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Acórdão 76/2016, de 6 de Abril

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Sumário

Julga inconstitucional a norma contida no n.º 1 do artigo 257.º da Lei n.º 35/2004, de 29 de julho (dever de comunicação dos acidentes de trabalho às autoridades administrativas que é imposto aos empregadores)

Texto do documento

Acórdão 76/2016

Processo 30/14

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Lidl & Companhia - Lojas Alimentares, L.da impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) que a condenou numa coima pela prática da contraordenação prevista e punida nos n.os 1 e 2 do artigo 257.º e n.º 2 do artigo 484.º da Lei 35/2004, de 29 de julho (Regulamentação do Código de Trabalho), em aplicação da alínea m), do n.º 6, do artigo 12.º da Lei 7/2009, de 12/02, pelo facto de não ter comunicado àquela Autoridade o acidente de trabalho ocorrido com uma trabalhadora sua.

Por sentença de 21/11/2013, o Tribunal Judicial de Portimão decidiu julgar inconstitucional a norma constante da parte final do n.º 1 do artigo 257.º da Lei 35/2004, de 29 de julho, por violação do princípio da tipicidade plasmado nos artigos 29.º, n.º 1 e 3, e 30.º, n.º 1, da Constituição, absolvendo a arguida e ora recorrida da condenação pela prática da contraordenação prevista nessa norma.

Dessa decisão, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC e nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 72.º da mesma lei, para apreciação da constitucionalidade da norma constante da parte final do n.º 1 do artigo 257.º da Lei 35/2004, de 29 de julho - quando determina que o empregador deve comunicar à Inspeção Geral do Trabalho (atual Autoridade para as Condições do Trabalho) os acidentes “que evidenciem uma situação particularmente grave”, nas vinte e quatro horas seguintes à ocorrência.

Notificado para o efeito, o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou alegações, concluindo da seguinte forma:

1.ª Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos arts. 70.º, n.º 1, al. a), e 72.º, n.º 3, da LOFPTC, “da sentença proferida de fls. 89 a 102” dos autos de proc. n.º 486/13.3TTPTM, do Tribunal do Trabalho de Portimão (Re-curso de contraordenação, Lei 107/2009), em que é Recorrente Lidl & Companhia e recorrida a ACT - Autoridade para as Condições do Trabalho-, na medida em que na mesma se “recusou a aplicação da norma constante da parte final do n.º 1 do artigo 257.º da Lei 35/2004, de 29 de julho, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, por violação do princípio constitucional da tipicidade plasmado nos artigos 29.º, n.os 1 e 3 e 30.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa”, por alegada violação do princípio da tipicidade do comportamento ilícito. 2.ª Porém, só em primeira análise, o conceito de acidentes de trabalhos “[...] que evidenciem uma situação particularmente grave” é, no caso vertente, um verdadeiro e próprio “conceito indeterminado”, pois a própria entidade administrativa (então IGT), logo em setembro de 2005, concretizou o conceito em causa, através da tipificação, nomeadamente, dos casos que configuram “eventos que assumem uma particular gravidade na perspetiva da segurança e saúde no trabalho”, que assim passou a valer como “conceito determinado”.

3.ª E, mesmo que não o tivesse sido, a Constituição, não proscreve em absoluto o recurso a “conceitos indeterminados” em sede do direito de mera ordenação social, nomeadamente, desde que a determinação conceitual em causa não comprometa de modo irremediável a determinabilidade do comportamento ilícito, como sucede no caso em apreço, nomeadamente pelo recurso aos conhecimentos da ciência médica, à colaboração da administração com os particulares, pelo caráter não excessivo do dever de comunicação e, finalmente, pelas garantias decorrentes do controlo judicial de aplicação da lei pela administração do trabalho.

4.ª Pelo que, em qualquer caso, não concorre inconstitucionalidade material, seja por violação do princípio constitucional da “segurança jurídica”, seja da “tipicidade”, no sentido, respetivamente, dos artigos 2.º e 29.º, n.º 1, ambos da Constituição.

Decorrido o prazo para o efeito, a recorrida não alegou. Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

2 - A norma objeto do presente recurso é a constante do disposto no artigo 257.º, n.º 1, da Lei 35/2004, de 29 de julho, que regulamentou o Código de Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de agosto, e que foi aplicada à contraordenação laboral em causa no processo, por força do disposto no artigo 12.º, n.º 6, alínea m), do novo Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro. Este artigo revogou os preceitos da Lei 35/2004 sobre a segurança, higiene e saúde no trabalho - artigos 212.º a 280.º, 484.º e 485.º -, mas estabeleceu que a revogação só produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regulasse essa matéria, o que aconteceu com a Lei 102/2009, de 10 de setembro, que estabeleceu o novo regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho. Como essa lei é posterior à data dos factos que deram origem à contraordenação - 2/06/2009 - a decisão recorrida teve que aplicar aquela norma.

O artigo 257.º da Lei 35/2004 tem a seguinte redação:

1. Sem prejuízo de outras notificações previstas em legislação especial, o empregador deve comunicar à InspeçãoGeral do Trabalho os acidentes mortais ou que evidenciem uma situação particularmente grave, nas vinte e quatro horas seguintes à ocorrência.

2. A comunicação prevista no número anterior deve ser acompanhada de informação, e respetivos registos, sobre todos os tempos de trabalho prestados pelo trabalhador nos 30 dias que antecedem o acidente.

O dever de comunicação imposto aos empregadores neste preceito insere-se no âmbito das medidas de prevenção de acidentes de trabalho e doenças profissionais que desde há muito tempo veem sido adotadas pelo direito laboral português. A preocupação com a segurança, higiene e saúde no trabalho iniciou-se com a obrigatoriedade de certos estabelecimentos industriais organizarem serviços de medicina do trabalho, nomeadamente aqueles onde existia o risco de silicose ou outras pneumoconioses - Decreto Lei 44308 de 27 de abril de 1962 e Decreto 44537, de 22 de agosto de 1962 -, posteriormente generalizada a todos as empresas industriais e comerciais com mais de 200 trabalhadores - Decreto Lei 47511 e Decreto 47512, ambos de 25 de janeiro de 1967. Tendo em vista a fiscalização do cumprimento das obrigações impostas nesses diplomas, o artigo 29.º deste último Decreto determinou que

«

o médico do trabalho é obrigado a participar ao delegado de saúde e ao delegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência do respetivo distrito os acidentes de trabalho que acarretem mais de três dias de incapacidade total e as doenças profissionais de notificação obrigatória

»

.

