Acórdão 27/2006
Processo 883/2005
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
1 - O procurador-geral-adjunto em exercício neste Tribunal, como representante do Ministério Público, veio requerer em 4 de Novembro de 2005, nos termos do disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da "norma constante do n.º 1 do artigo 74.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, na redacção emergente do Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro, quando dele decorre - conjugado com o artigo 411.º do Código de Processo Penal - um prazo mais curto para o recorrente, em processo contra-ordenacional, motivar o recurso».
Para o efeito, refere que esta interpretação normativa foi julgada inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, no Acórdão 462/2003 e nas decisões sumárias n.os 284/2004 e 318/2005.
Notificado nos termos do disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, o Primeiro-Ministro respondeu oferecendo o merecimento dos autos.
2 - O n.º 1 do artigo 74.º do Decreto-Lei 433/82, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro, tem a seguinte redacção:
"Artigo 74.º
Regime do recurso
1 - O recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste.
...»
Trata-se do prazo de que o arguido em processo contra-ordenacional dispõe para interpor recurso da decisão proferida na impugnação judicial de uma decisão de aplicação de uma coima, que a versão inicial do Decreto-Lei 433/82 fixava em cinco dias.
Nos termos do disposto no n.º 4 do mesmo artigo 74.º, "o recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as especialidades que resultam deste diploma».
Por virtude desta aplicação subsidiária das regras de processo penal, "o requerimento de interposição do recurso é sempre motivado [...]», como resulta do n.º 3 do artigo 411.º do Código de Processo Penal. O recorrente tem, assim, nos termos destas disposições, 10 dias para motivar o recurso que pretenda interpor.
No Acórdão 462/2003 (Diário da República, 2.ª série, n.º 272, de 24 de Novembro de 2003), o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto no n.º 1 do artigo 74.º do Decreto-Lei 433/82 e no artigo 411.º do Código de Processo Penal "quando deles decorre [...] um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso».
Como se verifica pela respectiva fundamentação, estava então em causa a comparação entre o prazo de que o recorrente dispõe para motivar o recurso e o prazo fixado para a correspondente resposta, que se considerou como tendo a duração de 15 dias, por aplicação subsidiária do disposto no Código de Processo Penal (n.º 1 do artigo 413.º).
3 - Nesse pressuposto, o Acórdão 462/2003 reiterou a justificação com que o Acórdão 1229/96 (Diário da República, 2.ª série, de 14 de Fevereiro de 1997) julgara inconstitucional a norma constante da anterior redacção do n.º 1 do artigo 74.º do Decreto-Lei 433/82, conjugada com o artigo 411.º do Código de Processo Penal, também quando entendida no sentido de determinar um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso, quando confrontado com o prazo da resposta, nestes termos:
"6 - Da posição do recorrente decorre ainda a afirmação de que a existência de dois prazos processuais (o de 5 dias, do artigo 74.º, n.º 1, e o de 10 dias, 'para os sujeitos processuais afectados pela interposição de recurso, que resulta do Código de Processo Penal') 'viola o princípio da igualdade, na sua dimensão de princípio de igualdade de armas', à luz do artigo 13.º da Constituição, na medida em que são prazos distintos para motivar e para responder no processo de contra-ordenação.
Partindo dessa afirmação, tudo está em saber se a pretensa diferenciação de tratamento dos sujeitos processuais se baseia em motivos subjectivos ou arbitrários, ou é materialmente infundada, e é este aspecto que releva para aferir a violação do princípio da igualdade, aqui na dimensão de igualdade de armas no mesmo processo, enquanto princípio vinculativo da lei, traduzindo a ideia geral de proibição do arbítrio (na leitura, por exemplo, do Acórdão 213/93, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 127, de 1 de Junho de 1993, seguido depois no citado Acórdão 47/95).
Na verdade, a aceitar-se um regime distinto para os actos processuais, como não pode deixar de aceitar-se, por aplicação dos n.os 1 e 4 do artigo 74.º (o n.º 4 manda seguir 'a tramitação de recurso em processo penal'), conjugados com os artigos 411.º e 413.º do Código de Processo Penal, tem de dizer-se que, sendo assim, ocorre afronta à regra da igualdade constitucionalmente consagrada, não valendo argumentar que o legislador se move no quadro de valores constitucionais, tais como os da celeridade da eficácia da justiça e da eficácia do sistema contra-ordenacional. E não pode também argumentar-se com a ideia de que uma coisa é o acto de interposição do recurso à disposição do arguido, que tem de ser motivado (cf. artigo 411.º do Código de Processo Penal), e outra é a resposta ao recurso, por aplicação do artigo 413.º do mesmo Código, pois a igualdade de armas no mesmo processo supõe iguais mecanismos à disposição dos sujeitos processuais (igualdade que estava assegurada à data em que foi editado o Decreto-Lei 433/82, pois vigorava então o Código de Processo Penal de 1929, à face do qual a fase da motivação do recurso era posterior à sua interposição e era o mesmo o prazo para alegar e contra-alegar: artigos 645.º, 649.º e 651.º daquele Código).
Sendo certo que a decisão recorrida não chegou a envolver-se num juízo de aplicação daquela norma do n.º 4 do artigo 74.º, pois nem sequer o presente processo chegou à fase de produção da resposta ao recurso pelo recorrido, a verdade é que o prazo mais encurtado para a motivação do recurso da parte do recorrente envolve ofensa do princípio da igualdade, tal como ela vem pelo recorrente delineada (cf. os Acórdãos deste Tribunal Constitucional n.os 208/93 e 263/93, com identificação de mais arestos, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 24.º, pp. 527 e 655).
Em suma, o artigo 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, quando dele decorre, conjugado com o artigo 411.º do Código de Processo Penal, um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso, está ferido de inconstitucionalidade, por violação do artigo 13.º da Constituição.»
Esta fundamentação, que hoje se pode filiar também no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, ao qual foi acrescentado pela revisão constitucional de 1997, foi acolhida nas decisões sumárias n.os 284/2004 e 318/2005.
4 - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 74.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro, conjugada com o artigo 411.º do Código de Processo Penal, quando dela decorre que, em processo contra-ordenacional, o prazo para o recorrente motivar o recurso é mais curto do que o prazo da correspondente resposta, por violação do princípio da igualdade de armas, inerente ao princípio do processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição.
Lisboa, 10 de Janeiro de 2006. - Maria dos Prazeres Beleza (relatora) - Paulo Mota Pinto - Benjamim Rodrigues - Gil Galvão - Maria João Antunes - Vítor Gomes - Mário Torres - Pamplona de Oliveira - Maria Helena Brito - Maria Fernanda Palma - Rui Moura Ramos - Artur Maurício.