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Acórdão 275/2009, de 7 de Julho

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Sumário

Julga organicamente inconstitucional a norma extraída da conjugação do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e dos artigos 152.º, n.º 3, e 153.º, n.º 8, ambos do Código da Estrada, de acordo com a redacção fixada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro (Processo n.º 647/08)

Texto do documento

Acórdão 275/2009

Processo 647/08

Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Nos presentes autos, foi interposto recurso pelo Ministério Público, com natureza obrigatória, ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 da CRP e dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 3, ambos da LTC, da sentença do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Esposende, proferida em 27 de Maio de 2008 (fls. 40 a 47) que determinou a desaplicação da norma extraída a partir da conjugação do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e dos artigos 152.º, n.º 3 e 153.º, n.º 8, ambos do Código da Estrada, de acordo com a redacção fixada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica, por versar sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, sem que o Governo estivesse dotado da necessária autorização legislativa, bem como na sua inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade e da restrição mínima da liberdade pessoal, previsto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.

2 - Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, das quais

constam as seguintes conclusões:

«1. Como na versão do Código da Estrada saída da alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro, a conduta do recorrente já era punível como crime de desobediência, as alterações introduzidas naquele Código pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, nada inovaram.

2 - Por isso, as normas dos artigos 152.º, n.º 3 e 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei 44/2005, em conjugação com o artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na interpretação segundo a qual constitui crime de desobediência a recusa injustificada a ser-se submetido a colheita de sangue para análise, nos casos em que, para apurar a taxa de alcoolemia de condutor de veículo automóvel, não for possível a realização de prova por pesquisa no ar expirado, não são

organicamente inconstitucionais.

3 - A norma também não é materialmente inconstitucional, não violando qualquer princípio ou preceito constitucional, designadamente os artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.º 8,

da Constituição.

4 - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o julgamento de não inconstitucionalidade da norma desaplicada na sentença recorrida.»

(fls. 67 e 68)

4 - Notificado para tal, o recorrido contra-alegou, podendo extrair-se as seguintes

conclusões:

"1. O recorrido foi julgado pela prática de um crime de desobediência por ter recusado submeter-se a colheita de sangue para avaliar o estado de influenciado pelo álcool, e, veio a ser absolvido pelo facto de o Exmo. Senhor juiz a quo ter entendido que as disposições conjugadas dos artigos 348º n.º 1, alínea a) do Código Penal por referência aos artigos 152.º n.º 3 e 153.º n.º 8 do Código da Estrada, violam a Reserva Relativa da Assembleia da República sendo por isso, organicamente inconstitucionais.

2 - Além disso, as normas em questão violam também o principio da proporcionalidade, previsto no artigo 18º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e ainda o artigo 32º n.º 8, também da CRP, pois a recolha de prova para procedimento criminal mediante colheita de sangue é ofensiva do direito à integridade física do recorrido, na medida em que o mesmo não autorizou essa colheita e vai, por

isso, ser sancionado criminalmente.

3 - De facto, o entendimento do recorrido vai também nesse sentido, aliás, nem poderia

o entendimento ser outro.

4 - Senão vejamos,

5 - Quanto à inconstitucionalidade orgânica referida, convém referir que a criminalização da recusa a submissão a provas para detecção do estado de influenciado pelo álcool remonta ao Dec. Lei 2/98 de 3 de Janeiro que introduziu alterações ao

Código da estrada.

6 - O Dec. Lei 2/98 foi precedido de Lei de Autorização (Lei 97/97 de 23 de Agosto) que concedeu autorização ao Governo para proceder à alteração do Código da

Estrada.

7 - Porém, necessário se torna referir que a criminalização da recusa efectivada pelo Dec. Lei 2/98 não abrangeu o exame por colheita de sangue, ou seja, a recusa apenas constituía crime de desobediência nos casos em que o examinado se recusasse a realizar os exames por ar expirado ou o exame médico, pois para o exame por colheita de sangue era necessário o consentimento do examinado.

8 - Referia o artigo 158.º n.º 3 à altura o seguinte, "Quem recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, para as quais não seja necessário o seu consentimento nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo

159.º, é punido por desobediência".

