Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 525/2008
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1 - O Presidente do Governo Regional da Madeira pede ao Tribunal Constitucional que declare, com força obrigatória geral, a ilegalidade dos n.os 1 e 2 do artigo 13.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), na parte em que se refere à administração regional da Madeira, e dos artigos 14.º, n.º 1, da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2007), e 11.º, n.º 1, da Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2006), na mesma parte, na medida em que estas normas ainda produzam efeitos jurídicos. O teor das normas em questão é o seguinte:
Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro
«Artigo 13.º
Suspensão de destacamentos, requisições e transferências
1 - É suspensa, até 31 de Dezembro de 2008, a possibilidade de destacamento, de requisição e de transferência de funcionários da administração regional e autárquica para a administração directa e indirecta do Estado.
2 - A suspensão determinada no número anterior mantém-se relativamente à mobilidade prevista na lei que, na sequência da Resolução do Conselho de Ministros n.º 109/2005, de 30 de Junho, defina e regule os novos regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas.» Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro
«Artigo 14.º
Suspensão de destacamentos, requisições e transferências
1 - É suspensa, até 31 de Dezembro de 2007, a possibilidade de destacamento, de requisição e de transferência de funcionários da administração regional e autárquica para a administração directa e indirecta do Estado.» Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro
«Artigo 11.º
Suspensão de destacamentos, requisições e transferências
1 - É suspensa, até 31 de Dezembro de 2006, a possibilidade de destacamento, de requisição e de transferência de funcionários da administração regional e local para a administração central.» 2 - Invoca o requerente o seguinte:
«No uso do direito consagrado na alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, o Presidente do Governo Regional da Região Autónoma da Madeira vem requerer a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de normas das Leis n.os 67-A/2007, de 31 de Dezembro, 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 60-A/2005, de 30 de Dezembro, no tocante, respectivamente, aos artigos 13.º, 14.º e 11.º das identificadas leis, por violação do artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho, alterado pelas Leis n.os 130/99, de 21 de Agosto, e 12/2000, de 21 de Junho, pelas razões e fundamentos que se passam a expor:
1.º Pelo n.º 1 do artigo 13.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro, diploma que aprovou o Orçamento do Estado para 2008, determina-se que, até 31 de Dezembro de 2008, fica suspensa a possibilidade de destacamento, de requisição e de transferência de funcionários, designadamente, da administração regional para a administração directa e indirecta do Estado, dispondo o n.º 2 do mesmo artigo que tal suspensão se mantenha relativamente à mobilidade prevista na lei que venha a regular os novos regimes de vinculação, carreiras e remunerações dos trabalhadores que exerçam funções públicas.
2.º Ora, ao determinar a suspensão das supra-referidas formas de mobilidade de pessoal da administração regional para a administração directa e indirecta do Estado, necessariamente, estabelece-se um regime de suspensão de direitos que colide com a garantia de mobilidade profissional e territorial, estatuída no artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
3.º Tal como sucede com o disposto no n.º 1 do artigo 14.º da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, bem como com o n.º 1 do artigo 11.º da Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro, diplomas estes que, respectivamente, aprovaram o Orçamento do Estado para 2007 e para 2006 e que impuseram a mesma suspensão da mobilidade de pessoal da administração regional para a administração directa e indirecta do Estado, em termos idênticos aos que constam do artigo 13.º da Lei 67-A/2007, relativamente ao ano corrente.
4.º O que está em causa nos artigos supra-identificados é a consagração de um regime que, de forma clara e directa, preclude, suspendendo, um direito estatutário, relativo à mobilidade entre quadros da administração pública regional e central.
5.º De resto, tal direito encontra-se regulado no Decreto-Lei 85/85, de 1 de Abril, com o qual se tornou plenamente exequível.
6.º Ora, um direito garantido por norma consagrada no Estatuto Político-Administrativo de uma Região Autónoma, como é o caso da Madeira, não pode ser suspenso por norma inserida noutra sede, visto que o Estatuto de uma Região Autónoma se configura como uma lei de valor reforçado, no sentido de que a sua observância pelas demais se impõe relativamente aos direitos da Região ali consagrados.
