E, como referido, a mesma não encontra arrimo na jurisprudência constitucional anterior. Em especial, o Tribunal não considerou a disciplina legal limitadora do direito ao recurso, para além do segundo grau de jurisdição, como restritiva de um direito, liberdade e garantia e, como tal, submetida ao regime do artigo 18.º da Constituição.

Com efeito, o que tem sido afirmado relativamente ao direito ao recurso previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição - foi-o, designadamente, no Acórdão 49/2003 - é que, por razões de ordem sistémica, se tem de entender, como garantia constitucional mínima do direito de defesa do arguido, a possibilidade de recorrer de uma qualquer decisão condenatória proferida pelos tribunais de primeira instância (cf. o artigo 210.º, n.º 3, da Constituição). Cumprido esse mínimo, compete ao legislador zelar pelo equilíbrio entre os valores da defesa do arguido, da racionalidade processual e da funcionalidade do sistema judiciário e, consequentemente, definir os termos do eventual acesso a um terceiro grau de jurisdição, sempre com respeito pelos princípios constitucionais próprios de um Estado de direito. De resto, isso mesmo é reconhecido no presente acórdão, com referência, por exemplo, ao Acórdão 628/2005:

«

[A] a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota na dimensão que impõe a previsão pelo legislador ordinário de um grau de recurso, pois “tal garantia, conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer - mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios (assim, vejam-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 1229/96 e 462/2003 [...])” (n.º 7 do Acórdão).

»

Tal ressalta igualmente da síntese da jurisprudência constitucional anterior formulada no Acórdão 324/2013, tirado em Plenário (e que também é mencionado na decisão que fez vencimento):

«

[E]ste Tribunal tem vindo a entender, de forma reiterada, que não é constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, sustentando-se que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.os 178/88, 189/2001, 640/2004 e 645/2009, disponíveis em www.tribunalcons-titucional.pt). Entendendo, também, que, muito embora se aceite que o legislador possa fixar um limite acima do qual não é admissível um terceiro grau de jurisdição, preciso é que “com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido”, devendo a limitação dos graus de recurso ter “um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado”. Porquanto a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota naquela dimensão. Esta garantia, “conjugada com outros parâmetros constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não adote soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades de recorrer - mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e não constitucionalmente obrigatórios” (Acórdãos n.os 189/2001 e 628/2005. E, ainda, Acórdão 64/2006, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

»

A compreensão do direito ao recurso afirmada pela maioria implicará ainda na sua lógica - já que é sempre o mesmo direito do arguido ao recurso da sua condenação que está em causa (o direito a um recurso ou o direito ao seu recurso) -, pelo menos, o direito de o arguido recorrer de uma primeira condenação, independentemente desta ter sido proferida em primeiro ou segundo grau de jurisdição (seja pela relação ou pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça). Assim, a decisão condenatória proferida em segundo grau de jurisdição que reverta anterior absolvição deve assegurar um nível de tutela da posição do arguido condenado similar ao que é garantido no quadro de um recurso interposto da condenação proferida pelo tribunal de primeira instância. No caso dos autos em que foi proferido o acórdão recorrido, tal significa que o recurso a interpor pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça deverá assegurarlhe condições de tutela análogas às que o arguido teria caso tivesse sido condenado logo no tribunal de primeira instância, sendo, portanto, e em princípio, aplicáveis normas idênticas às que constam dos artigos 428.º, 430.º e 431.º do Código de Processo Penal (e inaplicável o artigo 434.º do mesmo normativo).

