Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Fernanda & Tubarão, Lda., propôs uma acção contra Licínio Mendes Ferreira e Maria Adelaide Jesus Ferreira pedindo, além do mais, a anulação da compra e venda de um prédio urbano dotado de estabelecimentos de mercearia, pastelaria e padaria, em funcionamento à data do negócio, ou, em alternativa, a redução
do preço.
Para tanto, alegou, em síntese, que o preço indicado na escritura incluía o valor dos estabelecimentos de mercearia, pastelaria e padaria a funcionar no prédio, que só houve interesse da autora na compra devido à incorporação dos ditos estabelecimentos, os quais apenas não foram mencionados na escritura para evitar custos e impostos, e que, posteriormente, os representantes da autora vieram a saber que o dito estabelecimento de mercearia tinha o alvará em nome de antigos donos do prédio, e que o de padaria não tinha qualquer alvará, sentindo-se, por isso, enganada, pois o valor do prédio sem o estabelecimento de padaria legalizado era de metade.Por sentença de fls. 278 a 284, foi a acção julgada improcedente e os réus absolvidos
dos pedidos.
Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, sustentando a existência de erro da sua parte sobre o objecto do negócio, nos termos do artigo 251.º do Código Civil, gerado pela omissão ilícita de esclarecimento quanto a uma circunstância essencial por parte dos vendedores.2 - Pelo acórdão de fls. 354 a 370, o Tribunal da Relação de Coimbra concedeu provimento ao recurso, julgando parcialmente procedente a acção e anulando o
Além do mais que aqui não releva, a Relação começou por alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância, com os seguintes fundamentos:
«[...]
III - Fundamentação. - 1 - Como é sabido, e flui do disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil (ao qual pertencem os demais preceitos a citar sem menção de origem), o âmbito do recurso é, em princípio, definido em função das conclusões das alegações da Recorrente, circunscrevendo-se às questões aí equacionadas, excepção feita às de conhecimento oficioso.E entre as questões a respeito das quais esse imperativo conhecimento se impõe aos Tribunais da Relação, surgem, desde logo, as referentes à fixação da matéria de facto, dada a consabida natureza de tribunais de instância que aos mesmos assiste.
Tendo pois em conta esse poder-dever que, em razão do exposto, se nos acha legalmente cometido, e que decorre patentemente do estipulado em todo o artigo 712.º, sucede que, muito embora a matéria factual acima transcrita não venha posta em causa no vertente recurso, e bem assim a douta decisão da qual emerge essa mesma matéria, sucede - dizíamos -, apresentar-se-nos em alguma medida essa decisão eivada de deficiência, a justificar de nossa parte intervenção no sentido da respectiva
correcção e eliminação.
Estamos a referir-nos, mais concretamente, à resposta rotundamente negativa conferida ao quesito 11.º da B.I., a qual, tendo em conta as respostas positivas outorgadas aos quesitos 5.º, 6.º, 7.º e 8.º - acima reproduzidas -, nos surge obscura e até mesmo contraditória com estas últimas respostas. Acresce ainda que, em nosso modesto ver, a prova produzida nos autos - seja de índole testemunhal, seja documental -, e que conduziu às ditas respostas positivas, impunha por igual, sem quebra do muito respeito, também pronunciamento positivo em relação a esse quesito 11.ºSe não vejamos.
Depois de no quesito 10.º se perguntar se "No decurso de tais negociações [anteriores à celebração da escritura referida em A)], sempre foi referido pelos réus à autora que os estabelecimentos faziam parte integrante do prédio e que estavam ambos a funcionar em pleno e legalmente? , no enfocado quesito 11.º, por sua vez, perguntava-se:'Na sequência do referido em 10.º, os representantes da autora ultimaram o negócio à aquisição do prédio urbano, pela escritura pública referida em A), através da qual os réus e a autora pretenderam vender e comprar, respectivamente, também os estabelecimentos, referidos em 2.º - padaria e minimercado?'".
Como dissemos, a este quesito 11.º respondeu-se "não provado"
Todavia, no tocante àqueles quesitos 5.º, 6.º, 7.º e 8.º conferiu-se pronunciamento
oposto, dando-se assim como demonstrado que:
A A. só se interessou pela aquisição do prédio, em virtude dos dois estabelecimentosnele incorporados - quesito 5.º
E porque pretendia empregar na laboração de tais estabelecimentos dois filhos seus,que estavam desempregados - quesito 6.º
O que era do conhecimento dos réus - quesito 7.º Em virtude de tais estabelecimentos já estarem em plena laboração há vários anos e do teor da descrição matricial do prédio a A. estava convicta de que os estabelecimentos comerciais nele instalados estavam legalizados e licenciados - quesito 8.º Ora, frente a esta materialidade - da qual decorre, pois, que apenas o intuito de empregar os respectivos filhos na laboração dos estabelecimentos nele instalados levou os sócios-gerentes da A. a adquirirem o prédio, desígnio esse outrossim do conhecimento dos RR., não vislumbramos como seja possível, sem resvalar para a incoerência, dar essa resposta negativa em relação ao dito quesito 11.º, ou seja, considerar não provado que através da escritura pública de aquisição do prédio, os nela intervenientes RR. e sócios da A. não pretenderam vender e comprar, respectivamente, também os estabelecimentos no mesmo imóvel situados.A incongruência afigura-se-nos, sempre com o muito respeito, manifesta, deficiência que no entanto transparece não só ao nível puramente lógico-formal ora considerado, confrontando o teor das respostas entre si, mas também, e como dissemos, ao nível mais profundo e substancial da prova produzida.
