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Acórdão do Tribunal Constitucional 135/2009, de 4 de Maio

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Sumário

Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, interpretada no sentido de que, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infracção. (Processo n.º 776/08)

Texto do documento

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 135/2009

Processo 776/08

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional.

I - Relatório

1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, na redacção dada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, segundo a qual, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infracção.

Aduz o requerente que a referida interpretação normativa foi, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, julgada materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.os 1 e 5, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), através do Acórdão 45/2008 e das decisões sumárias n.os 295/2008 e 306/2008.

2 - Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos.

3 - Debatido o memorando apresentado pelo presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.

II - Fundamentação

4 - Não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento dos requisitos previstos nos artigos 281.º, n.º 3, da CRP e 82.º da LTC, tendo o Tribunal Constitucional julgado inconstitucional a interpretação normativa em causa nas três decisões identificadas pelo requerente - Acórdão 45/2008 e decisões sumárias n.os 295/2008 e 306/2008 - , juízo esse que, aliás, foi igualmente formulado nas decisões sumárias n.os 208/2008, 243/2008, 320/2008, 333/2008, 351/2008, 384/2008, 389/2008, 508/2008 e 510/2008, sendo idêntico o critério normativo julgado inconstitucional em todas elas, apesar de, nalguns casos, serem diversos os preceitos legais a que tal critério foi reportado (a decisão sumária n.º 208/2008 foi reportada aos artigos 172.º, n.º 5, e 175.º, n.º 4, a decisão sumária n.º 320/2008 apenas ao artigo 172.º, n.º 5, as três últimas aos artigos 172.º, n.º 5, 173.º, n.º 1, e 175.º, n.º 4, e as restantes exclusivamente ao artigo 175.º, n.º 4, todos do Código da Estrada).

5 - Na sua redacção originária, o Código da Estrada vigente, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, permitia o pagamento voluntário das coimas previstas para as contra-ordenações nele definidas, pagamento que seria feito pelo mínimo da coima aplicável (artigo 154.º, n.º 1) e que «implica[va] a condenação do infractor na sanção acessória correspondente, também pelo mínimo, sem prejuízo do disposto nos artigos 143.º, 144.º e 145.º» (artigo 154.º, n.º 2), que, respectivamente, possibilitavam a dispensa da sanção acessória (tendo em conta as circunstâncias da mesma e o facto de o condutor ser infractor primário ou não ter praticado qualquer contra-ordenação grave ou muito grave nos últimos três anos - artigo 143.º), a sua atenuação especial (com redução para metade da sua duração mínima e máxima, tendo em conta os mesmos factores - artigo 144.º) ou a suspensão da sua execução (verificando-se os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas - artigo 145.º). O procedimento para aplicação das sanções era regulado no artigo 155.º, que previa que, antes da correspondente decisão, as pessoas interessadas fossem notificadas dos factos constitutivos da infracção e das sanções aplicáveis (n.º 1), sendo, «quando possível, o interessado [...] notificado no acto de autuação, mediante a entrega de um exemplar do auto de notícia, donde conste a possibilidade de pagamento voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória, prazo e local para pagamento voluntário e para apresentação de defesa» (n.º 2), devendo os interessados, no prazo de 15 dias a contar da notificação, apresentar a sua defesa por escrito ou proceder ao pagamento voluntário (n.º 3), dispondo o subsequente n.º 4 que: «Os interessados que procedam ao pagamento voluntário da coima não ficam impedidos de apresentar a sua defesa para efeitos do disposto nos artigos 143.º, 144.º e 145.º», ou seja, para efeitos de alcançar a dispensa de aplicação da sanção acessória, a sua atenuação especial ou a suspensão da sua execução.

Das alterações ao Código da Estrada introduzidas pelo Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, resultou que, continuando a admitir-se o pagamento voluntário da coima, pelo mínimo (artigo 153.º, n.º 1), esse pagamento «determina o arquivamento do processo, salvo se a contra-ordenação for grave ou muito grave, caso em que prossegue restrito à aplicação da inibição de conduzir» (n.º 4 do artigo 153.º). O artigo 155.º passou a dispor que, «antes da decisão sobre a aplicação das sanções, os interessados devem ser notificados:

a) Dos factos constitutivos da infracção;

b) Das sanções aplicáveis;

c) Do prazo concedido para a apresentação de defesa e o local;

d) Da possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo, bem como do prazo e do local para o efeito, e das consequências do não pagamento» (n.º 1), podendo os interessados, no prazo de 20 dias a contar da notificação, apresentar a sua defesa ou proceder ao pagamento voluntário (n.º 2), dispondo o subsequente n.º 3 que: «Os interessados que procedam ao pagamento voluntário da coima não ficam impedidos de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável».

O Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro, relativamente aos preceitos em causa, limitou-se a transferir para o n.º 5, sem alteração de redacção, o n.º 4 do artigo 153.º; a acrescentar, no n.º 1 do artigo 155.º, a exigência da menção à «legislação infringida» [nova alínea b), tendo transitado as anteriores alíneas b), c) e d) para as novas alíneas c), d) e e)] na notificação que deve ser feita ao arguido «após o levantamento do auto»; e, no n.º 3 do artigo 155.º, a substituir a expressão «interessados» por «arguido» («O arguido que proceda ao pagamento voluntário da coima não fica impedido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir aplicável»).

Finalmente, o Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, transferiu para os artigos 172.º e 175.º a matéria anteriormente regulada nos artigos 153.º e 155.º, dispondo agora o n.º 5 do artigo 172.º que «o pagamento voluntário da coima nos termos dos números anteriores determina o arquivamento do processo, salvo se à contra-ordenação for aplicável sanção acessória, caso em que prossegue restrito à aplicação da mesma» e o n.º 4 do artigo 175.º que «o pagamento voluntário da coima não impede o arguido de apresentar a sua defesa, restrita à gravidade da infracção e à sanção acessória aplicável».

Apesar de as normas referidas (artigos 154.º e 155.º da versão originária, artigos 153.º e 155.º das versões de 1998 e de 2001 e artigos 172.º e 175.º da versão de 2005) estarem inseridas na regulamentação da fase administrativa do procedimento contra-ordenacional em causa e, portanto, a «defesa» neles referida respeitar à defesa apresentada pelo arguido perante a autoridade administrativa competente para proferir a decisão sancionatória, o certo é que a restrição desta defesa, primeiro, para os «efeitos do disposto nos artigos 143.º, 144.º e 145.º» (ou seja, para efeitos de alcançar a dispensa de aplicação da sanção acessória, a sua atenuação especial ou a suspensão da sua execução) e, desde 1998, «à gravidade da infracção e à sanção de inibição de conduzir [ou sanção acessória] aplicável» tem sido jurisprudencialmente entendida - como se demonstrou no Acórdão 45/2008, com referência a diversas decisões de tribunais de relação - como implicando também uma restrição da defesa que o arguido pretenda deduzir perante os tribunais, no âmbito da impugnação judicial da decisão administrativa sancionatória.

6 - Diversamente do que ocorre nos processos de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade ou da legalidade originados em pedidos formulados ao abrigo dos n.os 1 e 2 do artigo 281.º da CRP, em que compete ao Tribunal Constitucional determinar, aplicando as regras de interpretação jurídica tidas por relevantes, qual o correcto conteúdo da norma questionada, não estando vinculado a adoptar a leitura perfilhada pelo requerente, nos processos de «generalização» de juízos concretos de inconstitucionalidade e de ilegalidade, referidos no n.º 3 daquele preceito constitucional e no artigo 82.º da LTC, constitui um dado da questão a decidir, insusceptível de alteração pelo Tribunal, a específica interpretação normativa que foi objecto de anteriores juízos de inconstitucionalidade ou ilegalidade, interpretação essa que, por seu turno, corresponde, em regra, à adoptada nas decisões dos restantes tribunais objecto dos recursos de fiscalização concreta, onde viriam a ser emitidos esses juízos, já que o Tribunal, por via de princípio (ressalvados os casos de uso da faculdade excepcional prevista no artigo 80.º, n.º 3, da LTC), se abstém de sindicar a correcção da interpretação do direito ordinário efectuada pelas instâncias (cf.

Acórdãos n.os 27/2006 e 63/2006).

Assim como, nos processos de fiscalização concreta onde foram emitidos os juízos de inconstitucionalidade cuja «generalização» agora se pretende, o Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre qual a interpretação do direito ordinário que considerava mais correcta, também agora do que se trata é de decidir se padece, ou não, de inconstitucionalidade o critério normativo identificado nas decisões das instâncias e que foi objecto dos juízos de inconstitucionalidade nas três decisões invocadas, que, a esse respeito, utilizaram sempre a mesma formulação: o critério normativo segundo o qual, «paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infracção».

