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Acórdão 638/2005/T, de 30 de Dezembro

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Texto do documento

Acórdão 638/2005/T. Const. - Processo 303/2005. - 1 - Pelo 15.º Juízo do Tribunal Cível de Lisboa, instaurou José Espírito Santo Ribeiro Azevedo (posteriormente prosseguindo como autores nos autos e na posição do primitivo autor os habilitados Maria de Lurdes da Conceição dos Santos Azevedo, Jorge Fernando da Conceição Azevedo e José António da Conceição Azevedo) contra o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, S. A., acção, seguindo a forma de processo ordinário, solicitando a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 4 443 992$, acrescida de juros, sendo os já liquidados no montante de 686 090$.

Invocou, em síntese:

Que ele, autor, era portador de seis cheques sacados por José Luís Silva Almeida de uma sua conta existente numa agência do réu, cheques esses que, apresentados a pagamento, foram devolvidos, sejam umas vezes pela menção de não terem provisão, sejam outras pela menção de terem sido dados como extraviados, só um deles contendo unicamente esta última menção;

Que, desde 7 de Junho de 1993, tinha sido rescindida com o sacador a rescisão da convenção de cheque, o que foi comunicado ao réu pelo Banco de Portugal nessa data, tendo os módulos dos seis cheques em causa sido entregues pelo réu ao sacador depois dela, em Novembro de 1993 e Fevereiro de 1994;

Que tais cheques foram depositados pelo autor numa sua conta existente no réu, e, como neles se apuseram as indicadas menções, os montantes por eles titulados vieram a ser-lhe debitados;

Que o réu é, nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, responsável pelo pagamento das quantias tituladas pelos cheques.

Tendo, por sentença proferida em 11 de Novembro de 2002, sido a acção julgada improcedente, apelaram os habilitados autores para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por Acórdão de 22 de Abril de 2004, julgou procedente o recurso, julgando a acção procedente e, em consequência, condenando o réu no pedido.

Inconformado com o assim decidido, pediu o réu revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

Na alegação adrede produzida, para o que ora releva, surpreendem-se as seguintes asserções:

"Afigura-se-nos, por outro lado, que, tal como sustentamos na contestação da acção (artigo 8.º), a referida disposição legal [artigo 9.º, n.º 11, alínea c)] do Decreto-Lei 451/91 é inconstitucional por violação do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição da República e das disposições dos artigos 3.º, 4.º, 12.º, 15.º, § 3.º, e 25.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque e ainda dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da justiça.

Com efeito, como sustenta e conclui o conselheiro Armindo Ribeiro Mendes no seu voto de vencido no Ac[ó]rdão do Tribunal Constitucional de 10 de Outubro de 1991 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 410, 1991, pp. 57 e segs.), 'não procede o argumento de que a conformidade com a Lei Uniforme está salvaguardada só porque a obrigação de pagar os cheques tem origem na lei e não num acto de vontade do banqueiro, ainda que autorizado pela nova regulamentação. De facto a nova regulamentação abre uma via directa de acção judicial do portador do cheque contra o banqueiro sacado, ao arrepio do que resulta da Lei Uniforme, tal como esta é uniformemente interpretada pelo Supremo Tribunal de Justiça'.

E acrescenta que 'contraria frontalmente a Lei Uniforme a legislação interna posterior que venha em Portugal - sem denúncia prévia da Convenção de Genebra impor a um banco sacado o pagamento de cheques ao respectivo portador, quando a conta do sacador não disponha de provisão, permitindo que, em caso de recusa de pagamento, esse portador exerça directamente contra o banco sacado os seus direitos'.

E, como no mesmo voto se refere, solução semelhante é sustentada pelo constitucionalista Prof. Jorge Miranda no parecer para a Associação de Bancos.