Por outro lado, na teleologia da mencionada compreensão do direito ao recurso, afigura-se excessivamente restritiva e não justificada a limitação do respetivo âmbito de aplicação e proteção aos casos em que esteja em causa a reversão de uma prévia absolvição com condenação numa pena privativa da liberdade (cf. os n.os 19 e 22; o direito à liberdade física, a possibilidade de movimentação sem constrangimentos - um aspeto parcelar e específico das diversas dimensões em que se manifesta a liberdade humana; o direito à liberdade física, entendida

«

como liberdade de movimentos corpóreos, de “ir e vir”, a liberdade ambulatória ou de locomoção

»

- v. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2010, anot. II ao art. 27.º, p. 638). Tratando-se, na perspetiva da maioria, do mais essencial direito de defesa dos arguidos, não se vislumbra razão para que a reversão de uma absolvição seguida de condenação que afete outros direitos fundamentais do arguido que não a liberdade física (propriedade, honra, bom nome, liberdade de profissão, liberdade incondicionada, etc.) não deva igualmente ser sempre recorrível.

Em suma, e aderindo, no essencial, à declaração de voto da Conselheira Maria Lúcia Amaral feita no Acórdão 412/2015, ora recorrido, entendo, pelas razões anteriormente expostas, que a fundamentação da decisão que fez vencimento não contém a

«

sólida demonstração

» exigida para invalidar
«

a conexão, sempre antes feita pelo Tribunal, entre o sentido a atribuir ao direito ao recurso em processo penal e a existência de um duplo grau de jurisdição

»

. - Pedro Machete.

Declaração de voto Fiquei vencida. Mantenho, no essencial, a posição assumida no Acórdão 163/2015, da 3.ª Secção, de que fui relatora, que confirmou a decisão sumária que não julgou inconstitucional a interpretação da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, no sentido da irrecorribilidade, para o Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão proferido em recurso, pelo Tribunal da Relação, que aplique pena de prisão não superior a cinco anos, ainda que a decisão da 1.ª instância seja absolutória, havendo remetido para jurisprudência anterior deste Tribunal, designadamente, para o Acórdão 49/2003 e para o Acórdão 682/2006, e respetiva fundamentação (Veja-se, igualmente, além destes acórdãos, a declaração de voto ao Acórdão recorrido da 1.ª Secção, da Senhora Conselheira Maria Lúcia Amaral e as razões aí expendidas).

Considero, aqui, como então, que o entendimento do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º da CRP (entendido como existência de um duplo grau de jurisdição, indissociável da garantia da existência de uma hierarquia dos tribunais, prevista no artigo 210.º da CRP; implicando o reexame da causa por um órgão jurisdicional superior) não obriga o legislador a consagrar um novo (aqui triplo) grau de jurisdição, mesmo nas circunstâncias delimitadas pela norma em apreciação. E isso mesmo resultava da jurisprudência citada:

cumprindo-se o duplo grau de jurisdição, estaria na disponibilidade do legislador limitar um triplo grau, sem que isso violasse o direito ao recurso.

A solução adotada pela posição vencedora, consagrando um triplo grau, apesar da sua bondade, seria, a meu ver, apenas uma das que caberiam na liberdade de conformação do legislador, não sendo indispensável para que se considerasse respeitado o direito ao recurso constitucionalmente protegido. A solução legislativa de irrecorribilidade até agora vigente, que no presente Acórdão se julga inconstitucional, também se encontrava, ainda, em minha opinião, dentro das soluções de política legislativa respeitadoras do direito ao recurso tal como este se encontra consagrado na Constituição, e era acolhido pela jurisprudência constitucional em matéria penal.

O que separa a conceção da (nova) maioria do entendimento anteriormente adotado pelo Tribunal Constitucional, conduzindo à situação de inconstitucionalidade da norma a que agora se chega, é a leitura inovadora que aquela vem fazer do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, rompendo com a que antes dela realizara o Tribunal Constitucional, por dissociar o direito ao recurso aí consagrado, da ideia de duplo grau de jurisdição e da hierarquia de tribunais que lhe é inerente, antes o associando, quando é posta em causa a liberdade, nas situações delimitadas pela norma, à necessidade do direito ao seu próprio recurso, à reapreciação dos vários aspetos que pessoalmente lhe respeitem (e não apenas a uma segunda apreciação da causa noutro grau de jurisdição, já que, no caso, a reapreciação por um tribunal superior - aqui, a Relação - teria ocorrido).