E como resulta, designadamente, da fundamentação das decisões das instâncias e das referências, nos respectivos relatórios, às questões que os arguidos pretendiam discutir no âmbito das impugnações judiciais das decisões administrativas aplicativas da sanção de inibição de conduzir, o que, em concreto, se entendia pela «possibilidade de discutir a existência da infracção» traduzia-se, não apenas na faculdade de questionar a correcção da qualificação jurídica dos factos, mas a própria verificação dos factos, reivindicando os impugnantes o direito a, perante o tribunal, discutir quer a efectiva verificação dos factos que teriam consubstanciado a contra-ordenação quer a ocorrência de vícios de vontade que teriam inquinado a decisão de proceder ao pagamento voluntário da coima. Recorde-se, a título exemplificativo, que, no recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, onde foi proferido o Acórdão 45/2008 (em caso em que na impugnação judicial da decisão administrativa que aplicara a sanção acessória de inibição de conduzir, na sequência do pagamento voluntário da coima por contra-ordenação consistente no não cumprimento do sinal de paragem obrigatória num cruzamento, a recorrente sustentara ter parado ao sinal Stop, só reiniciando a marcha após verificar que não circulava nenhum veículo na outra via, e só ter pago voluntariamente a coima «porque pensou assim estar obrigada, mas não reconheceu nem reconhece ter cometido a infracção por que foi condenada»), o acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 9 de Maio de 2007, recusou, por inconstitucionalidade, a aplicação da norma questionada, entendida como estabelecendo «uma presunção inilidível, que acarreta a derrogação do direito de defesa ampla do arguido», sustentando-se nesse aresto que «o indiciado infractor pode defender-se, sem quaisquer restrições, alegando mesmo a não verificação/prática da infracção, ainda que tenha ele mesmo (quiçá, outrem, a fortiori) procedido ao pagamento voluntário da coima». E no recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, onde foi proferida a decisão sumária n.º 306/2008, o acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de Fevereiro de 2008, aplicou, por a não reputar inconstitucional, a norma em causa, consignando que da sua correcta interpretação «resulta que o arguido que paga voluntariamente a coima não pode colocar depois em causa a prática dos factos, negando-os». Também no recurso, este interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, onde foi proferida a decisão sumária n.º 243/2008, o acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Évora, de 26 de Fevereiro de 2008, aplicara a questionada norma no sentido de ao recorrente (que pretendera, na impugnação judicial, «discutir a verificação ou o cometimento da contra-ordenação»), não ser «permitido [...] pronunciar-se sobre a veracidade dos factos».

É, pois, com os apontados sentido e alcance quanto à impossibilidade de discutir a existência da infracção que cumpre apreciar a conformidade constitucional do critério normativo questionado.

7 - Relativamente ao parâmetro constitucional a ter em conta na apreciação da questão, o Acórdão 45/2008 começou por salientar que o n.º 10 do artigo 32.º da CRP, na sua directa estatuição, é irrelevante para o presente caso, pois, como se sustentou nos Acórdãos n.os 659/2006 e 313/2007, com a introdução dessa norma constitucional (efectuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t. I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, «nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios», de «todas as garantias do processo criminal» (artigo 32.º-B do projecto de revisão constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e 1.ª série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466).

Mas, como se reconheceu nesse Acórdão 659/2006, é óbvio que não se limitam aos direitos de audição e defesa as garantias dos arguidos em processos sancionatórios, mas é noutros preceitos constitucionais, que não no n.º 10 do artigo 32.º, que eles encontram esteio. É o caso, desde logo, do direito de impugnação perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa, direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da CRP. E, entrados esses processos na «fase jurisdicional», na sequência da impugnação perante os tribunais dessas decisões, gozam os mesmos das genéricas garantias constitucionais dos processos judiciais, quer directamente referidas naquele artigo 20.º (direito a decisão em prazo razoável e garantia de processo equitativo) quer dimanados do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da CRP), sendo descabida a invocação, para esta fase, do disposto no n.º 10 do artigo 32.º da CRP.

8 - A questão que se coloca é, pois, a de saber se respeita os requisitos constitucionais do acesso aos tribunais para tutela efectiva de direitos e interesses legalmente reconhecidos, através de um processo equitativo, no âmbito de um processo judicial de impugnação de uma decisão administrativa de cariz sancionatório, o critério normativo segundo o qual o pagamento voluntário da coima por contra-ordenação rodoviária impossibilita o arguido de discutir em tribunal a própria existência da infracção.

