Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2012
Processo 667/08.1GAPTL.G1-A.S1
Recurso n.º 38 553/11
Fixação de jurisprudência
Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:O Ministério Público, representado pela Exma. Procuradora-Geral-Adjunta junto do Tribunal da Relação de Guimarães, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido naquela Relação em 3 de Maio de 2011, no âmbito do processo 667/08.1GAPTL.G1, que decidiu ter o Ministério Público de apresentar, quando utilize o prazo a que se faz referência no n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, declaração onde manifeste essa intenção, não podendo ser convidado a apresentá-la.
Em sentido oposto indicou o acórdão da Relação de Évora prolatado em 16 de Outubro de 2007, que decidiu que, em processo penal, o Ministério Público pode praticar acto processual nos três dias úteis seguintes ao termo do prazo, ao abrigo do disposto no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, sem pagar multa ou emitir declaração no sentido de pretender praticar o acto naquele prazo.
Em conferência concluiu-se pela admissibilidade do recurso, face à oposição de soluções relativamente à mesma questão de direito no domínio da mesma legislação, tendo-se ordenado o seu prosseguimento.
A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta nas alegações que apresentou formulou as seguintes conclusões (1):
1 - O Ministério Público, paulatinamente libertado e autonomizado face ao poder executivo, foi evoluindo para órgão autónomo de administração da justiça, unicamente subordinado aos fins da descoberta da verdade material e da realização da justiça, «daqui decorrendo a exigência de que, em todas as suas intervenções no processo penal, obedeça a critérios de estrita objectividade jurídica», passando mais tarde a gozar da exigência constitucional de autonomia, caracterizada «pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade, e pela exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às directivas, ordens e instruções previstas na lei».
2 - A atribuição constitucional de funções ao Ministério Público revela não só que na orgânica constitucional do Estado é ao Ministério Público que compete o seu exercício, mas também «que esse exercício há-de processar-se de acordo com as notas que constitucionalmente devem presidir à actuação do Ministério Público, a saber, da legalidade e da estrita objectividade (a incluir a imparcialidade)».
3 - O exercício da acção penal, em harmonia com as condições previstas no Estatuto do Ministério Público, é garantia de uma intervenção unicamente movida por critérios de legalidade, com total autonomia institucional, desligada dos específicos interesses, seja do arguido, seja da vítima, e despojada de interesses próprios, constituindo assim «pilar» das garantias fundamentais do nosso sistema processual penal.
4 - Os princípios constitucionais da autonomia, da independência, da legalidade e da estrutura acusatória do processo constituem alicerce do estatuto de intervenção do Ministério Público, perspectivado no Código de Processo Penal de 1987 como um sujeito do processo, com a função de «colaborar com o Tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções a critérios de estrita objectividade», incumbindo-lhe assim, e em especial, nomeadamente, interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa, partilhando pois, com o Tribunal, da incondicional intenção de verdade e de justiça e obedecendo a critérios de estrita legalidade e de objectividade.
5 - A Constituição acolheu o paradigma de Ministério Público como um órgão de justiça, independente e autónomo, seja em relação ao poder executivo, seja relativamente ao poder judicial, erguido assim à categoria de magistratura.
6 - O Ministério Público não é um órgão jurisdicional, mas «são judiciais as suas atribuições, isto é, realizam-se segundo princípios, fins, objecto, organização e estatuto próprios do poder judicial».
7 - Considerando a natureza, funções e estatuto, a lei estabeleceu um tratamento diferenciado do Ministério Público, face a outros sujeitos do processo, em diversos aspectos incluindo o que respeita ao pagamento de multas processuais, estatuindo o artigo 522.º do Código de Processo Penal que o Ministério Público está isento de custas e multas.
8 - No sentido da prossecução da boa administração da justiça - que exige sempre a conciliação de dois interesses: o da maior participação possível dos diversos sujeitos processuais na conformação da decisão e o da prolação desta em tempo útil - a lei fixa prazos peremptórios para a prática de actos, cujo decurso implica a extinção do direito à sua prática, salvaguardando, porém, a possibilidade de o acto ser ainda praticado fora do respectivo prazo em casos de justo impedimento, cujos fundamentos expressamente indica.
9 - Em virtude da possibilidade de ocorrência de circunstâncias que, embora não integrando justo impedimento, justificam também, pelos referidos interesses em causa, a admissibilidade do acto, desde que praticado agora em curto prazo, a lei estabelece ainda a possibilidade de o acto poder ser validamente praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo.
10 - Considerando, porém, os interesses da celeridade e da disciplina processual, impõe a lei que a validade do acto, praticado no referido prazo de três dias, fique dependente do pagamento imediato de uma multa, cujo montante é ainda agravado consoante o acto seja praticado no 2.º ou no 3.º dia, embora o Juiz possa determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado.
11 - É o que expressamente preceitua o artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 34/2008, de 26 de Fevereiro. O mesmo artigo impõe, nos n.os 6 e 7, a obrigação de a secretaria notificar o interessado para pagar multa, sempre que o acto tenha sido praticado em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida.
12 - Tendo em conta as funções do Ministério Público no processo penal, com o inerente dever de defesa da legalidade e procura objectiva e imparcial de concorrer para a realização da justiça, esta faculdade da prática do acto nos três dias subsequentes ao termo de prazo peremptório não poderia deixar de abranger os actos praticados pelo Ministério Público, uma vez que, também relativamente a ele, podem ocorrer circunstâncias que imponham justificadamente o seu uso, no interesse da justiça, independentemente da verificação de justo impedimento.
13 - Contudo, por força da sua natureza de órgão da administração da justiça penal, a lei, compreensivelmente, isenta-o genericamente de quaisquer custas ou multas. É o que resulta expressamente da letra da lei - artigos 107.º, n.º 5, e 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 145.º, n.os 5 a 7, do Código de Processo Civil.
14 - Letra da lei que não comporta outro sentido, nomeadamente o da exigência de acrescer, para o Ministério Público, o dever de, sob pena de preclusão do acto, formular também uma qualquer declaração dentro do aludido prazo de três dias.
15 - Aliás, também não poderia considerar-se que essa exigência resultava do espírito da lei, na consideração do sistema jurídico global em que avulta a natureza do Ministério Público como órgão de justiça.
16 - Tão-pouco ocorre qualquer lacuna, pois que a imposição de tal obrigação não corresponde a qualquer exigência de compleição do sistema no sentido de preenchimento de uma falta de previsão. Efectivamente, 17 - Não resulta do sistema, tal como o descrevemos e interpretámos, qualquer posição de desigualdade de armas ou de falta de equidade, quando o Ministério Público é isento de custas e multas, atento o que acima se referiu sobre o seu estatuto, a qualidade de órgão de justiça e a natureza de interesse público dos correspondentes deveres e direitos. Tudo circunstâncias que bem justificam aquela isenção, não podendo esta de forma alguma considerar-se «infundamentada, desrazoável ou arbitrária» ou «substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal», como seria necessário para que pudessem considerar-se ofendidos os referidos princípios de igualdade de armas e da exigência de um processo equitativo.
