Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13 A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei 198/95, de 29 de Julho, na redacção resultante do artigo único do Decreto-Lei 52/2000, de 7 de Abril, interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de demonstração da titularidade do cartão de utente, no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados.
Fundamentou o seu pedido na circunstância de tal interpretação normativa ter sido julgada materialmente inconstitucional, no âmbito da fiscalização concreta, por violação das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º e 64.º da Constituição, através do acórdão 67/07 e das decisões sumárias n.os 557/07 e 274/08.
Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos.
II - Fundamentação. - 2 - A questão que vem discutida é a de saber se é conforme ao disposto nos artigos 2.º, 18.º e 64.º da Lei Fundamental, a exigência imposta pelo artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei 198/95, de 29 de Julho, alterado pelo artigo único do Decreto-Lei 52/2000, de 7 de Abril, no sentido de ser efectuada a cobrança do valor da prestação de cuidados de saúde em estabelecimento ou serviço integrado no Serviço Nacional de Saúde, quando o interessado, não tendo apresentado o cartão de identificação de utente, não tenha feito a prova, no prazo cominado naquela disposição, de que é dele titular ou requereu perante os serviços competentes a sua emissão.
No acórdão 67/2007, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade material da referida disposição, concluindo que uma norma que impõe ao utente economicamente carenciado o efectivo pagamento dos serviços clínicos prestados como mera consequência do incumprimento de um ónus procedimental ou formal, de natureza manifestamente secundária, é incompatível com o princípio da proporcionalidade e com o carácter universal e tendencialmente gratuito do Serviço Nacional de Saúde, expressão da consagração constitucional do direito à saúde, implicando a violação dos artigos 2.º, 18.º e 64.º da Constituição.
Para assim decidir, teve em linha de conta que o regime jurídico em causa tem por consequência a necessidade do pagamento pelo utilizador dos serviços prestados, sem ter previsto a forma pela qual a interpelação para pagamento dos encargos decorrentes dos serviços prestados vem a ter lugar e sem permitir sequer a valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no incumprimento do dever acessório em questão.
Esta jurisprudência foi depois reiterada pelas decisões sumárias n.os 557/07 e 278/08.
Sendo estes os termos em que a questão se coloca, cabe efectuar antes de mais o necessário enquadramento sistemático da norma sobre a qual se impõe a formulação
do juízo de constitucionalidade.
3 - O Decreto-Lei 198/95 criou o cartão de utente do Serviço Nacional de Saúde, que é emitido pelos serviços competentes da administração regional de saúde da área da residência do titular (artigo 4.º), e que, fora certas situações excepcionadas na lei, se destina a ser apresentado perante instituições ou serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, para efeito de prestação de cuidados médicos, requisição e acesso a meios auxiliares de diagnóstico e prescrição e aquisição de medicamentos (artigo 3.º).Na sua redacção originária, o artigo 2.º desse diploma dispunha:
«1 - O cartão de identificação do utente constitui um meio facultativo, com natureza substitutiva, de comprovação da identidade do seu titular perante as instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde e as entidades privadas na área da
saúde.
2 - O cartão de identificação do utente é de emissão gratuita e substitui, para os efeitos referidos no número anterior, qualquer outro cartão ou documento de identificação doseu titular.»
Como se depreende ainda do preâmbulo do diploma, a instituição do cartão de utente, de emissão gratuita e natureza substitutiva, sendo idêntico aos já existentes para utentes de subsistemas de saúde, constituía uma medida de simplificação do acesso dos cidadãos ao Serviço Nacional de Saúde, sem pôr em causa os princípios da universalidade e da equidade deste Serviço, e pretendia assegurar uma mais fácil identificação pessoal nos serviços de saúde, eliminando procedimentos burocráticos e facilitando a atribuição da isenção das taxas moderadoras e o reconhecimento de situações de isenção, além de permitir uma mais adequada articulação entre o Estado e as entidades privadas legal ou contratualmente responsáveis por encargos decorrentesde prestações de saúde.
O citado Decreto-Lei 52/2000 introduziu uma única alteração a esse diploma, passando a conferir à referida disposição do artigo 2.º a seguinte redacção:«1 - O cartão de identificação do utente deve ser apresentado sempre que os utentes utilizem os serviços das instituições e serviços integrados no Sistema Nacional de Saúde
ou com ele convencionado.
2 - A não identificação dos utentes nos termos do número anterior não pode, em caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde.3 - Aos utentes não é cobrada, com excepção das taxas moderadoras, quando devidas, qualquer importância relativa às prestações de saúde quando devidamente identificados nos termos deste diploma ou desde que façam prova, nos 10 dias seguintes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados, de que são titulares ou requereram a emissão do cartão de identificação de
utente do Serviço Nacional de Saúde.»
O objectivo da modificação legislativa, como também resulta da respectiva nota preambular, foi o de promover a generalização do uso do cartão de utente no sistema de saúde, implementando para tal desiderato duas condicionantes que são assimexplicitadas:
«Esclarece-se que a não exibição do cartão não pode em circunstância alguma pôr em causa o direito à protecção na saúde constitucionalmente garantido, evitando que o problema burocrático ou administrativo da identificação do utente do Serviço Nacional de Saúde impeça a realização das prestações de saúde.Todavia, torna-se necessário associar consequências à não identificação do cartão e que assentam no pressuposto que o utente não identificado não é beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, associando o ónus do pagamento directo do utente pelos encargos decorrentes de cuidados de saúde, quando não se apresente devidamente identificado nas instituições e serviços prestadores ou não indique terceiro, legal ou contratualmente responsável. Esta responsabilização prática das instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde fica agora mitigada pela possibilidade de o utente se eximir da responsabilidade pelos cuidados de saúde prestados requerendo o
respectivo documento de identificação.»
O Decreto-Lei 52/2000 teve, pois, em vista incentivar o uso do cartão do utente pela população, passando a sancionar com a sujeição ao pagamento dos serviços de saúde prestados, a falta de prova da titularidade do direito, dentro de um prazo curto e peremptório subsequente à interpelação para pagamento, quando o interessado não tenha apresentado o cartão de identificação na ocasião da utilização dos serviços.Poderá assentar-se, por outro lado, sem que isso represente por agora um qualquer comprometimento com a solução do caso, no conteúdo jurídico do direito constitucional positivo que está especialmente em causa, bem como na natureza da limitação que é imposta ao exercício desse direito quando se pretenda regular legislativamente, como é o caso, o acesso ao Serviço Nacional de Saúde.