A resposta - adiante-se desde já - é negativa, quer se considere que na base de tal entendimento se encontra o estabelecimento de uma presunção inilidível (cf., infra, n.º 8.2) quer a atribuição de valor probatório absoluto à confissão do arguido que estaria implícita na sua opção pelo pagamento voluntário da coima (cf., infra, n.º 8.3) quer uma renúncia à impugnação do acto ou à invocação de um específico fundamento de impugnação (cf., infra, n.º 8.4).

8.1 - Em anteriores decisões deste Tribunal é possível encontrar contributos úteis para a apreciação do presente caso.

Assim, no Acórdão 29/84 julgou-se inconstitucional a norma do artigo 168.º do Contencioso Aduaneiro, «quanto ao seu § 2.º, quando estatui que o pedido de liquidação importa a confissão dos factos referidos no auto de notícia ou na participação», pretendendo-se com tal disposição «fazer resultar do pedido de liquidação de responsabilidade pelo arguido a condenação automática deste, fazendo equivaler esse pedido à aceitação de uma qualquer condenação pela infracção constante do auto de notícia».

Antes da conversão da generalidade das infracções rodoviárias de transgressões (ou contravenções), ainda inseridas no âmbito penal, em contra-ordenações, diversos juízos de inconstitucionalidade (Acórdãos n.os 28/83, 315/85, 135/86 e 187/96) conduziram, através de processo de generalização, à prolação do Acórdão 337/86, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.os 1, 3 e 5, da CRP, da norma do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada então vigente, na parte em que atribuía competência à Direcção-Geral de Viação para aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa. E no Acórdão 442/94 foi julgada inconstitucional, por violação do princípio constitucional da defesa que para os processos sancionatórios decorre do princípio do Estado de Direito democrático e das garantias que o realizam, consagradas no artigo 32.º, n.os 1, 3 e 5, da CRP, a norma do artigo 1.º, n.º 1, alínea e), do Decreto-Lei 387-E/87, de 29 de Dezembro, na interpretação (acolhida na decisão então recorrida) segundo a qual, havendo pagamento voluntário da multa pela transgressão prevista no artigo 1.º da Lei 3/82, de 29 de Março (condução sob efeito do álcool), a medida de inibição de conduzir pode ser decretada por despacho, sem prévia audiência de julgamento; consignando-se neste acórdão que a controvérsia acerca da natureza da medida de inibição de conduzir (medida de segurança, pena acessória ou efeito da pena) «não afasta a evidência de que ela representa a ablação de um espaço de liberdade cívica que só pode ser determinada por acto de juiz e com prévia audiência de julgamento».

Já após a aludida introdução do ilícito de mera ordenação no domínio das infracções rodoviárias, o Acórdão 264/99 viria a não julgar inconstitucional a norma do artigo 154.º, n.º 2, do actual Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio), na versão anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, mas fê-lo porque entendeu que o pagamento voluntário da coima não tinha como efeito automático a aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, consignando-se neste acórdão que «este pagamento não impõe só por si a aplicação da sanção acessória, dependendo das 'circunstâncias da mesma' ser ou não aplicada em cada caso». E, no caso, o objecto do recurso fora limitado à constitucionalidade da interpretação que o recorrente fazia resultar do dito artigo 154.º, n.º 2, pretendendo «ver aí uma condenação automática [na sanção acessória] derivada do pagamento voluntária da coima», tendo sido excluída do conhecimento do Tribunal, porque extemporaneamente suscitada apenas no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, a questão da constitucionalidade do entendimento, extraído do mesmo preceito, de que «o pagamento voluntário [...] implica confissão dos factos imputados ao arguido».

8.2 - O entendimento da norma ora questionada como estabelecendo uma presunção inilidível não pode deixar de ter-se como constitucionalmente insolvente. Não se questiona a possibilidade de o legislador, mesmo em matéria sancionatória (inclusive penal), estabelecer presunções e, portanto, seria lícito fazer presumir do pagamento voluntário da coima a ocorrência da infracção. Mas o que é intolerável é a inilidibilidade dessa presunção, ao proibir-se que o arguido faça prova, perante o tribunal, da sua não verificação. No sentido da admissibilidade de presunções, desde que ilidíveis, cf.

os Acórdãos n.os 63/85, 447/87, 135/92 e 922/86 (sobre a responsabilidade criminal dos directores de periódicos) e 252/92 (sobre presunção de origem estrangeira de determinadas mercadorias).