18 - A utilização pelo Ministério Público da faculdade prevista no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por força da norma do artigo 107.º, n.º 5, tão-pouco poderá justificar o afastamento dessa regra de isenção.
19 - Não pode ser fundamento para a imposição de uma obrigação de declaração de utilização da faculdade, como contraponto «simbólico» da multa aplicada a outros intervenientes. Seria esquecer que o Ministério Público não é «parte», antes órgão de justiça, constituindo uma Magistratura autónoma, com um exigente estatuto correspondente, imbuído do interesse público dominante que fundamenta a sua intervenção.
20 - Embora seja seu dever utilizar aquela faculdade apenas nos casos em que os interesses públicos da justiça o imponham, nunca seria aquela declaração que legitimaria a sua intervenção e menos ainda justificaria que a sua inexistência implicasse, sem mais, a preclusão do direito de recorrer. Não sendo despiciendo recordar que entre os seus deveres se integra o de recorrer no interesse da defesa, se as exigências de justiça o aconselharem.
21 - Nem, salvo o devido respeito, seria justificado concluir pela exigência da referida declaração a partir da interpretação da norma do artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, por força do artigo 107.º, n.º 5, em harmonia com a Constituição, pois que - considerando a natureza, específico estatuto e funções do Ministério Público e os seus correspondentes deveres, no âmbito do processo penal, de objectiva actuação em defesa da legalidade e da justiça, inclusivamente no interesse da defesa - da não aplicação de multa não resulta qualquer desigualdade de armas ou de quebra de equidade no processo, a impor a dita equivalente simbólica da referida declaração relativa à prática do acto.
22 - Tal constituiria uma revisão do conteúdo da lei, sem apoio na sua letra e contexto decorrente do sistema e seus fundamentos acima mencionados, ultrapassando os limites da interpretação conforme à Constituição, a qual tem «os seus limites na 'letra e na clara vontade do legislador', devendo 'respeitar a economia da lei' e não podendo traduzir-se na 'reconstrução' que não esteja devidamente explícita no texto».
23 - Uma «interpretação conforme à Constituição deve respeitar o texto da norma interpretada e os fins prosseguidos através do acto normativo sujeito a controlo», ou seja, não pode deixar de estar sujeita «a um requisito de razoabilidade: implica um mínimo de base na letra da lei; e tem de se deter aí onde o preceito legal, interpretado conforme com a Constituição, fique privado de função útil ou onde, segundo entendimento comum, seja incontestável que o legislador ordinário acolheu critérios e soluções opostos aos critérios e soluções do legislador constituinte».
24 - O argumento de que essa declaração seria um «modo suficiente e adequado de controlo institucional do cumprimento dos deveres relativos a prazos processuais pelo Ministério Público» não considera os seguintes aspectos essenciais:
Ao fazê-lo o Ministério Público está no uso de um direito, tal como os outros intervenientes processuais;
O Ministério Público constitui uma Magistratura autónoma, hierarquizada, com estatuto e organização própria, à qual compete o referido controlo institucional pela forma achada mais conveniente, quando não resulte de lei expressa a forma como deve ser exercida;
Nunca a lei processual penal, nas suas sucessivas revisões, algumas ocorridas já após o questionamento jurisprudencial dessa obrigação de declaração, incluiu essa exigência, que aliás os trabalhos preparatórios nunca abordaram.
25 - O legislador ao elaborar uma lei fá-lo no pressuposto de que o sistema e as instituições funcionam com normalidade e de que os sujeitos processuais, com especiais obrigações de observância do respeito pela legalidade e de actuação objectiva e imparcial, como sucede com o Tribunal e o Ministério Público, se regem pela boa-fé e com respeito pela lei e pelo direito.
Pressuposto que não pode ser esquecido na interpretação da lei.
26 - Dada a natureza de mera declaração, seria manifestamente desproporcionada que a sua ausência pudesse implicar, sem mais, a preclusão da prática do acto.
27 - O interesse na realização de uma justiça que seja substancial e não meramente formal impõe, como resulta do espírito da lei, que a preclusão do acto não fique a dever-se meramente a faltas ainda supríveis. Por isso, a lei prevê que, não se mostrando paga a multa, o interveniente processual seja alertado para que o pode fazer ainda pagando multa agravada.
28 - A entender-se como indispensável a apresentação da referida declaração, sempre se imporia a notificação do Ministério Público, em ordem ao suprimento da falta de declaração, o que originaria um injustificável prejuízo da celeridade processual, sempre que a falta de declaração fosse verificada no Tribunal de recurso.
29 - O Ministério Público pode interpor recurso dentro dos primeiros três dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ao abrigo do disposto no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, sem que a validade desse acto fique dependente de declaração autónoma, no referido prazo, no sentido de pretender praticar o acto naquele período de tempo.
É este o sentido em que deve fixar-se a jurisprudência.
O recorrido Joaquim Micael Cerqueira Lopes, por sua vez, extraiu das alegações apresentadas as conclusões seguintes:
1 - Na esteira do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 3 de Maio de 2011 no processo acima referido, a jurisprudência deve fixar-se no seguinte sentido:
2 - O Ministério Público pode interpor recurso dentro dos três dias subsequentes ao termo do prazo, conforme estabelece o n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 104.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
3 - A validade deste acto fica dependente da manifestação, pelo Ministério Público, da intenção de utilizar o benefício do prazo previsto no n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil.
4 - Tal declaração pode ser feita em requerimento autónomo ou no próprio requerimento de interposição de recurso.
Como se reconheceu no acórdão interlocutório, verifica-se oposição de julgados.
A questão submetida à apreciação do pleno das secções criminais deste Supremo Tribunal, tal qual vem colocada no recurso interposto, consiste em saber se o Ministério Público, em processo penal, para praticar acto processual num dos três dias úteis seguintes ao termo do respectivo prazo, ao abrigo do disposto no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, tem ou não de emitir declaração a manifestar a intenção de praticar o acto naquele prazo.
Em defesa da posição assumida no acórdão recorrido alega-se que, impondo o n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, para validação de acto processual praticado nos três dias seguintes ao termo do respectivo prazo, o pagamento de uma multa, estando o Ministério Público isento desse pagamento, deve, em substituição, emitir uma declaração no sentido de que pretende praticar o acto processual, para que não ocorra uma distinção arbitrária e sem fundamento material entre as partes, violadora do princípio da proibição de discriminação das partes no processo, sendo que não pode haver lugar a convite à apresentação da declaração, visto que tal se traduziria num tratamento privilegiado, permitindo-se a interposição tardia de um recurso, o que consubstanciaria uma desigualdade de armas (2).