9 - Compulsado o artigo 59º, à data a que nos estamos a reportar, conclui-se que o exame por análise de sangue não era obrigatório, pois apenas era realizado para efeito de contraprova e a requerimento do examinado, sendo que por isso a recusa de fazer exame de sangue não constituía crime de desobediência.

10 - As únicas provas de detecção do estado de influenciado pelo álcool obrigatórias, eram o exame por ar expirado e o exame médico.

11 - O Código da Estrada foi entretanto novamente alterado pelo Decreto-Lei 265 -

A/2001, de 28 de Setembro.

12 - Esta alteração não foi precedida de qualquer lei de autorização.

13 - O artigo 158.º n.º 3 do Código da Estrada passa então a referir o seguinte: "quem recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas é punido por desobediência."

14 - Parece que desta última alteração podemos retirar uma criminalização da recusa à submissão a colheita de sangue para avaliação do estado de influenciado pelo álcool.

15 - No entanto, da análise do artigo 159.º n.º 7 do C.E. concluímos que o exame por colheita de sangue continua a funcionar como contraprova, e a requerimento do

examinado.

16 - Logo não podemos concluir que quando o examinado, tendo-se submetido a pesquisa de álcool no ar expirado, se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, o mesmo perpetre o crime de desobediência previsto no artigo 348º n.º 1,

alínea a) do Código Penal.

17 - Até porque, o artigo 159º n.º 7 do Código da Estrada confere ao examinado a possibilidade de recusa de submissão a colheita de sangue para análise.

18 - Posteriormente, deparamo-nos ainda com a a1teração do DL 44/2005 de 23 de

Fevereiro.

19 - Esta alteração, foi, por sua vez, autorizada pela Lei 53/2004 de 4 de Novembro.

20 - Desde já se refere que a mencionada lei de autorização não contempla qualquer tipo de criminalização da conduta do examinado que recuse submeter-se a colheita de sangue para ava1iação do estado de influenciado pelo álcool.

21 - Desta última alteração ao Código da Estrada, não resulta qualquer alteração ao artigo 158.º n.º 2 (cuja previsão passa agora para o artigo 152º n. 3 do C. E.) 22 - Porém, o artigo 159º n.º 7, foi alterado e transposto para o actual 153.º n.º 8 do C.E., passando então a referir o seguinte: "Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinado deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de

influenciado pelo álcool."

23 - Da leitura da norma referida, retira-se que a alteração que o DL. 44/2005, de 23 de Fevereiro fez ao Código da Estrada, e concretamente ao actual artigo 153.º n.º 8, criminalizou efectivamente e pela primeira vez, a recusa da realização de colheita de

sangue.

24 - Não podemos, no entanto, esquecer que esta última alteração ao Código da Estrada, tendo sido precedida de Lei de autorização (Lei 53/2004 de 4 de Novembro), essa Lei de Autorização não contempla uma criminalização da recusa de submissão a colheita de sangue para avaliação do estado de influenciado pelo álcool.

25 - E, assim sendo, deparamo-nos com uma violação da Reserva Relativa de Competência da Assembleia da República, concretamente do artigo 165.º n.º 1, alínea c) da Constituição da República Portuguesa.

26 - Em consequência da violação da reserva relativa de competência da Assembleia da República, verifica-se inconstitucionalidade orgânica dos artigos 348º n.º 1, alínea a) do Código Penal, bem como dos artigos 152 n.º 3 e 153º n.º 8 do Código da Estrada.

27 - Por outro lado, e no que respeita à inconstitucionalidade material do artigos 152º n.º 3 e 153º n.º 8 do Código da Estrada, diremos o seguinte.

28 - A criminalização da recusa à submissão a colheita de sangue para fazer despiste do estado de influenciado pelo álcool, constitui uma ilegítima violação do direito a

integridade física do recorrido.

29 - Desde logo, porque o exame por colheita de sangue pressupõe, sempre, a introdução no corpo do recorrido, contra a sua vontade, de uma agulha.

30 - E duvidas não se terão, de que o espetar de uma agulha no corpo de uma determinada pessoa, contra a sua vontade constitui uma manifesta ofensa ao seu direito

à integridade física.