Note-se, ainda, que, no caso em apreciação, em nosso entender, a solução adotada pelo Acórdão procura resolver, através da extensão do conteúdo do direito constitucional ao recurso, outras falhas que identifica no sistema de garantias de defesa do arguido, mas que não estão diretamente e exclusivamente relacionadas com a recorribilidade da decisão, antes resultando de outros lugares normativos do sistema (como evidenciam, por exemplo, as chamadas ao texto das alterações legislativas operadas em 2007 ao CPP, no ponto 12, ou da jurisprudência do TEDH, no ponto 17, que, precisamente, trata da questão das garantias de defesa do indivíduo a montante, em momento prévio, não a propósito da recorribilidade das decisões e da eventual terceira instância de recurso, mas ponderando as regras processuais do próprio recurso, assim como a fundamentação do Acórdão 412/2015, aqui recorrido). Mesmo para os que possam concordar com a identificação de eventuais deficiências num sistema de recursos penais, essas não estão em causa na norma em apreciação, apenas relativa à recorribilidade, podendo, quando muito, resultar de outras normas, não impugnadas nesta sede, e que a natureza do processo constitucional não permite aqui sindicar, a que se tornaria, eventualmente, necessário associar outros parâmetros de constitucionalidade, que a única norma em apreciação não convoca, como, por exemplo, o do processo equitativo (artigo 20.º da CRP). Pelo que, a meu ver, não poderia ser este o lugar próprio para resolver outras questões que o caso, e, sobretudo no que ao Tribunal Constitucional importa, a norma em apreciação, não convocam. A reconfiguração do constitucionalmente disposto no 32.º, a que procede a decisão agora aprovada, abandonando, nas situações delimitadas pela norma, a coincidência entre direito ao recurso e a suficiência da existência de uma nova instância de reapreciação por um tribunal superior, deriva, afinal, de necessidades com origem no plano infraconstitucional. E, a meu ver, isso não deveria fundamentar uma tal reconfiguração ao entendimento constitucional do direito ao recurso em processo penal, que não deixará de ter profundos efeitos sobre o sistema de recursos atualmente firmado. - Catarina Sarmento e Castro.

Declaração de voto Votei vencida porque, tendo assinado vários acórdãos deste Tribunal que consagravam a tese contrária à ora sustentada, designadamente o Acórdão 324/2013, de 4 de junho de 2013, nenhum dos argumentos adiantados no presente aresto me pareceu suficientemente forte para alterar a minha posição. Revejome, antes, no essencial, da tese consagrada no Acórdão-fundamento da 3.ª Secção - Acórdão 163/2015, de 4 de março de 2015 - bem como na Declaração de voto de vencido, aposta ao Acórdão 412/2015, de 29 de setembro de 2015, da 1.ª Secção, pelo que continuo a sustentar a não inconstitucionalidade da norma em apreço. - Ana Guerra Martins.

Declaração de voto Vencida, nos termos da declaração de voto aposta ao Acórdão 412/2015.

(A nova fundamentação que agora se aduz, e da qual estão ausentes todas as referências ao direito infraconstitucional que determinaAUTORIDADE NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2751218.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1978-06-12 - Lei 29/78 - Assembleia da República

    Aprova, para ratificação, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

  • Tem documento Em vigor 1978-10-13 - Lei 65/78 - Assembleia da República

    Aprova, para ratificação, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, também designada Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, concluída em Roma, em 4 de Novembro de 1950, cujo texto em francês e respectiva tradução portuguesa acompanham o presente diploma. São, igualmente, aprovados para ratificação: - o Protocolo nº1 Adicional à Convenção, concluído em Paris, em 20 de Março de 1952; - o Protocolo nº2, que confere ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem competência (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 2013-02-21 - Lei 20/2013 - Assembleia da República

    Altera (20ª alteração) ao Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de fevereiro.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2018-12-11 - Acórdão do Tribunal Constitucional 595/2018 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro

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