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Acórdão 461/2016, de 13 de Outubro

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Sumário

Julga inconstitucional a interpretação normativa, extraída do artigo 24.º, n.º 5, alínea a), da Lei n.º 34/2004, com o sentido de que o prazo interrompido por aplicação do n.º 4 do mesmo artigo se inicia com a notificação ao patrono nomeado da sua designação, quando o requerente do apoio judiciário desconheça essa nomeação, por dela ainda não ter sido notificado

Texto do documento

Acórdão 461/2016 Processo 507/15

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional I. Relatório 1 - Maria Teresa da Silva de Almeida Afonso apresentou no Balcão Nacional de Injunções requerimento de injunção contra Ana Cristina da Conceção Guerreiro Conchinha, com vista a obter desta o pagamento da quantia de €9.388,03.

Notificada do requerimento de injunção, a requerida Ana Conchinha apresentou nos autos documento comprovativo de que havia solicitado junto do Instituto da Segurança Social, Centro Distrital de Setúbal, que lhe fosse concedido apoio judiciário, na modalidade de nomeação e pagamento de compensação a patrono e de dispensa de taxa de justiça, e demais encargos com o processo, a fim de deduzir contestação nos autos. Comunicado pelo Instituto da Segurança Social o deferimento do benefício de proteção jurídica, nas modalidades requeridas, e pela Ordem dos Advogados a nomeação de patrono oficioso, veio a requerida, em 16 de junho de 2014, apresentar oposição ao requerimento de injunção, cuja tempestividade suportou no facto de ter sido notificada da nomeação de patrono apenas em 30 de maio de 2014.

Em 20 de junho de 2014, o Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Santiago do Cacém, Comarca do Alentejo Litoral, determinou o desentranhamento da oposição apresentada, com fundamento na sua extemporaneidade, e proferiu sentença a conferir força executiva ao requerimento de injunção.

Inconformada, a requerida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, o qual, por acórdão de 12 de março de 2015, julgou procedente o recurso, revogou a sentença recorrida e determinou o prosseguimento dos termos posteriores à contestação. Para o efeito, recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, de interpretação normativa da alínea a) do n.º 5 do artigo 24.º da Lei 34/2004, de 29 de julho, “no sentido de considerar como válido e eficaz o patrocínio judiciário quando o seu requerente só é dele notificado depois do patrono nomeado”. Os seus termos, no que importa ao presente recurso, foram os seguintes:

«

Por e-mail de 14 de maio de 2014, a Ilustre Patrona foi notificada de que tinha sido nomeada patrona da requerida para os termos deste processo.

A nomeação de patrono foi notificada à Recorrente em 30 de maio de 2014. de junho de 2014.

A oposição ao requerimento de injunção foi apresentada em 16 O problema é só o de saber a partir de qual notificação se retoma a contagem do prazo processual que estava suspenso com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento de apoio.

O despacho recorrido que a notificação que releva é a que é feita ao patrono nomeado.

A recorrente defende que é a que é feita ao próprio requerente. Esclareça-se, em todo o caso e porque a recorrente levanta a questão, que estas notificações são efetuadas pela Ordem, nos termos do art.° 31.º, n.º 1, da Lei 34/2004.

A Lei 34/2004 dispõe no seu art.° 24.º, n.º 4, o seguinte:

«

4-Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de ação judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo

»

.

Que é este o preceito aplicável não dá lugar a dúvidas. A requerida (agora recorrente) tinha de contestar uma ação e, no decurso do respetivo prazo, requereu a concessão do apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono; assim, o prazo referido ficou paralisado, suspenso, com a apresentação, no processo, de tal pedido.

Ora, a suspensão deste prazo pode cessar em duas situações diferentes, consoante o pedido seja deferido ou indeferido.

No primeiro caso, a recontagem inicia-se a partir da notificação ao patrono nomeado, notificação esta que se destina a darlhe co-nhecimento do facto de ter sido nomeado. No segundo caso, é com a notificação ao próprio requerente que a contagem se retoma.

É isto mesmo que está determinado no n.º 5 do citado preceito legal:

«

5-O prazo interrompido por aplicação do disposto no número anterior inicia-se, conforme os casos:

a) A partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação; a Lei.

b) A partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono

»

.