No quadro da atual Constituição, em cujos artigos 59.º e 64.º se considera a prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde uma imposição constitucional dirigida aos poderes públicos (e aos empregadores), no sentido de fixarem aquelas condições e de assegurarem o respetivo controlo, o Decreto Lei 441/91, de 14 de novembro, em cumprimento daquelas normas e das obrigações decorrentes da ratificação da Convenção n.º 155 Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Diretiva n.º 89/391/CEE do Conselho, 12 de junho de 1989, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e saúde dos trabalhadores, estabeleceu os princípios que visam promover a segurança, higiene e saúde no trabalho. No artigo 14.º dessa leiquadro, sob a epígrafe

«

comunicações e participações

»

, prescreveu-se que,

«

sem prejuízo de outras notificações previstas em legislação especial, o empregador deve comunicar à InspeçãoGeral do Trabalho, nas 24 horas seguintes à ocorrência, os casos de acidentes mortais ou que evidenciem uma situação particularmente grave

»; e no n.º 2 do artigo 21.º estabeleceu-se que
«

compete à InspeçãoGeral do Trabalho a realização de inquéritos em caso de acidentes de trabalho mortal ou que evidencie uma situação particularmente grave

»

.

Estas duas normas foram integralmente reproduzidas na legislação do trabalho de 2003:

(i) no n.º 2 do artigo 279.º do Código de Trabalho aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de agosto, que regula a competência da InspeçãoGeral do Trabalho em matéria de fiscalização do cumprimento da legislação relativa à segurança, higiene e saúde no trabalho, preceituando que

«

compete à InspeçãoGeral do Trabalho a realização de inquéritos em caso de acidentes de trabalho mortal ou que evidencie uma situação particularmente grave

»;

(ii) e no já transcrito artigo 257.º da Regulamentação do Código do Trabalho, aprovada pela Lei 35/2004 de 29 de julho, que contém a norma objeto de fiscalização no presente processo.

O atual Código de Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, revogou a Lei 35/2004 e remeteu para legislação especial a regulamentação dos princípios gerais sobre segurança e saúde no trabalho estabelecidos nos artigos 281.º a 284.º Tal matéria encontra-se atualmente regulada na Lei 102/2009, de 10 de setembro, onde se preceitua no n.º 2 do artigo 14.º que

«

compete ainda ao organismo a que se refere o número anterior a realização de inquérito em caso de acidente de trabalho mortal ou que evidencie uma situação particularmente grave

»; e no n.º 1 do artigo 111.º que,
«

sem prejuízo de outras notificações previstas na lei, o empregador deve comunicar ao serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral os acidentes mortais, bem como aqueles que evidenciem lesão física grave, nas 24 horas a seguir à ocorrência

»

.

A obrigação das entidades empregadoras comunicarem às autoridades responsáveis pela área laboral os acidentes graves e mortais sofridos pelos seus trabalhadores consta também de certos regimes específicos de segurança e saúde, como acontece com o trabalho em estaleiros temporários e móveis. O Decreto Lei 155/95, de 1 de julho, que transpôs para o direito interno as prescrições mínimas de segurança e saúde a aplicar nos estaleiros temporários ou móveis, adotadas pela Diretiva n.º 92/57/CEE do Conselho, de 24 de junho, estabeleceu no n.º 1 do artigo 13.º que

«

sem prejuízo de outras notificações legalmente previstas, os acidentes de que resultem a morte ou lesão grave de trabalhadores, ou que, independentemente da produção de tais danos, assumam particular gravidade na perspetiva de segurança dos trabalhadores devem ser comunicados pelo respetivo empregador as Instituto de Desenvolvimento e Inspeção das Condições de Trabalho no prazo de vinte e quatro horas

»

. Numa outra formulação, a mesma regra consta atualmente do n.º 1 do artigo 24.º do Decreto Lei 273/2003, de 29 de outubro, que revogou e substituiu o regime instituído por daquele decretolei:

«

sem prejuízo de outras notificações legalmente previstas, o acidente de trabalho de que resulte a morte ou lesão grave, ou que assuma particular gravidade na perspetiva da segurança no trabalho, deve ser comunicado pelo respetivo empregador à Inspeçãogeral do Trabalho e ao coordenador de segurança em obra, no mais curto prazo possível, não podendo exceder vinte e quatro horas

»

.

Por fim, também o direito comunitário contém regras sobre as obrigações da entidade patronal em caso de acidentes de trabalho. A já referida Diretiva n.º 89/391/CEE do Conselho, 12 de junho de 1989, que inclui os princípios gerais relativos à prevenção dos riscos profissionais e à proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores, nas alíneas b) e c) do artigo 9.º, impõe à entidade patronal o dever de

«

fazer uma lista dos acidentes de trabalho que tenham ocasionado incapacidade para o trabalho superior a três dias úteis

» e de
«

elaborar, à atenção da autoridade competente e de acordo com as legislações e/ou práticas nacionais, relatórios sobre acidentes de trabalho de que os seus trabalhadores sejam vítimas

»

.

3 - A decisão recorrida recusou aplicar a parte final do n.º 1 do artigo 257.º acima transcrito, quando determina que o empregador deve comunicar à InspeçãoGeral do Trabalho (atual Autoridade para as Condições do Trabalho) os acidentes

«

que evidenciem uma situação particularmente grave

»

.

Estava em causa uma contraordenação por omissão de comunicação à ACT de um acidente de trabalho que vitimou uma trabalhadora da impugnante, caracterizado nos autos do seguinte modo:

“encontrando-se na linha de caixa, ao pegar numa caixa, efetuou um entorse no ombro direito tendo ficado com dores [...]” (fls. 3 e 91). Desse acidente, a trabalhadora em causa ficou de “baixa por incapacidade, tendo retomado a atividade no dia 2009-08-18”, (“Relatório interno de análise” - fls. 6), ou seja, cerca de dois meses e meio após o acidente.