31 - O direito à integridade física das pessoas, como direito fundamental que é, encontra-se consagrado na Constituição da República Portuguesa, no artigo 25º, referindo o n.º 1 que a integridade física das pessoas é inviolável, 32 - Esta violação ilegítima do direito à integridade física do recorrido, não pode ser tolerada até porque a mesma não é justificada face aos valores aqui em ponderação.

33 - O artigo 18.º n.º 2 refere o critério a ter em conta em casos em que surja a necessidade de restrição de direitos fundamentais, dispondo o seguinte: "A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".

34 - Assim, esta ofensa à integridade física do recorrente através da introdução no seu corpo de uma agulha, sem o seu consentimento viola também o artigo 18.º n.º 2 da CRP, pois esta ofensa não é proporcional, isto é, não é justificável face ao interesse, também ele protegido constitucionalmente, que se pretende salvaguardar.

35 - Os valores que aparentemente se pretendem salvaguardar com a criminalização da recusa a submissão a colheita de sangue para avaliação do estado de influenciado pelo álcool, seriam a segurança rodoviária e a integridade física de terceiros.

36 - Porém, isto não é exacto, pois o que verdadeiramente aqui está em causa é a recolha de provas para a incriminação do recorrido por um crime.

37 - Ou seja, o que está em causa não é o impedimento de um condutor embriagado conduzir e assim pôr em causa a segurança de terceiros e a própria segurança rodoviária, mas sim através de uma colheita de sangue ofensiva da integridade física do recorrido, angariar provas para o punir por um crime.

38 - Ofendendo como ofende a integridade física do recorrente, este meio de prova terá que ser considerado nulo, conforme aliás se retira do n.º 8 do artigo 32 da

Constituição da República Portuguesa.

39 - Esta disposição veda qualquer tipo de violação à integridade física da pessoa para

a obtenção de prova em processo criminal.

40 - Assim, facilmente se conclui, por todos os argumentos aqui referidos, que o direito à integridade física do recorrente terá que prevalecer sobre o objectivo de angariar

provas para a punição do mesmo.

41 - Mais uma vez se frisa que esta introdução no corpo do recorrido de uma agulha para colheita de sangue cujo objectivo é fazer prova de um crime, violando o seu direito à integridade física, direito constitucionalmente garantido, é ofensiva quer do artigo 25.º da Constituição da República Portuguesa, bem como do n.º 2 do artigo 18.º

e do artigo 32.º n.º 8 do diploma citado.

42 - Por isso, a criminalização da recusa por parte do recorrente em permitir a ofensa já atrás referida, é também, materialmente inconstitucional, na medida em que, é a própria constituição que repudia a obtenção de provas mediante ofensa à integridade

física das pessoas." (fls. 70 a 80)

Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

5 - Como ponto de partida registe-se que a possibilidade de tipificação de um crime de desobediência, resultante da conjugação do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e dos artigos 152.º, n.º 3 e 153.º, n.º 8, ambos do Código da Estrada, de acordo com a redacção fixada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, se encontra inscrita na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia de República [alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º, da CRP]. De notar igualmente que se afigura inquestionável a ausência de autorização legislativa ao Governo para legislar sobre tal matéria, na medida em que a Lei 53/2004, de 04 de Novembro - que o Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, expressamente invoca - , não contém qualquer disposição normativa nesse sentido.

Certo é, portanto, que a norma ora colocada em crise não beneficia de qualquer autorização legislativa concedida pela Assembleia da República ao Governo.

Porém, por si só, esta não será razão suficiente para optar pela inconstitucionalidade orgânica da norma. Com efeito, a análise da jurisprudência consolidada no Tribunal Constitucional aponta no sentido de que a falta de lei de autorização legislativa, em matéria de competência legislativa relativamente reservada da Assembleia da República, não obsta a que o Governo possa legislar, desde que a normação adoptada não se revista de conteúdo inovatório face à anteriormente vigente. A título de exemplo, cite-se o Acórdão 114/08 da 3.ª Secção do Tribunal Constitucional (disponível in

www.tribunalconstitucional.pt):

"Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em jurisprudência que remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de inconstitucionalidade orgânica. Força é que se demonstre que as normas postas sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente (Cf. os acórdãos n.º s 502/97, 589/99, 377/02, 414/02, 450/02, 416/03, 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o acórdão 123/04 (Plenário) publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 30 de Março de 2004. Cf. ainda, aliás com posição discordante, a indicação de Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, págs. 234/235).