Na situação em apreço, não surge como razoável impor como contrapartida à «vantagem» que o arguido terá obtido, ao decidir proceder ao pagamento voluntário da coima, consistente em ter de desembolsar o montante mínimo aplicável, o inconveniente de não poder discutir a efectiva verificação dos factos, surgindo como suficientemente penalizador a posição de desvantagem de que ele naturalmente partirá, perante o tribunal, que normalmente associará àquele pagamento o reconhecimento da prática da infracção, sendo, por isso, o impugnante particularmente onerado com especiais exigências probatórias que conduzam à elisão dessa «presunção».

Não se ignorando que serão menos intensas as preocupações garantísticas em processos contra-ordenacionais em comparação com o processo criminal (cf.

Acórdãos n.os 269/87 e 313/2007), aquelas não podem, contudo, ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria efectividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equitativo.

8.3 - Mesmo que não se transponham para o processo contra-ordenacional as apertadas regras de que o artigo 344.º do Código de Processo Penal rodeia a relevância da confissão do arguido em processo criminal, não pode, porém, deixar de considerar-se que não pode valer como confissão da prática da infracção - em termos de postergar em definitivo qualquer hipótese de retractação - o pagamento voluntário da coima, designadamente feito no próprio acto da autuação, por arguido normalmente desprovido da possibilidade de aconselhamento jurídico e que poderá não se ter apercebido das consequências dessa opção. Como já no Acórdão 337/86 se admitiu, no domínio de anterior legislação, «o arguido pode ter liquidado a multa apenas para evitar o incómodo de ir a tribunal discutir a prática da própria contravenção, mas sem sequer se ter lembrado de que poderia vir a ficar privado, por algum tempo, do direito de conduzir [...], ou sem que, ao menos, essa consequência se lhe apresentasse como provável [...]». Eventualidade de desconhecimento esta que, no regime legal ora em apreço, ganha plausibilidade, pois, enquanto na redacção originária do Código da Estrada de 1994 se impunha que na notificação da autuação fosse entregue ao arguido um exemplar do auto de notícia «donde conste a possibilidade de pagamento voluntário pelo mínimo e suas consequências quanto à sanção acessória» (artigo 155.º, n.º 2), a partir das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, o interessado passou a ser notificado «da possibilidade do pagamento voluntário da coima pelo mínimo [...], e das consequências do não pagamento» [artigo 155.º, alínea d)]; isto é: o interessado deixou de ter de ser informado das consequências do pagamento voluntário, designadamente da probabilidade (e, em diversos casos, mesmo inevitabilidade) da aplicação da sanção acessória de inibição de condução e da impossibilidade de discutir, quer na fase administrativa quer na fase judicial do procedimento contra-ordenacional, a existência da infracção.

São, obviamente, ininvocáveis argumentos, extraídos da regulamentação do processo sumaríssimo penal, no sentido da admissibilidade constitucional de se atribuir relevância à manifestação de concordância do arguido com as sanções propostas pelo Ministério Público, com dispensa de realização de audiência de julgamento e de produção de prova, já que, nesses casos:

i) Ao arguido é sempre assegurada assistência por advogado constituído ou

defensor nomeado;

ii) A notificação ao arguido do requerimento do Ministério Público (com indicação das sanções concretamente propostas e da quantia exacta a atribuir a título de reparação) ou da alternativa estabelecida pelo juiz é feita por contacto pessoal e deve conter obrigatoriamente a informação do direito de o arguido se opor à sanção e da forma e prazo para o fazer, além do esclarecimento dos efeitos da oposição e da não oposição (artigos 394.º a 396.º do CPP).

Também neste contexto, o entendimento em causa não pode deixar de ser considerado como determinando um encurtamento intolerável das garantias exigidas pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e do processo equitativo.

8.4 - Finalmente, não se afigura possível evitar a censura constitucional do critério normativo em causa, vendo no pagamento voluntário da coima uma «renúncia» ao direito à impugnação judicial do acto de aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir ou a «renúncia» à invocação de um dos fundamentos possíveis de impugnação do acto.

Sublinhe-se que o que está em causa não é a impossibilidade de, uma vez paga voluntariamente a coima, questionar o dever deste pagamento, sob qualquer perspectiva, mas antes a imposição, já no âmbito da impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir na sequência do pagamento voluntário da coima, da proibição de discutir a existência da infracção, o que se traduz, no mínimo, na negação da possibilidade de o interessado arguir um dos possíveis vícios desse acto administrativo: o erro sobre os pressupostos de facto.