Com efeito, e auscultando, desde logo, a prova testemunhal ocorrida em audiência e devidamente objecto de gravação, concluímos que - ao invés do inserto nesse quesito 11.º -, tanto da parte dos RR. como dos sócios da A. houve a intenção de, com a escritura reportada em A), para além do imóvel em si, transferir também para esta última ambos os estabelecimentos. Ou seja, com tal convénio, tiveram as partes em vista vender e comprar não só o edifício propriamente dito - como da escritura expressamente consta -, mas também os ditos estabelecimentos, padaria e
minimercado.
Assim é que a testemunha António Gomes Teixeira refere, além do mais, ter assistido a conversa entre o R. e o Júlio Tubarão (sócio-gerente da A.) da qual resultava que "...era para passar aquilo para eles; era isso tudo, eles não tinham interesses se não fosse a mercearia e a padaria..." e a testemunha Maria da Conceição Cunha Mendes Laranjeiro, por seu turno, que em conversa com a Fernanda Tubarão esta lhe disse "...
vou comprar a padaria para futuro dos meus filhos..", mais acrescentando a mesma testemunha "... sei que eles venderam tudo..., depois que eles compraram não vi lá mais
ninguém (da parte dos RR.)".
Também a testemunha Constantino Ferreira Cardoso, trabalhador na padaria desde a sua instalação - por conversão de uma serração de madeiras -, afirma que o seu último patrão "... foi o Sr. Júlio Tubarão e ele e a mulher" ".. compraram tudo aquilo, o prédio, a padaria, e tudo.". Mais esclarece que antes do negócio dos autos, ele, Constantino Cardoso, quis alugar aos RR. e então seus patrões, a padaria, mas que estes não aceitaram, dizendo-lhe que "isto está quase vendido." Refere ainda que pelo que se apercebeu o "... o Júlio Tubarão interessava-se não propriamente pelo prédio mas pelos estabelecimentos, por causa dos filhos...", sendo que o filho varão daquele foi trabalhar com a testemunha na padaria logo após a aquisição pelos pais, elucidando ainda que nos estabelecimentos, após o negócio, "... ficou tudo, o forno, o frigorifico,tudo!".
Outrossim de mencionar é ainda o depoimento da testemunha Rui de Abreu Maia, cliente da padaria, o qual, entre o mais, refere que o estabelecimento não obstante a sua passagem dos RR. para a família Tubarão continuou normalmente a trabalhar, que "... o Sr. Tubarão comprou o prédio por causa dos filhos, para dar emprego ao filho, que a padaria foi passada com tudo,... estavam lá os mesmos objectos" Em idêntico pendor se pronunciou também, e por fim, a testemunha Amélia da Conceição Tubarão (malgrado este apelido sem qualquer ligação de parentesco com os sócios-gerentes da A.), também cliente habitual tanto da padaria como do minimercado.Pese embora estas mencionadas testemunhas serem todas da A., verdade é, no entanto, que os seus depoimentos em nada são infirmados pelos da parte contrária, sendo certo que todas estas concedem que ambos os estabelecimentos, efectuada a escritura nominalmente reportada apenas ao edifício, prosseguiram no seu normal funcionamento, agora sob a tutela da família Tubarão.
E idêntica ilação - no sentido da abrangência pelo firmado contrato dos estabelecimentos -, se extrai também, como dissemos, dos elementos documentais
juntos aos autos.
Tal é o caso do doc. de fls. 70-71, donde resulta que à frente dos destinos do estabelecimento de padaria passou a ficar apenas e só a A.. E o mesmo se verifica com os docs. de fls. 252 e ss., dos quais se infere idêntica ocorrência em relação à mercearia, particular saliência concitando o doc. de fls. 261, constitutivo do pedido por parte do próprio R.- marido no sentido do averbamento do respectivo alvará a favor da A., averbamento que efectivamente veio a ter lugar, conforme doc. de fls. 266 e v.º.Ora, perante todo este eloquente e multifacetado conjunto de elementos, como recusar que, com a celebração da mencionada escritura, os RR. tiveram a intenção de abrir (também) mão dos estabelecimentos, e a A. (família Tubarão), por seu turno, de adquirir outrossim os mesmos estabelecimentos? É certo que a tal respeito nada fizeram constar nesse instrumento, nem isso era sequer possível, dada a qualidade em que os RR. ali intervieram e outorgaram. Mas este particularismo, sempre com a devida vénia, em nada invalida a realidade objectiva das coisas, e ela é, insofismavelmente, no sentido que vimos propugnando, seja, ter o contrato em foco envolvido, de conformidade com o óbvio intuito de ambos os intervenientes, também os estabelecimentos instalados no edifício (apenas) declaradamente transaccionado. Como alguém avisadamente já afirmou, "deve-se dar mais valor ao poder dos factos e à realidade da vida do que a
construções jurídicas!"
Nesta decorrência, pensamos que o negativo pronunciamento deferido ao ventilado quesito 11.º não pode subsistir, antes se impondo substituí-lo - presente o disposto no segmento inicial da alínea a), do n.º 1, do artigo 712.º, e n.º 4 do mesmo preceito -, por um outro de sentido inverso, ainda que com um pendor restritivo, a saber:"Provado apenas que os representantes da autora ultimaram o negócio à aquisição do prédio urbano, pela escritura pública referida em A), através da qual os réus e a autora pretenderam vender e comprar, respectivamente, também os estabelecimento, referidos
em 2.º - padaria e minimercado."
Como assim, o quadro fáctico a considerar em vista da decisão da causa, além do material acima alinhado, extractado da douta sentença, integrará também este que, a título desse devido veredicto, se acaba de enunciar.2 - Definido, enfim, o contingente fáctico a subsumir juridicamente, cuidemos então das questões recursórias directamente suscitadas pela A./Apelante.
[Segue-se a análise jurídica das demais questões, designadamente do erro sobre o
objecto do negócio].