Particularmente no que se refere à disposição do artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 454/91, sustenta o conselheiro Armindo Ribeiro Mendes que 'não parece justo nem proporcionado impor este dever sem limites para beneficiar um portador a quem o decreto-lei não impõe o ónus de demonstrar os prejuízos efectivamente sofridos, permitindo que este se escude atrás de uma pura relação cambiária, do mesmo passo que parece despenalizar o portador do cheque, visto que o titular acaba por ser pago, apesar da falta de provisão [artigo 9.º, n.º 1 [a], alínea a)]'. Citando a opinião de Jorge Miranda no aludido parecer - embora quanto a outra norma da lei de autorização legislativa -, dir-se-á que 'não é justo tentar manter a confiança de terceiros de boa fé no cheque como t[í]tulo de crédito à custa de encargos desproporcionados sobre as instituições bancárias. E tal injustiça e desproporção aumentam se a confiança que se procura tutelar é a de um portador de má fé, que detém o cheque sem que exista uma relação subjacente l[í]cita, mas relativamente ao qual não se permite que o banco se defend[a] invocando a inexistência de válida relação subjacente entre sacador e portador'.

Melhor não saberíamos dizer, pelo que se deixam à consideração de V. Ex.[ª]s as transcrições feitas, particularmente o último parágrafo transcrito que assenta perfeitamente no caso em apreço.

III - De todo o exposto inferiremos as seguintes conclusões:

[...]

f) Por outro lado, como se sustenta na Contestação, considera-se a norma do artigo 9.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 454/91 inconstitucional, por violadora das disposições do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição da República e dos artigos 3.º, 4.º, 12.º, 15.º, §3.º, e 25.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque e dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da justiça.

g) Com efeito, a citada disposição legal permite uma acção judicial directa do portador do cheque contra o banqueiro que contraria abertamente a Lei Uniforme sobre o cheque no seu conjunto.

h) E não é justo nem proporcional impor aos bancos uma obrigação sem qualquer limitação para beneficiar um portador do cheque que nem sequer tem de provar que prejuízos sofreu, podendo estar de má fé, e que é totalmente despenalizado.

[...]

j) Acresce que deve considerar-se inconstitucional a disposição aplicada no caso em apreço [artigo 9.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 454/91] por violadora do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição da República, dos artigos [...] 4.º, 12.º, 15.º, § 3.º, e 25.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque e dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da justiça."

Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 2 de Dezembro de 2004, negado a revista, solicitou o réu o respectivo esclarecimento, no sentido de ser explicitado se a conclusão nele alcançada de inexistência de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 9.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, também abrangia aquele invocado vício por violação dos artigos 4.º, 5.º, 12.º, 15.º, § 3.º, e 25.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, o que se traduziria "em inconstitucionalidade, por força do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição".

No Acórdão de 10 de Fevereiro de 2005 daquele alto tribunal foi dito que, embora o acórdão aclarando não se tivesse pronunciado "expressamente sobre a inconstitucionalidade que decorrerá da invocada violação das normas dos artigos 8.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e 3.º, 4.º, 12.º, 15.º, § 3.º, e 25.º da LUCH", o sentido da decisão só poderia "ser o de abranger, também, esse pretenso motivo de inconstitucionalidade".

Notificado deste último aresto, fez o réu juntar aos autos requerimento com o seguinte teor:

"O Banco Espírito Santo, S. A., recorrente nos autos acima referenciados, vem, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do douto acórdão a fls [...]

O recorrente considera que foram violados os princípios constitucionais da proporcionalidade e da justiça e ainda o artigo 8.º, n.º 2, da Constituição da República.

E porque está em tempo e tem legitimidade, requer a V. Ex.ª se digne admitir-lhe o recurso."

Admitido o recurso por despacho lavrado em 14 de Março de 2005 pelo conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça, e tendo os autos sido remetidos ao Tribunal Constitucional em 14 de Abril seguinte, neste último órgão de administração de justiça, o relator proferiu em 3 de Maio de 2005 o seguinte despacho:

"O requerimento de interposição de recurso para este Tribunal (fl. 248) não obedece, de todo em todo, aos requisitos ínsitos nos n.os 1 e 2 do artigo 75.º-A da Lei 28/82, de 15 de Novembro, além de não identificar em concreto a decisão judicial tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça que se pretende impugnar.

Deveria, por isso, cobrar aplicação, no alto tribunal a quo, o que se prescreve no n.º 5 do indicado artigo.