7.º Ao suspender a possibilidade de destacamento, requisição e transferência de funcionários da administração regional para a administração directa e indirecta do Estado, bem como das formas de mobilidade que nos termos da lei venham a suceder a estas, conforme se dispõe nos n.os 1 e 2 do artigo 13.º da Lei 67-A/2007, viola-se clara e frontalmente o direito à mobilidade profissional e territorial, direito este respeitante à administração pública da Região e garantido no artigo 80.º do respectivo Estatuto Político-Administrativo.
8.º A violação do artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, contida nos n.os 1 e 2 do artigo 13.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro, acarreta a ilegalidade destes normativos.
9.º De ilegalidade padecem também, pelos mesmos motivos, os n.os 1 do artigo 14.º da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 1 do artigo 11.º da Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro, ilegalidade que deve ser declarada, com força obrigatória geral, na medida em que as citadas normas ainda produzam efeitos jurídicos, designadamente, no que toca a mobilidades não efectivadas à luz das mesmas.
De acordo com o exposto, requer-se:
a) A declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, dos n.os 1 e 2 do artigo 13.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro, na parte que se refere à administração regional;
b) A declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, dos n.os 1 do artigo 14.º da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 1 do artigo 11.º da Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro, na parte que se refere à administração regional, na medida em que as citadas normas ainda produzam efeitos jurídicos, designadamente, no que toca a mobilidades não efectivadas à luz das mesmas.» 3 - Notificado para os termos do pedido, conforme o disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.
4 - Submetido a debate o memorando a que se reporta o n.º 1 do artigo 63.º da Lei do Tribunal Constitucional, fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver e distribuído o processo, cumpre fazer reflectir essa orientação no presente aresto.
II - Fundamentação.
5 - O requerente pede a apreciação e declaração da ilegalidade das normas dos artigos 14.º, n.º 1, da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 11.º, n.º 1, da Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro, que já não se encontram em vigor, «na medida em que as citadas normas ainda produzam efeitos jurídicos, designadamente, no que toca a mobilidades não efectivadas à luz das mesmas».
Ora, o Tribunal Constitucional tem entendido que não deve conhecer, em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade, dos pedidos de declaração de invalidade de normas revogadas (por exemplo, mais recentemente, Acórdãos n.os 19/2007 e 497/2007, in Diário da República, 2.ª série, de 14 de Fevereiro e de 21 de Novembro de 2007, respectivamente), a menos que, por alguma específica razão relativa à aplicação da lei do tempo, seja de esperar que a norma em causa venha a aplicar-se ainda a um número significativo de casos, ou quando «tal se mostre indispensável para corrigir ou eliminar efeitos entretanto produzidos durante o período da respectiva vigência».
Haverá, então, que averiguar se subsiste algum interesse, ou utilidade, no conhecimento do pedido de fiscalização abstracta sucessiva da ilegalidade das referidas normas dos Orçamentos do Estado para 2006 e 2007; é que, conforme reconhece o requerente, as normas impugnadas já não estão em vigor, tendo cessado a sua vigência no último dia do ano a que se referia o respectivo Orçamento do Estado.
Acontece que a vocação temporária de tais normas levou a que tivessem esgotado a força normativa durante o período da sua vigência, razão pela qual não produziram efeitos para futuro. Por outro lado, se algum acto lesivo foi praticado com fundamento nessas normas, o seu destinatário teve possibilidade de o impugnar contenciosamente e, porventura, de recorrer para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta da ilegalidade da norma, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea f), da Lei do Tribunal Constitucional.
É, assim, de concluir que a declaração com força obrigatória geral da invalidade dessas normas não teria utilidade prática nem qualquer outro interesse. O Tribunal não vai, portanto, conhecer da questão da ilegalidade dos artigos 14.º, n.º 1, da Lei do Orçamento do Estado para 2007 e 11.º, n.º 1, da Lei do Orçamento do Estado para 2006.
6 - É, pois, a questão da ilegalidade do artigo 13.º, n.os 1 e 2, da Lei do Orçamento do Estado para 2008, na parte em que se refere à administração regional da Região Autónoma da Madeira, que o Tribunal irá apreciar.