A prestação de cuidados de saúde através dos estabelecimentos e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, entendido este como um serviço universal quanto à população abrangida, destinado a prestar ou a garantir a prestação de cuidados globais, e tendencialmente gratuito para os utentes, dá concretização prática ao direito à protecção da saúde, consagrado no artigo 64.º da Constituição.
Nesta sua vertente, o direito à protecção da saúde adquire a natureza de um direito social com um certo grau de vinculatividade normativa.
Como tem sido já sublinhado, os preceitos relativos a direitos sociais (como outros referentes a direitos económicos e culturais) contêm normas jurídicas vinculantes que impõem positivamente ao legislador a realização de determinadas tarefas através das quais se pode concretizar o exercício desses direitos.
Por sua vez, o grau de conformação legislativa é variável consoante o carácter mais ou menos determinado ou determinável da imposição constitucional respectiva, pelo que o legislador fica sempre vinculado às directrizes materiais que resultem expressamente ou por via interpretativa das normas que imponham, nesse domínio, tarefas específicas (Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª edição, Coimbra, págs. 397-401; no mesmo sentido, ainda Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Coimbra, pág. 471).
Concretamente em relação à criação e manutenção de um serviço nacional de saúde, como componente do direito à protecção à saúde, constitucionalmente consagrado (artigo 64.º, n.º 2, alínea a), o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de afirmar que se trata aí de uma obrigação constitucional do Estado como meio de realização de um direito fundamental, e não uma vaga e abstracta linha de acção de natureza meramente programática (acórdão 39/84, publicado no Diário da República, 1.ª
série, de 5 de Maio de 1984).
Como norma constitucional impositiva, essa mesma disposição apresenta-se como parâmetro de controlo de constitucionalidade quando estejam em causa medidas legais ou regulamentares que afectem ou inutilizem o direito.Nesse sentido, pode invocar-se a inconstitucionalidade de normas relativas a prestações estaduais por ofensa do conteúdo mínimo determinável de um direito social fundamental, ou ainda por violação dos princípios constitucionais ínsitos no Estado de direito democrático, como sucede quando se restrinja injustificadamente o âmbito dos beneficiários, através de um tratamento legal discriminatório (Vieira de Andrade, ob.
cit., págs. 402 e 415).
Nada parece, também, obstar a que o controlo das soluções legislativas incidentes sobre direitos sociais se efectue por via da aplicação do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade em sentido estrito (Gomes Canotilho, ob cit., pág. 472).4 - No caso concreto, o legislador começou por introduzir o cartão de identificação do utente do Serviço Nacional de Saúde, como um meio alternativo de comprovação da qualidade de beneficiário, que seria destinado a substituir qualquer outro documento pelo qual fosse igualmente possível efectuar essa prova. Por sua vez, a alteração introduzida pelo Decreto-Lei 52/2000, mediante a nova redacção dada ao artigo 2.º, teve em vista impor o uso do cartão de utente como o único meio de identificação perante os serviços de saúde, estipulando concomitantemente a presunção de que o interessado não é beneficiário do Serviço Nacional da Saúde, encontrando-se, por isso, sujeito ao pagamento dos encargos com a assistência médica, quando não tenha feito a prova, nos 10 dias seguintes à interpelação para pagamento, de que é titular do cartão de identificação ou requereu já nos serviços competentes a sua emissão.
À luz das normas e princípios constitucionais, nada pode obstar, no entanto, a que o legislador implemente, por razões de política legislativa, um mecanismo de identificação dos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, em ordem a assegurar a agilização do funcionamento das unidades prestadoras de cuidados de saúde.
Por outro lado, face ao regime legal, a exigência da apresentação do cartão de utente não põe em causa a obrigatoriedade da prestação dos cuidados médicos, tal como desde logo resulta do disposto no n.º 3 do artigo 2.º do Decreto-Lei 198/95, na redacção dada pelo Decreto-Lei 52/2000, que expressamente determina que a não identificação dos utentes nos termos previstos «não pode, em caso algum, determinar a
recusa de prestações de saúde».
Nestes termos, a sujeição dos utentes, segundo o disposto no n.º 3 do mesmo preceito, à demonstração, dentro do prazo de 10 dias seguintes à interpelação feita pelos serviços de saúde, de que são titulares ou requereram a emissão do cartão de identificação de utente do Serviço Nacional de Saúde, como forma de se eximirem ao pagamento dos encargos devidos com os cuidados de saúde prestados, não afecta em si o direito à protecção da saúde tal como é garantido pelo artigo 64.º, n.º 2, alínea b),da Lei Fundamental.
A exigência legal traduz antes um mero condicionamento de natureza procedimental relativo ao exercício do direito e que, no imediato, permite aos centros de saúde e estabelecimentos da rede hospitalar efectuar o controlo do acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde prestados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.5 - Afigura-se, no entanto, que nenhuma das circunstâncias apontadas no acórdão 67/2007 poderá entender-se como indiciária de uma qualquer evidente violação do
princípio da proporcionalidade.
A interpelação a que alude o n.º 3 do artigo 2.º do Decreto-Lei 198/95, na sua actual redacção, insere-se no âmbito de um procedimento administrativo desencadeado pela prestação de assistência médica a um utente num estabelecimento hospitalar, a que deverá aplicar-se, por se tratar de uma formalidade que impõe ao destinatário um dever ou encargo, o regime de notificação de actos administrativos a que se refere o artigo 70.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA).Estando normalmente excluídas as hipóteses consideradas nas alíneas c) e d) do n.º 1 desse artigo (que se referem a situações em que há urgência na notificação ou em que se justifica a notificação edital), a notificação é feita por via postal ou pessoalmente, aplicando-se esta última modalidade se não prejudicar a celeridade do procedimento ou se for inviável a notificação através dos serviços de correio.
Esse é, em geral, o modo por que devem ser notificados aos interessados os actos administrativos que decidam quaisquer pretensões por eles formuladas, que imponham deveres, sujeições ou sanções ou causem prejuízos e que criem, extingam, aumentem ou diminuam direitos ou interesses legalmente protegidos ou afectem as condições do
seu exercício (artigo 66.º do CPA).