Sendo assim, o despacho recorrido não fez mais do que aplicar O que, em bom rigor, a recorrente não contesta; defende é que a aplicação daquele preceito nesta situação é inconstitucional.

Conforme o seu entendimento, a norma legal terá de ser interpretada no sentido de, havendo um hiato entre a data da notificação ao patrono da sua designação e a data da notificação do beneficiário de apoio se verifica. judiciário da nomeação de patrono, ser considerada a última das duas datas, para efeitos de início do prazo interrompido.

Argumenta com o facto de que só após a segunda data, por um lado, a recorrente pode exercer os seus direitos de defesa e por outro, o patrono nomeado tem conhecimento dos factos que pode e deve contestar, em que medida o pode fazer e enquadrálos juridicamente, exercendo o patrocínio judiciário.

Concordamos. O desfasamento entre os prazos das notificações não pode ter como consequência a impossibilidade de recorrer a tribunal, a impossibilidade do acesso ao Direito, que é, afinal, o que a Lei pretende.

Mas, com a aplicação estrita do art.° 24.º, n.º 5, é isso mesmo que Repare-se que, como no caso dos autos, a recorrente nada sabe (quanto ao apoio judiciário) e só vem a saber quando, por força do mesmo dispositivo legal, o prazo terminou ou está a terminar. Até este momento, a recorrente de nada sabe; se nada sabe, como pode exercer o seu direito? E note-se que a obrigação de contacto, entre patrono e patrocinado, incumbe a este último. Por isso, o art.° 31.º, n.º 2, determina que a

« notificação da decisão de nomeação do patrono é feita com menção expressa, quanto ao requerente, do nome e escritório do patrono bem como do dever de lhe dar colaboração, sob pena de o apoio judiciário lhe ser retirado »

. Como poderia a recorrente contactar o seu patrono em tempo útil se desconhecia que já lhe tinha sido nomeado um?

Por outro lado, como também nota a recorrente, que tipo de contestação pode oferecer o patrono sem que o patrocinado ainda o não tenha contactado? Mais ainda quando desconhece tal facto.

A execução do art.° 20.º da Constituição não pode ser impedida por acasos burocráticos como é, certamente, as notificações em datas diferentes. O que a Constituição pretende, com o n.º 2 daquele preceito, é que efetivamente a pessoa tenha um patrono judiciário, o que tem como pressuposto óbvio que as pessoas interessadas tenham conhecimento da sua relação de patrocínio.

Quando, como é o caso, tal conhecimento mútuo não existe, não se pode falar em patrocínio judiciário eficaz, útil.

Por estes motivos, entendemos que é inconstitucional o disposto no art.° 24.º, n.º 5, al. a), da Lei 34/2004, quando interpretado no sentido de considerar como válido e eficaz o patrocínio judiciário quando o seu requerente só é dele notificado depois do patrono nomeado.

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso em função do que se revoga a sentença recorrida, determinando-se que o processo siga os seus termos posteriores a contestação.

»

2 - O Ministério Público interpôs recurso, para si obrigatório, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante referida como LTC), peticionando a fiscalização da constitucionalidade da interpretação normativa recusada - cujo sentido é identificado a partir de transcrição do segmento final do pe-núltimo parágrafo da decisão recorrida-, face ao disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.

3 - Admitido o recurso, remetidos os autos a este Tribunal e determinado o prosseguimento do recurso, apenas o recorrente apresentou alegações.

Nestas, pugna, em primeiro lugar, pela delimitação do objeto do recurso, em virtude de “a questão de constitucionalidade que efetivamente está em causa, [ter] a ver direta e essencialmente com o efeito ou as consequências em termos do prazo que decorrem da notificação ao patrono nomeado da sua designação, quando o requerente desconhece que lhe foi nomeado um patrono e, naturalmente, qual a sua identidade”

; deverá, então, constituir objeto do recurso a “norma do artigo 24.º, n.º 5, alínea a), da Lei 34/2004, na interpretação segundo a qual o prazo interrompido por aplicação do n.º 4, se inicia com a notificação ao patrono nomeado da sua designação, ainda que o requerente do apoio judiciário desconheça essa nomeação, por dela não ter sido notificado”.