Ora, como a jurisprudência deste Tribunal (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 429/89 e 8/99) e a mais relevante doutrina têm reiteradamente afirmado, «o artigo 269.º, n.º 2 [actual artigo 268.º, n.º 4], da Constituição pode e deve ser interpretado como estabelecendo uma garantia completa de recurso, quer dizer, uma garantia que assegura aos particulares a possibilidade de impugnarem judicialmente todos os actos singulares e concretos da Administração Pública que produzam efeitos jurídicos externos e sejam susceptíveis, portanto, de lesar os seus direitos», pelo que «quaisquer normas legais que excluam esta possibilidade de impugnação relativamente a certos actos ou a certas categorias de actos administrativos ou que restrinjam os possíveis fundamentos de tal impugnação apenas a alguns dos vícios susceptíveis de gerar a antijuridicidade desses actos, têm de ser havidas como inconstitucionais, e, por via de consequência, como inteiramente irrelevantes» (José Manuel Cardoso da Costa, «A tutela dos direitos fundamentais», Boletim do Ministério da Justiça - Documentação e Direito Comparado, n.º 5, 1981, p. 209). Ou, na formulação de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 938): «A garantia constitucional do recurso impede a isenção contenciosa de certos actos, ou partes de actos, ou a exclusão do conhecimento de certos vícios, de modo a conferir direito à impugnação contenciosa de todos os actos em todos os aspectos juridicamente vinculados».

O critério normativo questionado, nesta última perspectiva, não poderia deixar de ser encarado como representando a proibição de impugnar o acto administrativo aplicativo da inibição de conduzir com fundamento num dos seus possíveis vícios geradores de ilegalidade: o erro sobre os pressupostos de facto. Também por esta via se impõe a emissão de declaração de inconstitucionalidade do critério normativo questionado.

III - Decisão

Em face do exposto acordam em declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.os 1 e 5, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 175.º, n.º 4, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, na redacção dada pelo Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro, interpretada no sentido de que, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infracção.

Lisboa, 18 de Março de 2009. - Mário José de Araújo Torres (relator) - Joaquim de Sousa Ribeiro - Maria Lúcia Amaral - José Manuel Borges Soeiro - João Cura Mariano - Benjamim Silva Rodrigues - Carlos Fernandes Cadilha - Ana Maria Guerra Martins - Vítor Gomes (com declaração anexa) - Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração) - Gil Galvão (vencido, no essencial, pelas razões constantes da declaração de voto da conselheira Maria João Antunes, para a qual remeto) - Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração junta) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Entendo que não viola a garantia de tutela jurisdicional contra actos administrativos lesivos (artigo 268.º, n.º 4, da CRP) ou a garantia de tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.º 1, da CRP) a consagração normativa da possibilidade de renúncia antecipada a discutir o pressuposto de facto pré-determinado do acto sancionatório em processo de contra-ordenação (para esta questão de constitucionalidade não é decisivo que a indiscutibilidade seja concebida como resultante da presunção, confissão, aceitação ou renúncia). O que a jurisprudência do Tribunal tem considerado contrário à plenitude da garantia de impugnação de actos administrativos lesivos são limitações do âmbito da discussão jurisdicional da legalidade do acto administrativo, estabelecidas de modo geral e abstracto em função de factores estranhos à vontade do interessado. Não se retira dessa jurisprudência a proibição da renúncia à discussão de elementos já conhecidos ou cognoscíveis do acto em formação, mediante um acto de vontade expresso ou tácito. Designadamente, afigura-se compatível com essa garantia que, num procedimento complexo de aquisição ou formação progressiva da decisão administrativa, em que seja possível autonomizar um momento procedimental susceptível de fixar o pressuposto de facto do acto final, se ligue a determinada conduta do interessado o efeito de estabilizar esse elemento do acto. Sobretudo quando também o interessado disso retira consequências vantajosas num outro aspecto da relação jurídica (aqui) sancionatória.

Ora, em regra, quem paga voluntariamente uma coima é porque aceita os factos que lhe são imputados no auto de notícia ou, suposto tratar-se de um decisor racional, porque opta por sacrificar a probabilidade de que a infracção não venha a provar-se à vantagem certa do pagamento da coima pelo mínimo. A inibição de conduzir tem a natureza de sanção acessória e é aplicada com base nesses mesmos factos, no âmbito do mesmo procedimento que culminaria numa decisão que abrangeria necessariamente os dois aspectos, a sanção principal (a coima) e a sanção acessória (a inibição da faculdade de conduzir), não fora o interessado ter aceite a primeira.