Como, porém, isso não foi levado a efeito, nos termos do n.º 6, ainda daquele artigo, convido o impugnante a, de forma cabal, fornecer as indicações em falta e a que acima se fez alusão."

Na sequência do convite formulado, o réu veio dizer:

"O Banco Espírito Santo, S. A., recorrente nos autos acima referenciados, vem, em obediência ao despacho de V. Ex.ª a fl. 256, prestar as seguintes indicações em falta.

A decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça que se pretende impugnar é a de considerar o preceito legal do artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, não violador de qualquer norma ou princípio constitucional.

O requerimento de interposição de recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro.

A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie é a do citado artigo 9.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro.

Os princípios constitucionais que se consideram violados são os princípios da proporcionalidade e da justiça.

O recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade desde logo na petição inicial da acção e também no recurso apresentado no Supremo Tribunal de Justiça."

Em Maio de 2005, o relator proferiu o seguinte despacho:

"Tendo em atenção que se poderá considerar que com o acórdão tirado em 10 de Fevereiro de 2005 pelo Supremo Tribunal de Justiça se aclarou o precedente aresto de 2 de Dezembro de 2004, consequentemente vindo o primeiro a ser entendido como complemento e parte integrante do segundo, de acordo com o prescrito no último período do n.º 2 do artigo 670.º, em conjugação com o n.º 1 do artigo 716.º, este como aquele do Código de Processo Civil, entende-se que é impugnado o mencionado Acórdão de 2 de Dezembro de 2004.

No requerimento apresentado pelo impugnante na sequência do despacho de 3 de Maio de 2005, já não faz o mesmo alusão, como fazia aquando do inicial requerimento de interposição de recurso e sustentou na alegação do recurso de revista, à violação, por banda do preceito constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição, por ofensa dos artigos 3.º, 4.º, 12.º, 15.º, § 3.º, e 25.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.

Compreende-se, aliás, que assim seja, tendo em conta que o recurso se ancora na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, e não na alínea i) dos mesmos número e artigo.

É que, como era acolhido pela jurisprudência maioritária da então 2.ª Secção deste Tribunal - e agora, a partir da revisão constitucional operada pela Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho, e das alterações inseridas na Lei 28/82 pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, ao se preverem modalidades de controlo da ilegalidade, isso torna-se mais nítido -, não podia lançar-se mão de um recurso esteado na aludida alínea b) para aferir da inconstitucionalidade de um dado normativo ordinário por alegada ofensa de um instrumento de direito internacional (cf., para maiores desenvolvimentos, os n.os 2 a 2.3.4 do Acórdão 371/91, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Dezembro de 1991, e José Manuel Cardoso da Costa, in "A jurisdição constitucional em Portugal", separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 2.ª edição, 1991, pp. 26 e 27 e notas 27 e 27a), pois que, para se aquilatar daquele vício de desconformidade com a lei fundamental em sede de controlo concreto - vício esse não directo (no que igualmente havia acordo com a então 1.ª secção deste órgão de administração de justiça) -, carecia o Tribunal de competência.

É esta posição que agora se reitera.

Neste contexto, não irá o Tribunal debruçar-se, no vertente caso, sobre a primitivamente invocada inconstitucionalidade do preceito acima aludido por desarmonia com o n.º 2 do artigo 8.º do diploma básico, advinda da violação de certos preceitos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.

Com esta limitação, notifiquem-se as 'partes' para a produção de alegações."

Rematou o recorrente a alegação por si apresentada com as seguintes "conclusões":