Quanto ao mérito, considera que a norma sindicada, ao estabelecer o inicio do prazo processual interrompido a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação, desconhecendo o requerente de apoio judiciário que assim acontecia, por não ter sido notificado, viola o artigo 20.º, n.os 1 e 4, da Constituição, na medida em que não permite ao requerente cumprir o seu dever de colaboração e tomar a iniciativa de contactar quem o representa, podendo mesmo, em casos extremos, o prazo em questão decorrer na sua totalidade sem que a parte saiba que lhe foi nomeado um advogado.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação 4 - Importa tomar, em primeiro lugar, o pedido de delimitação do objeto do recurso apresentado pelo recorrente em alegações.

O presente recurso versa dimensão normativa extraída da alínea a) do n.º 5 do artigo 24.º da Lei 34/2004, de 29 de julho, cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal recorrido, com fundamento em inconstitucionalidade. Como relatado supra, o recorrente identificou, como imposto pelo n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC, a concreta dimensão normativa recusada e posta a controlo de constitucionalidade, através de transcrição de segmento da decisão recorrida, onde se alude a interpretação do apontado preceito, número e alínea, no sentido de “considerar como válido e eficaz o patrocínio judiciário quando o seu requerente só é dele notificado depois do patrono nomeado”.

Porém, em alegações, o Ministério Público oferece outra formulação da norma a sindicar, por entender que o problema em apreciação na decisão recorrida não versou, em toda a sua plenitude, a validade e eficácia da constituição da relação de patrocínio oficioso, mas tão somente um dos seus efeitos, a saber, a definição do momento de início - ou de reinício - de contagem do prazo que estava em curso no momento da comprovação do requerimento de nomeação de patrono e que, por efeito do n.º 4 do mesmo artigo 24.º, se interrompeu, quando, como aconteceu nos presentes autos, a notificação da decisão de concessão do apoio judiciário na referida modalidade ao patrono nomeado não acompanha temporalmente a notificação do patrocinado.

Efetivamente, resulta da fundamentação exarada na decisão recorrida, compreendida na sua globalidade, que se teve em atenção tão somente o campo de regulação do n.º 5 do artigo 24.º da Lei 34/2004, de 29 de julho, na perspetiva de dirimir problema de tempestividade da oposição à injunção apresentada pela requerida. Daí que seja equacionada a conformidade constitucional da norma que estipula como dies a quo do prazo interrompido a notificação do patrono nomeado, sem que o requerente tenha conhecimento, por via de notificação emitida pela entidade competente, de que lhe fora designado como patrono na ação contra si pendente, qual a respetiva identidade e elementos de contacto, e não outro sentido normativo. Não se cuidou de apreciar a validade da constituição da relação de patrocínio judiciário ou a extensão dos poderes forenses imediatamente conferidos pelo ato de nomeação ao patrono designado, independentemente da notificação do mesmo ato ao requerente; antes, especificamente, foi apreciada a eleição pelo legislador da notificação do ato de nomeação ao patrono nomeado como idóneo a desencadear, por si só, a contagem de um prazo processual interrompido, quando a notificação do mesmo ato ao requerente de apoio judiciário tem lugar apenas em dia posterior.

Justifica-se, então, por oferecer uma melhor correspondência com a dimensão normativa efetivamente recusada pela decisão recorrida, delimitar o objeto do recurso como pretendido pelo recorrente em alegações e apreciar a conformidade constitucional da interpretação normativa do artigo 24.º, n.º 5, alínea a), da Lei 34/2004, de 29 de julho, com o sentido de que o prazo interrompido por aplicação do n.º 4 do mesmo artigo se inicia com a notificação ao patrono nomeado da sua designação, ainda que o requerente do apoio judiciário desconheça essa nomeação, por dela não ter sido notificado.

Como parâmetros de constitucionalidade violados, o recorrente aponta os direitosgarantia de acesso aos tribunais e do processo equitativo, consignados no artigo 20.º, n.os 1 e 4, da Constituição. Vejamos se lhe assiste razão.