Nada tem de arbitrário ou desrazoável que a aceitação da factualidade para efeito da sanção principal mediante o pagamento voluntário, bloqueador do poder administrativo de graduação da coima entre os limites legalmente estabelecidos, valha para a sanção acessória que depende da prova da mesma infracção.

E não vislumbro razão para ser mais exigente perante actos de disposição de poderes processuais ou espaços de consenso no processo de contra-ordenação do que no processo penal, onde se admite a renúncia à discussão dos factos, mediante confissão livre, integral e sem reservas (artigo 344.º do CPP) e, em processo sumaríssimo, quando não se trate de aplicar pena ou medida de segurança privativas da liberdade como aqui também não se trata, se vai ao ponto de permitir a própria aceitação da pena proposta pela acusação (artigo 397.º do CPP).

Força é, porém, que tal efeito normativo seja ligado a um acto de vontade, livre e esclarecido. Ora, como o acórdão demonstra, o Código da Estrada não exige actualmente às entidades policiais ou administrativas a advertência do interessado para as consequências do pagamento voluntário da coima e, por outro lado, a norma vem interpretada no sentido de nem sequer permitir a demonstração de vícios de vontade na aceitação da infracção que se extrai do pagamento voluntário da coima. Só por estas razões acompanhei o juízo de inconstitucionalidade. - Vítor Gomes.

Declaração de voto

Acompanho a decisão relativamente à norma retirada do n.º 4 do artigo 175.º do Código da Estrada (na versão do Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro), com o sentido de que, na impugnação da decisão administrativa em que é aplicada sanção acessória de inibição de conduzir, ao arguido que pagou voluntariamente a coima não é consentido impugnar os factos que lhe foram imputados, constitutivos da infracção geradora da medida acessória de inibição de conduzir. Assim interpretada a norma é, em meu entender, inconstitucional por violação do princípio da liberdade de julgamento ínsito na garantia de tutela jurisdicional efectiva prevista no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição.

Entendo, todavia, que a Constituição não proíbe que o legislador possa expressamente retirar do pagamento voluntário da coima uma presunção de renúncia ao direito à impugnação judicial da contra-ordenação e da medida acessória correspondente, assim como entendo que não proíbe que o legislador condicione a apreciação judicial da impugnação das medidas de aplicação da coima e da sanção acessória ao prévio pagamento de uma quantia equivalente ao montante da coima. - Carlos Pamplona de Oliveira.

Declaração de voto

1 - Votei no sentido da não inconstitucionalidade da norma apreciada neste processo por entender que a Constituição da República Portuguesa não proíbe o legislador de fazer corresponder ao pagamento voluntário da coima a existência da infracção.

Para este juízo é decisivo tratar-se de pagamento voluntário e de pagamento de uma coima. A infracção dá-se por verificada - e só essa consequência está em causa - por efeito de uma manifestação de vontade do arguido, em matéria sancionatória de tipo contra-ordenacional. A conformidade constitucional de soluções processuais consensuais no âmbito das infracções de pequena gravidade foi já sustentada no Acórdão 164 da Comissão Constitucional, a propósito do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada, então vigente (publicado em apêndice ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979):

«3 - Que significa exactamente a afirmação, naquele preceito contida, de que o pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo equivale à condenação? [...] a) Significando ela tão-só - é esse, na verdade, o seu conteúdo mínimo possível - que o pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo equivale à confissão da prática da transgressão e, portanto, à fixação definitiva dos factos relevantes para a condenação, deveríamos concluir que a lei portuguesa se teria a este respeito aproximado do conhecido modelo anglo-americano da sentença agnitória ou da guilty plea, com a consequente necessidade de condenação do arguido por efeito de uma sua manifestação de vontade (cf. Eduardo Correia, «Les Preuves en Droit Pénal Portugais», Revista de Direito e de Estudos Sociais, XIV, 1967, pp. 13 e seguintes; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, p. 208; e, em pormenor, J. Herrmann, Die Reform der deutschen Hauptverhandlung nach dem Vorbild des anglo-amerikanischen Strafverfahrens, 1971, pp. 161 e seguintes). Modelo que, sendo desconhecido em geral dos restantes sistemas processuais (nomeadamente no que se refere à célebre plea barbaining), não deixa, todavia, de ter extensos pontos de contacto com a regulamentação de certas formas de processo continentais, em particular das mais rápidas e menos solenes, como seria o caso do Strafbefehls - e Strafverfügungsverfahren na Alemanha (cf J. Herrrnann, cit., p. 164, e, criticamente, P.