No sentido de que esta orientação jurisprudencial, mais precisamente, na parte em que exige do Ministério Público uma declaração onde manifeste a intenção de praticar o acto nos três dias posteriores ao termo do prazo, é a que se harmoniza com o princípio constitucional da igualdade, suposta uma actuação processual do Ministério Público exclusivamente como parte, ou seja, não funcional, decidiu o Tribunal Constitucional através do Acórdão 355/01, de 11 de Julho de 2001, proferido no processo 774/00 (3)(em que o Ministério Público instaurou acção com processo sumário pedindo a anulação de contrato de compra e venda de um prédio rústico), decisão que se fundamentou na argumentação seguinte:
«5 - O Tribunal Constitucional já considerou em anterior aresto não existir uma analogia absoluta entre o Ministério Público e outros sujeitos processuais no que se refere ao pagamento de multas processuais, na medida em que este tem, essencialmente, a função de garante da legalidade democrática.
Esse entendimento foi claramente expresso no Acórdão 71/2001...
As razões invocadas no aresto anterior para justificar um diferente tratamento do Estado Administração e do Ministério Público são, também, invocáveis para responder à questão mais directa de saber se a isenção de multa, sob análise, contraria alguma norma ou princípio constitucional. Com efeito, o desempenho processual do Ministério Público é expressão de uma função de representante da legalidade ou do cumprimento de estritos deveres funcionais, que integram o essencial do seu estatuto. Isso justifica, embora eventualmente não imponha, um certo tratamento diferenciado relativamente às partes processuais em geral, nomeadamente no que se refere à possibilidade de vir a dispor, independentemente de multa, de um alargamento do prazo processual.
6 - Considera-se, porém, ainda assim, que a justificação da isenção de multa não implicará um privilégio do Ministério Público relativamente ao não cumprimento dos prazos processuais, não o dispensando, por isso, de emitir uma manifestação de vontade no sentido de requerer a prática do acto nos três dias posteriores ao termo do prazo. Essa exigência equivalerá, num plano simbólico, ao pagamento de multa (cf. neste sentido, a declaração de voto aposta no Acórdão 59/91, de 7 de Março - Diário da República, 2.ª série, de 1 de Junho de 1991) e será um modo suficiente e adequado de controlo institucional do cumprimento dos deveres relativos a prazos processuais pelo Ministério Público. Corresponderá a uma alternativa a um pagamento de multas, o qual é exigido, fundamentalmente, a partir da perspectiva de interesse no processo, características de uma actuação processual, não funcional, mas exclusivamente como parte.» (4) Em defesa da posição assumida no acórdão fundamento invoca-se que a validade de acto processual praticado nos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do respectivo prazo, independentemente de justo impedimento, apenas depende do pagamento de uma multa, pelo que, em processo penal, estando o Ministério Público isento de multas, nada lhe é exigível, designadamente a emissão de manifestação de vontade de praticar o acto, sem que com isso se mostre violado o princípio da igualdade, visto que a não sujeição do Ministério Público ao pagamento da multa, única diferença de tratamento que se verifica, é materialmente fundada, porquanto o Ministério Público é o representante do Estado encarregado de, nos termos da lei, defender a legalidade democrática, exercer a acção penal e promover a realização do interesse social (5).
No sentido de que esta orientação jurisprudencial é a que resulta da correcta interpretação e aplicação do n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, conformando-se e harmonizando-se com o princípio da igualdade (igualdade ou identidade de armas), decidiu o Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.os 160/90, 59/91, 267/91, 98/92 e 33/12, de 22 de Maio de 1990, de 7 de Março de 1991, de 18 de Junho de 1991, de 2 de Junho de 1992 e de 24 de Janeiro de 2012, proferidos nos processos n.os 323/88, 288/90, 267/91, 68/92 e 633/11, dos quais destacamos o Acórdão 59/91, no qual se consignou:
«6 - De acordo com as normas em causa, quem não tiver respeitado um prazo peremptório dentro do qual certo acto processual tinha de ser realizado, tem de fazer duas coisas: praticar o acto dentro dos três dias úteis subsequentes e pagar a multa devida.
O Ministério Público, estando isento de custas e de multa, tem apenas que praticar o acto em falta dentro dos três dias úteis.
A lei nada mais lhe exige e não parece legítimo, face aos preceitos em causa, que se imponha uma qualquer outra actividade que não resulta da lei nem de qualquer outro dever funcional.
A manifestação de vontade que é demonstrada pela apresentação do requerimento do recurso (no caso em apreço) ou pela prática do acto fora de prazo legal mas dentro do prazo adicional do n.º 5 do artigo 145.º do CPC é tudo quanto é necessário para beneficiar da referida faculdade.
Não faria sentido a exigência de qualquer outro requerimento: efectivamente, no caso do Ministério Público, o acto praticado fora do prazo legal, mas dentro do adicional de três dias úteis, não estando dependente de multa, não pode ser recusado. Ora, qualquer requerimento, após ser apresentado, contém em si a possibilidade de vir a ser indeferido. No caso, porém, não podendo recusar-se a prática do acto, outro requerimento a pedir a aceitação do acto praticado seria um acto praticamente inútil.
7 - Inexiste, assim, qualquer violação do princípio da igualdade ou da identidade de armas, porquanto a única diferença entre a posição do Ministério Público e a das partes ou intervenientes processuais, quanto às obrigações derivadas das normas em causa reside no facto de o Ministério Público não estar sujeito ao pagamento da multa para se utilizar da tal benefício. Quanto às restantes obrigações existe total paridade, que viria a desequilibrar-se caso se viesse a admitir qualquer imposição ao Ministério Público de uma actuação não prevista na lei.
Com efeito, a exigência de uma tal manifestação de vontade, com os efeitos que da sua omissão decorreriam - a perda do direito de praticar o acto - tornavam-na perfeitamente equiparável quanto à omissão do pagamento da multa para os outros intervenientes processuais, o que seria inadmissível porquanto se concluiu já que o Ministério Público está isento do pagamento de tal multa, não devendo, por isso, sofrer os mesmos efeitos do que aqueles que estão obrigados ao seu pagamento.» O direito à prática de acto processual fora de prazo, independentemente de justo impedimento, mediante o pagamento de multa, foi introduzido no nosso ordenamento jurídico em 1970, através de alteração ao artigo 145.º do Código de Processo Civil, sendo que até então a prática de acto fora de prazo só era admissível por recurso ao instituto do justo impedimento ou da restituição de prazo regulado no artigo 146.º (6).
Com o aditamento do n.º 5 ao artigo 145.º do Código de Processo Civil, através do Decreto-Lei 323/70, de 11 de Julho, o legislador tornou possível a prática de actos no primeiro dia útil seguinte ao termo do respectivo prazo, sem necessidade da prova - que nem sempre é fácil - do justo impedimento, como se refere no preâmbulo daquele diploma legal (7).