5 - O texto do preceito que contém a norma sindicada, na parte aqui relevante, é o seguinte:

Artigo 24.º

Autonomia do procedimento

1 - O procedimento de proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário é autónomo relativamente à causa a que respeite, não tendo qualquer repercussão sobre o andamento desta, com exceção do previsto nos números seguintes:

2 - (...) 3 - (...) 4 - Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de ação judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.

5 - O prazo interrompido por aplicação do disposto no número anterior inicia-se, conforme os casos:

a) A partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação;

b) A partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono.

O preceito inscreve-se na Lei 34/2004, de 29 de julho, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei 47/2007, de 28 de agosto, principal diploma regulador da proteção jurídica, visando obstar, em execução do comando constitucional constante do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, que alguém, por insuficiência de meios económicos, deixe de fazer valer ou defender, nos tribunais, os seus direitos e interesses legalmente protegidos, de modo efetivo e eficaz.

6 - Dentre as várias modalidades operativas de proteção jurídica comportadas no referido regime - elencadas no artigo 16.º, n.º 1 da Lei 34/2004, de 29 de julho-, a norma em apreço disciplina os efeitos do pedido de apoio judiciário, na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono, quando apresentado na pendência de ação.

Quem careça de ser patrocinado em juízo por advogado e não disponha de condição económica idónea a suportar o custo de tais serviços, pode requerer que lhe seja nomeado patrono e satisfeito pelo Estado - total ou parcialmente - o respetivo pagamento, devendo fazêlo, por regra, antes da primeira intervenção processual subsequente a tal necessidade (artigo 18.º, n.os 2 e 3 da Lei 34/2004, de 29 de julho), junto dos serviços da segurança social da área de residência ou sede do requerente, entidade administrativa competente para a respetiva decisão (artigos 20.º e 21.º da Lei 34/2004, de 29 de julho). Mas, porque a resposta a essa pretensão não é imediata, coloca-se o problema de acautelar que, até que seja emitida uma decisão, positiva ou negativa, o normal decurso do processo pendente, mormente no plano dos prazos processuais preclusivos já em curso, não comprometa irremediavelmente a posição do requerente de apoio judiciário.

7 - Esse problema encontra resposta no mecanismo interruptivo dos prazos em curso e nova contagem por inteiro, estatuído nos n.os 4 e 5 do artigo 24.º da Lei 34/2004, de 29 de julho, solução normativa que, cabe assinalar, não pode ser tido como inovadora.

Na verdade, a previsão de norma a estatuir a interrupção da contagem de prazo em curso como efeito da dedução de pedido de nomeação de patrono remonta ao Decreto Lei 562/70, de 18 de novembro. No seu artigo 4.º, foi estabelecido que o pedido de nomeação de patrono operava a suspensão da instância - o que, por seu turno, já acontecia no regime anterior, constante do artigo 6.º do Decreto 33 548, de 23 de fevereiro de 1944 - e, bem assim, por força do n.º 2 do mesmo preceito, que “[o] prazo que estiver em curso no momento da formulação do pedido conta-se de novo, por inteiro, a partir do momento do despacho que dele conhecer”.

Seguiu-se o Decreto Lei 387-B/87, de 29 de dezembro, onde se acolheu, na redação original, a suspensão do prazo em curso e, a partir da alteração operada pela Lei 46/96, de 3 de setembro, a interrupção do prazo em curso, por efeito da apresentação do pedido de nomeação de patrono, e o respetivo reinício a partir “da notificação do despacho que dele conhecer” (artigo 24.º, n.º 2).

Nos diplomas referidos, a concessão de apoio judiciário, incluindo na modalidade de nomeação de patrono, assentou essencialmente num modelo jurisdicional, constituindo incidente do processo a tramitar por apenso, para cuja decisão era competente o juiz da causa. A este cabia igualmente, em caso de deferimento do requerido, nomear o patrono a partir de uma escala organizada para o efeito pela Ordem dos Advogados.