Já se viu que o artigo 13.º da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro, determina, no seu n.º 1, que é «suspensa, até 31 de Dezembro de 2008, a possibilidade de destacamento, de requisição e de transferência de funcionários da administração regional e autárquica para a administração directa e indirecta do Estado».
Segundo o requerente, este preceito, incluído no Orçamento do Estado para 2008, está, na parte em que se refere à administração regional da Madeira, em clara contradição com o artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho, alterado pelas Leis n.os 130/99, de 21 de Agosto, e 12/2000, de 21 de Junho (EPARAM), que estabelece: «Aos funcionários dos quadros de administração regional e da administração central é garantida a mobilidade profissional e territorial entre os respectivos quadros, sem prejuízo dos direitos adquiridos em matéria de antiguidade e carreira.» E, na verdade, o artigo 13.º do Orçamento do Estado para 2008 não se limitou a acrescentar condicionamentos à mobilidade dos funcionários públicos, através de uma suspensão de algumas das formas de mobilidade previstas no Decreto-Lei 85/85, de 1 de Abril (diploma entretanto revogado e substituído pela Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que instituiu o actual regime de vínculos, de carreiras e de remunerações da função pública), que regulamentava o referido artigo 80.º do EPARAM, e da previsão de um regime alternativo, para o ano de 2008. Tal norma veio efectivamente impedir, durante o seu período de vigência, o destacamento, a requisição e a transferência de funcionários da administração regional e autárquica para a administração directa e indirecta do Estado, contrariando, nesta parte, o regime de mobilidade consagrado no artigo 80.º do EPARAM e excluindo a possibilidade de o Governo poder apreciar os pedidos formulados no âmbito dos seus poderes de órgão superior da Administração Pública.
Cumpre, agora, avaliar, à luz das regras de hierarquia e competência fixadas na Constituição, se é possível a uma norma orçamental com o teor da norma impugnada contrariar uma norma estatutária como aquela que consagra o aludido regime de mobilidade.
6.1 - Segundo o requerente, a norma põe em causa um direito relativo à mobilidade entre quadros da administração regional e da administração central que é garantido por uma norma constante do Estatuto Político-Administrativo e que não pode ser suspenso por uma norma inserida em outra sede visto que o Estatuto se configura como uma lei de valor reforçado.
A norma que garante aos funcionários dos quadros de administração regional e da administração central a mobilidade profissional e territorial entre os respectivos quadros, sem prejuízo dos direitos adquiridos em matéria de antiguidade e carreira, insere-se no já referido artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, diploma cujas normas têm efectivamente um valor reforçado.
Na verdade, a Constituição permite que certas leis apresentem um valor (absolutamente) reforçado quando, como é o caso, «devam ser respeitadas» pelas outras leis (artigo 112.º, n.º 3, da Constituição). A força vinculativa das suas normas determina a ilegalidade das normas inscritas em actos legislativos que as violem [alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição]. Os Estatutos das Regiões Autónomas são efectivamente leis especiais que a Constituição gradua entre as leis constitucionais e as leis ordinárias [artigo 161.º, alínea b), da Constituição] e, achando-se submetidas a um especial regime de aprovação e de alteração, não podem ser modificadas senão pela forma prevista no artigo 226.º, n.º 4, da Constituição. Esta circunstância impõe que se reconheça às suas disposições normativas maior perenidade, não só em face da rigidez do seu processo de alteração mas também por ser uma lei onde se desenvolvem os princípios constitucionais respeitantes à autonomia regional e se concentram as bases dos poderes regionais (artigos 227.º, n.º 1, e 228.º, n.º 1, da Constituição).
A aludida rigidez decorre da circunstância de a Constituição haver concedido às Assembleias Legislativas das Regiões o exclusivo da iniciativa legislativa em matéria de Estatutos, reservando, simultaneamente, de forma absoluta, à Assembleia da República a competência para a sua aprovação. O sistema permite supor que as matérias com assento estatutário resultam tendencialmente de um compromisso, pelo menos formal, entre cada uma das Regiões e a República, que se materializa no respectivo Estatuto e que constitui o fundamento da restrição ao poder de livre iniciativa legislativa na Assembleia da República.