Para tanto, para que essa intromissão formal em domínios de reserva relativa de competência parlamentar seja irrelevante, é necessário que se possa concluir pelo carácter não inovatório da normação suspeita. Não bastará a mera verificação da identidade textual dos dispositivos legais em sucessão, tendo também de ponderar-se os demais elementos de interpretação da lei, pois o mesmo texto, reproduzido em novo contexto, pode adquirir diverso conteúdo normativo.

Mas, adquirida a certeza do carácter materialmente não inovatório da norma editada pelo Governo, na perspectiva da distribuição constitucional de competências legislativas tutelada pela inconstitucionalidade orgânica, não se vê razão para a invalidade da norma. A opção política e a volição legislativa primária do parlamento materializadas em determinado acto legislativo da Assembleia da República ou parlamentarmente autorizado mantêm-se intocadas no ordenamento jurídico, apesar da recompilação no

novo acto legislativo do Governo.

(...)

Ora, como se deixou dito, os factos imputados ao arguido, ora recorrido, eram punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada na versão deste Código anterior àquela em que se insere a norma a que agora foi subsumida essa conduta. E continuam a ser punidos como crime de desobediência qualificada pelo n.º 2 do artigo 138.º na nova versão do Código, nos mesmos exactos termos. A diferente numeração e a alteração da epígrafe do preceito é mera consequência da reordenação dos demais preceitos do Código, não traduzindo diversa valoração quanto ao bem jurídico protegido ou quanto ao contexto dos elementos relevantes para a punição desta conduta. Nesta parte, continua a tutelar-se penalmente, agora como antes, o cumprimento das decisões que imponham sanções acessórias de inibição de conduzir pela prática de contra-ordenações em matéria de circulação rodoviária. Não houve aqui intervenção materialmente constitutiva do Governo. Estão, assim, reunidas as condições para que, à luz da referida jurisprudência do Tribunal e tendo em consideração que estamos no âmbito de um processo de fiscalização concreta, a intromissão legislativa formal não autorizada do Governo no domínio da reserva relativa da competência da Assembleia da República não gere

inconstitucionalidade orgânica."

Retomando esta linha de raciocínio, há que proceder a uma comparação entre a norma existente antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro - "in casu", o n.º 7 do artigo 159.º do Código da Estrada - e a que resulta da posterior vigência do referido diploma legal - a norma extraída a partir da conjugação do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e dos artigos 152.º, n.º 3 e 153.º, n.º 8, ambos do Código da Estrada, de acordo com a redacção fixada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro - com o intuito de averiguar se existe ou não inovação normativa, sendo que apenas no primeiro caso se poderá concluir no sentido da

inconstitucionalidade orgânica.

Vejamos, então.

6. A norma que configura o tipo incriminador ora em apreço é obtida através da conjugação do tipo genérico do crime de desobediência [alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º, do CP] com as seguintes disposições do Código da Estrada, segundo a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei 44/2005:

"Artigo 152.º

Princípios gerais

(...)

3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.

(...)

Artigo 153.º

Fiscalização da condução sob influência de álcool

(...)

8 - Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool."

Importa, portanto, analisar o regime anteriormente vigente, de modo a aquilatar a natureza inovatória da norma desaplicada pela decisão recorrida.

A versão originária do actual Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 03 de Maio) determinava, através do n.º 1 do artigo 158.º, o dever legal de submissão a exames para detecção de possíveis intoxicações por parte de condutores e demais utentes da via pública, estes últimos quando tenham sido intervenientes num acidente de trânsito. Contudo a referida versão originária do Código da Estrada não estabelecia quaisquer sanções - penais ou de outra natureza - para os indivíduos que recusassem a realização dos referidos exames, limitando-se, por força do artigo 159.º, a remeter o procedimento de fiscalização para legislação especial.