"a) A norma legal em causa [artigo 9.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro] impõe às instituições de crédito uma obrigação de pagamento de cheques que não tenham provisão sem limitação de valor;

b) Se se entender que a [...] responsabilidade imposta neste caso às instituições de crédito é uma responsabilidade por facto ilícito, então essa responsabilidade deveria ter como limite o montante do dano efectivo e não o do valor do cheque;

c) E se se considerar que se trata de uma responsabilidade por risco sempre se deveria estabelecer um limite máximo de responsabilidade como é norma nesse tipo de responsabilidade, devendo atender-se ao facto de que quem suporta o dano não é quem directamente pratica o acto causador desse dano;

d) A obrigação de pagamento imposta pela norma em causa é pois violadora do princípio constitucional da proporcionalidade da justiça, quer porque não se afigura ser o meio mais adequado para o fim visado de garantir a confiança no uso do cheque, quer porque tal fim poderia ser atingido por meio menos oneroso;

e) Há com efeito que considerar, para além do que se disse nas anteriores alíneas b) e c), que não estamos perante um risco próprio da actividade bancária, e as instituições de crédito são quem menos contribui para o risco da utilização daquele meio de pagamento;

f) Também pelo que se deixou dito, o não estabelecimento de um limite ao valor a pagar sem a garantia de relação com o prejuízo, podendo ultrapassar largamente (em milhares de euros) esse mesmo prejuízo ou podendo até nem haver prejuízo (por exemplo, no caso de conluio entre o portador e o beneficiário do cheque) é seguramente uma imposição legal excessiva e desproporcionada."

Foi junto aos autos, pelo recorrente, um "parecer" jurídico.

Por seu turno, os habilitados ora recorridos concluíram a sua alegação do seguinte jeito:

"5.1 - Questão prévia:

5.1.1 - O recorrente deve alegar nas instâncias a inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciada.

5.1.2 - Essa alegação deve ser efectuada de forma adequada e precisa de molde a permitir que as instâncias sobre ela se pronunciem.

5.1.3 - A invocação de um qualquer vício de inconstitucionalidade por referência a uma disposição legal sem se identificar a dimensão normativa que entende inconstitucional não é adequada a permitir que as instâncias se pronunciem sobre o suposto vício.

5.1.4 - Assim, seguindo a orientação da jurisprudência firmada deste tribunal superior, é manifesto que não pode conhecer-se do objecto do recurso por falta de um dos seus pressupostos processuais em violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.

5.2 - A questão do limite de valor:

5.2.1 - A convenção de uso de cheque resulta da adesão do particular a fórmulas predefinidas e estabelecidas pelos bancos.

5.2.2 - Utilizando estes poderes, os bancos têm vindo a restringir a certos particulares e empresas os modos de utilização do cheque de acordo com juízos de valor que fazem desses clientes.

5.2.3 - No âmbito destes poderes, podem os bancos limitar aos clientes o valor dos cheques por estes a emitir.

5.2.4 - Para tanto, basta fornecer aos clientes impressos de cheques onde conste essa limitação de valor dos cheques a emitir.

5.2.5 - A questão da inexistência de limite de valor da indemnização por referência ao valor do cheque emitido é, pois, uma questão técnico-administrativa e não uma questão jurídico-constitucional.

5.3 - A questão do dano efectivo:

5.3.1 - O dispositivo legal inserto na alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, apenas faz presumir a equivalência do valor dano ao valor do cheque que foi emitido em impresso ilegalmente fornecido pelo banco.

5.3.2 - Do dito dispositivo legal não resulta que o banco está impedido de alegar e provar que tal não corresponde à realidade ocorrida.

5.3.3 - Para corrigir qualquer deficiência ou abuso sempre os bancos podem socorrer-se das cláusulas gerais do sistema, como o enriquecimento sem causa ou o abuso de direito.

5.4 - Da colisão de direitos:

5.4.1 - O princípio da proporcionalidade é um [...] princípio orientador da actividade administrativa e regulamentadora do Estado.

5.4.2 - Sempre que este princípio colida com princípios fundamentais, como os princípios da igualdade e da defesa do consumidor, deve ceder para permitir a realização destes últimos.

5.4.3 - Sempre a prevalência destes princípios in casu faria claudicar as pretensas inconstitucionalidades arguidas.

5.5 - Nestes termos, deve ser mantido o douto acórdão em recurso, indeferindo-se o conhecimento das questões por falta de pressupostos processuais ou, caso assim se não entenda, por manifesta falta de fundamento."

Ouvido sobre a questão prévia, veio o recorrente dizer que sustentou, na revista para o Supremo Tribunal de Justiça, a questão de saber se era ou não inconstitucional a norma ora em causa, o que fez de "forma bem clara e funcional".