A única exigência constitucional, neste plano, é a que resulta do artigo 268.º, n.º 3, primeira parte, da Lei Fundamental, pelo qual a Administração tem o dever de dar conhecimento das suas decisões aos interessados, «na forma prevista na lei».O Tribunal Constitucional tem interpretado esta disposição no sentido de que a notificação deve constituir um meio de comunicação autónomo e individualizado que assegure o efectivo conhecimento do sentido e objecto do acto por parte do seu destinatário (cf. acórdão 72/2009 que efectua uma recensão da jurisprudência mais relevante nesta matéria). Os requisitos essenciais da notificação são, nestes termos, a pessoalidade da comunicação e a cognoscibilidade efectiva do acto notificando, o que permite reconduzir o direito à notificação a um direito à recepção do acto na esfera de perceptibilidade normal do destinatário [Pedro Gonçalves, «Notificação dos actos administrativos (Notas sobre a génese, âmbito, sentido e consequências de uma imposição constitucional)», em Ab Vno Ad Omnes, 75 Anos da Coimbra Editora -
1920 1995, Coimbra, pág. 1115).
O artigo 68.º do CPA pretende dar concretização prática a este imperativo constitucional, ao estabelecer, sob a epígrafe «Conteúdo da notificação», que dela devem constar o texto integral do acto (ou a indicação resumida do seu conteúdo e objecto), a identificação do procedimento administrativo (incluindo a indicação do autor do acto e a data deste), e o órgão competente para apreciar a impugnação administrativa e o prazo para o efeito (quando não seja logo passível de impugnaçãojurisdicional).
O mencionado preceito constitucional prende-se, no entanto, com os requisitos materiais da notificação e não com o procedimento pelo qual a notificação deve ser efectuada. Em relação a este último aspecto, a Constituição não prescreve uma forma única de notificação, nada obstando a que a lei ordinária possa prever como meios de comunicação do acto administrativo a notificação oral, por via postal, mediante a entrega por funcionário, por meio de telecomunicações ou informático. O que se torna exigível é que se trate de uma notificação endereçada (salvo situações de excepção em que possam considerar-se justificáveis como a dispensa ou presunção da notificação), o que desde logo permite excluir que a notificação possa ser substituída pela publicaçãodo acto (idem, págs. 1116).
Em todo o caso, importa notar que, por força do dever de notificação que resulta do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição, o ónus da prova do conhecimento do acto cabe à Administração, pelo que a não previsão, na lei, de um específico procedimento que garanta a efectiva recepção pelo destinatário da carta de notificação (designadamente, o uso do correio registado com aviso de recepção) não pode trazer qualquer consequência processual negativa para o interessado.E nesse sentido aponta o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei 218/99, de 15 de Junho, que, no âmbito das acções para cobrança de dívidas referentes a cuidados de saúde, faz impender sobre o credor a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos, e, por isso, a prova de que, uma vez interpelado, o utente não demonstrou que era titular do cartão de identificação ou que tinha já
requerido a sua emissão.
Ora, em todo este contexto, não se vê nenhum motivo para que a interpelação a que se refere o n.º 3 do artigo 2.º do Decreto-Lei 198/95 devesse ser efectuada por forma mais exigente do que está geralmente previsto para a notificação de actos administrativos que imponham deveres, sujeições ou sanções ou causem prejuízos, e devesse por isso encontrar-se sujeita a uma forma especialmente regulada na lei. E mal se compreende que a ausência dessa especial previsão legal seja, em si, violadora do princípio da proporcionalidade, quando daí não resulta que a Administração fique liberada do ónus da prova de que efectuou a interpelação.Por outro lado, apenas porque se não encontram especificados os termos em que deve ser efectuada a interpelação, não é possível entrever na norma em causa um qualquer critério normativo propiciador de práticas administrativas ilegais, que se torne susceptível de ser confrontado com o parâmetro da proporcionalidade.
De facto, a interpelação, tal como está prevista na referida disposição, constitui um procedimento vinculado da Administração, que, na falta de indicação de um formalismo próprio, deve obedecer aos requisitos gerais da notificação dos actos administrativos.
De tal modo que a omissão ou o deficiente cumprimento do dever de notificar, em cada caso concreto, mormente quando não tenha sido explicitado o ónus que impende sobre o utente ou as consequências que resultam do seu incumprimento, acarreta a inviabilidade da cobrança dos encargos relativos às prestações de saúde, por inexistência do pressuposto de que dependia essa exigência.
A eventual insuficiência do conteúdo da notificação é, assim, uma questão atinente à própria actividade administrativa, que se não reflecte no juízo de constitucionalidade que incide sobre a norma, em si mesma considerada.
6 - Outro argumento a que o Acórdão 67/2007 deu particular relevo assenta na circunstância de os serviços de saúde terem possibilidade de realizar a prova, através dos elementos que lhe são fornecidos no momento da prestação de cuidados médicos,
de que o utente é beneficiário do SNS.
Neste caso, parece ter-se pretendido pôr em causa a própria idoneidade ou aptidão do meio usado para a prossecução dos fins que são visados pela lei.No entanto, deve ter-se em conta, como observa Reis Novais, que o controlo da idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objectiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes. E, assim, a medida só será susceptível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do fim visado (Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra,
2004, págs. 167-168).
Como se esclareceu, a norma em causa visa instituir uma medida de política legislativa destinada, não apenas a assegurar a identificação pessoal dos cidadãos no momento em que pretendam obter a prestação de cuidados de saúde, mas também a incentivar o uso do cartão de utente por parte dos beneficiários por forma a agilizar os procedimentos de acesso ao Serviço Nacional de Saúde.O legislador dispõe de liberdade de conformação legislativa para realizar esses objectivos e não pode o intérprete, a pretexto do controlo da proporcionalidade, pôr em causa o mérito da solução legislativa adoptada.
Por outro lado, a consideração - de que parte o citado acórdão 67/2007 - de que sempre seria possível a identificação do utente por uma via diversa daquela que está legalmente prevista, representaria a própria inviabilização do mecanismo de controlo e acesso aos serviços de saúde que o legislador quis legitimamente instituir, transformando um meio de identificação que se pretendeu ser de uso obrigatório num meio de identificação meramente facultativo.
E a questão não pode sequer colocar-se à luz do princípio da necessidade ou da indispensabilidade. Tendo o legislador pretendido implementar um sistema uniforme de identificação do universo dos beneficiários que sirva de instrumento regulador e racionalizador do acesso às prestações de saúde, não pode afirmar-se que o meio efectivamente escolhido poderia ser substituído por qualquer outro procedimento que permitisse efectuar ocasionalmente a prova da qualidade de beneficiário.