Esta restrição, no entanto, há-de ser aceite a título excepcional, pois não decorre de um critério relativo à separação e interdependência dos poderes soberanos do Estado mas da adopção de um princípio de cooperação no relacionamento entre órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio das Regiões.
E a verdade é que o Tribunal já recusou carácter estatutário a normas inscritas em preceitos dos Estatutos das Regiões. O Tribunal considerou, por exemplo, que não podem haver-se como materialmente estatutárias as normas respeitantes a matérias relativas ao direito eleitoral (Acórdão 1/91), à organização e funcionamento dos tribunais administrativos (Acórdão 460/99) e às relações financeiras entre a República e as Regiões Autónomas (Acórdãos n.os 567/2004, 11/2007, 581/2007 e 238/2008). Nestes casos, o Tribunal verificou que as matérias tratadas se incluíam no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, tendo concluído que a sua inclusão nos Estatutos afecta essa reserva, por força da regra da iniciativa originária exclusiva das Assembleias Legislativas das Regiões. Para recusar atribuir natureza estatutária à norma, o Tribunal encontrou, portanto, um fundamento directamente retirado da Constituição que inevitavelmente ligaria a matéria tratada ao livre exercício da competência legislativa reservada aos órgãos de soberania, designadamente à Assembleia da República. Na verdade, a Constituição considera que são matéria de reserva de competência legislativa da Assembleia da República as referentes a «eleições dos deputados às Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira» [artigo 164.º, alínea j)], a organização e competência dos tribunais [artigo 165.º, n.º 1, alínea p)] e ao regime de finanças das Regiões Autónomas [artigos 164.º, alínea t), e 229.º, n.º 3]. Como explica Jorge Miranda, «competindo a iniciativa originária do estatuto ou das suas alterações (como bem se compreende) à Assembleia Legislativa regional (artigo 226.º), se o estatuto pudesse abarcar qualquer matéria, ficaria, por esse modo, limitado o poder de iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares, de grupos de cidadãos ou do Governo da República (artigo 167.º)» (Manual de Direito Constitucional, t. v, Coimbra, 2004, p. 373).
6.2 - Mas o Tribunal também já reconheceu que a disciplina jurídica de determinadas matérias há-de necessariamente incluir-se nos Estatutos. É o caso do estatuto dos deputados regionais (os seus específicos deveres, responsabilidades e incompatibilidades, assim como os seus direitos, regalias e imunidades), matéria obrigatoriamente regulada nos Estatutos, conforme dispõe o artigo 231.º, n.º 7, da Constituição. O Tribunal pronunciou-se, nos Acórdãos n.os 92/92 e 637/95, pela inconstitucionalidade de todas as normas de decreto aprovado pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira que introduzia «alterações ao estatuto do deputado» à margem do respectivo Estatuto Político-Administrativo. Em concordância ainda com o carácter estatutário desta matéria, o Tribunal pronunciou-se, no Acórdão 382/2007, pela inconstitucionalidade do artigo 1.º do Decreto 121/X, de 17 de Maio de 2007, da Assembleia da República, que alterava «o regime de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos», e, posteriormente, pela inconstitucionalidade do decreto que estabelecia o Regime de Execução das Incompatibilidades e Impedimentos dos Deputados à Assembleia Legislativa da Madeira, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em 22 de Novembro de 2007. No Acórdão 10/2008, o Tribunal reiterou, mais uma vez, a sua anterior jurisprudência, afirmando que a matéria das incompatibilidades e impedimentos dos deputados às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas é necessariamente estatutária, pelo que nenhum outro tipo de diploma, que não o Estatuto Político-Administrativo, a pode regular.