Questionando o que se deve considerar por acidentes que “evidenciem uma situação particularmente grave”, a sentença recorrida entendeu o seguinte:

«

O direito sancionatório público, enquanto restrição relevante de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, isto é, do núcleo de garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos. Constitui jurisprudência constante e reiterada do Tribunal Constitucional que o princípio da legalidade da sanção, decorrente dos artigos 29.º, n.os 1 e 3, e 30.º, n.º 1, da Constituição, é aplicável ao direito de mera ordenação social (cf., entre muitos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 547/2001).

Ora o princípio constitucional da tipicidade implica que a lei especifique suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime ou contraordenação (ou que constituem os seus pressupostos) e que efetue a necessária conexão entre o crime ou contraordenação e o tipo de pena ou coima que lhe corresponde.

A tipicidade impede que o legislador utilize fórmulas vagas na descrição dos tipos legais de crime ou contraordenação, ou preveja penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto.

É um princípio que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que relevam do direito criminal.

No fundo, tal princípio prende-se com conhecimento pelo destinatário do comportamento proibido ou imposto (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. I, Lisboa, 1997, pág. 220).

Ora, no caso da parte da norma que se vem analisando, qualquer empregador (qualquer cidadão) fica com dúvidas sobre que tipo de acidentes deverão ser comunicados.

Trata-se de acidente que esteja na origem de uma lesão grave? Ou trata-se de acidente que, por ser frequente, reveste uma manifesta falta de cumprimento de medidas de segurança no trabalho? Ou trata-se de toda e qualquer situação em que as consequências sejam impeditivas de realização do trabalho por um período prolongado e, nesse caso, por quanto tempo? Parece claro que o legislador não pretendeu que todo e qualquer acidente de trabalho tivesse que ser reportado a uma autoridade central. Acontece que a fórmula utilizada é demasiado vaga para que qualquer cidadão possa, em cada caso concreto, saber se deve, ou não, comunicar o acidente de trabalho.

Se é dado um prazo de 24 horas após a ocorrência, bem se vê que a gravidade do acidente se tem de aferir imediatamente, pelo que nunca poderá estar em causa o tempo de recuperação do trabalhador.

E a definição do que é a obrigação do empregador não pode ser feita, caso a caso, pela autoridade administrativa competente para aplicação da sanção.

O caso dos autos é paradigmático da falta de segurança jurídica que a formulação da norma em causa coloca ao empregador:

no imediato, está em causa uma entorse no ombro que, à partida, não demandaria uma comunicação pela falta de gravidade e, passados dois (ou mais) meses de incapacidade para o trabalho não pode surgir o dever de comunicação, quando prazo para o fazer já haveria decorrido.

Assim, deverá entender-se que a parte final do citado artigo 257.º, n.º 1, da Lei 35/2004, de 29 de julho é inconstitucional por violação do princípio da tipicidade plasmado nos artigos 29.º, n.os 1 e 3, e 30.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

4 - A questão concreta de inconstitucionalidade julgada pelo juiz a quo tem como normas de referência as dos n.os 1 e 3 do artigo 29.º e do n.º 1 do artigo 30.º da CRP. Como essas normas oferecem soluções jurídicas para problemas diferentes, nem todas podem ser confrontadas com o tipo de problema jurídico revelado na questão de inconstitucionalidade. Enquanto a norma do n.º 1 do artigo 29.º se refere à lei criminalizadora, isto é, à lei que qualifica uma determinada conduta (ação ou omissão) como crime, as normas do n.º 3 desse artigo e do n.º 1 do artigo 30.º referem-se, diretamente, à lei penalizadora, isto é, à pena e medida de segurança aplicável ao agente de um determinado tipo de ilícito. Ora, a questão de inconstitucionalidade que foi relevante para a decisão da causa diz respeito à lei que exprime o sentido de ilicitude, individualizando a espécie de comportamento que é proibida pelo ordenamento jurídico, e não à lei que fixa a coima correspondente ao tipo de ilícito contraordenacional.

De modo que as normas do n.º 3 do artigo 29.º e do n.º 1 do artigo 30.º, que se reportam às penas e medidas de segurança, não se mostram adequadas a solucionar o problema da determinabilidade do tipo de ilícito previsto no n.º 1 do artigo 257.º da Lei 35/2004. O problema jurídico a resolver consiste em saber se a previsão legal do comportamento devido - dever de comunicar acidentes de trabalho que evidenciem uma situação particularmente grave - está em conformidade ou desconformidade com as exigências que a Constituição impõe às normas sancionadoras. Não obstante a norma penal, na sua globalidade, constituir uma “norma de comportamento” e uma “norma de sanção”, o tipo de problema que a questão de inconstitucionalidade coloca localiza-se apenas naquele segmento da norma. Ou seja:

é na parte da norma dirigida à concretização do comportamento que se questiona se a descrição da matéria proibida, de que depende a aplicação de uma coima, observa ou não o princípio constitucional da legalidade da intervenção sancionadora. Para a solução de um problema desta índole não é adequado convocar como parâmetro constitucional, nem o princípio nulla paena sine lege consagrado no n.º 3 do artigo 29.º, nem o princípio da natureza temporária, limitada e definida das penas estabelecido no n.º 1 do artigo 30.º da CRP. As normas constitucionais que contêm um critério materialmente adequado a solucionar o problema da determinabilidade dos comportamentos proibidos e sancionados são as do n.º 1 do artigo 29.º, através do princípio da tipicidade, e ao do artigo 2.º da CRP, através do princípio da segurança jurídica. Ambos os princípios levam pressuposto ou dão solução ao problema da determinabilidade da norma sancionadora.

Assim, é por referência a tais parâmetros que se vai apreciar a questão de inconstitucionalidade da norma efetivamente desaplicada no feito submetido a apreciação judicial.

5 - Tratando-se de uma coima aplicada em processo de contraordenação laboral a primeiro dúvida que se levanta consiste em saber se os princípios constitucionais básicos em matéria de punição criminal constantes do artigo 29.º da CRP se aplicam também aos tipos de ilícitos contraordenacionais.

A Constituição faz referência ao direito contraordenacional (i) na alínea d), do n.º 1, do artigo 165.º, que inclui o regime geral do ilícito de mera ordenação social na reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República;

(ii) na alínea q), do n.º 1, do artigo 227.º, que atribui às regiões autónomas o poder de definir ilícitos contraordenacionais;

(iii) no n.º 3 do artigo 283.º, que define o regime dos efeitos repristinatórios da declaração de inconstitucionalidade, permitindo a revisão do caso julgado inconstitucional;

(iv) e no n.º 10 do artigo 32.º, que assegura ao arguido em processo de contraordenação o direito de audiência e defesa.