A possível existência de um outro meio para obter a identificação dos utentes não pode, pois, servir de fundamento para que se considere verificada a violação do
princípio da proporcionalidade.
7 - Um outro elemento de ponderação que conduziu ao juízo de inconstitucionalidade, no citado acórdão 67/2007, radica na ideia de que a lei não permite a valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no incumprimento do dever acessório deidentificação.
A questão, porém, não pode colocar-se nestes termos.O Serviço Nacional de Saúde, sendo constituído por um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde, não deixa de integrar um serviço público, que, como tal, está sujeito às suas próprias regras de organização e funcionamento e que são modificáveis em função da variabilidade quanto ao modo como se entende, em cada momento, dever ser prosseguido o interesse
público em presença.
Os utentes de um serviço público, independentemente do seu carácter gratuito ou oneroso, ficam sujeitos às regras que estão legal e regulamentarmente definidas relativamente às condições de acesso e utilização, de tal modo que para beneficiarem das vantagens que são disponibilizadas pelo serviço carecem de cumprir os correspondentes deveres, ónus e sujeições.Não tem qualquer cabimento falar a este propósito de um princípio de culpa, como se se tratasse de matéria de responsabilidade civil, criminal ou contra-ordenacional.
Na verdade, os particulares que pretendam aceder aos bens ou serviços proporcionados pela Administração colocam-se numa situação jurídica especial que decorre da relação de utilização do serviço público, que pressupõe a titularidade de direitos subjectivos mas também de posições jurídicas de desvantagem que derivam da lei, de regulamento ou do mero exercício de poderes jurídico-públicos de regulação, e que constituem o contraponto aos benefícios que podem ser obtidos por via do exercício de uma actividade administrativa de interesse geral (sobre estes aspectos, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2ª edição, I vol., Coimbra, págs.
628-629).
E, nestes termos, as consequências jurídicas que provêm do incumprimento, pelos utentes, de qualquer dos deveres ou sujeições a que estão obrigados não está dependente de qualquer prévio juízo de censura (a menos que a lei fixe ela própria critérios de relevação da conduta do particular) e constituem mera decorrência objectiva do regime de organização e funcionamento do serviço, tal como estánormativamente gizado.
E, nesse ponto, o condicionamento que tenha sido imposto por lei apenas pode considerar-se constitucionalmente ilegítimo quando se mostre desadequado e desproporcionado de modo a que possa dificultar gravemente o exercício concreto do direito em causa (cf. acórdão n.os 413/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Setembro de 1989, cuja doutrina foi refirmada, designadamente, no acórdãon.º 247/02).
No caso vertente, porém, nada permite concluir que a exigência constante do artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei 198/95 seja excessiva ou intolerável em termos de poder considerar-se que afronta o princípio da proporcionalidade.Isso porque se trata, como se viu, não de uma medida supérflua de identificação pessoal do utente, mas de simplificação e harmonização de procedimentos, designadamente em vista a assegurar um mais rigoroso controlo do acesso ao serviço, facilitar o reconhecimento de situações de isenção de taxas moderadoras e permitir uma mais adequada articulação entre as diversas instituições e serviços envolvidos. E, por outro lado, porque representa um esforço mínimo por parte do interessado, que poderá com toda a facilidade efectuar a prova da sua qualidade de utente, ainda em tempo útil, bastando-lhe que demonstre ter já solicitado a emissão do cartão de identificação ainda que à data da prestação de cuidados de saúde não pudesse ser considerado seu titular.
Resta acrescentar que no sentido da não inconstitucionalidade da solução legislativa em causa se pronunciou o acórdão 512/2008.
III - Decisão. - Nestes termos, decide-se não declarar a inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 2.º do Decreto-Lei 198/95, de 29 de Julho, na redacção dada pelo artigo único do Decreto-Lei 52/2000, de 7 de Abril, quando interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de utente no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os
cuidados de saúde.
Lisboa, 5 de Maio de 2009. - Carlos Fernandes Cadilha (relator) - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Pamplona de Oliveira - Gil Galvão - Maria Lúcia Amaral - José Borges Soeiro - Vítor Gomes - Maria João Antunes - Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - João Cura Mariano (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Benjamim Rodrigues (vencido, de acordo com a declaração anexa) - Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da
declaração de voto junta).
Declaração de voto
1 - A minha primeira discordância relativamente ao precedente acórdão respeita à determinação da extensão dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional em processos de "generalização de juízos de inconstitucionalidade".Como no recente Acórdão 135/2009, do Plenário do Tribunal, se assinalou:
"6 - Diversamente do que ocorre nos processos de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade ou da legalidade originados em pedidos formulados ao abrigo dos n.os 1 e 2 do artigo 281.º da CRP, em que compete ao Tribunal Constitucional determinar, aplicando as regras de interpretação jurídica tidas por relevantes, qual o correcto conteúdo da norma questionada, não estando vinculado a adoptar a leitura perfilhada pelo requerente, nos processos de «generalização» de juízos concretos de inconstitucionalidade e de ilegalidade, referidos no n.º 3 daquele preceito constitucional e no artigo 82.º da LTC, constitui um dado da questão a decidir, insusceptível de alteração pelo Tribunal, a específica interpretação normativa que foi objecto de anteriores juízos de inconstitucionalidade ou ilegalidade, interpretação essa que, por seu turno, corresponde, em regra, à adoptada nas decisões dos restantes tribunais objecto dos recursos de fiscalização concreta, onde viriam a ser emitidos esses juízos, já que o Tribunal, por via de princípio (ressalvados os casos de uso da faculdade excepcional prevista no artigo 80.º, n.º 3, da LTC), se abstém de sindicar a correcção da interpretação do direito ordinário efectuada pelas instâncias (cf. Acórdãos n.os
27/2006 e 63/2006).
Assim como, nos processos de fiscalização concreta onde foram emitidos os juízos de inconstitucionalidade cuja «generalização» agora se pretende, o Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre qual a interpretação do direito ordinário que considerava mais correcta, também agora do que se trata é de decidir se padece, ou não, de inconstitucionalidade o critério normativo identificado nas decisões das instâncias e que foi objecto dos juízos de inconstitucionalidade nas três decisões invocadas (...)."Essa tem sido a conduta desde sempre adoptada por este Tribunal perante pedidos de generalização de juízos de inconstitucionalidade, mesmo em casos em que era óbvia a dúvida (e, nalguns casos, mesmo a certeza) de que o critério normativo julgado inconstitucional nas três decisões anteriores do Tribunal Constitucional (coincidente com o critério normativo aplicado ou recusado aplicar nas decisões das instâncias objecto de impugnação) não correspondia à melhor interpretação do direito ordinário
em causa.
