Acórdão doutrinário
Processo 60957. - Autos de recurso para o tribunal pleno, em que são recorrente a Casa das Beiras e recorrida a Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados.
Acordam, em pleno, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça:
A Casa das Beiras, com sede em Lisboa, nos termos do artigo 763.º do Código de Processo Civil, recorre para o tribunal pleno do Acórdão deste Tribunal de 25 de Maio de 1965, fotocopiado de fls. 11 a 14 v.º, que julgou procedente a acção que lhe moveu a Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados e que correu na 4.ª vara da comarca de Lisboa, com fundamento em que ele, relativamente à mesma questão fundamental de direito, assenta sobre solução oposta à proferida no Acórdão deste mesmo Tribunal de 27 de Janeiro de 1950, transitado em julgado, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 17, p. 286.
O acórdão recorrido, à sombra da alínea c) do artigo 11.º do Decreto 28321, de 27 de Dezembro de 1937, e alínea a) do artigo 166.º do Decreto 45266, de 23 de Setembro de 1963, que regulamentaram, respectivamente, as Leis 1884, de 16 de Março de 1935 e 2115, de 18 de Junho de 1962, concedeu o despejo do 2.º e 3.º andares ocupados pela Casa das Beiras, a título de arrendatária desde 19 de Outubro de 1937, do prédio sito em Lisboa e Largo de S. Domingos, 14 e 15-B, e nas Escadinhas da Barroca, 2 a 4, requerido pela proprietária, Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados, que o comprou por escritura pública de 26 de Janeiro de 1960; e do 1.º andar fora arrendatária desde 10 de Julho de 1936 a Ordem dos Advogados.O Acórdão oferecido em oposição, de 27 de Janeiro de 1950, certificado de fls. 8 a 10, ao abrigo da alínea b) do artigo 16.º da Lei 1884, não decretou o despejo requerido pela Caixa Sindical de Previdência dos Tipógrafos, Litógrafos e Ofícios Correlativos, proprietária do prédio, onde só depois instalou a sede dos seus serviços sociais, no 1.º andar, contra os subarrendatários do 3.º e 4.º andares, que lhes foram sublocados pelo arrendatário, em virtude de a regalia conferida naquele preceito legal não ser de conceder aos arrendamentos anteriores à compra do prédio pelas instituições de previdência.
O Acórdão da secção de 29 de Outubro de 1965, de fls. 23 a 25, decidiu que os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação, no conceito do n.º 2.º do artigo 763.º do Código de Processo Civil, e que existe oposição sobre a mesma questão fundamental de direito.
O Ministério Público, no seu parecer de fls. 39 e 40, pronuncia-se no sentido de que se deve tirar assento nos termos seguintes:
Mantém-se a regalia mencionada no artigo 166.º, n.º 1.º, alínea a), do Decreto 45266, de 23 de Setembro de 1963, ainda que o arrendamento seja anterior à aquisição do prédio pelas caixas sindicais de previdência.
Cumpre decidir:
Existe, com efeito, oposição entre os dois julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, compra do prédio pela instituição de previdência quando nele se ache instalada no tocante ao exercício da actuação da regalia conferida nos preceitos legais atrás citados.
Assim, o acórdão recorrido decretou o despejo do arrendatário anterior à aquisição do prédio, mas o acórdão oferecido em oposição não decretou o despejo, com o fundamento de que a mesma regalia, conferida nos citados preceitos, não é de conceder aos arrendamentos anteriores à compra do prédio.
Os acórdãos, embora proferidos não na vigência do mesmo diploma legal, foram, contudo, no domínio da mesma legislação, em harmonia com o conceito ínsito no n.º 2.º do artigo 764.º do Código de Processo Civil.
Pois que o princípio legislativo que vigorava aquando do acórdão opositor, consignado na alínea c) do artigo 11.º do Decreto 28321, concedendo às caixas de previdência a regalia de «despedir no fim do arrendamento, quando instaladas em edifício próprio, qualquer dos seus inquilinos, se carecerem da parte por eles ocupada para as suas instalações», era o mesmo que o proclamado no Regulamento Geral das Caixas Sindicais de Previdência, aprovado pelo Decreto 45266, de 23 de Setembro de 1963, na alínea a) do artigo 166.º, em cumprimento ao disposto na base XXXIII da Lei 2115, onde mais explìcitamente se concretizou e alargou o âmbito da regalia «para as suas instalações e serviços».
A Lei 1884 reconheceu instituições de previdência, entre outras, as caixas de reforma ou de previdência, de 2.ª categoria (n.º 2.º do artigo 1.º e seu § 2.º), a quem concedeu a regalia, contida na alínea b) do artigo 16.º, seguinte: «Despedir no fim do arrendamento, quando instaladas em edifício próprio, qualquer dos seus inquilinos, se carecerem da parte por eles ocupada para as suas instalações».
Na alínea c) do artigo 11.º do Decreto 28321, que regulamentou a Lei 1884, repetiu-se ipsis verbis a regalia inserida na Lei 1884 de que desfrutam as caixas de reforma ou de previdência.
A Lei 1884 foi revogada pela Lei 2115, que manteve a classificação de 2.ª categoria das caixas de reforma ou de previdência (n.º 3.º da base III), e as que estavam então constituídas continuaram a reger-se pela legislação complementar da Lei 1884 em tudo o que não contrarie as disposições deste novo diploma (n.º 2.º da base XXXII).