3 - Os réus interpuseram recurso revista, o qual tendo sido admitido no tribunal a quo veio a ser rejeitado no Supremo Tribunal de Justiça, considerando-se que o valor da causa não era superior à alçada da Relação.Decidida a inadmissibilidade do recurso ordinário, os recorrentes Licínio Mendes Ferreira e mulher, Maria Adelaide Jesus Ferreira, interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de
Novembro (LTC), do acórdão da Relação.
4 - Admitido o recurso e ordenado o seu prosseguimento, os recorrentes apresentaram alegações, que remataram com as seguintes conclusões:1 - A matéria de facto apenas pode ser alterada pela Relação nas situações descritas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil. E não obstante ter ocorrido a gravação dos depoimentos prestados na audiência, não é possível tomar em consideração o depoimento das testemunhas se o recorrente não deu cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 690.º-A do CPC, procedendo à transcrição mediante escrito dactilografado das passagens da gravação em que se
funda.
2 - Tal mecanismo processual radica na defesa do contraditório, no princípio da igualdade processual entre as partes, no direito a um processo justo equitativo.3 - Para assegurar tais comandos básicos e nucleares do Direito e da Justiça, o n.º 3 do referido artigo 690.º-A do CPC estabelece que naquela hipótese:
"incumbe à parte contrária proceder, na contra-alegação que apresenta, a indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente..."
4 - O Tribunal não pode, sem ferir as garantias constitucionais, anular ex ofício a decisão recorrida, no caso a resposta ao quesito 11, e, simultaneamente dar uma resposta de sentido contrário, sem que a parte afectada, não tenha tido oportunidade
de sobre isso de pronunciar.
5 - A anulação da resposta ao quesito 11, seguida da resposta de sentido contrário, ainda que oficiosamente, vai contra o pensamento da lei, previsto no artigo 690-A do CPC, como também no n.º 2 do mesmo artigo 712.º, ao referir taxativamente que "no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do numero anterior, a relação reaprecia as provas em que assentou aparte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de/acto impugnada".6 - A resposta ao quesito 11.º da matéria de facto não foi impugnada. E como o não o foi a recorrente não produziu alegações, não foi ouvida, não teve oportunidade de
sobre isso se pronunciar.
7 - O n.º 4 do artigo 712.º, n.º 4 do CPC, não contempla, ao menos expressamente, a possibilidade de o tribunal de recurso anular a decisão, não impugnada por uma parte e produzir outra, de sentido absolutamente diferente e que atinge a outra parte. Tal possibilidade implica necessariamente uma violação do princípio da igualdade e daindependência dos Tribunais e da Justiça.
8 - Ao julgar assim, a Relação fez uma interpretação do artigo 712.º, n.º 4 do CPC, quando conjugado com a norma ínsita no n.º 1 da alínea a) também do artigo 712.º do CPC que é inconstitucional, pois é como se na prática esteja a suprimir, ou pelo menos a limitar, injustificadamente, o direito da parte (vencida) poder contra alegar no recurso.9 - Tal dimensão normativa não é conforme a Constituição, pois sempre haverá que respeitar a dimensão da garantia de igualdade das partes e do acesso ao direito e aos tribunais, ao processo justo e equitativo, assegurando a possibilidade de reacção contra
eventual pretensão de uma das partes.
10 - Alterando a resposta ao quesito 11, nos termos em que o fez, tudo se passa como se a Relação houvesse criado, sem que para tanto tivesse competência, uma norma que não existia no ordenamento jurídico, a de que a Relação pode proceder arbitrariamente ao reexame das provas, fixar uma convicção própria, alterar o sentido das respostas, livremente, ainda que não haja impugnação ou recurso, e sem ouvir as partes.11 - Por isso, entendem igualmente os recorrentes que a Relação fez uma interpretação que é inconstitucional da norma do artigo 3.º do CPC, em conjugação com a norma do artigo 712.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, quando interpretado no sentido de admitir que o juiz possa decidir questões de facto ou de direito, ainda que a título oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, por violação do direito a um processo justo e equitativo ao exercício de um
contraditório pleno.
12 - O uso da faculdade conferida pelo artigo 712.º, pressupõe a interposição de recurso pela parte a quem possa aproveitar a alteração das respostas ou a anulação da decisão. O mesmo é dizer que, o âmbito dos recursos é determinado nas conclusões da respectiva alegação, como resulta do n.º 3 do artigo 684.º do CPC.13 - Não tendo havido, recurso ou impugnação da matéria de facto - quesito 11.º - não podia o Tribunal dele tomar conhecimento.
14 - Não foi porém essa posição adoptada pelo Acórdão recorrido, que apesar disso, apesar da parte não ter recorrido da alteração ou anulação da matéria de facto, a Relação oficiosamente "promoveu" e "conheceu", por assim dizer do recurso, como se
ele houvesse sido interposto e não foi.
15 - Assim mostra-se inconstitucional a norma do artigo 684.º, n.º 3, do Código Processo Civil, em conjugação com a norma do artigo 712.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, quando interpretada no sentido de admitir que as conclusões de recurso não limitem o seu objecto, podendo o Tribunal alterar a matéria de facto aí não impugnada, por violação do direito a um processo justo e equitativo e ao exercício deum contraditório pleno.
16 - Em consequência de tal interpretação inconstitucional resultam violados os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica, consideradas como elementos basilares, essenciais do Estado de Direito, que se traduz na previsibilidade, ou seja, na certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos das normas jurídicas, designadamente ao modo de funcionamento dos Tribunais, consagrados nos artigos 2.º, 207.º e 212.º da Constituição.A recorrida contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
"A. O presente recurso foi interposto intempestivamente, já após ter expirado o prazo de 10 dias previsto no artigo 75.º n.º 1 da lei do Tribunal Constitucional.