Até à entrada em vigor da versão originária do Código da Estrada, vigoravam o Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril, que fixava o regime jurídico aplicável à condução sob efeito de álcool, bem como o respectivo Decreto Regulamentar 12/90, de 14 de Maio. Os referidos diplomas não foram alvo de revogação pelo Decreto-Lei 114/94, de 03 de Maio, uma vez que o seu artigo 7.º determinava a manutenção em vigor de todos os regimes jurídicos especiais até que entrassem em vigor as normas regulamentares necessárias à aplicação do novo Código da Estrada.

Depois de prever o dever legal de sujeição a exames para efeitos de fiscalização da condução sob o efeito de álcool (artigos 6.º, 8.º e 9.º), o artigo 12.º do Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril de 1990, determinava o seguinte:

"Artigo 12.º

Recusa a exames

1 - Todo o condutor que, ou pessoa que contribua para acidente de viação, que se recusar a exame de pesquisa de álcool será punido com pena de prisão até um ano ou

multa até 200 dias."

O referido Decreto-Lei 124/90 foi precedido da necessária autorização legislativa, concedida pela Lei 31/89, de 23 de Agosto, que, nos termos da alínea a) do artigo 2.º, previa expressamente a possibilidade de o Governo criar tipos incriminadores relativamente à recusa de realização de exames para detecção de álcool no sangue.

Assim, fica demonstrado que, desde a entrada em vigor do referido diploma legal que se encontrava previsto no ordenamento jurídico português o crime de recusa de realização de exame de pesquisa de álcool no sangue.

Tal regime vigorou até à entrada em vigor do Decreto-Lei 2/98, de 03 de Janeiro, que, através do seu artigo 20.º, n.º 1, revogou expressamente o Decreto-Lei 124/90, optando por concentrar o regime jurídico primário da fiscalização da condução sob o efeito do álcool no próprio Código da Estrada (artigos 158.º a 165.º). Por sua vez, o Decreto Regulamentar 12/90 permaneceu em vigor até à entrada em vigor do Decreto Regulamentar 24/98, de 30 de Outubro, conforme determinado pelo n.º 2 do artigo 20.º do Decreto-Lei 2/98, de 03 de Janeiro.

A partir da entrada em vigor do Decreto-Lei 2/98, de 03 de Janeiro, o anterior tipo incriminador específico de recusa de submissão a exame para detecção de álcool no sangue foi substituído pelo tipo genérico de crime de desobediência, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, por força de expressa previsão do n.º 3 do (então) artigo 158.º do Código da Estrada:

"Artigo 158.º

Princípios gerais

(...)

3 - Quem recusar a submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, para as quais não seja necessário o seu consentimento nos termos dos n.º s 2 e 3 do artigo 159.º, é punido por desobediência."

A referida norma encontrava-se autorizada pela Lei 97/97, de 23 de Agosto, nos

seguintes termos:

"Artigo 3.º

Fica ainda o Governo autorizado a estabelecer:

(...)

d) A punição como desobediência da recusa, por condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais para detecção de estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, e ainda dos médicos ou paramédicos que, injustificadamente, se recusem a proceder às diligências previstas na lei para

diagnosticar os referidos estados."

Daqui decorre que, por força do tipo incriminador constante do n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada, segundo a redacção do Decreto-Lei 2/98, cometia o crime de desobediência aquele que recusasse submeter-se a exame para detecção de álcool no sangue, salvo quando fosse legalmente exigido o seu consentimento, designadamente, nos casos de contraprova, que dependia sempre de iniciativa do examinado (cf. n.º s 2 e 3 do artigo 159.º da redacção então vigente do Código da

Estrada).

Através de decreto-lei não autorizado (cf. Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro), o Governo viria a alterar os elementos típicos do crime de desobediência, bem como a aditar um n.º 7 ao artigo 159.º do Código da Estrada:

"Artigo 158.º

1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como

estupefacientes ou psicotrópicas:

a) Os condutores;

b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;

c) As pessoas que se propuserem a iniciar a condução.

(...)

3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou como psicotrópicas são

punidas por desobediência."

"Artigo 159.º

Fiscalização da condução sob influência do álcool

(...)

7 - Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se recusar, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o

estado de influenciado pelo álcool."