Cumpre decidir.

2 - Iniciar-se-á a análise referente ao presente pleito de (in)constitucionalidade pela apreciação da "questão prévia" dos que ora figuram como recorridos.

Segundo os mesmos, o recorrente nada teria referido, a respeito da questão de (in)constitucionalidade até à formulação da alegação do recurso de revista e, no que a esta diz respeito, apenas teria dito que se deveria considerar inconstitucional a disposição da alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, por ser ela violadora do n.º 2 do artigo 8.º da Constituição ("questão arredada da presente discussão por douto despacho liminar"), dos artigos 4.º, 12.º, 15.º, § 3.º, e 25.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque e dos princípios da proporcionalidade e da justiça, sendo que, na sequência do citado despacho, o recorrente apenas considerou violados estes princípios, "não esclarecendo em part[e] alguma, qual dimensão destes princípios considera violados".

E, continuam os recorridos, não teria o impugnante suscitado "de forma adequada e funcional a suposta inconstitucionalidade que pretende ver agora apreciada pelo Tribunal Constitucional".

Ora, quanto à "questão prévia" de que se cura, entende-se que aos recorridos não assiste razão.

Efectivamente, na alegação produzida na revista, como deflui do relato supra-efectuado, o recorrente propugnou por se dever considerar inconstitucional o normativo precipitado na alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei 454/91, sendo que, de todo o modo, na "conclusão" h) daquela peça processual não deixou de aludir à não justeza e não proporcionalidade da medida jurídica resultante da norma em apreço (cf. a este propósito a parte do "teor" da indicada alegação, também acima extractada, designadamente a referência ao voto de vencido aposto no Acórdão deste Tribunal n.º 371/91).

Pode, desta forma (e, mais concretamente, ao mencionar o indicado voto de vencido), dizer-se que o recorrido não deixou de impostar a questão da desconformidade constitucional reportada à violação do princípio da proporcionalidade.

Estas considerações, claramente, são mais dirigidas a quem possa sufragar posição (embora ainda mais extremada) semelhante à que fez vencimento no Acórdão 139/2003, deste Tribunal, sendo certo que, no caso, a questão se não coloca em moldes idênticos.

2.1 - Sustentam ainda os habilitados recorridos que não foi, pelo recorrente, expressada a dimensão normativa do preceito constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei 454/91.

Ora, o que é certo é que dessa norma resulta, inequivocamente, a obrigação, impendente sobre as instituições de crédito, de pagar os montantes inscritos nos módulos de cheques fornecidos a quem conste da listagem a que se refere o artigo 3.º do mesmo diploma, sendo que constituiu essa mesma norma a ratio juris da decisão tomada pelo acórdão ora impugnado, sem que houvesse necessidade de, interpretativamente, lhe ser conferido um qualquer outro sentido que não aquele que, praticamente, se revela de imediato do respectivo teor literal.

Não se pode, pois, defender que, relativamente ao normativo em causa, não tivesse o recorrente, antes da prolação da decisão agora colocada sob a censura deste Tribunal, equacionado a questão da sua desarmonia constitucional.

Improcede, pelas indicadas razões, a "questão prévia" suscitada pelos recorridos.

3 - Rezava assim a redacção originária do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, diploma vigente à data dos factos (e que, posteriormente, veio a sofrer alterações de redacção por intermédio dos Decretos-Leis 316/97, de 19 de Novembro, 323/2001, de 17 de Dezembro e 83/2003, de 24 de Abril, e da Lei 48/2005, de 29 de Agosto):

"Artigo 9.º

Outros casos de obrigatoriedade de pagamento pelo sacado

1 - As instituições de crédito são ainda obrigadas a pagar, não obstante a falta ou insuficiência de provisão:

a) Qualquer cheque emitido através de módulo por elas fornecido com violação do dever de rescisão a que se referem os n.os 1 a 5 do artigo 1.º;

b) Qualquer cheque emitido através de módulo por elas fornecido, após a rescisão da convenção de cheque, com violação do dever a que se refere o n.º 6 do artigo 1.º;

c) Qualquer cheque fornecido a entidades que integrem a listagem a que se refere o artigo 3.º;

d) Qualquer cheque fornecido com violação do disposto no n.º 9 do artigo 12.º

2 - ..."