B. O Meritíssimo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra pronunciou-se no sentido da intempestividade da interposição do recurso, tendo, no entanto, decidido admiti-lo, por entender que, não havendo aqui lugar ao pagamento de taxa de justiça inicial, não há também lugar à aplicação do disposto no artigo 145.º,
n.os 5 e 6 do C.P.C.
C. O Tribunal Constitucional decidiu no Acórdão 350/00, "Sendo assim, uma vez reconhecido que a apresentação do requerimento de recurso de constitucionalidade ocorreu para além do prazo fixado no artigo 75.º da lei do Tribunal Constitucional, e uma vez confirmado que não houve pagamento da multa prevista no artigo 145.º do Código de Processo Civil - porque não houve solicitação do pagamento imediato da multa devida e porque a secretaria do tribunal a quo não deu execução ao disposto no n.º 6 do artigo 145.º [...] há que concluir pela extemporaneidade dessa apresentação[...]''
D. A não ser assim, passaria completamente incólume a interposição extemporânea do recurso, violando-se o disposto nos artigos 75.º, n.º 1 e 76.º, n.º 2 da Lei 28/82, de 15/11, no que respeita ao prazo de interposição do recurso.E. Pelo que, nos termos do disposto nos artigos 75.º, n.º 1 e 76.º, n.º 2 da Lei 28/82, de 15/11, entende a Recorrida, salvo o devido respeito, não dever este Venerando Tribunal conhecer do objecto do mesmo.
F. Os recorrentes interpuseram o presente recurso ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da lei do Tribunal Constitucional.
G. Para que deva ser admitido um recurso interposto ao abrigo desta alínea b), é necessário que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende que este Tribunal aprecie.
H. Os recorrentes não suscitaram durante o processo a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 712.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, só o tendo feito no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal.
I. Aquando das alegações do recurso de revista, os recorrentes já tinham conhecimento da interpretação seguida pelo Acórdão da Relação, tendo tido oportunidade de suscitar
aí a questão da inconstitucionalidade.
J. Mas mais lógico seria que, tomando conhecimento do Acórdão da Relação, última instância de recurso no processo, e entendendo que o mesmo fizera uma interpretação inconstitucional das normas aplicadas, os recorrentes tivessem logo nesse momento processual interposto recurso para o Tribunal Constitucional.K. Os recorrentes tiveram assim oportunidade de suscitar anteriormente no processo a questão da inconstitucionalidade, mas optaram por não fazê-lo.
L. Pelo que não houve qualquer impossibilidade objectiva da suscitação atempada da questão da inconstitucionalidade, não se enquadrando a situação sub iudice nas excepções admitidas pelo Tribunal Constitucional.
M. Tendo havido suscitação extemporânea da questão da constitucionalidade, entende a Recorrida, salvo o devido respeito, que não deve este Venerando Tribunal conhecer
do objecto do presente recurso.
N. Todavia, independentemente da questão da inadmissibilidade, o douto acórdão da Relação de Coimbra entendeu que, tendo em conta as respostas positivas dadas aos quesitos 5.º, 6.º, 7.º e 8.º, dar o quesito 11.º como não provado configurava uma situação de obscuridade e até mesmo de contraditoriedade.O. Razão pela qual, ao abrigo do disposto no artigo 712.º, n.º 1, alínea a), 1.ª parte e n.º 4 do Código de Processo Civil, relevou a deficiência e substituiu a resposta rotundamente negativa dada ao quesito 110 da Base Instrutória, por outra de sentido
inverso, ainda que com um pendor restritivo.
P. Quanto às suas competências em relação à matéria de facto, a Relação reaprecia as provas, podendo atender a quaisquer elementos probatórios que hajam servido defundamento à decisão.
Q. Segundo jurisprudência do STJ, Acórdão de 21/06/2007, proferido no processo 07B1552, "A falta de reclamação, quer contra a base instrutória, quer contra o julgamento da matéria de facto, não impede a alteração da decisão de facto pela 2.ª instância, nos termos constantes do artigo 712.º do Código de Processo Civil;R. O estipulado no artigo 712.º do C.P. C. leva a que, quando o Tribunal da Relação entenda que a decisão recorrida está eivada de deficiência, terá de intervir no sentido da respectiva correcção e eliminação, sendo este um poder-dever que lhe assiste mesmo que o recorrente não ponha em causa aquela matéria de facto.
S. Este poder-dever decorre das disposições conjugadas do artigo 712.º n.º 1, alínea a), 1.ª parte e n.º 4 do mesmo artigo do Código de Processo Civil e do facto de a Relação não ser um Tribunal de cassação.
T. A interpretação dada pela Relação às normas em causa em nada viola princípios constitucionais, nomeadamente o princípio fundamental a um processo justo e equitativo, mas conduz à efectivação do mesmo, na medida em que ao corrigirem-se decisões deficientes, obscuras e contraditórias, se concorre para a justa composição do litígio e para a realização da justiça, fins últimos de qualquer processo.
U. Ao aplicar as normas que aplicou e ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação não interpretou erradamente quaisquer normas, nem violou quaisquer preceitos
constitucionais."
5 - Por despacho do relator foram os recorrentes notificados para, querendo, se pronunciarem sobre as questões obstativas à admissibilidade e conhecimento do objecto do recurso (intempestividade e falta de suscitação oportuna da questão de constitucionalidade) suscitadas pela recorrida nas contra-alegações A questão da tempestividade do recurso foi decidida por despacho do relator, [ter o requerimento de interposição de recurso dado entrada um dia após o termo limite do respectivo prazo e ter sido admitido sem o pagamento da multa prevista nos n.º 5 e 6 do artigo 145.º do Código de Processo Civil], tendo-se regularizado o pagamento damulta devida."