No Decreto 45266, que regulamentou a Lei 2115, dando cumprimento ao disposto na base XXXIII, destinado a regulamentar a estrutura, funcionamento e esquemas de benefícios das caixas sindicais de previdência nas três espécies fundamentais que segundo aquela lei podem revestir: caixas de previdência e abono de família, caixas de pensões e caixas de seguros, a alínea a) do n.º 1.º do artigo 166.º atribui às caixas sindicais de previdência a regalia de «despedir no fim do arrendamento, quando instalados em edifício próprio, qualquer dos seus inquilinos, se necessitarem da parte por eles ocupada para as suas instalações ou serviços».
Posteriormente, as instituições previstas no n.º 3.º da base III da Lei 2115, caixas de reforma ou previdência, destinadas a proteger os beneficiários e os seus familiares na invalidez, na velhice e por morte, foram directamente regulamentadas no Decreto 46548, de 23 de Setembro de 1965, que expressamente revogou o Decreto 28321, que regulamentou a Lei 1884, que passou a nele englobar as que foram constituídas pela Lei 1884 e que por esta lei continuaram a reger-se pela legislação complementar em tudo o que não contrarie as disposições da Lei 2115.
E neste Decreto 46548 se volta a inserir na alínea a) do seu artigo 119.º a mesma regalia: «Despedir no fim do arrendamento, quando instalados em edifício próprio, qualquer dos seus inquilinos, se necessitarem da parte por eles ocupada para as suas instalações ou serviços».
Todos estes diplomas reconhecem às caixas de previdência, quando instaladas em edifício próprio, o direito de despedir, no fim do arrendamento, qualquer dos seus inquilinos, se necessitarem da parte por eles ocupada para as suas instalações e, depois do Decreto 45266, ainda também para os seus serviços.
Os pressupostos legais determinantes do exercício da regalia são: ser proprietário do prédio e nele se achar instalado e necessitar da parte ocupada por qualquer dos inquilinos para as suas instalações ou para os seus serviços.
A lei curou de acautelar os interesses das caixas sindicais de previdência no tocante às instalações e de seus serviços, sem entraves de qualquer natureza a esse desiderato, logo que ocorram os indispensáveis pressupostos legais acima referidos.
A movimentação da regalia é de livre escolha, recai em qualquer inquilino, sendo, por isso, indiferente que ela seja anterior ou posterior à aquisição do prédio, situações essas completamente irrelevantes ao exercício e reconhecimento do direito.
É esta a interpretação que imediatamente se colhe através do elemento gramatical - que parece não oferecer dúvida séria -, corroborada pelo elemento lógico explícito na ratio legis, no fim visado pela lei - obter instalação para a instituição - e ainda para os seus serviços no prédio de que seja proprietária e ocupe.
A tese que o Acórdão de 1950, oferecido em oposição, adoptou, negando o exercício da regalia de despedir o inquilino com arrendamento anterior à aquisição do prédio, apoiado nos direitos do arrendatário, em sã lógica, deve ser extensiva ao arrendatário posterior à aquisição.
Não se concebe que sob a égide do mesmo princípio os arrendatários anteriores não possam ser despedidos, mas possam já ser os posteriores à compra do prédio, uma vez que uns e outros são arrendatários e são igualmente tratados pela lei.
Não se apreende com facilidade, pelo que vem ponderado, a distinção exarada no citado acórdão, tanto mais que perante a regra consignada na resolução de 28 de Agosto de 1767, ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus, o intérprete não deve distinguir.
Prevalece, desta sorte, a interpretação firmada no acórdão recorrido, que se mantém, pelo que negam provimento ao recurso, com custas a cargo da recorrente, e fixam o assento seguinte:
As caixas de previdência, instaladas em edifício próprio, gozam do direito de despedir os seus inquilinos quando necessitem da parte por estes ocupada, mesmo que tenham adquirido o prédio depois do arrendamento.
Lisboa, 11 de Novembro de 1966. - Torres Paulo - J. Santos Carvalho Júnior - Oliveira Carvalho - Eduardo Correia Guedes - Joaquim de Melo - Gonçalves Pereira - Ludovico da Costa [com a declaração de que votei o acórdão, não apenas pelas razões deste, como ainda porque, ao contrário do afirmado no acórdão oposto, o despedimento facultado pelas leis especiais em referência de nenhum modo «posterga direitos adquiridos» por inquilinos anteriores, dado que nenhum estava subjectivado no sentido de verem, por vontade unilateral deles, forçadamente prorrogado o arrendamento.
É que o respectivo contrato continua a ser, em princípio, de duração temporária (artigos 1.º e 29.º do Decreto 5411). Simplesmente, o exercício da faculdade de o senhorio despedir o inquilino no termo contratual está, ainda que desde 1919, transitòriamente suspenso (artigos 106.º e 117.º do mesmo decreto, e 5.º e 13.º da Lei 1662, em ligação com o Decreto 14630, de 1927).
Portanto, esta situação emerge ùnicamente da lei e para subsistir enquanto essa mesma lei continuar em vigor. Daí que se trata de uma restrição meramente legal, que, por livremente revogável, não subjectiva nenhum direito a ser eternizada a mesma situação.
Ora, as Leis n.os 1884 e 2115 derrogaram ou levantaram aquela suspensão no caso especial que contemplam]. - (Tem voto de conformidade dos Exmos. Conselheiros Bernardes de Miranda, Albuquerque Rocha, Teixeira de Andrade, Francisco Soares, Vera Jardim, Lopes Cardoso e José Cabral, que não assinam por não estarem presentes - Torres Paulo).
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Novembro de 1966. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.