Não obstante a previsão do ilícito contraordenacional nesses pontos concretos, a Constituição não indica expressamente que outros princípios constitucionais são aplicáveis ao direito de mera ordenação social, o que provoca a discussão sobre a aplicabilidade, e em que termos, das normas e princípios constitucionais em matéria penal a esse domínio. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao artigo 29.º da CRP,

«

é problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo são extensivos a outros domínios sancionatórios. A epígrafe

«

aplicação da lei criminal

» e o teor textual do preceito restringem a sua aplicação direta apenas ao direito criminal propriamente dito (crimes e respetivas sanções)
»

- (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed. pág. 498).

Mas o facto de as contraordenações fazerem parte do poder punitivo estadual, cuja expressão máxima se encontra no direito penal, justifica que o seu regime jurídico seja influenciado pelos princípios e regras comuns a todo o direito sancionatório público. O direito de mera ordenação social é um direito sancionador, que permite à Administração participar no exercício do poder punitivo estadual, aplicando penalidades aos administrados, o que significa que esse direito e esse poder, enquanto emanação do jus puniendi, estão matizados pelos princípios e pelas regras “penais”. Por isso, há de admitir-se que os princípios constitucionais do direito penal possam influenciar os direitos sancionadores que derivam da mesma matriz. Como acrescentam os referidos autores, tem de

«

entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar

»

. Assim, os princípios com relevo em matéria penal, como os da legalidade, da culpa, non bis in idem, da não retroatividade, da proibição dos efeitos automáticos das penas, da proibição da transmissão da responsabilidade penal, podem estender-se ao domínio contraordenacional, até porque são derivados de princípios do Estado de Direito e da segurança jurídica, nomeadamente sob o seu aspeto de proteção da confiança, princípios constitucionais de validade fundamentante da ordem jurídica.

O que não significa, é evidente, que não deixe de haver diferenciações na extensão desses princípios ao domínio contraordenacional. É que a autonomia material do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal, que dá origem a um sistema punitivo próprio, com espécies de sanção, com procedimentos punitivos e agentes sancionadores distintos, obsta a que se proceda a uma transposição automática e imponderada para o direito de mera ordenação social dos princípios constitucionais que regem a legislação penal. Tais ilícitos não se distinguem apenas pelo diferente tipo de cominação - uma coima ou uma pena - mas sobretudo por um critério material que atende à diferença de bens jurídicos protegidos e à diferente ressonância ética dos ilícitos. Num critério de distinção situado num plano ético, como o seguido por Figueiredo Dias, é possível distinguir condutas a que

«

antes e independentemente do desvalor da ilicitude, corresponde, e condutas a que não corresponde, um mais amplo desvalor moral, cultural ou social. A conduta em si mesma, independentemente da sua proibição legal, é no primeiro caso axiologicamente relevante, no segundo caso axiologicamente neutra. O que no direito das contraordenações é axiologicamente neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal - sem prejuízo de, uma vez conexionada com este, ela passar a constituir substrato idóneo de um desvalor ético-social

»

(cf. “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in Eduardo Correia, et al. Direito penal económico e europeu:

textos doutrinários, Vol. I, Coimbra Editora, 1998, pág. 26 e 27).

Ora, esta distinção tem relevância no relacionamento desses direitos com a ordem jurídicoconstitucional. Como refere o mesmo autor

«

são diferentes os princípios jurídicoconstitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem a legislação penal e a legislação das contraorde-nações

»

. A submissão do direito das contraordenações às garantias essenciais do direito penal, isto é, às garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos, não significa que as normas e princípios constitucionais em matéria penal tenham que ser aplicadas ao domínio contraordenacional com a mesma intensidade e com as mesmas exigências. A indiferença éticosocial das condutas que integram as contraordenações coloca diferente grau de exigência ao legislador ordinário na configuração dos respetivos ilícitos, já que não se trata de prevenir ou reprimir condutas ofensivas de bens jurídico-constitucionais, independentemente da sua proibição legal, mas sim de advertir ou admoestar a inobservância de certas proibições ou imposições legislativas.

Para efeitos de distinção entre ambos os ilícitos, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem seguido fundamentalmente os critérios da ressonância ética e dos diferentes bens jurídicos em causa (Acórdãos n.os 158/92, 344/93, 469/97, 461/2011, 537/2011, 45/2014, 180/2014). E com fundamento na diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções, tem considerado que os princípios constitucionais com relevo em matéria penal não valem com a mesma extensão e intensidade no domínio contraordenacional. Não obstante estar consolidado na jurisprudência constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, tem-se decidido reiteradamente que os princípios que orientam o direito penal não são automaticamente aplicáveis ao direito de mera ordenação social (Acórdãos n.os 344/93, 278/99, 160/04, 537/2011, 85/2012).

6 - Assim acontece com a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional.

O princípio da legalidade criminal, consagrado nos n.os 1, 3 e 4 do artigo 29.º da CRP, tem por função garantir que os cidadãos não fiquem sujeitos ao arbítrio e aos excessos do poder punitivo do Estado. Traduzindo-se o seu conteúdo essencial em não poder haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, estrita e certa, a liberdade pessoal dos cidadãos fica assim garantida perante intervenções estaduais que não se contenham dentro de um círculo de atuação estritamente delimitado. A garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, que a CRP inclui no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, não se basta com a existência de lei prévia que defina os pressupostos da responsabilidade criminal, exige ainda que a lei especifique suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime e o tipo de pena que lhe cabe. Neste sentido, o princípio da legalidade, na qualidade de parâmetro constitucional, impõe que a norma penal seja precisa e determinada. Como refere Figueiredo Dias,

«

importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a condutas dos cidadãos

»

(Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 174).