II - Fundamentos. - 6 - Nas suas contra-alegações a recorrida suscita duas questões prévias. A primeira, já foi decidida, como se referiu, pelo despacho de fls. 528 a 532.
Resta apreciar a segunda.
Consiste esta em que os recorrentes só mencionaram a questão de constitucionalidade no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, e que "[A]quando das alegações do recurso de revista, os recorrentes já tinham conhecimento da interpretação seguida pelo acórdão da Relação, tendo tido oportunidade de suscitar aí a questão da inconstitucionalidade". E, acrescentam: "[M]as mais lógico seria que, tomando conhecimento do acórdão da Relação, última instância de recurso no processo, e entendendo que o mesmo fizera uma interpretação inconstitucional das normas aplicadas, os recorrentes tivessem logo nesse momento processual interposto recurso para o Tribunal Constitucional."Em resposta, contrapõem os recorrentes que a questão apenas surgiu com a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, e que, por isso, nunca tiveram oportunidade de suscitar qualquer questão de inconstitucionalidade, "pois de uma situação verdadeiramente excepcional e insólita se tratava, estando, portanto, dispensados de cumprir tal ónus", e não podendo ser considerado e levado em conta o requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que visando uma revista de mérito, da acção, não foi admitido, em razão do valor da acção, tudo se passando, assim, como se nunca tivesse existido e os recorrentes nunca tivessem tido a
oportunidade de se pronunciarem.
Efectivamente, tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito efectiva aplicação das normas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Num entendimento funcional do referido ónus, o Tribunal tem exceptuado as situações, decerto excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não tenha disposto de oportunidade processual para suscitar a questão antes de proferida a decisão recorrida ou em que, dispondo abstractamente dessa oportunidade, não era exigível, agindo com diligência processual normal, que suscitasse então a questão de constitucionalidade que quer verapreciada.
Ora, o caso dos autos é daqueles em que a questão de constitucionalidade, em qualquer das vertentes em que o recorrente a apresenta, só se revela com a decisão recorrida. Efectivamente, o recurso de apelação não visava, ao menos directamente, a impugnação da matéria de facto, como facilmente se retira das conclusões das alegações da apelante (ora recorrida) e o próprio acórdão reconhece. Não seria razoável exigir que os então recorridos (ora recorrentes), para acautelar o recurso de constitucionali0dade, tivesse que suscitar nas contra-alegações a questão da inconstitucionalidade, antevendo a hipótese de a Relação fazer uso dos poderes conferidos no artigo 712.º do Código de Processo Civil e vir a proceder oficiosamente à alteração da matéria de facto sem a sua prévia audição.E é irrelevante que os recorrentes não tenham invocado a questão de constitucionalidade no recurso que interpuseram da decisão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça. Esse recurso foi rejeitado e a decisão que aplicou as normas em causa e é objecto do presente recurso de constitucionalidade é o acórdão
da Relação.
Deste modo, face à conformação concreta do litígio e à decisão proferida, conclui-se que os recorrentes não dispuseram, agindo com a diligência exigível, de oportunidade para suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, pelo que improcede a questão obstativa suscitada pelos recorridos e seconhecerá do objecto do recurso.
7 - Importa, porém, proceder à sua correcta delimitação, tendo em conta as questões colocadas pelos recorrentes e o teor da decisão recorrida.No acórdão recorrido considerou-se que o objecto da apelação era definido em função das conclusões das alegações do recorrente, ao abrigo do disposto nos artigos 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, com excepção das questões de conhecimento oficioso, e que «...entre as questões a respeito das quais esse imperativo conhecimento se impõe aos Tribunais da Relação, surgem, desde logo, as referentes à fixação da matéria de facto, dado a consolidada natureza de tribunais de
instância que aos mesmos assiste».
Ora, tendo em conta este poder-dever, no caso decorrente do artigo 712.º do CPC, entendeu-se que, muito embora a fixação da matéria de facto não tivesse sido posta em causa no recurso, essa decisão estava «eivada de deficiências» a justificar a intervenção da Relação no sentido da respectiva correcção e eliminação.Mais concretamente, entendeu-se que a resposta negativa dada ao quesito 11.º da base instrutória, era "obscura e até mesmo contraditória" com as respostas positivas dadas aos quesitos 5.º, 6.º, 7.º e 8.º, e que, «a prova produzida nos autos - seja de índole testemunhal, seja documental - e que conduziu às ditas respostas positivas, impunha por igual..., também pronunciamento positivo em relação a esse quesito 11.º».
Para a Relação não era possível, sob pena de manifesta incoerência, responder negativamente ao quesito 11.º, face às respostas positivas dadas aos outros quesitos, e essa deficiência transparecia não só ao nível puramente lógico-formal, confrontando o teor das respostas em si, mas também ao nível substancial da prova produzida.
É assim que, depois de analisar o teor das respostas dadas aos quesitos e a prova testemunhal e documental pertinente, se concluiu no aresto recorrido que «o negativo pronunciamento deferido ao ventilado quesito 11.º não pode subsistir, antes se impondo substituí-lo - presente o disposto no segmento inicial da alínea a) do n.º 1, do artigo 712.º, e n.º 4 do mesmo preceito -, por um outro de sentido inverso...».
Foi neste contexto que, sem audição das partes, a Relação alterou a resposta dada ao
quesito 11.º
Deste modo, não há autonomia entre a 1.ª e a 2.ª questões enunciadas pelos recorrentes no requerimento de interposição, reduzindo-se o objecto do recurso à apreciação da inconstitucionalidade das seguintes normas:A) A alínea a) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 712.º e o n.º 3 do artigo 684.º do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de permitirem que a Relação proceda oficiosamente à alteração da matéria de facto, com fundamento em deficiência, obscuridade ou contradição, quando constem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa;
B) O n.º 3 do artigo 3.º e a alínea a) do n.º 1 e o n.º 4 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de permitirem que a Relação proceda oficiosamente à alteração da matéria de facto, com fundamento em deficiência, obscuridade ou contradição, sem prévia audição das partes.