6.3 - O Tribunal tem também admitido que são materialmente estatutárias as normas dos estatutos que se referem aos poderes das Regiões Autónomas decorrentes do artigo 227.º da Constituição. Assim, nos Acórdãos n.os 162/99 e 291/99, o Tribunal considerou inconstitucional o artigo 131.º do Código das Custas Judiciais «na parte em que manda reverter para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas cobradas em juízo, sem exceptuar as que o forem nas Regiões Autónomas»; entendeu-se, então, que a Assembleia da República não podia legislar sobre o destino a dar às coimas cobradas em juízo na Região, por se tratar de «matéria estatutária». E a matéria era «estatutária» por conjugação do preceito constitucional que conferia às Regiões «poder tributário próprio» [correspondente ao actual artigo 227.º, n.º 1, alínea i)] e o preceito que conferia às Regiões «o poder de, nos limites da respectiva lei quadro, definir ilícitos de mera ordenação social e de lhes fixar as respectivas sanções» [correspondente ao actual artigo 227.º, n.º 1, alínea q)].
De facto, os Estatutos estão ancorados, como explica Gomes Canotilho, «num princípio aberto: o princípio da autonomia regional» (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 774, e Os Estatutos da Regiões Autónomas. Em Torno de Um Conceito Material de Estatuto, p. 11). É no conteúdo aberto desse princípio autonómico e nas exigências de adaptação dos Estatutos às características próprias de cada Região e não numa definição das matérias estatutárias a priori e em abstracto que se deverá procurar o critério de determinação do carácter estatutário de uma norma (Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, t. iii, Coimbra 2003, artigo 226.º, p. 293).
6.4 - O caso que agora se aprecia, relativo ao regime de destacamento, de requisição e de transferência de funcionários da administração regional e local para a administração central, não é matéria relativa às «bases do regime e âmbito da função pública» e não se inclui no âmbito das matérias de competência legislativa reservada dos órgãos de soberania.
Na verdade, o Tribunal tem entendido que o âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, em matéria de bases do regime e âmbito da função pública - artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição - , se circunscreve à «definição das grandes linhas de inspiração da regulação legal da função pública e a demarcação do âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime jurídico. A reserva compreende, assim, o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulação, dos seus princípios reitores ou orientadores - princípios esses que caberá depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar, em diplomas de espectro mais ou menos amplo - e dos princípios que constituirão, justamente, o parâmetro e o limite deste desenvolvimento, concretização e particularização» (Acórdão 184/2008, in Diário da República, 1.ª série, de 22 de Abril de 2008), ou, conforme diz o Acórdão 620/2007 (Diário da República, 1.ª série, de 14 de Janeiro de 2008): «[...] Como tais [bases do regime da função pública] devem entender-se aquelas que, num acto legislativo, definam as opções político-legislativas fundamentais cuja concretização normativa se justifique que seja ainda efectuada por via legislativa.» Ora, a matéria em causa não constitui uma cláusula que deva inscrever-se nas «opções político-legislativas fundamentais» ou que respeite ao estabelecimento «do quadro dos princípios básicos fundamentais» da regulação legal da função pública.
E o certo é que ainda recentemente, quando a Assembleia da República aprovou a Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, já referida, que estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, fê-lo ao abrigo da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, isto é, no exercício da competência legislativa genérica, conforme, aliás, tinha ocorrido com a aprovação da Lei 53/2006, de 7 de Dezembro (regime comum de mobilidade entre serviços dos funcionários e agentes da Administração Pública). E quando o Governo legislou especificamente sobre mobilidade entre administração regional e estadual, através do já referido Decreto-Lei 85/85, de 1 de Abril (como se disse, revogado pela Lei 12-A/2008, de 27 de Fevereiro), fê-lo, também, ao abrigo da competência legislativa genérica definida no artigo 201.º, n.º 1, alínea a), da Constituição.
Não pode, portanto, dizer-se que a norma do artigo 80.º do EPARAM discipline matéria relativa a «bases do regime e âmbito da função pública» abrangida pela reserva prevista no artigo 165.º, alínea t), da Constituição, o que significa que não é proibido que essa norma esteja sediada no EPARAM.
6.5 - Decorre do que já atrás se afirmou que a matéria em causa também se não inclui naqueles casos cuja disciplina jurídica há-de obrigatoriamente incluir-se nos Estatutos, por não resultar da Constituição qualquer vinculação do legislador nesse sentido.
No entanto, a consagração da garantia de mobilidade dos funcionários entre as administrações regional e do Estado foi, desde o início, incluída nos Estatutos de ambas as Regiões.