Assim, por exemplo, no Acórdão 27/2006 - que decidiu "declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 74.º, n.º 1, do Decreto Lei 433/82, de 27 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto Lei 244/95, de 14 de Setembro, conjugada com o artigo 411.º do Código de Processo Penal, quando dela decorre que, em processo contra ordenacional, o prazo para o recorrente motivar o recurso é mais curto do que o prazo da correspondente resposta" - , o Tribunal Constitucional aceitou como um dado da questão o entendimento (que fora seguido pelas decisões dos tribunais recorridos sobre que recaíram o Acórdão 462/2003 e as Decisões Sumárias n.os 284/2004 e 318/2005, com base nos quais fora deduzido o pedido de generalização) de que o prazo para a resposta ao recurso da decisão proferida na impugnação judicial de uma decisão de aplicação de uma coima era, por aplicação subsidiária do disposto no artigo 413.º do Código de Processo Penal, de 15 dias, enquanto que o prazo para o arguido interpor e motivar esse recurso estava fixado em 10 dias pelo n.º 1 do artigo 74.º do Decreto Lei 433/82. Mas, como se intuía da própria fundamentação do Acórdão 27/2006, a determinação daquele prazo de resposta foi assumido como um dado (inalterável) da questão de constitucionalidade, sem que ao Tribunal Constitucional, nessa sede, fosse lícito discutir a sua correcção, em termos de interpretação de direito ordinário. E, consequentemente, sem qualquer contradição, face a posteriores recursos de decisões das instâncias que seguiram diversa interpretação - a interpretação que veio a ser consagrada no Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2009, no sentido de que "em processo de contra ordenação, é de 10 dias quer o prazo de interposição de recurso para a Relação quer o de apresentação da respectiva resposta, nos termos dos artigos 74.º, n.os 1 e 4, e 41.º do Regime Geral de Contra-Ordenações (RGCO)" - , o Tribunal Constitucional viria, mesmo após a prolação daquela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, a não conhecer de recursos interpostos ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por falta de coincidência entre o critério normativo anteriormente julgado (e declarado) inconstitucional pelo Tribunal Constitucional e o critério normativo aplicado nas decisões então recorridas (cf. Acórdãos n.os 573/2006, 20/2008 e 404/2008 e Decisões Sumárias n.os 250/2008, 330/2008, 386/2008, 106/2009 e 138/2009).Similarmente, no Acórdão 63/2006 - que, também em processo de generalização de juízos de inconstitucionalidade, decidiu "declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante dos artigos 1.º, n.º 2, e 2.º do Regulamento da Contribuição Especial anexo ao Decreto Lei 43/98, de 3 de Março, na interpretação segundo a qual, sendo a licença de construção requerida antes da entrada em vigor deste diploma, seria devida a contribuição especial por este instituída que, assim, incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento" - deixou se bem claro que, citando o Acórdão 81/2005 (a primeira das decisões de inconstitucionalidade cuja generalização era solicitada):
"(...) as normas dos preceitos transcritos serão analisadas numa específica interpretação, que é aquela que constitui o objecto do presente recurso: a de que a contribuição especial é devida nos casos em que a licença de construção tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto Lei 43/98, de 3 de Março, incidindo, como tal, sobre a valorização do terreno (no qual se pretende construir) ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento. Não pode obviamente o Tribunal Constitucional controlar tal interpretação, sob o prisma da sua obediência às regras da interpretação da lei: nomeadamente, não pode o Tribunal Constitucional aferir se os citados preceitos legais deviam ter sido interpretados pelo tribunal recorrido do modo por que o foram, isto é, como sendo aplicáveis aos casos em que a licença de construção tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto Lei 43/98, de 3 de Março. Ao Tribunal Constitucional compete apenas apreciar se a interpretação perfilhada (bem ou mal) pelo tribunal recorrido contraria a Constituição, particularmente o princípio da não retroactividade dos impostos."
Diversamente do que tem sido a constante - e correcta - prática do Tribunal Constitucional na apreciação dos pedidos de generalização de juízos de inconstitucionalidade, o precedente Acórdão não se limitou, como lhe cumpria, a apreciar se os critérios normativos definidos nas decisões das instâncias como aplicáveis aos casos em apreço e por elas julgados inconstitucionais - juízos de inconstitucionalidade estes que, com os contornos assim definidos, foram confirmados nas três anteriores decisões do Tribunal Constitucional - , padeciam, ou não, de inconstitucionalidade. Pelo contrário, o precedente Acórdão desprezou o alcance específico dos anteriores juízos de inconstitucionalidade e tratou de definir autonomamente a interpretação das normas de direito ordinário em causa que reputava por mais correcta, como se de um "normal" processo de fiscalização abstracta de constitucionalidade se tratasse, o que, pelas razões expostas, representa a adopção de uma metodologia que considero inaplicável ao tipo de processo em causa.
2 - Se o objecto da pronúncia a proferir no presente processo pelo Tribunal Constitucional tivesse sido - como devia ser - reportado ao critério normativo julgado inconstitucional nas três decisões em que se fundou o pedido de generalização, a solução não podia deixar de ser a da inconstitucionalidade, tão flagrante ela se
apresenta.