A exigência de determinabilidade do conteúdo das normas penais, uma dimensão do denominado princípio da tipicidade, é avessa a que o legislador formule normas penais recorrendo a cláusulas gerais na definição dos crimes, a conceitos que obstem à determinação objetiva das condutas proibidas ou que remeta a sua concretização para fontes normativas inferiores, as chamadas normas penais em branco. A exclusão de fórmulas vagas na descrição dos tipos legais, de normas excessivamente indeterminadas e de normas em branco, leva em conta os valores da segurança e confiança jurídicas postulados pelo princípio da legalidade criminal. Com efeito, a exigência de clareza e densidade suficiente das normas restritivas, como é o caso das normas penais, é um fator de garantia da confiança e da segurança jurídica,

«

uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente os próprios planos de vida se souber com o que pode contar, qual a margem de ação que lhe está garantida, o que pode legitimamente esperar das eventuais intervenções do Estado na sua esfera pessoal

»

(Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos Fundamentais, não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2.ª ed. pág. 770).

Deve reconhecer-se, porém, que a exigência de lex certa, como corolário do princípio da legalidade criminal, não veda em absoluto a formulação dos pressupostos jurídicoconstitutivos da incriminação através de elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor. Seria inviável, até pela natureza da própria linguagem jurídica, uma determinação absoluta do tipo legal de ilícito. Como refere Castanheira Neves, uma predeterminação integral que possibilitasse um conhecimento universalmente unívoco e uma aplicação lógiconecessária

«

é hoje impensável, porque é também ela contrariada pelas intenções normativas atuais do direito criminal e porque é em qualquer caso metodicamente irrealizável

»

. Uma total determinação do facto punível é inviável ou impossível, uma vez que a indeterminação normativa operada por aqueles elementos e conceitos

«

é expressão irredutível já da dimensão pragmática da linguagem jurídica, já da intenção normativa das prescrições jurídicas, já da índole problemáticoconcreta do decisório juízo jurisdicional

»

(“O Princípio da Legalidade criminal.

O seu problema jurídico e o seu critério dogmático”, in, Digesta, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 371 e 377).

Em princípio, a modelação do tipo legal de crime com recurso a conceitos indeterminados não afronta os princípios da legalidade e da tipicidade. Como reconhece o Tribunal Constitucional, após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou flexibilidade normativa em matéria de ilícitos penais,

«

uma relativa indeterminação dos tipos legais pode mostrar-se justificada, sem que isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade

»

(Acórdão 93/01).

Mas se é impossível uma total determinação dos elementos compósitos da ação punível, há de exigir-se um grau de determinação suficiente que não ponha em causa os fundamentos do princípio da legalidade. É que o princípio nullum crimen só pode cumprir a sua função de garantia se a regulamentação típica, ainda que indeterminada e aberta, for materialmente adequada e suficiente para dar a conhecer quais as ações ou omissões que o cidadão deve evitar. Como se escreve no Acórdão 168/99,

«

averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima

»

.

7 - Nos demais domínios sancionatórios, como no direito de mera ordenação social e no direito disciplinar, a exigência de tipicidade não se faz sentir com a intensidade que tem no direito criminal. Com maior frequência os enunciados legislativos exprimem-se aí através de cláusulas gerais, conceitos indeterminados e enumerações exemplificativas. É a diferente natureza dos ilícitos que justifica nesses direitos um certo “amolecimento” do princípio da legalidade:

enquanto o tipo legal de crime descreve uma conduta que expressa imediatamente um certo desvalor jurídicocriminal, um certo juízo de ilicitude, o tipo contraordenacional (ou o tipo disciplinar) descreve uma conduta que, independentemente da decisão legislativa de a proibir, não é substrato idóneo do juízo de desvalor próprio da ilicitude. Daí que nestes tipos de ilícito, o importante para a salvaguarda da lex certa não seja a conduta em si mesmo considerada, mas a regra legal que a proíbe ou que imponha o dever que seja objeto de violação ou ofensa. Por isso, a especificação dos factos sancionáveis e a individualização dos seus elementos típicos pode não ter o mesmo grau de determinação e precisão que aquele que é constitucionalmente exigido às normas penais. O direito penal, pela sua lógica da última ratio, naturalmente que é muito mais exigente e rigoroso na indicação dos factos ilícitos e das sanções do que o direito de mera ordenação social.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a sublinhar que a exigência de determinabilidade do tipo que predomina no direito criminal não tem que ter a mesma rigidez e a mesma densidade no domínio contraordenacional. Diz-se no Acórdão 41/2004 que a

«

Constituição não requer para o ilícito de mera ordenação social o mesmo grau de exigência que requer para os crimes. Nem o artigo 29.º da Constituição se aplica imediatamente ao ilícito de mera ordenação social nem o artigo 165.º confere a este ilícito o mesmo grau de controlo parlamentar que atribui aos crimes

»; e nos Acórdãos n.os 397/2012 e 466/12 conclui-se que
«

não se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal

»

.

Todavia, a maior abertura dos tipos contraordenacionais causada pela utilização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados não significa uma total ausência de determinação normativa. A norma ou conjunto das normas tipificadoras não podem deixar de descrever com suficiente clareza os elementos objetivos e subjetivos do núcleo essencial do ilícito, sob pena de violação dos princípios da legalidade e da tipicidade e sobretudo da sua teleologia garantística. Daí que só seja admissível uma “relativa indeterminação tipológica” que não saia da “órbitra daquilo que razoavelmente pode exigir-se em rigor descritivo ou limitativo, de modo a não esvaziar de conteúdo a garantia consubstanciada naqueles princípios” (Acórdão 338/03). Exige-se pois um “mínimo de determinabilidade” das condutas ilícitas, de molde a que as decisões sancionatórias associadas sejam previsíveis e objetivas e não arbitrárias para os seus destinatários, que haja segurança na sua identificação e, con-sequentemente, quanto à sanção aplicável. A exigência de um mínimo de determinabilidade que permita identificar os comportamentos descritos em tipos contraordenacionais (e também em alguns tipos disciplinares) tem sido constante na jurisprudência constitucional, desde a Comissão Constitucional (parecer 32/80, publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º vol. pág. 51 e segs.) até à jurisprudência mais recente (Acórdãos n.os 282/86, 666/94, 169/99, 93/01, 358/05, 635/2011, 85/2012, 397/12 e 466/12).

Analisando a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional, no Acórdão 201/2014 conclui-se que

«

(i) embora tais princípios não valham “com o mesmo rigor” ou “com o mesmo grau de exigência” para o ilícito de mera ordenação social, eles valem “na sua ideia essencial”

;

(ii) aquilo em que consiste a sua ideia essencial outra coisa não é do que a garantia de proteção da confiança e da segurança jurídica que se extrai, desde logo, do princípio do Estado de direito;

(iii) assim, a Constituição impõe “exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional” que só se cumprem se do regime legal for possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas como ainda antecipar com segurança a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito

»

.