Da análise desta evolução legislativa, podemos extrair as seguintes conclusões

preliminares:

i) O crime específico de recusa de submissão a exames para controlo do álcool no sangue (artigo 12.º) encontra-se previsto no ordenamento jurídico português, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril, adoptado ao abrigo de

autorização legislativa;

ii) A partir da entrada em vigor do Decreto-Lei 2/98, de 03 de Janeiro, adoptado ao abrigo de autorização legislativa, passou a prever-se no ordenamento jurídico português o crime de desobediência simples, salvo quando fosse necessário o consentimento do examinando, por exemplo, nos casos de contraprova [artigo 158.º, n.º 3, do Código da Estrada então vigente];

iii) Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro, adoptado sem prévia autorização legislativa, reconhece-se ao examinando o direito a recusar colheita de sangue, sem necessidade de fundamentação, nos casos em que seja impossível proceder a pesquisa de álcool em ar expirado;

iv) Desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, adoptado sem prévia autorização legislativa, retira-se ao examinando o direito a recusar colheita de sangue, independentemente do motivo, nos casos em que seja impossível proceder a pesquisa de álcool em ar expirado, apenas sendo realizado exame médico no caso da colheita de sangue não ser possível por razões médicas.

7 - Vejamos, então, como ajuizar a similitude entre a norma constante do originário n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada [na redacção conferida pelo Decreto-Lei 2/98] - única norma dotada da necessária autorização legislativa - e a norma actualmente decorrente da conjugação entre o n.º 3 do artigo 152.º e o n.º 8 do artigo

153.º do vigente Código da Estrada.

A alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei 44/2005 representa um passo à frente face à dimensão normativa decorrente da conjugação entre o n.º 3 do artigo 158.º e o n.º 7 do artigo do Código da Estrada [na redacção conferida pelo Decreto-Lei 265-A/2001]. Dá-se por adquirido, na esteira da anterior jurisprudência deste Tribunal (cf. Acórdãos n.º 423/06 e n.º 628/06, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt), que a alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001 não implicou uma ruptura face ao tipo penal resultante do n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada vigente até então. É que, note-se, mesmo que o n.º 3 do referido artigo 158.º do Código da Estrada tenha deixado de incluir o elemento do tipo "para as quais não seja necessário o seu consentimento nos termos dos n.º s 2 e 3 do artigo 159.º", este mesmo elemento do tipo de crime de desobediência permanece ínsito do Código da Estrada. Isto porque o n.º 7 do (então) artigo 159.º do Código da Estrada garantia que o examinando pudesse recusar, sem exigida fundamentação, a recolha de sangue - o que denota uma notória preocupação do legislador em salvaguardar o direito à integridade física e, eventualmente, moral, em casos de recusa fundada em razões religiosas ou filosóficas (cf. artigos 25.º e 41.º, n.º 6, ambos da CRP), bem como à reserva da intimidade privada (cf. artigo 26.º, n.º 1, da CRP) - , sendo esta substituída por outro tipo de exame médico.

Assim, a conjugação do n.º 7 do (então) artigo 159.º do Código da Estrada com a nova redacção do n.º 3 do (então) artigo 158.º do mesmo diploma codificador garantia que o examinando nunca cometeria o crime de desobediência, sempre que recusasse, de modo sempre legítimo nos termos da lei, a recolha de sangue, funcionando, de certo modo, como um elemento negativo daquele mesmo crime de desobediência. Ou seja, quando não fosse possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado - ónus que correria sempre contra o Estado, quando não dispusesse dos equipamentos adequados - , apenas haveria cometimento do crime de desobediência se o examinando recusasse realizar o exame médico alternativo.

Como é bom de ver esta dimensão normativa - como já reconhecido nos Acórdãos n.º 423/06 e n.º 628/06 - era, de todo em todo, equivalente à que resultava do n.º 3 do (então) artigo 158.º do Código da Estrada [na redacção conferida pelo Decreto-Lei 2/98] que, como já vimos, beneficiava da competente autorização legislativa.

8 - Porém, entende-se que o mesmo já não se passa com a norma actualmente extraída da conjugação entre o n.º 3 do artigo 152.º e o n.º 8 do artigo 153.º do Código da Estrada [agora segundo a redacção resultante do Decreto-Lei 44/2005].