8 - Quanto à primeira questão, o dispositivo essencial é o que emerge do artigo 712.º, do Código de Processo Civil, invocado pela Relação como fundamento para o seu poder decisório, tendo os restantes uma aplicação indirecta ou consequencial desta norma, pois, é, efectivamente, da conjugação do n.º 4 com a parte inicial da alínea a) do n.º 1 desse preceito, que o tribunal recorrido extrai o poder-dever de alterar oficiosamente, a matéria de facto fixada, quanto a considere deficiente, obscura ou contraditória, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, mesmo no caso do recurso não versar sobre a matéria de facto.
8.1 - O artigo 712.º do Código de Processo Civil, na versão aplicável aos autos [redacção do Decreto-Lei 329.º-A/95, de 12 de Dezembro, e do Decreto-Lei 180/96, de 25 de Setembro], e na parte relevante para a presente decisão, é do
seguinte teor:
"Artigo 712.º
Modificabilidade da decisão de facto
1 - A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alteradapela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, adecisão com base neles proferida;
b) ...
c) ...
2 - ...
3 - ...
4 - Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1.ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
5 - ...
6 - ..."
Em contraposição com o que sucedia com o Código de Processo Civil de 1939, que estabelecia como regra a inalterabilidade da decisão do tribunal colectivo sobre a matéria de facto constante do questionário, o Código de 1961 procurou ampliar os poderes da Relação no que toca, não só à apreciação das respostas à matéria de facto dadas pelo tribunal de 1.ª instância, mas também à imposição duma fundamentação mínima relativamente às decisões do colectivo, e determinado a possibilidade de anulação, ainda que oficiosa, quando as respostas à matéria de facto fossem deficientes, obscuras ou contraditórias (Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, artigos 676.º a 943.º, Vol.3.º, 2003, p. 95).Contudo, na prática, apesar de se prever um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, face à redacção anterior do artigo 712.º, do Código de Processo Civil, só muito excepcionalmente tal garantia era exequível (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol., 3.ª ed., Janeiro de 2000, p. 186), pois, perante a anterior redacção da alínea a) do n.º 1 do citado artigo 712.º, a Relação só gozava do poder dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto se do processo constassem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão - o que apenas sucedia quando, havendo prova testemunhal, todas as testemunhas tivessem sido ouvidas por deprecada, estando os respectivos depoimentos reduzidos a escrito, ou se os elementos fornecidos pelo processo impusessem decisão diversa insusceptível de ser
destruída por quaisquer outras provas.
Nos demais casos, que a experiência demonstrou constituírem a larga maioria, bastava que na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal indicasse, ainda que em termos genéricos ou imprecisos, a interferência de prova testemunhal, declarações emitidas pelas partes, esclarecimentos prestados pelos peritos ou por quaisquer outras pessoas ouvidas na audiência de discussão e julgamento ou, ainda, o resultado da observação directa que o tribunal retirasse das inspecções judiciais, para que o tribunal superior ficasse impedido de sindicar a decisão proferida pelo tribunal a quo (Abrantes Geraldes, ob. e vol. cit., pp. 193/194).Aqui se fundaram, embora em termos não exclusivos, as principais críticas apontadas ao sistema (da oralidade plena, implementado no Código de Processo Civil de 1939 e continuado no Código de Processo Civil de 1961) e que acabaram por levar o legislador a aprovar as medidas intercalares previstas no Decreto-Lei 39/95, de 15 de Fevereiro, posteriormente mantidas na redacção final do Código de Processo Civil (Abrantes Geraldes, ob. e vol. cit., p. 186).
Efectivamente, o Decreto-Lei 39/95 veio possibilitar um recurso amplo sobre a matéria de facto, ao prescrever a possibilidade de registo ou documentação da prova, solução que a revisão do Código de Processo Civil operada em 1995/1996 (pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, e pelo Decreto-Lei 180/96, de 25 de Setembro), sedimentou. Assim, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto passou a poder ser alterada, não só nos casos previstos desde 1939, mas também quando, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tenha sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida (Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, artigos
676.º a 943.º, Vol. 3.º, p. 96).
Por virtude deste alargamento do conjunto de elementos probatórios à disposição da Relação e da ampliação dos seus poderes cognitivos criaram-se condições para que seja excepcional a anulação da decisão de facto proferida em 1.ª instância. Como diz Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.º ed., pág. 610) "constatada uma possível deficiência ou obscuridade quanto a certa parcela ou segmento da matéria de facto, se constarem do processo todos os elementos probatórios que lhe serviram de base, deverá a Relação, antes e em vez de anular a decisão, proceder à reapreciação do decidido, substituindo-se ao tribunal a quo e corrigido o erro de julgamento que considere ocorrido".8.2 - Os recorrentes alegam que a interpretação deste regime no sentido de que a Relação pode alterar oficiosamente a matéria de facto, quanto considere deficiente, obscura ou contraditória a decisão, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, apesar de o recurso não consistir em impugnação da matéria de facto, atenta contra o princípio da igualdade processual entre as partes e do contraditório e contra o direito a um processo justo e equitativo, "decorrentes do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pedra angular de um Estado de direito democrático".
São, efectivamente, as normas contidas no artigo 20.º n.os 1 e 4 da Constituição, no ponto em que elas asseguram o acesso ao direito e aos tribunais e, a todos os que intervenham numa causa, o direito a um processo equitativo, os parâmetros adequados para aferir da constitucionalidade das normas em causa no presente processo.