Posteriormente, pelo Decreto-Lei 242/85, de 9 de Julho, a possibilidade de o acto processual ser praticado, mediante o pagamento de multa, fora do respectivo prazo foi alargada para três dias, estabelecendo-se, simultaneamente, para os casos de falta de pagamento imediato da multa devida, a notificação do interessado para a pagar em dobro, sob pena de se considerar perdido o direito de praticar o acto (8).
O Decreto-Lei 92/88, de 17 de Março, manteve no essencial o regime até então aplicável.
Com o Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, foi revisto o direito de praticar o acto processual fora de prazo, como se deixou consignado no respectivo preâmbulo, no sentido de assegurar plenamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade substancial das partes, facultando ao juiz a concreta adequação da sanção patrimonial correspondente ao grau de negligência da parte ou à eventual situação de carência económica do beneficiário do exercício de tal direito (9).
O Decreto-Lei 180/96, de 25 de Setembro, alterou a redacção do n.º 7 do artigo 145.º, eliminando do respectivo texto o termo excepcionalmente, sendo que o Decreto-Lei 324/2003, de 27 de Dezembro, manteve no essencial o texto dos n.os 5, 6 e 7 do artigo 145.º A actual redacção do artigo 145.º, introduzida pelo Decreto-Lei 34/2008, de 26 de Fevereiro (artigo 2.º), na parte que ora nos interessa, é a seguinte:
«5 - Independentemente de justo impedimento, pode o acto ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, fixada nos seguintes termos:
a) Se o acto for praticado no primeiro dia, a multa é fixada em 10% da taxa de justiça correspondente ao processo ou acto, com o limite máximo de meia UC;
b) Se o acto for praticado no segundo dia, a multa é fixada em 25% da taxa de justiça correspondente ao processo ou acto, com o limite máximo de três UC;
c) Se o acto for praticado no terceiro dia, a multa é fixada em 40% da taxa de justiça correspondente ao processo ou acto, com o limite máximo de sete UC.
6 - Praticado o acto em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independentemente de despacho, notifica o interessado para pagar a multa, acrescida de uma penalização de 25% do valor da multa, desde que se trate de acto praticado por mandatário.
7 - Se o acto for praticado directamente pela parte, em acção que não importe a constituição de mandatário, o pagamento da multa só é devido após notificação efectuada pela secretaria, na qual se prevê um prazo de 10 dias para o referido pagamento.
8 - O juiz pode excepcionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas acções que não importem a constituição de mandatário e o acto tenha sido praticado directamente pela parte.» Como dizia o Professor Antunes Varela (10), a inovação introduzida pelo Decreto-Lei 323/70 teve por base «um propósito louvável e o reconhecimento de uma velha pecha da nossa maneira colectiva de agir, a que não se mostram imunes os procuradores mais qualificados de negócios alheios, que são os mandatários judiciais. O propósito louvável, que remonta já aos primórdios da chamada reforma do processo, com o primado da justiça material sobre a pura legalidade formal, é o de evitar que a omissão duma simples formalidade processual possa acarretar a perda definitiva dum direito material». Inovação que, como aquele saudoso civilista também referiu (11): «só pode basear-se em razões de possível descuido, esquecimento ou negligência do interessado ou em dificuldades de prova do justo impedimento» (12).
Quanto à multa, imposta como condição de validade do acto praticado após o decurso do prazo legal, ela constitui uma contrapartida exigida pelo legislador à parte que não cumpriu um prazo processual extintivo, para poder beneficiar da «regalia» de o poder praticar fora do respectivo prazo (13), multa que assume o carácter de sanção para comportamento processual menos diligente ou negligente, o que claramente resulta da preocupação do legislador em estabelecer importâncias gradativamente mais pesadas, conforme o acto for praticado no primeiro, no segundo ou no terceiro dia posterior ao termo do prazo, fazendo corresponder a graus de negligência sucessivamente mais intensos multas mais pesadas (14).
Certo é que em processo penal (15), até à revisão operada pelo Decreto-Lei 317/95, de 28 de Novembro, que aditou o n.º 5 ao artigo 107.º do Código de Processo Penal (16), entendeu-se não ser aplicável o direito a praticar acto processual fora de prazo previsto no n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil (17). Com efeito, tendo sido proposto na Comissão Revisora da primitiva versão do Código, concretamente por José António Barreiros, se acrescentasse um n.º 5 ao artigo 107.º, consignando a possibilidade da prática de acto processual para além do prazo, nos termos dos n.os 5 e 6 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, foi a proposta rejeitada, conforme consta da Acta 6, de 9 de Abril de 1991, atendendo ao carácter célere que se quis imprimir às normas do processo penal e à injunção contida no n.º 2 do preceito, o que afastou o recurso à aplicação analógica da norma em causa.
Desde a revisão operada pelo Decreto-Lei 317/95 que se mantém a redacção dada ao n.º 5 do artigo 107.º do Código de Processo Penal, sendo que pelo artigo 7.º do Decreto-Lei 34/2008, de 26 de Fevereiro, foi aditado o artigo 107.º-A, sob a epígrafe «Sanção pela prática extemporânea de actos processuais» (18).
Expostos os dispositivos legais que regulam o direito à prática de acto processual fora de prazo, independentemente de justo impedimento, cumpre analisá-los e interpretá-los.
Antes, porém, uma última referência à multa de cujo pagamento a lei faz depender a validade do acto processual praticado fora de prazo.
Conquanto nos acórdãos recorrido e fundamento se considere, sem qualquer dúvida, que o Ministério Público está isento do pagamento daquela multa, a verdade é que há quem assim o não entenda, razão pela qual cumpre tecer algumas considerações sobre esta problemática.
A lei adjectiva civil não dispõe, nem nunca dispôs, de qualquer norma a estabelecer a isenção ou a dispensa de multas ao Ministério Público. Apesar disso, sempre se entendeu, quase unanimemente, que o Ministério Público, atento o seu especial estatuto, delas está isento, salvo quando a lei o declarar passível delas.
Entendimento coincidente sempre foi assumido em processo penal, face às funções próprias nele exercidas pelo Ministério Público, entendimento que em 2007 passou a constar do Código de Processo Penal, com a publicação e entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29 de Agosto, que alterou a redacção dada ao n.º 1 do artigo 522.º, tendo aditado àquele número que textuava «o Ministério Público está isento de custas» a expressão e multas.
Sucede que o Decreto-Lei 34/2008, de 26 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais e procedeu à alteração de vários outros diplomas, estabeleceu no seu artigo 8.º fosse republicado no seu anexo ii o livro xi do Código de Processo Penal, sendo que na republicação operada foi eliminada do n.º 1 do artigo 522.º a expressão e multas. Há que ter em atenção, no entanto, que naquele diploma legal, mais precisamente no artigo 6.º, o legislador ao enumerar os preceitos do Código de Processo Penal objecto de alteração ali não incluiu o n.º 1 do artigo 522.º (19), tal como o não incluiu no artigo 25.º, preceito no qual se enumeraram todos os diplomas legais revogados e respectivas normas. Ademais, da alínea c) do artigo 25.º do Decreto-Lei 34/2008, consta como revogado o n.º 2 do artigo 522.º do Código de Processo Penal, omitindo-se qualquer referência ao n.º 1.