Da mera comparação literal entre o n.º 8 do actual artigo 153.º do Código da Estrada e as anteriores normas - seja ela a extraída do n.º 3 do artigo 158.º [segundo o Decreto-Lei 2/98] ou a extraída da conjugação entre o n.º 3 do artigo 158.º e o n.º 7 do artigo 159.º [segundo o Decreto-Lei 265-A/2001] - resulta evidente que o legislador governamental substituiu o elemento negativo do tipo de crime de desobediência a realização de exame "se recusar", substituindo-o por "se esta não for possível por razões médicas". Com efeito, o legislador governamental pretendeu retirar aos condutores sujeitos aos exames para comprovação do teor de influência sob álcool o direito à recusa de colheita de sangue - note-se - mesmo nos casos em que a impossibilidade de realização de exame por método de ar expirado é apenas imputável ao Estado. Quando antes qualquer condutor podia recusar a sujeição a exame mediante colheita de sangue, sem necessidade de fundamentação em razões médicas - frise-se bem - , passa agora a exigir-se que a não realização da colheita de sangue apenas possa ser justificada pela impossibilidade técnica de tal operação médica.

Claro está que os condutores continuarão a praticar o crime de desobediência sempre que recusem a realização do exame através do método de ar expirado ou, quando este não for possível, quando recusem o exame médico alternativo à colheita de sangue.

Ora, a nova redacção do n.º 8 do artigo 153.º do Código da Estrada vem, de modo manifesto, agravar a responsabilidade criminal dos condutores que pretendam - muitas vezes, admite-se, por razões plenamente justificadas e até protegidas pela Lei Fundamental [direito à integridade física e moral, direito à intimidade privada, direito à objecção de consciência] - , na medida em que passa a punir como crime de desobediência a recusa de sujeição a colheita de sangue nos casos em que seja

tecnicamente possível fazê-lo.

Verificado esse mesmo conteúdo inovatório, é forçoso concluir-se que o legislador governamental necessitava da autorização legislativa, na medida em que a decisão normativa primária cabia à Assembleia da República, por força da alínea c) do n.º 1 do

artigo 165.º da CRP.

Opta-se, assim, pela inconstitucionalidade orgânica da norma objecto do presente recurso, razão pela qual não se conhecerá da também alegada inconstitucionalidade material por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) ou por violação da proibição de obtenção de prova mediante ofensa da integridade física ou moral da pessoa ou abusiva intromissão na vida privada (artigo 32.º, n.º 8, da CRP).

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.

Sem custas, por não serem legalmente devidas.

Lisboa, 27 de Maio de 2009. - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Gil Galvão.

201978518

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/07/07/plain-256323.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/256323.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1989-08-23 - Lei 31/89 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a legislar sobre segurança rodoviária.

  • Tem documento Em vigor 1990-04-14 - Decreto-Lei 124/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Establece o novo regime sancionatório da condução sob a influência do álcool.

  • Tem documento Em vigor 1990-05-14 - Decreto Regulamentar 12/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Estabelece normas regulamentares do regime sancionatória da condução sob influência do álcool.

  • Tem documento Em vigor 1994-05-03 - Decreto-Lei 114/94 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o Código da Estrada, cujo texto se publica em anexo.

  • Tem documento Em vigor 1997-08-23 - Lei 97/97 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio. A presente autorização legislativa tem a duração de 180 dias.

  • Tem documento Em vigor 1998-01-03 - Decreto-Lei 2/98 - Ministério da Administração Interna

    Altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio. Republicado em anexo com as alterações ora introduzidas.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-30 - Decreto Regulamentar 24/98 - Ministério da Administração Interna

    Regulamenta os procedimentos para a fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas.

  • Tem documento Em vigor 2001-09-28 - Decreto-Lei 265-A/2001 - Ministério da Administração Interna

    Altera o Código da Estrada, aprovado pelo Dec Lei 114/94 de 3 de Maio. Republicado em anexo com as alterações ora introduzidas.

  • Tem documento Em vigor 2004-11-04 - Lei 53/2004 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio.

  • Tem documento Em vigor 2005-02-23 - Decreto-Lei 44/2005 - Ministério da Administração Interna

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio e posteriormente alterado. Republicado na íntegra com todas as alterações.

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