Sobre o alcance destas normas constitucionais pronunciou-se já, inúmeras vezes, o Tribunal Constitucional. Disse-se, entre muitos outros de idêntica doutrina, no Acórdão 330/01 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., págs. 771 e segs.:
"4.1. Como este Tribunal tem repetidamente sublinhado [cf., por último, o acórdão 259/2000 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 7 de Novembro de 2000)], o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante um correcto funcionamento das regras do contraditório [cf. o acórdão 86/88 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 11.º, páginas 741 e seguintes)].
Tal como se sublinhou no acórdão 358/98 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no acórdão 249/97 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Maio de 1997), o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que "a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos".
A ideia de que, no Estado de Direito, a resolução judicial dos litígios tem que fazer-se sempre com observância de um due process of law já, de resto, o Tribunal a tinha posto em relevo no acórdão 404/87 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 10.º, páginas 391 e seguintes). E, no acórdão 62/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 18.º, páginas 153 e seguintes) sublinhou-se que o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório "possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do
As partes num processo têm, pois, direito a que as causas em que intervêm sejam decididas "mediante um processo equitativo" (cf. o n.º 4 do artigo 20.º da Constituição), o que - tal como se sublinhou no acórdão 1193/96 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 35.º, página 529 e seguintes) - exige não apenas um juiz independente e imparcial (um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência), como também que as partes sejam colocadas em perfeita paridade de condições, por forma a desfrutarem de idênticas possibilidades de obter justiça, pois, criando-se uma situação de indefesa, a sentença só por acasoserá justa."
É à luz destes princípios que cumpre decidir a primeira questão que, repete-se, consiste em saber se é ou não inconstitucional a interpretação das normas dos artigos 712.º, n.º 1, alínea a), e n.º 4, 684.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, no sentido de permitirem que a Relação proceda oficiosamente à alteração da matéria de facto, com fundamento em deficiência, obscuridade ou contradição, quando constem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ainda que a decisão proferida com base neles não tenha sido impugnada nos termos do artigo 690.º-A do Código Processo Civil.Atente-se que com a interpretação normativa em causa o tribunal de recurso não se arroga poderes para proceder oficiosamente a uma geral e irrestrita alteração do julgamento da matéria de facto. Fá-lo no âmbito da base de facto relevante para a questão de direito discutida na apelação e para harmonizar do ponto de vista lógico as respostas do tribunal de 1.ª instância, eliminando a obscuridade e contradição que reputou existir nesse julgamento quanto a um concreto ponto da matéria de facto.
Efectivamente, sendo a decisão jurídica da causa uma decisão racional não pode assentar em factos que estejam entre si em contradição ou cuja equivocidade ou indeterminação de sentido impeça que se saiba que consequência jurídica se deve deles extrair. Impossibilitado, pela deficiência, obscuridade ou contradição da matéria de facto pertinente, de resolver as questões que lhe são submetidas e, portanto, de alcançar a decisão justa do litígio, ao tribunal de recurso coloca-se a alternativa de anular o julgamento de facto ou eliminar o vício, se dispuser de competência e de todos os elementos probatórios que serviram de base à decisão. A preferência normativa pela segunda opção em vez da pronúncia cassatória, mesmo que essa revisão do julgamento de facto não tenha sido pedida, justifica-se pelo interesse constitucionalmente relevante de obtenção da justiça em prazo razoável.
E não resulta dessa solução de suprimento oficioso pelo tribunal de recurso da obscuridade ou contradição das respostas quanto a pontos concretos da matéria de facto ofensa aos princípio do processo equitativo, designadamente, na vertente da igualdade de armas e do contraditório, aqui no sentido do direito de uma das partes se pronunciar sobre qualquer pretensão formulada pela parte contrária.
Com efeito, a alteração à matéria de facto faz-se no âmbito restrito das questões jurídicas em disputa, com recurso às provas produzidas nos autos, não convocando a Relação para este efeito meios de prova que não tivessem já sido submetidos à análise e ao contraditório das partes. Não há na situação em apreço qualquer violação do princípio da igualdade das partes no processo, porque o tribunal ao assim proceder não as trata diferenciadamente, dando a uma tratamento que tenha negado à outra, nem decide questão colocada por uma parte sem audição da outra. Perante a perplexidade em que se vê colocado pelo acervo factual sobre que as partes discutem e não podendo concluir pelo non liquidet, elimina oficiosamente o vício com base nos elementos que os autos fornecem e as partes conhecem. Não ouve só uma das partes, nem concede a uma a oportunidade de apresentar elementos de convicção que à outra nega. Assim, não se pode afirmar que, em função da alteração uma das partes tenha ficado numa situação desvantajosa em relação à outra no tocante ao pleno desfrute dos
meios adjectivos postos à sua disposição.
E também não podem dizer-se violados os demais princípios e normas constitucionaisinvocados.
Desde logo, carece absolutamente de sentido a referência aos artigos 207.º e 212.º da Constituição (cf. conclusão 16.ª), que versam, respectivamente, sobre o júri, participação popular e assessoria técnica nos tribunais e sobre os tribunaisadministrativos e fiscais.
E é manifestamente infundada a arguição de que a norma em causa viola o princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica, ínsitos no artigo 2.º da Constituição, que a recorrente não fundamenta. A alteração oficiosa da matéria de facto ocorre no âmbito da base de facto relevante para decisão de questões jurídicas em disputa num processo pendente e para eliminar obscuridades ou contradições impeditivas da justa resolução dessas questões ainda controvertidas, pelo que se não vislumbra de que modo pode ser atingido o direito dos cidadãos a confiar na estabilidade das decisõesjudiciais.