Deverá, pois, dizer-se que nos tipos contraordenacionais, a exigência de lex certa não será prejudicada com a identificação dos ilícitos mediante conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais se for razoavelmente possível a sua concretização através de critérios lógicos, técnicos ou da experiência que permitam prever, com segurança suficiente, a natureza e as características essenciais das condutas constitutivas da infração tipificada.

8 - A norma sub iudicio, extraída do n.º 1 do artigo 257.º da Regulamentação do Código do Trabalho aprovada pela referida Lei 35/2004, impõe ao empregador o deve de comunicar à Autoridade para as Condições do Trabalho, nas 24 horas seguintes à ocorrência,

«

os acidentes mortais ou que evidenciem uma situação particularmente grave

»

. Pelo n.º 2 do artigo 482.º do mesmo diploma, a violação desse dever constitui uma contraordenação grave, que é punida nos termos do n.º 2 do artigo 620.º do Código de Trabalho então vigente.

A decisão recorrida recusou aplicar ao caso dos autos o referido preceito, por considerar que contém uma descrição “demasiado vaga” da conduta, insuficiente para permitir uma determinação minimamente aceitável de uma infração de mera ordenação social, constituída que é por conceitos indeterminados que não permitem ao empregador saber se deve ou não comunicar o acidente de trabalho.

E de facto, se a fórmula

«

acidentes mortais

» constitui um enunciado facilmente determinável em sede interpretativa, já que é possível fixar objetivamente o conceito de
«

morte

» com recurso à experiência comum, o mesmo não ocorre com a expressão
«

evidenciem uma situação particularmente grave

»

, que é insuscetível como tal de exprimir com suficiente determinação os acidentes de trabalho que devem ser comunicados às autoridades fiscalizadoras das condições de segurança no trabalho. Realmente, a expressão reveste-se de um elevado grau de indeterminação no seu conteúdo normativo. Para além da significação semântica da expressão, o sentido nela pressuposto não pode ser objetivamente determinável em toda a sua extensão. Sabe-se que nem todos os acidentes de trabalho devem ser comunicados às autoridades, mas de entre aqueles que devem ser comunicados há uma zona de indefinição e de insegurança que, sem um desenvolvimento complementar, não é compatível com o mínimo de determinação exigível ao tipo contraordenacional. Se o recurso à experiência comum ou a conhecimentos científicos e técnicos do ramo da medicina permite conhecer os casos que seguramente estão abrangidos ou excluídos do conceito de

«

acidente particularmente grave

»

, há um número indefinido de situações relativamente às quais pode não haver um entendimento unívoco quanto à valoração da gravidade do acidente para efeitos de comunicação às autoridades do trabalho. Decerto que um acidente que evidencie a perda de um membro importante do corpo, da visão, da audição ou a invalidez é um acidente que objetivamente está incluído naquele conceito; de igual modo, um acidente de que resulte uma ligeira laceração ou dor muscular que não determine a incapacidade para o trabalho é uma hipótese que objetivamente não está coberta pelo mesmo conceito. Mas pode haver alterações na integridade psicofísica do trabalhador que nem o recurso às regras da experiência e da ciência permite determinar com segurança se o acidente deve ou não ser comunicado às autoridades:

um acidente de que resulte um entorse ou luxação com incapacidade para o trabalho por oito dias é particularmente grave para justificar aquela comunicação? A resposta só pode ficar à mercê da avaliação subjetivaindividual de cada empregador, pois aí deixa de haver lugar para uma opção objetivamente fundada. De facto, não é a perícia médica, a experiência comum ou as convicções éticas e culturais da comunidade que ditam se aquela lesão é ou não especialmente grave para os efeitos intencionados pelo dever de comunicação. Há aqui um espaço em branco, um vazio normativo, que apenas a subjetividade do empregador poderá preencher.

De modo que através da fórmula

«

evidenciem uma situação particularmente grave

» não é possível deduzir ou determinar todos os acidentes de trabalho que o empregador está obrigado a comunicar à ACT. E a dificuldade em conceitualizar os acidentes de trabalho que devem ser comunicados não foi ultrapassada através da indicação de um critério capaz de assegurar ao empregador a imediata cognoscibilidade daqueles acidentes. O conteúdo significativo daquela expressão legal não é imediatamente compreendido ou facilmente interpretado no contexto em que é convocado:

o sentido intencional do termo

«

situação

» tanto pode ser a lesão sofrida pelo trabalhador como o tipo de evento e o estado de segurança em que ocorreu o acidente; e o conceito
«

particularmente grave

» é demasiado aberto para que possa ser preenchido com um elevado grau de objetividade, sendo certo que o advérbio
«

particularmente

» ainda mais acentua a dificuldade em prédeterminar dentro dos acidentes graves os que são especialmente graves.

Para além dos fins que determinaram a imposição do dever de comunicação, a norma não fornece pois um ponto de orientação suficientemente determinado para que o empregador possa conhecer com rigor quais os acidentes de trabalho que está obrigado a comunicar. O artigo 257.º objeto de fiscalização nem sequer vem acompanhado de uma enumeração casuística de exemplos de acidentes particularmente graves, que permita uma objetivação adequada e suficiente do que deve ser comunicado às autoridades, ou de uma remissão para outras fontes normativas que complementem e determinem aqueles casos. Sabe-se que estes métodos e técnicas legislativas, desde que permitam de forma suficientemente autónoma formular o facto ilícito, não põem em causa o sentido fundamental do princípio nullum crimen (Acórdãos n.os 559/01, 41/04, 102/08, 115/08, 635/2011). Mas na ausência dessa regulamentação típica, fica-se por uma indeterminação normativa demasiado excessiva quanto à indicação dos acidentes de trabalho que o empregador deve comunicar à ACT.