A Lei 30-E/2000, de 20 de dezembro, afastou-se desse modelo, que substituiu por sistema de índole administrativa, conferindo inteira autonomia ao procedimento de proteção jurídica, ainda que com repercussões excecionais no andamento da causa a que respeite (artigo 25.º). Entre as exceções previstas encontrava-se justamente a interrupção dos prazos em curso e o seu reinício (artigo 25.º, n.os 4 e 5, alíneas a) e b), da Lei 30-E/2000, de 20 de dezembro).

No âmbito do regime da Lei 30-E/2000, de 29 de dezembro, através dos Acórdãos n.os 98/2004, 467/2004 e 285/2005, o Tribunal foi chamado a apreciar a conformidade constitucional da norma do n.º 4 do artigo 25.º, sendo questionado o ónus de junção aos autos de documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo, para efeitos de interrupção dos prazos processuais que estiverem em curso. Em todos os arestos, foi sublinhada a essencialidade da interrupção dos prazos em cursos para respeitar a garantia de acesso ao Direito e aos Tribunais por parte dos cidadãos economicamente carenciados, contida no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, em conjugação com o imperativo constitucional de igualdade entre os cidadãos (artigo 13.º da Constituição), na vertente da igualdade de armas.

Lê-se no Acórdão 98/2004:

«

O instituto do apoio judiciário visa obstar a que, por insuficiência económica, seja denegada justiça aos cidadãos que pretendem fazer valer os seus direitos nos tribunais, decorrendo, assim, a sua criação do imperativo constitucional plasmado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.

Não basta, obviamente, para cumprir tal imperativo, a mera existência do referido instituto no nosso ordenamento; impõe-se que a sua modelação seja adequada à defesa dos direitos, ao acesso à Justiça, por parte daqueles que carecem dos meios económicos suficientes para suportar os encargos que são inerentes à instauração e desenvolvimento de um processo judicial, designadamente custas e honorários forenses.

Nesta conformidade, háde a lei estabelecer, designadamente, medidas que, no plano da tramitação processual (se o pedido é formulado na pendência de um processo), acautelem a defesa dos direitos do requerente do apoio, em particular no que concerne aos prazos em curso. Tais medidas impõem-se tanto mais quanto o pedido de apoio visa a nomeação de patrono, uma vez que, desacompanhada de mandatário forense, a parte não dispõe de meios para, no processo, defender (ou defender adequadamente) os seus direitos.

É, aliás, essa a razão do disposto no artigo 25.º, n.º 4, da Lei 30-E/2000, ao determinar, nos casos de pedido de nomeação de patrono, na pendência de ação judicial, a interrupção dos prazos em curso com a junção aos autos do documento comprovativo do requerimento de apoio judiciário naquela modalidade.

»

E, acrescentou o Acórdão 467/2004:

«

[A] norma em causa dispõe sobre os efeitos da apresentação do requerimento com que é promovido perante a competente autoridade administrativa o procedimento administrativo de concessão do apoio judiciário e da junção aos autos do documento comprovativo desse requerimento, determinando que “o prazo que estiver em curso interrompe-se” com a junção aos autos deste documento.

A ratio do preceito é evidente. Os prazos processuais são interregnos de tempo que são conferidos aos interessados para o estudo das posições a tomar no processo na defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, maxime, para virem ao processo expor os factos e as razões de direito de que estes decorrem. Uma tal decisão poderá envolver a utilização de conhecimento técnicos especializados da área do direito, sendo que a capacidade para a sua prática apenas é reconhecida às pessoas que estão legalmente habilitadas a exercer o patrocínio judiciário, em regra, os advogados. Ora, estando pendente de apreciação o pedido de concessão do apoio judiciário na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono que há de tomar aquela posição do interessado, apreciação essa levada a cabo, no domínio da Lei 30-E/2000, pelas autoridades administrativas da Segurança Social (no sistema anterior essa tarefa era levada a cabo pelo próprio tribunal), se o prazo em curso não se interrompesse com a apresentação do pedido de apoio à autoridade administrativa competente e a prova dessa apresentação perante a autoridade judiciária perante quem corre a ação, correr-se-ia o risco de o interessado não poder defender de forma efetiva e eficaz os seus direitos e interesses legalmente protegidos, quer porque o prazo entretanto se poderia ter esgotado, quer porque disporia sempre de um prazo inferior ao estabelecido na lei para prática do ato ao qual o prazo está funcionalizado. A não acontecer essa interrupção, o interessado ficaria sempre em uma posição juridicamente desigual quanto à possibilidade do uso dos meios processuais a praticar dentro do prazo em relação aos demais interessados que não carecessem economicamente de socorrer-se do apoio judiciário por poderem contratar um patrono para defender as suas posições na ação. O princípio da igualdade de armas, corolário no processo do princípio fundamental da igualdade dos cidadãos, sairia irremediavelmente afetado.