Na verdade, não vejo como se possa considerar respeitador do princípio da proporcionalidade e do direito à protecção da saúde através de um serviço nacional de saúde, universal e geral, e tendencialmente gratuito (artigos 18.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa), um critério normativo segundo o qual o cidadão a quem foram prestados serviços de saúde tem de suportar o seu custo apenas pela circunstância de, nos 10 dias posteriores à interpelação para pagamento, não ter demonstrado ser titular de cartão de utente ou ter requerido a sua passagem, sendo de salientar que o sistema legal não prevê que nessa interpelação para pagamento o visado seja especificamente notificado para fazer a apresentação do cartão, com a cominação de que, se o não fizer no aludido prazo, torna se lhe exigível o pagamento das despesas com os cuidados médicos. Consequência esta que - segundo o critério normativo em causa - decorre necessária e automaticamente da mera constatação objectiva do decurso desse prazo de 10 dias sem apresentação da referida prova, e sem possibilidade legal de ser atribuída relevância a eventual ausência de culpa do interessado na falta de cumprimento desse dever procedimental acessório. No caso sobre que recaiu o Acórdão 67/2007 (e tudo leva a crer que a situação se repetiu nos casos sobre que recaíram as Decisões Sumárias n.os 557/2007 e 274/2008), resulta do respectivo relatório que, para além de o réu na acção não ter sido especificamente notificado para exibir o cartão de utente, nem consequentemente advertido das consequências do incumprimento desse ónus, nem sequer a carta contendo a interpelação para pagamento - ascendendo o montante a pagar a (euro) 4865,23, acrescido de (euro) 322,71 de juros de mora já vencidos e dos vincendos à taxa legal, até efectivo reembolso - chegou ao seu conhecimento (o respectivo aviso de recepção foi assinado por outrem que não o réu e este, ao tempo, encontrava se internado num centro de recuperação, não contactando com o exterior, designadamente com familiares - factos provados C) e E), e deu se por provado que o réu era beneficiário da segurança social desde Dezembro de 1990, sendo titular do cartão de beneficiário com o n.º 111363975 (facto provado F).Tal critério normativo viola flagrantemente o princípio da proporcionalidade na definição das restrições ou condicionamentos ao direito à protecção da saúde tendencialmente gratuito, constitucionalmente consagrado, quer por não respeitar o requisito da necessidade (o controlo da titularidade do réu às prestações do serviço nacional de saúde pode ser efectuado, com facilidade e segurança, pela Administração, através de bases de dados informatizadas, e, no caso apreciado no Acórdão 67/2007, nenhuma dúvida suscitava essa titularidade), quer por se revelar desproporcionado o carácter extremamente gravoso das consequências (ter de suportar a integralidade das despesas com a assistência hospitalar) em comparação com a natureza venial da pretensa falta de colaboração procedimental do interessado.
3 - O precedente acórdão optou, porém, por alterar o objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade, que deixou de ser o critério normativo efectivamente julgado inconstitucional nas três anteriores decisões do Tribunal, para passar a ser o critério normativo que se entendeu ser o correspondente à mais correcta
interpretação das normas legais em causa.
Mas, mesmo assim - e para além de, salvo o devido respeito pela posição que logrou vencimento, considerar ilegítima essa alteração do objecto do pedido - , não acompanhei a decisão de não inconstitucionalidade, remetendo para as considerações a este respeito tecidas nas restantes declarações de voto de vencido, que demonstram proficientemente a insubsistência de tal decisão. - Mário José de Araújo Torres.
Declaração de voto
Divergi do entendimento que fez maioria, pois considero que a norma do n.º 3 do artigo 2.º do Decreto-Lei 198/85, de 29 de Julho, quando interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de utente no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde é atentatória do princípio da proporcionalidade, logo na medida em que a solução não se mostra indispensável ou necessária à prossecução do fim tido em vista.Na verdade, é minha opinião que o regime em apreciação não corresponde ao meio mais suave ou menos gravoso, ao alcance do legislador, para atingir o resultado pretendido de implementação de um sistema uniforme de identificação dos beneficiários, através da apresentação do cartão de utente. Mesmo que se considere a promoção e generalização do uso deste como o objectivo final da mudança legislativa operada como o Decreto-Lei 52/2000, e não apenas uma medida intercalar, dirigida, em último termo, à simplificação e facilitação dos procedimentos administrativos, ele poderia ser alcançado por uma via diversa da legalmente prescrita, com uma sensivelmente menor afectação desvantajosa do direito à prestação de cuidados de saúde, nas condições, constitucionalmente devidas, de tendencial
gratuitidade.
Contrariamente ao afirmado no acórdão, para negar a lesão do princípio da proporcionalidade, tal não redundaria na opção por um qualquer outro meio de identificação, representando "a própria inviabilização do mecanismo de controlo e acesso aos serviços de saúde que o legislador quis legitimamente instituir, transformando um meio de identificação que se pretendeu de uso obrigatório num meio de identificação puramente facultativo". Nada disso se passaria, pois o que está em causa não é a obrigatoriedade de apresentação do cartão, que seria mantida incólume, mas a garantia de cognoscibilidade, pelo utente, do cumprimento desse ónus, como condição de isenção do pagamento do serviço. E essa garantia poderia ser perfeitamente assegurada, com idêntica (senão mesmo superior, como veremos)eficácia na realização daquele fim.
De facto, o que está previsto na norma em causa é uma interpelação para cumprimento, no sentido técnico-jurídico próprio do direito das obrigações, de comunicação do credor ao devedor que tem por efeito tornar exigível uma obrigação pura. Nada obriga a entidade interpelante a comunicar ao utente de que goza da faculdade alternativa de, no prazo de 10 dias, apresentar o cartão ou fazer prova da sua requisição, para, desta forma, ficar exonerado do referido pagamento. Nessa medida, a exigência de pagamento é percebida, na óptica do destinatário, mais como um facto consumado, uma cobrança de dívida já definitivamente consolidada na esfera do credor. Só muito indirecta e longinquamente se pode ver nessa exigência, em si, sem mais, sem a obrigação da entidade hospitalar levar ao conhecimento do interessado a possibilidade de não cumprir, através da satisfação do ónus probatório da titularidade (ou requisição) do cartão de identificação de utente, um incentivo ao uso deste.Por outras palavras: o procedimento é dirigido a obter o pagamento, deixando oculto aquilo que, na óptica das finalidades do diploma, deveria constituir o objecto principal da comunicação: a interpelação para exibir o cartão ou fazer prova da sua requisição, sob pena de, não o fazendo, ficar sujeito ao pagamento do serviço.
Refere o preâmbulo do diploma que as consequências associadas à não apresentação do cartão "assentam no pressuposto que o utente não é beneficiário do Serviço Nacional de Saúde". Estranhamente, dada a universalidade do direito à utilização tendencialmente gratuita do Serviço Nacional de Saúde (artigo 64.º, n.º 2, alínea a) da CRP). "Levar a sério" esta prescrição constitucional implicaria a pressuposição inversa, com a previsão de abertura de um procedimento próprio, de carácter principal, com o sentido precípuo de conceder ao utente uma segunda oportunidade de comprovar, pelo meio previsto (o que não comprometeria o objectivo do diploma), que está inscrito ou
já requereu a inscrição.
O acórdão esgrime argumentativamente com o regime geral do acto administrativo, o qual, no entender dos seus subscritores, acautelaria suficientemente a cognoscibilidadedo ónus.