Deste modo, há que considerar manter-se em vigor a redacção dada pelo Decreto-Lei 48/2007, de 25 de Agosto, ao n.º 1 do artigo 522.º, a qual declara o Ministério Público isento de custas e multas (20).
Analisando o quadro legal aplicável, em processo penal, ao direito à prática de acto processual fora de prazo, independentemente de justo impedimento, a primeira observação a fazer é a de que, ao longo da sua existência de décadas, o legislador (civil e penal) nunca nele incluiu qualquer disposição de discriminação relativamente a qualquer das partes ou sujeitos intervenientes no processo, ou seja, nunca excluiu do seu âmbito de aplicação qualquer das partes ou sujeitos processuais, razão pela qual sempre se entendeu abarcar na sua previsão todos eles, incluindo, obviamente, o Ministério Público (21).
A segunda observação a fazer é a de que o ónus imposto pelo exercício do direito, ou seja, o ónus de que depende a validade do acto praticado fora de prazo não é igual em todos os casos nem para todos os intervenientes processuais, sendo variável, quer em função do modo como o direito é exercido, quer em função da parte que o exerce e da adequação do ónus ao acto praticado, mais concretamente da capacidade económica da parte e do montante do ónus, podendo até ser objecto de dispensa ou de exclusão. Com efeito, não só é distinto quantitativamente aquele ónus consoante o acto é praticado no primeiro, segundo ou terceiro dias após o termo do respectivo prazo [artigo 107.º-A do Código de Processo Penal - em processo civil, alíneas a) a c) do n.º 5 do artigo 145.º], como é susceptível de redução ou mesmo de dispensa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revelar manifestamente desproporcionado (n.º 8 do artigo 145.º do Código de Processo Civil ex vi artigos 107.º, n.º 5, e 107.º-A do Código de Processo Penal) (22), bem como de exclusão no caso do Ministério Público, por o Ministério Público estar isento de multas (n.º 1 do artigo 522.º do Código de Processo Penal).
A terceira observação a fazer é a de que o legislador nunca estabeleceu qualquer outro ónus ou procedimento para o exercício do direito em causa, para além do pagamento da multa, concretamente nunca previu ou impôs qualquer (diferente) procedimento para o exercício do direito pelo Ministério Público, conquanto tenha introduzido várias alterações ao regime legal aplicável àquele direito, alterações que atrás referenciámos, cinco no Código de Processo Civil e duas no Código de Processo Penal, alterações que tiveram lugar conhecendo o legislador as diferentes posições jurisprudenciais sobre a utilização daquele direito pelo Ministério Público, o que não pode deixar de ser entendido no sentido de que a sua vontade é a de considerar não exigível ao Ministério Público qualquer ónus ou procedimento, posto que se assim não fosse teria incluído na lei a exigência de um qualquer ónus ou procedimento tido por necessário e conveniente, designadamente o procedimento imposto pelo acórdão ora recorrido.
Ademais, a verdade é que o legislador quando em 1995 alterou o regime então vigente (DL 329-A/95) para, como consta do respectivo preâmbulo, assegurar plenamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade substancial das partes, limitou-se a prever a redução ou a dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado, o que reforça o entendimento exposto, tanto mais que a corrente jurisprudencial que entende o Ministério Público estar obrigado à emissão de declaração a manifestar a vontade de praticar o acto fora de prazo fundamenta a sua posição no princípio da proibição de discriminação das partes no processo, ou seja, no princípio da igualdade. Caso o legislador entendesse ter o Ministério Público tratamento privilegiado, violador do princípio da igualdade, obviamente que seria aqui a ocasião apropriada para resolver essa anomia, isto é, para impor ao Ministério Público procedimento adequado a compensar ou contrabalançar a isenção do pagamento da multa (23).
A verdade é que o não fez e a verdade é que aquela anomia não se verifica.
Vejamos.
A procura da verdade material e a realização da justiça, a declaração do direito (penal) do caso concreto, constituem o fim último do processo penal, asserção claramente assumida por Figueiredo Dias (24), com o que fica excluída qualquer concepção processual penal dominada por uma qualquer oposição de interesses, designadamente entre a vítima e o arguido.
Como diz aquele insigne penalista (25), colocando em confronto o processo civil e o processo penal, enquanto o processo civil tem como causa uma relação de direito privado e pertence aos sujeitos desta, quer no seu se quer no seu como, o processo penal deriva juridicamente de um crime, tende à aplicação de uma pena e pertence à sociedade. Isto é, enquanto em direito civil o objecto do processo está na quase total disponibilidade dos respectivos sujeitos, em direito penal o objecto do processo é praticamente indisponível pelos sujeitos processuais, pois que é função do processo penal dar realização a um interesse da comunidade e do próprio Estado.
Processo em que, por isso, não há partes e em que o Ministério Público exerce funções próprias, com plena autonomia na sua fase inicial (inquérito), constitucionalmente consagradas, através das quais se assume como órgão da administração da justiça e colaborador do tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, funções que exerce sob critérios de estrita legalidade e objectividade, que compartilha com o juiz - artigos 219.º, n.º 1, da Constituição Política e 53.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (26) - e que justificam lhe seja concedido um regime procedimental diferenciado relativamente aos demais sujeitos do processo, onde se inclui a já referida isenção de custas e multas.
Isenção que se mostra em consonância com os princípios constitucionais de processo penal, designadamente com o princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio e da identidade de armas, tanto mais que este princípio não deve nem pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular ou distintos os destinatários a que se dirigem.
Na sua dimensão material ou substancial, o princípio da igualdade, como vem defendendo o Tribunal Constitucional (27), vincula em primeira linha o legislador ordinário, no entanto não o impede de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, visto que este princípio, enquanto limitador da discricionariedade legislativa, apenas proíbe a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
O princípio da igualdade como proibição de arbítrio não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, ao invés, que se tratem por igual situações essencialmente desiguais e, obviamente, a discriminação, para além de que não constitui um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial, tratando-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui, assim, um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade, não também a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa, controle este vedado ao juiz.
A igualdade de armas não pode, por sua vez, como é unanimemente considerado pela jurisprudência constitucional (28), na esteira do entendimento de há muito defendido por Figueiredo Dias (29), sob pena de erro crasso, ser entendida como obrigando ao estabelecimento de uma igualdade matemática ou sequer lógica, devendo ser considerada, em processo penal, como instrumento de realização dos direitos estabelecidos a favor da acusação e da defesa, através da atribuição à acusação e à defesa de meios jurídicos igualmente eficazes para tornar efectivos aqueles direitos, razão pela qual uma concreta conformação processual só poderá ser recusada, como violadora do princípio da igualdade de armas, quando infundamentada, desrazoável, arbitrária ou substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que àquele está assinado ou dos referentes axiológicos que o comandam.