»

A normação contida, neste particular, na Lei 30-E/2000, de 20 de dezembro, foi transposta, sem alterações, para os n.os 4 e 5, alíneas a) e b), do artigo 24.º da Lei 34/2004, de 29 de julho, pelo que o entendimento firmado nos referidos Acórdãos mantém atualidade, no quadro do regime aplicável nos presentes autos.

8 - A questão aqui em apreço radica, não já no momento interruptivo - e nos ónus que lhe estão associados - , mas, a jusante, no momento em que, feita a notificação da nomeação de patrono, ocorre a cessação desse efeito e volta a correr o prazo processual, incasu o prazo para a contestação em processo de injunção.

Não obstante, ainda que distintos, aos dois momentos preside a mesma teleologia:

proporcionar ao interessado carenciado de recursos económicos meios de defender em juízo de forma tecnicamente efetiva e eficaz os seus direitos e interesses legalmente protegidos, assegurando que tenha acesso a quem esteja legalmente habilitado a exercer o patrocínio judiciário e possa, por intermédio deste, exercer em condições de igualdade com os demais litigantes os instrumentos processuais ao seu dispor. Ora, se, como se viu, a solução de paralisia do prazo em curso obedece à necessidade de preservar a possibilidade de o requerente de apoio judiciário vir aos autos através de técnico do direito expor as suas razões de facto e de direito, então, por identidade de razão, o reinício do prazo interrompido haverá de obedecer à reunião de condições que garantam o efetivo estabelecimento e a atuação de uma relação de patrocínio judiciário. O que pressupõe naturalmente, como em qualquer relação comunicante, o conhecimento pelos seus dois polos - patrono e patrocinado - da existência de um tal vínculo. Daí que, e como sublinha Salvador da Costa (O Apoio Judiciário, 6.ª edição, 2007, Almedina, pp. 198-199), o legislador tenha cuidado especialmente na Lei 34/2004, de 29 de julho, dos termos e conteúdo da notificação aos interessados da decisão de nomeação de patrono.

9 - Com efeito, em caso de deferimento do requerimento de nomeação de patrono por decisão da Segurança Social, de acordo com os critérios legais de insuficiência económica, segue-se uma nova fase, da competência da Ordem dos Advogados. A esta cabe a nomeação do advogado que que irá assegurar a defesa do requerente de patrocínio judiciário e também desenvolver os procedimentos de nomeação e comunicações impostos pelos artigos 26.º, n.º 4 e 31.º, n.os 1, 2 e 4, da Lei 34/2004, de 29 de julho, a saber:

i) notificação do patrono nomeado de que o foi e qual o representado, com expressa advertência do início do prazo judicial (n.º 1 do artigo 31.º);

ii) notificação do requerente de apoio judiciário da decisão de nomeação, igualmente com expressa advertência do início do prazo judicial (n.º 1 do artigo 31.º) e menção expressa da identidade e localização do escritório do patrono, com menção do dever de lhe dar colaboração, sob pena de o apoio judiciário lhe ser retirado (n.º 2 do artigo 31.º);

iii) comunicação ao tribunal da nomeação (n.º 4 do artigo 31.º).

Em si mesmo, o sistema de notificações, assim delineado, parece reunir condições idóneas a fazer chegar aos seus destinatários toda a informação relevante para que, de imediato, patrono e patrocinado possam comunicar entre si.