Em vão o faz, pois, se de acto administrativo se quer aqui falar, ele só pode ser o acto determinativo do pagamento. Ora, este integra o conteúdo da comunicação, pelo que não se detecta, neste plano, qualquer vício. A explicitação cuja omissão está em causa tem outro objecto, diz respeito ao regime legal que abre a hipótese inversa de não cobrança de qualquer quantia. Não se vê, assim, como é que dos requisitos gerais de notificação dos actos administrativos se possa retirar a conclusão de que a falta de menção ao ónus "acarreta a inviabilidade da cobrança".Nem se diga, como se lê no acórdão, que, a haver défice de comunicação, essa é uma questão "atinente à própria actividade administrativa, que se não reflecte no juízo de constitucionalidade que incide sobre a norma, em si mesma considerada".
O ponto é justamente esse, mas a valoração que me suscita é a oposta à perfilhada.
Sem prejuízo de práticas administrativas particularmente diligentes e sensíveis aos justos interesses dos administrados poderem, ocasionalmente, colmatar lacunas de previsão legislativa, é à lei que cabe, em matéria de direitos fundamentais, adoptar conformações que os ponham ao abrigo de perdas de efectividade injustificadas. Só dessa forma se
respeita a garantia constitucional.
Ora, no caso em análise, deparamos com o condicionamento do exercício de um direito fundamental, através da imposição de um ónus procedimental, a cujo incumprimento se liga, sem mais, a pura e simples inibição do seu exercício.No regime estipulado, o não cumprimento da exigência de identificação por cartão, tem, na verdade, uma consequência extremamente gravosa, consistente na perda da faculdade de exercício do direito à utilização tendencialmente gratuita do serviço a que a cobrança se refere. Outras soluções, mesmo dentro do domínio das sanções pecuniárias, seriam conjecturáveis, em termos de se evitar a variabilidade da perda patrimonial infligida (dependente, que ela fica, do preço do serviço em questão), em
consequência de uma mesma falta.
Mas, querendo associar-se a essa falta a obrigação de pagamento, tal só seria admissível, por parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade, com um regime de tal modo configurado que deixasse seguro que a omissão do utente, a verificar-se, só poderia ser atribuída a um qualificado desleixo ou incúria na gestão dos interesses próprios, cabendo no âmbito da sua auto-responsabilidade. Tal não acontece no regime em apreciação, pois dele decorre que apenas a não exibição do cartão (para a obrigatoriedade da qual, em momento algum, o utente é individualmente alertado), sem mais condições, legitima a cobrança do preço do serviço. Para além de não garantir a cognoscibilidade do ónus, o regime do artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 52/2000 não permite relevar qualquer circunstância justificativa ou desculpabilizadora que, em concreto, tenha sido causal do incumprimento.A mais disso, o prazo peremptório estabelecido - os 10 dias seguintes à interpelação para pagamento - é curto (o que só potencia, diga-se de passagem, a eficácia obstativa de circunstâncias justificadamente impeditivas do cumprimento). Tão curto que acaba por ser muito inferior ao previsto para pagamento - 30 dias a contar da interpelação, segundo prescreve o artigo 2.º do Decreto-Lei 218/99, de 15 de Junho. Quer dizer:
ainda se encontra a correr o prazo dentro do qual o débito pode ser satisfeito, sem mora, mas o (pretenso) devedor já se encontra inibido - pasme-se! - de vir provar que nada deve, mesmo que disponha do único meio de prova admitido: o cartão de utente ou documento certificativo da sua requisição. Não se descortina qual o interesse que justifica esta disparidade de termos finais, verdadeiramente aberrante em face dos padrões comuns - e, note-se, é pelo regime comum que é disciplinada e pelos tribunais comuns dirimida (artigo 7.º do Decreto-Lei 218/99, na interpretação dominante) a cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, salva a aplicação do artigo 70.º do Código de Procedimento Administrativo, para que expressamente remete o artigo 2.º daquele diploma.
Dispensável, pela existência de soluções alternativas menos intrusivas na esfera protegida do direito à saúde, sem sobrecargas da actividade administrativa e sem perda de eficácia para o fim intencionado, o regime em causa mostra-se, a meu aviso, claramente excedente dos limites da proporcionalidade, mesmo por um critério de evidência apertado, como aqui se requer, tendo em conta a maior liberdade de conformação de que deve gozar o legislador em sede organizatória ou procedimental.
Em vez de adoptar os resguardos e as precauções condicionantes que a garantia de efectividade do direito à utilização tendencialmente gratuita do Serviço Nacional de Saúde exige, a normação estabelecida propicia a inviabilização do exercício desse
direito, sem benefícios associados.
Justificava-se, pois, um juízo de inconstitucionalidade. Nesse sentido votei. - Joaquimde Sousa Ribeiro.
Declaração de voto
O Ministério Público propôs a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade que havia sido já declarada no Acórdão 67/07 e nas decisões sumárias n.º 557/07 e 274/78, deste Tribunal, e que incidia sobre a norma constante do artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei 52/2000, de 7 de Abril, interpretada no sentido de obrigar ao pagamento dos serviços prestados apenas pelo facto do utente não ter cumprido o ónus de demonstração da titularidade do cartão de utente, no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados desaúde prestados.
Apesar da equivocidade da formulação desta interpretação, da leitura da fundamentação do Acórdão 67/07, à qual as decisões sumárias n.º 557/07 e 274/78 aderiram, resulta que a mesma se reporta ao entendimento de que o utente está obrigado ao pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados, mesmo que não tenha sido notificado que deveria demonstrar a titularidade do cartão de utente no prazo de 10 dias após ter sido avisado para pagar aqueles encargos, não sendo permitida a valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no incumprimentodesse dever.
Foi este o sentido da interpretação que foi declarada inconstitucional em três casos e, necessariamente, foi esse o sentido da interpretação cuja inconstitucionalidade com força obrigatória geral foi requerida pelo Ministério Público.É à irrelevância daquelas situações (falta de notificação para apresentar o cartão de utente e impossibilidade de demonstração de ausência de culpa no incumprimento desse dever de apresentação) que deve ser atribuído o significado do termo "apenas"
quando na formulação da interpretação cuja inconstitucionalidade com força obrigatória geral se requereu se refere que "apenas pelo facto do utente não ter cumprido o ónus de demonstração da titularidade do cartão do utente, no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados" o
utente fica obrigado a esse pagamento.