Hünerfeld, «A pequena criminalidade e o processo penal», Revista de Direito e Economia, XV, 1978, pp. 43 e seguintes) ou o do processo de transgressão entre nós.

Fosse este o entendimento a dar ao período questionado do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada e não haveria razão bastante para concluir pela sua inconstitucionalidade. Decerto que o processo agnitório é fenómeno estranho ao (e contrastante com o) nosso sistema processual, na medida em que frontalmente contraria os princípios da verdade material, da investigação oficial, da indisponibilidade do objecto processual e da livre apreciação da prova, e em que vai ao arrepio do valor não definitivo da confissão, consagrado para o processo penal pelo artigo 174.º do respectivo código [Código de Processo Penal de 1929]. A verdade, porém, é que nenhum dos aludidos princípios tem entre nós assento e dignidade constitucional, pelo que - por mais aberrante e criticável que fosse no plano político-legislativo - não haveria em definitivo razão para negar legitimidade, à luz da Constituição, a uma norma consagradora do sistema da guilty plea em certo ou certos processos, máxime em processos rápidos e simples, como é o caso do processo de transgressão».

2 - Este entendimento em nada colide com os juízos de inconstitucionalidade constantes dos Acórdãos n.os 337/86 e 442/94, fundados na «necessidade de intervenção do juiz para aplicação da medida de inibição da faculdade de conduzir».

As normas apreciadas em tais decisões fazem corresponder ao pagamento voluntário da sanção principal (multa) uma consequência que já não é suportável na manifestação de vontade do arguido. Que já não é suportável na imagem do homem-arguido como ser dotado de uma livre determinação e de uma auto-responsabilidade (cf. Figueiredo Dias, «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p.

29). Com efeito, do pagamento voluntário de uma multa por infracção estradal «não pode derivar-se a dispensabilidade da audiência de julgamento para a aplicação da medida de inibição da faculdade de conduzir» (Acórdão 442/94). E tão pouco colide com o entendimento que se extrai do Acórdão 264/99. Nesta decisão, o Tribunal decidiu não conhecer a norma que então se extraía do artigo 154.º, n.º 2, do Código da Estrada, na interpretação de que o pagamento voluntário da coima implicava a confissão dos factos imputados ao arguido.

O acórdão da Comissão Constitucional já referido é, de resto, bem significativo do que acaba de ser dito. Pronuncia-se pela conformidade constitucional do último período do primeiro parágrafo do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada - o pagamento voluntário da multa feito depois de instaurado o processo equivale à condenação -, interpretado no sentido de o pagamento voluntário da multa equivaler à confissão da prática da transgressão e, portanto, à fixação definitiva dos factos relevantes para a condenação;

mas já considera inconstitucional a mesma disposição legal, interpretada no sentido de permitir a aplicação da inibição da faculdade de conduzir como efeito automático do pagamento e, assim, independentemente de audiência de julgamento e da possibilidade efectiva de constituição de defensor e de presença e audiência do arguido. - Maria João Antunes.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/05/04/plain-251212.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/251212.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-03-29 - Lei 3/82 - Assembleia da República

    Condução automóvel sob a influência do álcool.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-12-30 - Acórdão 337/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada, na parte em que atribui competência à Direcção-Geral de Viação para aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa.

  • Tem documento Em vigor 1987-12-29 - Decreto-Lei 387-E/87 - Ministério da Justiça

    Altera o processamento das transgressões e contravenções e dá nova redacção a alguns artigos do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (aprova o Código de Processo Penal).

  • Tem documento Em vigor 1994-05-03 - Decreto-Lei 114/94 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o Código da Estrada, cujo texto se publica em anexo.

  • Tem documento Em vigor 1998-01-03 - Decreto-Lei 2/98 - Ministério da Administração Interna

    Altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio. Republicado em anexo com as alterações ora introduzidas.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2001-09-28 - Decreto-Lei 265-A/2001 - Ministério da Administração Interna

    Altera o Código da Estrada, aprovado pelo Dec Lei 114/94 de 3 de Maio. Republicado em anexo com as alterações ora introduzidas.

  • Tem documento Em vigor 2005-02-23 - Decreto-Lei 44/2005 - Ministério da Administração Interna

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio e posteriormente alterado. Republicado na íntegra com todas as alterações.

Ligações para este documento

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