Em processo penal, mais do que em qualquer outro, a igualdade de armas, como elemento essencial do processo equitativo, tal qual este é configurado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º, n.º 1), constitui garantia de um processo justo, no entanto, como salienta Irineu Cabral Barreto (30), a igualdade de armas não é mais a igualdade perante a lei, mas a igualdade através da lei. Daí que, como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004 (processo 230/04), os elementos de integração da garantia do processo equitativo e a natureza equitativa do processo devem ser apreciados na consideração conjunta do processo, e não estratificadamente, acto a acto ou fase a fase.
Presente dever-se-á ter também que a igualdade de armas, como elemento intrínseco do processo equitativo, é uma exigência de natureza material, e não mera igualdade formal ou de forma. Caso assim não fosse ficariam feridos de morte princípios estruturantes do processo penal, tais como o da presunção de inocência, o da inviolabilidade do direito de defesa e do in dubio pro reo, bem como inúmeros direitos concedidos exclusivamente à defesa, entre eles o direito ao silêncio e à última palavra. Feridos de morte ficariam também inúmeros deveres impostos exclusivamente à acusação, dos quais se destaca o dever (estrito) de objectividade imposto ao Ministério Público (dever que implica, por vezes, actue no interesse da defesa), a menos que se impusesse ao arguido dever correspondente (31). Por isso, a igualdade de armas só pode e deve ser entendida quando contextualizada e analisada à luz do processo como um todo.
Ora, a verdade é que o estatuto constitucional do Ministério Público a que fizemos referência, com destaque para as funções que lhe são cometidas no processo penal e a posição que nele assume do início ao fim, a par da natureza e estrutura deste processo, que, segundo Figueiredo Dias (32), não é seguramente, sob qualquer perspectiva, um processo de partes, justificam o tratamento diferenciado que o legislador lhe confere no exercício do direito à prática de acto processual fora de prazo, independentemente de justo impedimento, sendo certo que as normas conjugadas dos artigos 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil e 107.º, n.º 5, e 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ao permitirem ao Ministério Público o exercício daquele direito sem exigência de pagamento de multa ou de qualquer outro acto procedimental, à luz das considerações expostas, não violam o princípio da igualdade em qualquer das suas vertentes. A pretensa desigualdade resultante da isenção de multa de que beneficia o Ministério Público no exercício do direito à prática de acto fora do respectivo prazo é meramente formal, visto que não atinge os direitos processuais dos demais sujeitos, nem afecta o seu exercício ou a sua realização, tanto mais que a lei prevê a possibilidade de redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado (n.º 8 do artigo 145.º do Código de Processo Civil), possibilidade que em processo penal, atentas as suas específicas finalidades, deve ser equacionada e admitida sem o rigor exigível em processo civil, particularmente no que concerne ao arguido, atenta a parte final do n.º 5 do artigo 107.º do Código de Processo Penal, que manda aplicar o n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações.
Aliás, a verdade é que a assunção de posição contrária, exigindo ao Ministério Público a apresentação de declaração a manifestar a intenção de praticar o acto fora de prazo, acto processual, como assumem os seus próprios defensores, meramente simbólico, traduz-se na imposição de um procedimento inútil, redundante, visto que coloca o Ministério Público a declarar que vai praticar o próprio acto que está a praticar, para além de que se trata de uma exigência ilegal (uma vez que não prevista na lei), constituindo uma revisão do conteúdo da lei, sem qualquer apoio na sua letra, violadora do princípio constitucional da separação de poderes.
Como afirma Gomes Canotilho (33), se os órgãos aplicadores do direito, sobretudo os tribunais, chegarem à conclusão, por via interpretativa, de que uma lei contraria a constituição, a sua atitude correcta só poderá ser a de desencadear os mecanismos constitucionais tendentes à apreciação da inconstitucionalidade. Daqui se conclui, como refere aquele insigne constitucionalista, que a interpretação conforme à constituição só permite a escolha entre dois ou mais sentidos possíveis da lei mas nunca uma revisão do seu conteúdo. A interpretação conforme à constituição tem, assim, os seus limites na «letra e na clara vontade do legislador», devendo «respeitar a economia da lei» e não podendo traduzir-se na «reconstrução» de uma norma que não esteja devidamente explícita no texto.
Uma lei pode ficar sem efeito, mas o concretizador da constituição continuará a ser o legislador ao qual sempre será possível elaborar leis em substituição das consideradas inconstitucionais. Pelo contrário, a alteração do conteúdo da lei através da interpretação pode levar a uma usurpação de funções, transformando os juízes em legisladores activos. Se a interpretação conforme à constituição quiser continuar a ser interpretação, ela não pode ir além dos sentidos possíveis, resultantes do texto e do fim da lei. Por outras palavras: a interpretação conforme a constituição deve respeitar o texto da norma interpretada e os fins prosseguidos através do acto normativo sujeito a controlo.
Em sentido coincidente pronunciam-se Rui Medeiros (34) e Vital Moreira (35), referindo este último que a jurisdição constitucional não está constitucionalmente habilitada para «usurpar o papel do legislador ordinário, expressão da maioria de governo, substituindo-se àquele nas escolhas constitucionalmente admissíveis [...]. A ideia fundamental é a de que ao juiz constitucional só compete averiguar se a lei é ou não contrária à Constituição, mas não lhe competindo substituir-se ao legislador na formulação das soluções conformes à Constituição. Aqui continuam a ter plena validade as limitações decorrentes do princípio da maioria e da separação de poderes. É à maioria democraticamente legitimada para governar que compete fazer as leis e não aos juízes, mesmo ao juiz constitucional. A este só compete verificar se aquele legislou contra a Constituição».
Termos em que se acorda, na procedência do recurso:
a) Fixar a jurisprudência seguinte:
«O Ministério Público, em processo penal, pode praticar acto processual nos três dias úteis seguintes ao termo do respectivo prazo, ao abrigo do disposto no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, sem pagar multa ou emitir declaração a manifestar a intenção de praticar o acto naquele prazo.»;
b) Ordenar a remessa do processo ao Tribunal da Relação de Guimarães, para que reveja a decisão recorrida, conformando-a com a jurisprudência ora fixada.
Sem tributação.
(1) O texto que a seguir se transcreve corresponde ipsis verbis ao das alegações apresentadas.
(2) No sentido do acórdão recorrido, mais concretamente no sentido de que ao Ministério Público se impõe a apresentação, quando utilize o prazo a que se faz referência no n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, de declaração onde manifeste essa intenção, decidiram os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 26 de Março de 1992, 2 de Outubro de 2003 e 19 de Maio de 2005, proferidos nos processos n.os 80987, 2849/03 e 1438/05, sendo que no Acórdão de 3 de Outubro de 2003 se invocou, ainda, que a emissão daquela declaração equivalerá, num plano simbólico, ao pagamento de multa e será um modo suficiente e adequado de controlo institucional do cumprimento dos deveres relativos a prazos processuais pelo MP.