Intercede, porém, uma outra vertente do regime, com influência no problema em análise. Trata-se da crescente introdução de mecanismos de automatização e desmaterialização do procedimento de nomeação e de notificação do advogado nomeado, o que passou a ser feito na modalidade de envio de correio eletrónico através do sistema informático próprio da Ordem dos Advogado - denominado SINOA - de acordo com os artigos 2.º e 29.º da Portaria 10/2008, de 3 de janeiro, alterada pelas Portarias 210/2008, de 29 de fevereiro, 654/2010, de 11 de agosto e 319/2011, de 30 de dezembro. Enquanto isso, a notificação do beneficiário do apoio judiciário segue a via postal registada.

Pese embora os anteriores regimes de notificação, a cargo da secretaria judicial, não tenham sido imunes a situações pontuais em que as notificações da decisão de nomeação de patrono não ocorreram em simultâneo - a jurisprudência dá notícia de dois casos (cf. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de outubro de 1981, publicado na Coletânea de Jurisprudência, ano IV, tomo IV, p. 116 e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10 de abril de 1997, inColetânea de Jurisprudência, ano XII, pp. 72-73), ambos resolvidos no sentido de considerar operante a última notificação-, o regime aplicável aos presentes autos propicia que exista uma dilação temporal significativa entre a instantâ-nea receção e produção de efeitos da mensagem de correio eletrónico enviada através do SINOA ao advogado nomeado, e data em que se presume recebida a notificação feita por carta registada (o terceiro dia posterior ao do registo ou o terceiro dia útil seguinte, quando o não seja), dirigida à residência ou sede ou para o domicílio escolhido para tal pelo requerente da nomeação de patrono (artigo 249.º do CPC). Foi o que aconteceu no caso vertente, mediando 15 dias entre a notificação eletrónica e a notificação postal.

10 - Feito este percurso, retomemos a apreciação da conformidade constitucional do sentido normativo cuja aplicação foi recusada, isto é, que o prazo interrompido por aplicação do n.º 4 do artigo 24.º da Lei 34/2004, de 29 de julho, se inicia com a notificação ao patrono nomeado da sua designação, mesmo que o requerente do apoio judiciário dela não tenha conhecimento por via de notificação.

Para o tribunal a quo, e também para o recorrente, o início do prazo interrompido nas apontadas condições de desconhecimento pelo requerente de apoio judiciário sobre a identidade de quem o patrocina em juízo, e à qual deve colaboração, coloca este em posição de indefesa, podendo ver frustrado o seu direito de acesso à justiça devido a insuficiência de meios económicos.

De facto, desconhecendo a nomeação e a identidade do patrono, o beneficiário do apoio não dispõe de informação que lhe permita prestar a colaboração necessária à apresentação de articulado de defesa, mormente no plano dos factos, além de que não tem meios de apurar por si mesmo que o prazo interrompido voltara a correr. Aliás, a dupla advertência imposta pelo legislador no artigo 31.º, n.os 1 e 2, da Lei 34/2004, de 29 julho, visa justamente obstar a uma tal situação de impotência, e de indefesa, consubstanciadora de uma posição processual desfavorável em relação às partes ou sujeitos processuais que possam suportar a constituição de mandatário, em termos similares ao que se julgou nos Acórdãos n.os 98/2004 e 467/2004.