Com efeito, quanto à Madeira, ela já constava do artigo 49.º, n.º 4, do estatuto provisório (Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril), com uma redacção semelhante («assegurar-se-á a possibilidade do ingresso dos funcionários dos serviços regionais nos quadros gerais do Estado e vice-versa, sem prejuízo dos direitos adquiridos em matéria de antiguidade e categoria profissional»). Com o mesmo teor, a norma foi incluída no estatuto provisório da Região Autónoma dos Açores (Decreto-Lei 318-B/76, de 30 de Abril, artigo 49.º, n.º 4), transitando, com redacção idêntica à do actual artigo 80.º do Estatuto da Madeira, para os artigos 76.º, 89.º e 93.º, respectivamente, das versões do EPARAA aprovadas pelas Leis n.os 39/80, de 5 de Agosto, 9/87, de 26 de Março, e 61/98, de 27 de Agosto.
Ora, esta garantia de mobilidade, explicável pela preocupação, também traduzida nos Estatutos, de conservar a identidade de regras de provimento e de estatuto profissional fixadas na lei geral para os funcionários do Estado (artigos 79.º do EPARAM e 92.º do EPARAA), radica, afinal de contas, no princípio da unidade do Estado, garantido no artigo 6.º da Constituição e espelhado, por exemplo, na imposição, que inicialmente a Constituição tornou expressa (artigo 230.º), de vedar às Regiões Autónomas a possibilidade de: «a) restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores; b) estabelecer restrições ao trânsito de pessoas e bens entre elas e o restante território nacional, salvo, quanto aos bens, as ditadas por exigências sanitárias; c) reservar o exercício de qualquer profissão ou acesso a qualquer cargo público aos naturais ou residentes na Região.» Deve, por isso, reconhecer-se não só que esta garantia de mobilidade corresponde a uma característica essencial das administrações públicas regionais mas também que o Estatuto de cada uma das Regiões é local adequado para ela se inserir, dada a força paramétrica das suas disposições, que vinculam simultaneamente as Regiões e a República.
Em conclusão, a disposição constante da Lei do Orçamento não pode prevalecer sobre a norma do artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira nem pode suspender a sua vigência.
III - Decisão.
7 - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não conhecer da questão da ilegalidade dos artigos 14.º, n.º 1, da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2007) e 11.º, n.º 1, da Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2006);
b) Declarar, com força obrigatória geral, a ilegalidade, por violação do disposto nos artigos 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e 13.º, n.os 1 e 2, da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), na parte relativa à administração regional da Região Autónoma da Madeira.
Lisboa, 29 de Outubro de 2008. - Carlos Pamplona de Oliveira - Gil Galvão - João Cura Mariano - José Borges Soeiro - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes [vencido quanto à alínea b) da decisão, conforme declaração anexa] - Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, conforme, no essencial, a declaração de voto do conselheiro Carlos Cadilha) - Carlos Fernandes Cadilha [vencido quanto à alínea b) da decisão de acordo com a declaração de voto em anexo] - Maria João Antunes [vencida quanto à alínea b) da decisão, pelas razões constantes da declaração do conselheiro Carlos Cadilha] - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
Vencido quanto à alínea b) da decisão, em síntese, pelo seguinte:Divergindo do acórdão neste ponto (n.º 6.4 do acórdão), entendo que o artigo 80.º do EPARAM, na medida em que rege um aspecto nuclear do âmbito da mobilidade profissional dos trabalhadores que exercem funções públicas, incide sobre matéria incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República prevista na alínea t) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição. Com efeito, disciplinar entre que quadros podem os trabalhadores transitar sem perda de direitos em termos de antiguidade e carreira, estabelecer se essa mobilidade é interna (intrapessoal) ou externa (interpessoal) - apenas dentro dos serviços da mesma pessoa colectiva (no seio dos quadros da administração central, de cada administração regional ou de cada ente de administração local) ou também entre quadros de pessoas colectivas distintas - , respeita a uma opção político-legislativa fundamental quanto à definição de um elemento essencial da relação de emprego que é a determinação subjectiva do vínculo pelo lado do empregador público. Com este conteúdo, a norma estatutária incide sobre um elemento caracterizador da mobilidade profissional na função pública - o âmbito em que ela se verifica - que é matéria de bases do respectivo regime.