Decerto que o legislador ao impor o dever de comunicação não o fez para permitir manifestações meramente subjetivas dos empregadores, mas sim para que se realizassem os fins que o determinaram a estabelecer tal obrigação. A imposição aos empregadores da obrigação de comunicarem às autoridades do trabalho certo tipo de acidentes tem em vista a proteção das condições de segurança que devem ser asseguradas aos trabalhadores no local e no tempo de trabalho. Tal obrigação está diretamente relacionada com a norma do n.º 2 do artigo 279.º do Código do Trabalho, na versão então vigente, que atribui à ACT a competência para

«

realizar inquéritos em caso de acidente de trabalho mortal ou que evidencie uma situação particularmente grave

»

. Por conseguinte, o dever de comunicação do acidente tem por finalidade permitir à ACT conhecer os casos que justificam a realização de um inquérito às condições de segurança em que o trabalho estava a ser prestado. Ora, enquanto pressupostos de atuação da ACT, o conceito indeterminado

«

situação particularmente grave

» convive bem com o princípio da legalidade administrativa. Não obstante o emprego do adjetivo
«

grave

» subtrair a aplicação do artigo 257.º a um entendimento unívoco de uma situação objetiva causadora de danos corporais ao trabalhador, já que a sua aplicação ao caso concreto pode envolver juízos de valor que inevitavelmente contêm elementos subjetivos, muitos deles integrados numa prognose, a sujeição da Administração ao princípio da juridicidade consente uma normatividade indeterminada e aberta como aquela. O espaço de autonomia concedido por aquele conceito permite à Administração criar diretivas internas de execução a determinar quais os acidentes de trabalho que são objeto de inquérito, mas que naturalmente só a ela vinculam.

Diferentemente acontece com as normas que proíbem ações ou impõem omissões cuja prática é cominada com uma sanção. Aí a legalidade tem uma função de garantia, exigida pelo princípio do Estado de Direito, que só é cumprida se houver um mínimo de determinabilidade dos comportamentos proibidos. Ou seja, a norma deve ser minimamente clara e precisa para que o agente possa saber, a partir do texto legal, quais os atos ou omissões que acarretam a sua responsabilidade. Ora, é esse mínimo de objetivação que falha na formulação legal do dever de comunicação dos acidentes de trabalho às autoridades administrativas que é imposto aos empregadores no artigo 257.º da Lei 35/2004, de 29 de julho. Para exprimir esse dever de comunicação não se mostra adequado e suficiente usar o enunciado

«

situação particularmente grave

»

, dado o elevado grau de indeterminação nele implicado. Em certos casos, os empregadores podem ficar numa situação de dúvida e incerteza quanto à identificação dos acidentes especialmente graves que devem ser comunicados à ACT. A primitiva legislação - e o que parece resultar da Diretiva 89/391/CE - impunha a obrigação de comunicar apenas os acidentes de trabalho que acarretassem mais de três dias de incapacidade total, um enunciado de conteúdo objetivamente determinável. Já a opção legislativa pela fórmula

«

situação particularmente grave

»

, que já vem da Decreto Lei 441/91, de 14 de novembro, abre-se a uma pluralidade de escolhas, tantas quantas as subjetividades que as constituem, gerando assim dúvidas e incertezas quanto ao tipo de acidentes de trabalho que devem ser comunicados à ACT. E não são as autoridades do trabalho, na sua função sancionadora, ou as autoridades judiciais, na sua função de controlo, quem vão dizer qual é a única solução válida, pois o grau de abertura do conceito indeterminado

«

particularmente grave

» não deixa de possibilitar a intervenção das suas opções pessoais. Ora, ao abrir-se as portas à mera subjetividade, o agente não encontra no texto da lei a objetivação necessária e adequada que garanta a segurança e confiança jurídicas.

Assim, a norma do n.º 1 do artigo 257.º da Lei 35/2004, de 29 de julho, revela um tal grau de indeterminação na definição da conduta contraordenacional que não satisfaz as exigências dos princípios do Estado de direito democrático, da segurança jurídica e da confiança, pelo é inconstitucional, por violação do artigo 2.º da Constituição.

III - Decisão Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:

- julgar inconstitucional, por violação do artigo 2.º da Constituição, a norma contida no n.º 1 do artigo 257.º da Lei 35/2004, de 29 de julho;

- julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida. Lisboa, 3 de fevereiro de 2016. - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - Maria José Rangel de Mesquita - Carlos Fernandes Cadilha (vencido de acordo com a declaração de voto em anexo) - Maria Lúcia Amaral.

Declaração de Voto Votei vencido com base nas seguintes considerações. O acórdão não deixa de reconhecer, citando anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, que o princípio da tipicidade, como corolário do princípio da legalidade criminal, não veda em absoluto a formulação de conceitos indeterminados e de cláusulas gerais, e que se torna justificável, mesmo no domínio penal, uma relativa indeterminação dos tipos legais. E tem igualmente presente que, em face da diferente ressonância ética dos ilícitos e dos bens jurídicos em causa, as garantias do processo penal não podem ser aplicadas com a mesma extensão e intensidade no domínio contraordenacional e, por isso, também, não é exigível, na especificação dos factos sancionáveis e na individualização dos seus elementos típicos, o mesmo grau de determinação e precisão que é constitucionalmente imposto às normas penais.

No entanto, na aplicação destes critérios ao caso concreto, o Tribunal acaba por considerar que a previsão do dever de comunicação à Autoridade para as Condições do Trabalho da ocorrência dos acidentes mortais ou que evidenciem uma situação particularmente grave, nos termos do artigo 257.º, n.º 1, do Regulamento do Código do Trabalho, contém um elevado grau de indeterminação do conteúdo normativo, na parte em que inclui, na descrição do ilícito contraordenacional, um conceito jurídico indeterminado, que, por si, gera uma situação de dúvida e incerteza quanto à identificação dos acidentes de trabalho que devam ser comunicados.

Ora, o que o Tribunal está a censurar, ao formular um juízo de inconstitucionalidade, é justamente a utilização, na descrição do tipo, de um conceito indeterminado, apesar de ter reconhecido, à partida, que o recurso a fórmulas de maior indeterminação ou flexibilidade normativa não implica, só por si, a violação do princípio da tipicidade, e que, em todo o caso, as exigências de tipicidade se fazem sentir em menor grau no âmbito de outros ramos do direito público sancionatório, maxime, no domínio do direito contraordenacional ou disciplinar (também, neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 351/11).