Não se dá aqui conta das decisões das relações proferidas no mesmo sentido atenta a sua multiplicidade.
(3) É do seguinte teor o respectivo dispositivo:
«Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a dimensão normativa que resulta do artigo 145.º, n.os 5 e 6, do Código de Processo Civil, segundo a qual o Ministério Público está isento de multa aí prevista, devendo, contudo, e nos termos do artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o tribunal a quo fazer aplicação de tal preceito, no sentido de exigir que o Ministério Público, não pagando a multa, emita uma declaração no sentido de pretender praticar o acto nos três dias posteriores ao termo do prazo.» (4) Na pesquisa que efectuámos não detectámos qualquer outra decisão do Tribunal Constitucional a impor, como condição de constitucionalidade da norma do n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil quando aplicada ao Ministério Público, a emissão de declaração a manifestar a intenção de praticar o acto processual nos três dias posteriores ao termo do prazo.
Encontrámos, porém, duas decisões em que o thema decidendum incide sobre a forma e o modo de apresentação da referida declaração.
Em 30 de Outubro de 2007, através do Acórdão 538/07, proferido no processo 423/07, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da exigência de que a declaração a emitir pelo Ministério Público no sentido de pretender praticar acto processual num dos três dias seguintes ao termo do respectivo prazo seja previamente apresentada, ou seja, antes do termo do prazo para a prática do acto, tendo decidido: «Julgar inconstitucional, por ofensa aos artigos 2.º, 20.º, n.º 4, e 219.º, n.º 1, da Constituição da República, a norma do n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de exigir ao Ministério Público que emita uma declaração manifestando a intenção de interpor recurso nos três primeiros dias subsequentes ao termo do prazo legal, antes de esgotado este mesmo prazo».
Em 25 de Janeiro de 2011, através do Acórdão 41/11, proferido no processo 363/10, suscitando-se a questão de saber se, praticado o acto processual num dos três dias seguintes ao termo do prazo sem que o Ministério Público haja emitido declaração manifestando a intenção de praticar esse acto, por haver suscitado incidente de restituição de prazo, fica precludida a possibilidade de o Ministério Público ser notificado para apresentar aquela declaração, caso se considere inexistir justo impedimento, foi decidido: «Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20.º, em conjugação com o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 219.º, n.º 1, da Constituição da República, a interpretação segundo a qual, tendo o recurso sido admitido no tribunal de 1.ª instância, exclusivamente com fundamento na existência de justo impedimento e concluindo a Relação pela inexistência de justo impedimento, o Ministério Público já não pode ser notificado para apresentar a declaração devida pela interposição de recurso nos três dias subsequentes ao termo do prazo».
(5) No sentido do acórdão fundamento decidiram os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 10 de Julho de 1996, 9 de Outubro de 1996 e 11 de Dezembro de 1996, o primeiro e o segundo publicados na CJ (STJ), iv, ii, 228 e no BMJ, 460, 324, o último proferido no processo 754/96.
Em sentido coincidente, mas em processos do foro civil, decidiram os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 15 de Maio de 1979, 13 de Janeiro de 1989, 4 de Março de 1997 e 9 de Fevereiro de 1999, o primeiro e o segundo publicados no BMJ, 287, 223 e Acórdãos Doutrinais do STA, ano xxviii, os restantes proferidos nos processos n.os 859/96 e 1099/98.
Não se referenciam aqui as decisões das relações proferidas no mesmo sentido pelas razões mencionadas na nota n.º 2.
(6) É do seguinte teor o n.º 1 do artigo 146.º do Código de Processo Civil:
«Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.» (7) É a seguinte a redacção que foi dada ao n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei 323/70:
«Independentemente de justo impedimento, pode o acto ser praticado no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo, ficando, porém, a sua validade dependente do pagamento de uma multa de monte igual a 25 por cento do imposto de justiça que seria devido a final pelo processo, ou parte do processo, mas nunca inferior a 500$00.» (8) É do seguinte teor o n.º 6 do artigo 145.º introduzido pelo Decreto-Lei 242/85:
«Praticado o acto em qualquer dos 3 dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa referida no número anterior, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independentemente de despacho, notificará o interessado para pagar uma multa de montante igual ao dobro da prevista no número anterior, sob pena de se considerar perdido o direito de praticar o acto».
(9) É do seguinte teor o texto do n.º 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil então aditado:
«O juiz pode excepcionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado.» (10) RLJ, ano 116.º, 31-32.
(11) RLJ, ano 103.º, 301.
(12) A par destas razões que subjazem ao direito à prática de acto processual fora de prazo, independentemente de justo impedimento, há que referir a que resulta da ocorrência de erro na contagem do prazo legalmente fixado para a prática do acto processual. Com efeito, como decorre da experiência comum, qualquer sujeito processual, por razões que decorrem da própria natureza humana, pode cometer um lapso na contagem do prazo de que dispõe para a prática de acto processual.
(13) Neste preciso sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no Acórdão 17/91, de 5 de Fevereiro de 1991.
(14) Cf. o Acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Novembro de 2008, proferido no recurso cível n.º 2372/08.
(15) Só nos ocuparemos do regime aplicável em processo penal a partir da entrada em vigor do Código de 1987.
(16) É do seguinte teor o n.º 5 do artigo 107.º do Código de Processo Penal:
«Independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações.» (17) Neste preciso sentido, entre outros, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Abril de 1989 e de 19 de Maio de 1993, publicados nas CJ, xiv, 2, 8 e CJ (STJ), i, ii, 235.
(18) É do seguinte teor o artigo 107.º-A do Código de Processo Penal:
«Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, à prática extemporânea de actos processuais penais, aplica-se o disposto nos n.os 5 a 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, com as seguintes alterações:
a) Se o acto for praticado no 1.º dia, a multa é equivalente a 0,5 UC;
b) Se o acto for praticado no 2.º dia, a multa é equivalente a 1 UC;
c) Se o acto for praticado no 3.º dia, a multa é equivalente a 2 UC.» (19) É do seguinte teor o texto do artigo 6.º do Decreto-Lei 34/2008, sob a epígrafe «alteração ao Código de Processo Penal»:
«São alterados os artigos 374.º, 376.º, 377.º, 397.º, 510.º a 515.º, 517.º, 519.º a 521.º e 524.º do Código de Processo Penal, que passam a ter a seguinte redacção» (20) Neste preciso sentido, o saudoso Conselheiro Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado (17.ª ed.), 1152-1153, Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais, Anotado e Comentado (3.ª ed.), 121-122, e Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Código de Processo Penal - Comentários e Notas Práticas, 1199-1200.
Em sentido contrário, aparentemente, Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal (4.ª ed.), 1276.
(21) Cf., neste preciso sentido, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 9 de Fevereiro de 1999, já citado.