Não está, pois, aqui em questão a constitucionalidade da obrigatoriedade do utente pagar esses serviços por não ter demonstrado que era titular do cartão do utente num determinado prazo, mas sim a constitucionalidade dessa obrigatoriedade se manter, mesmo que o utente não tenha sido notificado para apresentar aquele cartão, não sendo permitida a valoração de uma eventual ausência de culpa do utente no incumprimentodesse dever.
Neste entendimento da interpretação normativa em questão, que não foi assumido no presente acórdão, ressalta com evidência que estamos perante uma restrição desproporcionada à garantia de um direito à saúde através de um Sistema Nacional de Saúde tendencialmente gratuito (artigo 64.º da C.R.P.), uma vez que, para promover a utilização do cartão de utente, se obriga a pagar o custo real dos cuidados de saúde a quem não cumpriu um ónus de que não lhe foi dado conhecimento, nem se lhe permitiujustificar o incumprimento.
Há uma manifesta desproporção entre a importância dos fins visados com a medida restritiva de um direito social fundamental e a severidade da restrição que resulta dos meios utilizados para alcançar aqueles fins.Por isso votei favoravelmente à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral requerida, reportada à interpretação normativa com o alcance acima
indicado. - João Cura Mariano.
Votámos vencido, por não podermos acompanhar a aplicação feita no acórdão doprincípio da proporcionalidade.
Subscrevemos o Acórdão 67/2007 e continuamos a entender que o essencial da sua fundamentação é cientificamente consistente.Referimo-nos ao princípio da proporcionalidade, em sentido restrito, ou de justa medida. Na verdade, o legislador não tem o mesmo grau de discricionariedade constitutiva em todas as medidas que toma. Esse âmbito é mais ou menos lato consoante a natureza dos direitos fundamentais que são afectados e o tipo de medidas que interferem com os bens ou direitos fundamentais.
Ora, não vemos que o legislador, para obrigar os utentes do Serviço Nacional de Saúde a obterem um cartão, cuja função é apenas - no que se diverge desde logo dos fins considerados no Acórdão - , a de obrigar as pessoas a ficarem agregadas a determinado Centro de Saúde local, para o efeito da organização da prestação dos serviços de saúde primários, vir constitucionalmente a sancionar o utente com o pagamento dos serviços prestados a outro nível, como são os hospitalares. A medida tem uma natureza e função essencialmente procedimental ou organizacional, atingindo os seus efeitos apenas dentro do leque dos interesses directos do Estado.
É que não pode desconhecer-se que o sistema que garante o custeio dos encargos hospitalares com os seus utentes não está minimamente associado ao cartão de utente, mas aos regimes dos subsistemas de saúde - Segurança Social, ADSE, ADMG, Serviços Sociais do Ministério da Justiça e outros, como o financiamento directo do Estado, sendo de tais serviços que os hospitais reclamam, em caso de prestação de cuidados de saúde não cobertos por responsabilidade privada, o pagamento do valor
desses cuidados.
Se demonstrada está a titularidade de beneficiário de um desses regimes, cuja prova o cartão de utente não garante, dificilmente se pode entender que o Estado, para alcançar algumas vantagens num plano organizacional completamente diferente, atinja o utente com um ónus de tanta gravidade: o pagamento dos serviços hospitalares prestados apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de demonstração de titularidade do cartão de utente no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamentodos encargos com os cuidados de saúde.
E o excesso é tanto mais evidente quando se considere três circunstâncias: a primeira, é a de que o utente não é notificado sequer da existência desse ónus legal ou seja, de que, caso não demonstre a titularidade do cartão de utente no prazo estabelecido, terá de suportar os custos dos serviços de saúde prestados nos hospitais; a segunda, é a de que, sendo o emitente do cartão de utente o próprio Estado, não se visiona que "os fundamentos materiais que justificam o SIMPLEX", não estejam presentes na demonstração da qualidade de utente, pois para tanto bastaria que o Estado organizasse os seus serviços em regime de comunicabilidade de dados; a última, é a de que, estando demonstrada a titularidade de um subsistema de saúde garantidor desses encargos, a quando do internamento, deixa a exigência do pagamento com base num mero dever procedimental funcionalizado para outros fins de poder acobertar-se no princípio do Estado de direito democráticos e da Justiça material que o suporta. -Benjamim Rodrigues.
Declaração de voto
Dissenti da presente decisão pelas razões constantes do Acórdão 67/2007, que subscrevi, e que entendo manterem a sua validade. Na verdade, continuo a pensar que viola o princípio da proporcionalidade a solução legal que faculta à Administração exigir de um cidadão o pagamento integral dos cuidados de saúde prestados como consequência automática do incumprimento de um ónus procedimental - a demonstração da titularidade do cartão de utente do Serviço Nacional de Saúde no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde recebidos. Tendo em conta o carácter universal e tendencialmente gratuito daquele serviço, a exigibilidade do pagamento integral do custo dos cuidados de saúde recebidos como consequência da não satisfação daquele ónus, quando a Administração não notificou do referido ónus o destinatário dos serviços prestados e das consequências que estavam ligadas ao seu incumprimento, tendo-se limitado a dirigir-lhe, sem mais, uma interpelação para pagamento dos encargos com a prestação daqueles cuidados de saúde, afigura-se-me constituir uma exigência manifestamente desproporcionada, sobretudo quando a Administração tinha na sua posse os elementos necessários para documentar a condição de beneficiário do Serviço Nacional de Saúde do destinatário dos cuidados de saúde, e a aplicação da consequência cominada é indiferente à circunstância de o particular poder não ter, sem culpa sua, recebido a interpelação. Nas circunstâncias descritas, que foram aquelas em que teve lugar a recusa de aplicação, no processo em que foi tirado o Acórdão 67/2007, da dimensão normativa considerada, o fim prosseguido pela norma apresenta-se vazio de sentido quando a Administração exige ao beneficiário a prova de factos de que tem efectivo conhecimento e quando restringe tal prova a um único meio. E o carácter eventualmente pouco gravoso do comportamento exigido ao beneficiário dos cuidados médicos prestados não retira às consequências do incumprimento do ónus instituído pelo preceito o carácter desproporcionado, máxime quando daquelas consequências não é dado conhecimento àquele e quando existe prova da não recepção, sem culpa do seu destinatário, da interpelação para pagamento.Termos em que, face à dimensão normativa recortada no pedido de generalização, reiteraria o juízo de inconstitucionalidade formulada no Acórdão 67/2007. - Rui
Manuel Moura Ramos.
201888657