Mas, para além disso, na hipótese considerada, o conceito indeterminado não surge isolado, como sendo a única fórmula legislativa pela qual é tipificado o comportamento contraordenacional, mas deve antes ser entendido no contexto verbal da norma e, especialmente, por referência ao inciso em que se localiza. A norma impõe ao empregador o dever de comunicação de acidentes de trabalho quando se trate de acidentes mortais ou que evidenciem uma situação particularmente grave, o que tem o significado inequívoco de explicitar que a comunicação apenas é exigível em relação a acidentes que produzam consequências especialmente lesivas, o que é revelado, não apenas pelo conceito indeterminado que é utilizado (situação particularmente grave), mas também pela conexão que é estabelecida com a situação taxativamente prevista (acidentes mortais). E, por outro lado, é necessário notar que, para além do caso de acidente mortal, o dever de comunicação apenas opera em relação a acidentes que evidenciem uma situação particularmente grave, e, por conseguinte, apenas nos casos em que, no momento da ocorrência do acidente, se possa logo constatar a especial gravidade das lesões. O que também explica que a comunicação deva ser efetuada nas 24 horas seguintes à ocorrência.

A norma, no seu contexto linguístico, preenche pois uma função negativa, na medida em que permite afastar situações que não têm correspondência no sentido útil que o texto comporta, mas tem também uma função positiva, na medida em que concretiza o comportamento devido por referência aos acidentes de trabalho que se revelem ser, segundo um critério de evidência, particularmente graves. Numa interpretação que tenha em conta ainda a unidade do sistema e o regime geral da reparação de acidentes de trabalho, acidentes particularmente graves poderão ser aqueles que presumivelmente determinem uma incapacidade permanente para o trabalho ou uma incapacidade temporária de longa duração. Está, por isso, excluído que devam ser comunicados, sob pena de se incorrer em contraordenação, os acidentes que só posteriormente, e em resultado da evolução clínica do sinistrado, venham a determinar sequelas que, inicialmente, em função da natureza e da gravidade da lesão, não eram previsíveis.

Por fim, importa dizer que não cabe ao Tribunal Constitucional formular juízos de inconstitucionalidade como forma de suprir o erro em que as instâncias incorram na aplicação do direito ordinário no caso concreto. Perante uma situação de não evidência de um acidente de trabalho particularmente grave, que fosse detetável no momento que ele BANCO DE PORTUGAL

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2558202.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1962-04-27 - Decreto-Lei 44308 - Ministério da Saúde e Assistência - Direcção-Geral de Saúde

    Insere disposições destinadas a promover a prevenção médica da silicose.

  • Tem documento Em vigor 1962-08-22 - Decreto 44537 - Ministério da Saúde e Assistência - Direcção-Geral de Saúde

    Regula a organização dos serviços médicos do trabalho para a prevenção médica da silicose, referida no Decreto-Lei n.º 44308, de 27 de Abril de 1962.

  • Tem documento Em vigor 1967-01-25 - Decreto-Lei 47511 - Ministérios das Corporações e Previdência Social e da Saúde e Assistência

    Determina que nas empresas industriais e comerciais sejam organizados serviços médicos de trabalho.

  • Tem documento Em vigor 1967-01-25 - Decreto 47512 - Ministérios das Corporações e Previdência Social e da Saúde e Assistência

    Promulga o Regulamento dos Serviços Médicos do Trabalho das Empresas.

  • Tem documento Em vigor 1991-11-14 - Decreto-Lei 441/91 - Ministério do Emprego e da Segurança Social

    ESTABELECE O REGIME JURÍDICO DO ENQUADRAMENTO DA SEGURANÇA, HIGIENE E SAÚDE NO TRABALHO.

  • Tem documento Em vigor 1995-07-01 - Decreto-Lei 155/95 - Ministério do Emprego e da Segurança Social

    TRANSPÕE PARA A ORDEM JURÍDICA INTERNA A DIRECTIVA 92/57/CEE (EUR-Lex), DO CONSELHO, DE 24 DE JUNHO, RELATIVA AS PRESCRIÇÕES MINIMAS DE SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO A APLICAR NOS ESTALEIROS TEMPORÁRIOS OU MÓVEIS, ESTABELECENDO REGRAS ORIENTADORAS DAS ACÇÕES DIRIGIDAS A PREVENÇÃO DA SEGURANÇA E SAÚDE DOS TRABALHADORES, NAS FASES DE CONCEPÇÃO, PROJECTO E INSTALAÇÃO DOS REFERIDOS ESTALEIROS. ESTABELECE O REGIME SANCIONATÓRIO DO INCUMPRIMENTO DO DISPOSTO NO PRESENTE DIPLOMA, APROVANDO COIMAS PARA AS CONTRA-ORD (...)

  • Tem documento Em vigor 2003-08-27 - Lei 99/2003 - Assembleia da República

    Aprova o Código do Trabalho, publicado em anexo. Transpõe para a ordem jurídica interna o disposto nas seguintes directivas: Directiva nº 75/71/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 10 de Fevereiro; Directiva nº 76/207/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 9 de Fevereiro, alterada pela Directiva nº 2002/73/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro; Directiva nº 91/533/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 14 de Outubro; Directiva nº 92/85/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 19 de Outubro; Directiva nº 93/1 (...)

  • Tem documento Em vigor 2003-10-29 - Decreto-Lei 273/2003 - Ministério da Segurança Social e do Trabalho

    Procede à revisão da regulamentação das condições de segurança e de saúde no trabalho em estaleiros temporários ou móveis, constante do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, mantendo as prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho estabelecidas pela Directiva n.º 92/57/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 24 de Junho.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-29 - Lei 35/2004 - Assembleia da República

    Regulamenta a Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho.

  • Tem documento Em vigor 2009-02-12 - Lei 7/2009 - Assembleia da República

    Aprova a revisão do Código do Trabalho. Prevê um regime específico de caducidade de convenção colectiva da qual conste cláusula que faça depender a cessação da sua vigência de substituição por outro instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.

  • Tem documento Em vigor 2009-09-10 - Lei 102/2009 - Assembleia da República

    Regulamenta o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, de acordo com o previsto no artigo 284.º do Código do Trabalho, no que respeita à prevenção, bem como a protecção de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante em caso de actividades susceptíveis de apresentar risco específico de exposição a agentes, processos ou condições de trabalho, de acordo com o previsto no n.º 6 do artigo 62.º do Código do Trabalho, e a protecção de menor em caso de trabalhos que, pela sua natureza ou pelas c (...)

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