(22) Tenha-se em consideração que ao tempo da publicação do Decreto-Lei 34/2008, de 26 de Fevereiro, que introduziu o artigo 107.º-A, o actual n.º 8 do artigo 145.º do Código de Processo Civil era o n.º 7, conquanto aquele n.º 8 tenha sido introduzido pelo mesmo diploma legal.
(23) Aliás, a propósito da questão da isenção da multa por parte do Ministério Público, foi essa a posição assumida pelo legislador, através da Lei 48/2007, de 29 de Agosto, ao aditar ao n.º 1 do artigo 522.º do Código de Processo Penal, que textuava «o Ministério Público está isento de custas», a expressão e multas, pese embora a quase totalidade da doutrina e da jurisprudência já aceitarem e reconhecerem essa isenção.
(24) Direito Processual Penal, i, pp. 42 e ss.
(25) Ibidem, pp. 56-57.
(26) São do seguinte teor os n.os 1 dos artigos 219.º da Constituição Política e 53.º do Código de Processo Penal:
Artigo 219.º:
«Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.» Artigo 53.º:
«Compete ao Ministério Público, no processo penal, colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade.» (27) Cf., entre outros, os Acórdãos n.os 150/87, 467/89 e 132/92, de 6 de Maio de 1987, de 5 de Julho de 1989 e de 2 de Abril de 1992, proferidos nos processos n.os 184/86, 491/88 e 583/88.
(28) Cf., por todos, o Acórdão 132/92, de 2 de Abril de 1992, proferido no processo 583/88.
(29) «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in Jornadas de Processo Penal (1988), 29.
(30) Convenção Europeia dos Direitos do Homem (3.ª ed.), 136.
(31) Cf. Figueiredo Dias, «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in Jornadas de Processo Penal (1988), 29-30.
(32) «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in Jornadas de Processo Penal (1988), 31.
(33) Direito Constitucional e Teoria da Constituição (3.ª ed.), 1226-1227.
(34) A Decisão de Inconstitucionalidade (1999), pp. 477 e ss.
(35) «Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça constitucional», in Legitimidade e legitimação constitucional (Coimbra, 1995), pp. 195-196.
Lisboa, 18 de Abril de 2012. - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes (relator) - José Adriano Machado Souto de Moura - Eduardo Maia Figueira da Costa - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Isabel Celeste Alves Pais Martins - Manuel Joaquim Braz - José António Carmona da Mota (vencido, nos termos da declaração de voto em anexo) - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar - António Artur Rodrigues da Costa - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - José António Henriques dos Santos Cabral - Luís António Noronha Nascimento (Presidente).
Declaração de voto
Em regra, os atos processuais só podem ser praticados dentro dos prazos estabelecidos por lei.No entanto, poderão ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei quando se prove justo impedimento ante a autoridade judiciária que dirigir a fase do processo a que o ato respeitar, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais (artigo 107.2 do CPP).
Todavia, por razões de economia e celeridade processuais, o sujeito processual que pratique o ato dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo não terá que provar o «justo impedimento» se «validar» o ato tardio mediante o «pagamento imediato de uma multa/sanção» (artigo 107.º-A) [1] [1].
Acontece que o Ministério Público, enquanto sujeito processual penal, está isento de multa (CPP, artigo 522.º - isenções, «1 - O Ministério Público está isento de custas e multas»).
Daí que, sob pena de iniquidade, não pudesse estar - ao mesmo tempo - isento de (uma qualquer) sanção pela prática extemporânea dos seus atos processuais.
Assim, não podendo validar, mediante o «pagamento imediato de uma multa», os atos tardiamente praticados (ainda que dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo), o MP, não lhe valendo a exceção, terá que cumprir a regra de requerer e provar o correspondente «justo impedimento» ante a autoridade judiciária que dirigir a fase do processo a que o ato respeitar.
E não se veja aqui qualquer desigualdade em desfavor do MP, pois que os outros sujeitos processuais só serão dispensados de requerer e provar o justo impedimento - correspondente à prática dos seus atos processuais dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo - se os validarem mediante o «pagamento imediato de uma multa/sanção» (artigo 107.º-A).
Ora, sob pena de desigualdade de armas, o MP não poderá valer-se em simultâneo da «isenção de multa» e da «dispensa» - sem uma qualquer contrapartida - de «praticar o ato dentro do prazo». Pois que, enquanto os demais sujeitos processuais terão que optar, quando pratiquem o ato nos três dias úteis seguintes ao último do prazo, entre provar o justo impedimento e pagar a «bula» correspondente, o MP ficaria dispensado quer do cumprimento do prazo quer da sanção do incumprimento. Donde que a «igualdade de armas» (ou, a montante, os princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade substancial das partes) imponha que o MP, uma vez que está isento da multa que relativamente aos demais sujeitos processuais funciona como sanção, alegue e prove, sempre que pretenda validar um ato praticado fora do prazo, o impedimento que, justificadamente, possa ter determinado o seu retardamento.
É e tem sido este o meu entendimento quanto à solução desta questão, embora a tenha deixado em pousio a partir do momento em que o TC achou suficiente, como contrapartida simbólica à sanção a que se expõem os demais sujeitos processuais quando pratiquem um ato processual nos três dias seguintes ao último do prazo, que o MP, ante situação idêntica, se limite a manifestar a sua intenção de, independentemente de requerimento e prova de justo impedimento, praticar o ato fora do prazo. Embora concorde - a menos que esse manifesto tenha lugar no último dia do prazo - que se trate de «um procedimento inútil e redundante» e de «uma exigência não prevista na lei» e «sem qualquer apoio na sua letra» (*).
Em suma, o «meu» assento seria o seguinte: «O Ministério Público, em processo penal, só pode praticar um ato processual a destempo, mesmo que nos três dias úteis seguintes ao último do prazo - mau grado o disposto nos termos, 'com as necessárias adaptações', no artigo 145.º, n.º 5, do CPC (cf.
artigo 107.º, n.º 5, do CPP) - quando requeira e prove justo impedimento (artigo 107.º, n.º 2, do CPP)». - J. Carmona da Mota.
(*) E daí, porventura, que o TC haja infletido a sua anterior posição, por intermédio do Acórdão 33/2012, Diário da República, 2.ª série, n.º 47, de 6 de março de 2012:
«Não julga inconstitucional a norma do artigo 145.º, n.os 5 e 6, do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido de ser admissível a prática de atos processuais pelo Ministério Público dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, sem que a sua validade fique dependente da emissão de uma declaração no sentido de pretender praticar o ato nesses três dias.» [2][1] Sanção pela prática extemporânea de atos processuais:
«Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, à prática extemporânea de atos processuais penais aplica-se o disposto nos n.os 5 a 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, com as seguintes alterações:
a) Se o ato for praticado no 1.º dia, a multa é equivalente a 0,5 UC;
b) Se o ato for praticado no 2.º dia, a multa é equivalente a 1 UC;
c) Se o ato for praticado no 3.º dia, a multa é equivalente a 2 UC.»