Assim, sendo da competência reservada de órgãos de soberania, não pode a matéria ser abarcada pelos Estatutos autonómicos porque isso a iria subtrair à livre iniciativa legislativa, face ao especial valor paramétrico dos Estatutos e às suas regras de iniciativa de alteração (v. n.º 6.1 do presente acórdão). Nesta perspectiva, seja pela via da irrelevância da inserção da norma no Estatuto (construção que o Tribunal vem adoptando), seja pela recusa de aplicação com fundamento em inconstitucionalidade por excesso de forma ou excedência estatutária (como entendo mais rigoroso), nunca poderá reconhecer-se valor paramétrico ao artigo 80.º do EPARAM, pelo que não declararia a ilegalidade do artigo 13.º, n.os 1 e 2, da Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro. - Vítor Gomes.
Declaração de voto
Votei vencido quanto à decisão da alínea b) por considerar que a norma do artigo 80.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira não é materialmente estatutária e incide antes sobre aspectos de regulamentação legal que interessam à Administração Pública estadual e relativamente aos quais não pode ser vedado o exercício da competência legislativa própria da Assembleia da República e do Governo.Como se afirmou ainda recentemente no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 238/2008, com apoio na doutrina, a reserva de estatuto encontra-se delimitada negativamente pelo princípio de reserva absoluta de lei parlamentar, tal como está definido no artigo 164.º da CRP, e positivamente pelo elenco de matérias que devem ser exclusivamente disciplinadas por lei estatutária, e que se entende ter a ver com as competências e atribuições das Regiões Autónomas, o sistema de governo regional e a delimitação das Regiões Autónomas relativamente a outras pessoas colectivas territoriais (aspectos que, em última análise, se conexionam com os poderes das Regiões tal como estão consignados nos artigos 228.º e 229.º da CRP).
Por outro lado, o valor paramétrico das leis estatutárias só deve ser reconhecido em relação às normas materialmente estatutárias e, nesse sentido, como tem sido sublinhado noutros locais pela jurisprudência constitucional, não basta que uma determinada norma conste de um estatuto regional para que a sua alteração por um diploma legislativo nacional importe violação da reserva de estatuto, sendo que essa violação só ocorrerá se a norma constante do estatuto pertencer ao âmbito material estatutário (cf. Acórdãos n.os 162/1999, 567/2004 e 581/2007).
Nesta linha de entendimento, para que possa atribuir-se valor de lei reforçada à referida norma do artigo 80.º do EPARAM, não é suficiente considerar que o princípio da mobilidade do pessoal não integra a reserva de competência da Assembleia da República [por se não reportar às «bases do regime e âmbito da função pública» - artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da CRP], e que essa é, por outro lado, uma matéria pertinente ao estatuto de uma Região Autónoma.
A garantia de mobilidade recíproca entre o pessoal da administração regional e a administração estadual, ainda que entendida como concretização de um princípio de unidade do Estado, envolve por natureza matéria de interesse nacional, cabendo prevalecentemente aos órgãos legiferantes da República determinar em que termos e segundo que critérios essa garantia deve ser salvaguardada, pelo que a sua inclusão em lei estatutária nunca poderia ter como efeito arredar o poder de iniciativa legislativa genérica dos deputados, dos grupos parlamentares ou do Governo.
Afigura-se, aliás, contraditório que, para justificar a incorporação de uma norma desse tipo no Estatuto, se apele a um princípio constitucional geral - a unidade de Estado - e simultaneamente se interprete a garantia de mobilidade do pessoal como uma característica essencial das administrações públicas regionais, e, portanto, como algo que afinal deva ter especial projecção na esfera geográfica ou espacial de uma região e se reconduza ao âmbito regional.
Por tudo, entendo que à referida disposição não pode ser reconhecido valor paramétrico próprio das leis reforçadas, pelo que nada obstava a que a Lei 67-A/2007, de 31 de Dezembro, pudesse estabelecer um regime legal divergente. - Carlos Alberto Fernandes Cadilha.