11 - É certo que a notificação do patrono nomeado assegura de imediato o estabelecimento da relação de representação em juízo, nada obstando a que o advogado, ciente da premência da obtenção de elementos para a defesa, desencadeie sponte sua o contacto com quem patrocina, fazendo-o em tempo côngruo com o respeito pelo prazo processual cuja contagem se iniciou com a sua notificação. Note-se que, nos termos do artigo 10.º, alíneas b) e e) do Regulamento de Organização e Funcionamento do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais na Ordem dos Advogados, aprovado pelo Regulamento 330-A/2008, de 24 de julho, na redação vigente à data (com as alterações decorrentes da Deliberação 1733/2010 do Conselho Geral da Ordem dos Advogado, de 27 de setembro; seguiram-se as alterações operadas pela deliberação 1551/2015, de 23 de julho), é dever do advogado participante no sistema de acesso ao direito e aos tribunais, praticar todos os atos necessários à defesa do patrocinado do apoio judiciário, “não obstante as limitações e dificuldades, decorrentes do seu desinteresse ou da sua falta de colabo-ração” e indicar na área reservada do portal da Ordem dos Advogados, entre outros dados, “o fim para o qual foi requerido o apoio judiciário”. Porém, mesmo que o cumprimento de tais deveres postule uma conduta ativa por parte do advogado nomeado no quadro do apoio judiciário, de modo a que a comunicação entre representante e representado seja estabelecida antes mesmo do recebimento da notificação estipulada nos n.os 1 e 2 do artigo 31.º da Lei 34/2004, de 29 de julho, não existem garantias normativas idóneas a assegurar que assim aconteça em todos os casos. E, sobretudo, não remove a possibilidade de o cidadão economicamente carenciado sofrer, sem culpa sua, um encurtamento, ou até a inutilização, do prazo de organização e exercício da sua defesa em juízo com a assistência de um representante que assegure a condução técnicojurídica do processo, face ao que teria ao seu dispor caso, logo após a notificação do requerimento de injunção, contasse com meios económicos para contratar de imediato os serviços de um advogado como seu mandatário.Persiste o risco, incompatível com o respeito pelo processo equitativo, na dimensão de igualdade substantiva entre as partes e de proibição da indefesa (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição), de o interessado economicamente carenciado não poder defender os seus direitos e interesses legalmente protegidos, quer porque o prazo se poderá esgotar, quer porque disporá de um prazo inferior ao estabelecido na lei para prática do ato ao qual o prazo está funcionalizado.

12 - Conclui-se, pelo exposto, pela desconformidade constitucional, à luz da normaprincípio de garantia de acesso direito e aos tribunais, sem denegação por insuficiência de meios económicos (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), em conjugação com o direito ao processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição), da interpretação normativa, extraída do artigo 24.º, n.º 5, alínea a), da Lei 34/2004, com o sentido de que o prazo interrompido por aplicação do n.º 4 do mesmo artigo se inicia com a notificação ao patrono nomeado da sua designação, quando o requerente do apoio judiciário desconheça essa nomeação, por dela ainda não ter sido notificado.

III. Decisão 13 - Nestes termos, decide-se:

a) julgar inconstitucional a interpretação normativa, extraída do artigo 24.º, n.º 5, alínea a), da Lei 34/2004, com o sentido de que o prazo interrompido por aplicação do n.º 4 do mesmo artigo se inicia com a notificação ao patrono nomeado da sua designação, quando o requerente do apoio judiciário desconheça essa nomeação, por dela ainda não ter sido notificado, por violação do artigo 20.º, n.os 1 e 4, da Constituição; e, em consequência, b) negar provimento ao recurso;

c) Sem custas.

Notifique. Lisboa, 14 de julho de 2016. - Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Joaquim de Sousa Ribeiro.

209918519

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2759218.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1987-12-29 - Decreto-Lei 387-B/87 - Ministério da Justiça

    Estabelece o regime de acesso ao direito e aos tribunais.

  • Tem documento Em vigor 1996-09-03 - Lei 46/96 - Assembleia da República

    Altera o Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, e o Decreto-Lei n.º 391/88, de 26 de Outubro (acesso ao direito e aos tribunais).

  • Tem documento Em vigor 2000-12-20 - Lei 30-E/2000 - Assembleia da República

    Altera o regime de acesso ao direito e aos tribunais, atribuindo aos serviços da segurança social a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-29 - Lei 34/2004 - Assembleia da República

    Estabelece um novo regime de acesso ao direito e aos tribunais e transpõe parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2003/8/CE (EUR-Lex), do Conselho, de 27 de Janeiro, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-28 - Lei 47/2007 - Assembleia da República

    Altera (primeira alteração) a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que altera o regime de acesso ao direito e aos tribunais.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2020-11-18 - Acórdão do Tribunal Constitucional 515/2020 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 5 do artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com o sentido de que o prazo interrompido por aplicação do n.º 4 do mesmo artigo se inicia com a notificação ao patrono nomeado da sua designação, quando o requerente do apoio judiciário desconheça essa nomeação, por dela ainda não ter sido notificado

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