9 - Apurado que a alteração oficiosa da matéria de facto pelo tribunal de recurso, ao abrigo do n.º 4 e da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, em ordem a eliminar obscuridades ou contradições do julgamento da matéria de facto relevante para a decisão das questões jurídicas em disputa, não viola as garantias que decorrem do direito ao processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), importa averiguar se também passa incólume a essa censura o entendimento dessas mesmas normas em conjugação com o n.º 3 do artigo 3.º do mesmo Código, no sentido de que para assim proceder não é necessário ouvir previamente as partes, designadamente a parte em desfavor da qual é feita a alteração.Este último preceito dispõe que o juiz "deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem".
Como já se disse a propósito da questão anteriormente tratada, o artigo 20.º da Constituição não se limita a garantir o direito de acesso aos tribunais. Impõe que esse direito se efective - na conformação normativa e na concreta condução - através de um processo equitativo (n.º 4 do artigo 20.º da CRP).
Levada expressamente ao texto constitucional pela revisão operada pela lei Constitucional 1/97, a exigência do processo equitativo, conceito em cuja densificação tem papel de relevo a jurisprudência dos órgãos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem sobre o conceito homólogo consagrado no artigo 6.º da CEDH, já anteriormente se deduzia de outros lugares da Constituição e era reconhecido pela jurisprudência do Tribunal (cf. p. ex. acórdão 1193/96).
Para o processo civil e para os modelos processuais a que aquele serve de paradigma (para o processo penal a Constituição fornece no artigo 32.º elementos de concretização suplementares), a jurisprudência e a doutrina têm desenvolvido o conceito através de outros princípios que o densificam: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., pág. 415).
No caso, não está em consideração a violação do contraditório na sua formulação clássica (audiatur et altera pars), enquanto exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de "deduzir as suas razões (de facto e de direito)", de "oferecer as suas provas", de "controlar as provas do adversário" e de "discretear sobre o valor e resultados de umas e outras". A questão que agora se aprecia respeita à proibição das chamadas decisões surpresa, ou seja, à imposição ao tribunal do dever de ouvir as partes antes de tomar decisões com fundamento de conhecimento oficioso que não tenha sido por elas previamente considerado. O que está em causa não é a garantia de defesa, no sentido negativo de oposição perante pretensão da outra parte, mas o direito de influenciar a formação da decisão do órgão judicial que lhe diz directamente respeito e que também tem de considerar-se incluído na exigência constitucional do processo
equitativo.
Mais precisamente, uma vez que a consideração do que é uma concepção justa e leal do processo não pode ser traçada abstractamente e que nos situamos num processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, importa saber se a exigência do processo equitativo funda uma extensão do contraditório de tal modo que se considere que aquele princípio constitucional é infringido por uma norma que dispense (i.e., interpretada no sentido de dispensar) o tribunal de recurso de ouvir previamente as partes quando venha a optar pela alteração oficiosa da matéria de facto, com base nos elementos probatórios em que se fundou a decisão da 1.ª instância, para eliminarobscuridades ou contradições.
E aqui a resposta é positiva.
A parte que é objectivamente desfavorecida pelo sentido da alteração da decisão de facto não vê garantida a sua participação efectiva num momento fulcral do desenvolvimento da lide perante o tribunal de recurso e que vem a ser decisivo para a solução que esse tribunal dá à questão sobre a qual incidiu a discussão das partes nessa fase processual. A base factual é crucial na aplicação do direito pelos tribunais. A discussão que as partes travaram nas alegações e contra-alegações, tomando por referente as respostas aos pontos da matéria de facto fixadas na decisão recorrida, pode ficar esvaziada de sentido se esse pressuposto desaparece. Não conceder às partes, perante a solução plausível de vir a alterar oficiosamente a base factual, a oportunidade de apresentar as razões pelas quais essa alteração não deve ser feita é privá-las da participação num momento constitutivo da decisão da causa. Mormente quando, como na aplicação normativa concreta sucedeu, a alteração não se reduz à eliminação de incongruências frontais imposta por exigências imperativas de lógica formal que só consintam um indiscutível sentido da proposição questionada, antes envolve a reapreciação da prova documentada no processo em ordem a suportar osentido da alteração a que se chegou.
Deste modo, a referida norma, entendida como implicitamente o foi no sentido de o exercício dos referidos poderes da Relação não dever ser precedido de audição das partes, conduz a que a decisão da causa não seja, nessa fase processual, o resultado deum processo equitativo.
Aliás, o Tribunal Constitucional já afirmou entendimento semelhante deste princípio em casos de exercício de poderes oficiosos aparentados com a hipótese que agora se aprecia, designadamente no acórdão 440/94 (condenação por litigância de má fé, sem prévia audição dos interessados sobre tal matéria) e n.º 605/95 (condenação extra vel ultra petitum em processo laboral), publicados, respectivamente, no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Setembro de 1994 e 15 de Março de 1996 e disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. E no acórdão 205/2003, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 2 de Julho de 2003, reconheceu-se expressamente que a norma contida no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil "resulta, assim, de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões - suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso - que o tribunal vier a decidir", embora nesse caso se tenha concluído pela não violação do princípio constitucional.Procede, pois, o recurso nesta parte, improcedendo no mais.
III - Decisão. - Pelo exposto, concedendo parcial provimento ao recurso, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, a norma extraída do n.º 3 do artigo 3.º e da alínea a) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, quando interpretados no sentido de permitirem que a Relação proceda oficiosamente à alteração da matéria de facto, com fundamento em deficiência, obscuridade ou contradição da decisão da 1.ª instância nesse domínio e, consequentemente, modifique a decisão da causa, sem prévia audição das partes;
b) Determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido
quanto à questão de constitucionalidade;
c) Julgar no mais improcedente o recurso.
Lisboa, 8 de Julho de 2009. - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Gil Galvão.