Anote-se que no artigo 3.º, referido na transcrita alínea c), se comandava que as entidades que tenham sido objecto de duas ou mais rescisões de convenção de cheque ou que hajam violado o disposto no n.º 5 do artigo 1.º (onde se estipulava que as entidades abrangidas pela rescisão da convenção de cheque deixavam de poder emitir ou subscrever cheques sobre as instituições autoras da decisão de rescisão) serão incluídas numa listagem de utilizadores de cheques que oferecem risco, a comunicar pelo Banco de Portugal a todas as instituições de crédito (n.º 1) e que nenhuma instituição de crédito poderá confiar impressos de cheques a entidades que integrem a listagem (n.º 2).

A norma em apreço [a dita alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º] encontrava-se prevista, com teor absolutamente idêntico, inserida no artigo 9.º de um decreto-lei aprovado pelo Conselho de Ministros de 29 de Agosto de 1991 e que, enviado para promulgação pelo Presidente da República, foi objecto de um pedido de fiscalização abstracta preventiva.

Este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão 371/91 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Dezembro de 1991), para além de não tomar conhecimento do pedido formulado pelo Presidente da República no tocante "ao cotejo do artigo 8.º, n.º 1, e do artigo 9.º, n.º 1, do decreto, com a Lei Uniforme Relativa ao Cheque e, consequentemente, com o artigo 8.º, n.º 2, da Constituição", não se pronunciou, no que agora interessa, pela inconstitucionalidade da norma do artigo 9.º, n.º 1, alíneas a), b), c) e d), e do n.º 2 do decreto então em causa, vindo, na sequência do processo legislativo que o originou, a ser editado, em 28 de Dezembro de 1991, o Decreto-Lei 454/91.

3.1 - No entendimento do ora recorrente, em síntese, tal norma viola os princípios da proporcionalidade e da justiça, já que, por um lado, se se considerar que por via dela se pretendeu instituir "uma responsabilidade por facto ilícito", como parece resultar do acórdão ora recorrido, "então a obrigação de pagamento teria como limite, considerando o regime legal desse tipo de responsabilidade, o montante do dano efectivo e não o valor do cheque"; por outro, a admitir-se a instituição de uma responsabilidade pelo risco inerente à actividade bancária, então dever-se-ia proceder ao estabelecimento de limites máximos do dever de indemnizar.

Vejamos.

Dos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 6.º do Decreto-Lei 454/91 transparece que, com vista a assegurar uma maior credibilidade e confiança no meio de pagamento que constitui o cheque e que, cada vez mais, se tinham vindo a degradar, foram impostos às instituições bancárias determinados procedimentos mais exigentes do que os consagrados pelas medidas administrativas introduzidas pelos Decretos-Leis 530/75, de 25 de Setembro e 14/84, de 11 de Janeiro (que se revelaram insuficientes - cf. relatório preambular daquele diploma), tendentes a se obter a rescisão das convenções de cheques celebrados com as entidades da sua clientela, por forma a não se permitir a tais entidades, que actuaram por sorte a pôr em causa a aludida confiança, o irrestrito uso de cheque mediante módulos fornecidos pelas instituições bancárias. E se, não obstante as medidas agora impostas, as instituições bancárias, a quem era dado conhecimento das actuações das entidades suas clientes, ainda, contrariamente ao disposto na lei e que resultava de concretas instruções ou listagens elaboradas pelo organismo central supervisionador da banca - o Banco de Portugal -, fornecessem módulos de cheques permissores do mencionado uso irrestrito (cf. a possibilidade de movimentação de cheques avulsos constante do artigo 6.º do Decreto-Lei 454/91), a norma agora em apreciação veio a impor às citadas instituições a obrigação de pagamento dos montantes titulados pelos cheques emitidos pelas entidades "prevaricadoras", caso estes tivessem falta ou insuficiência de provisão.

Essa obrigação constituiu, assim, por um lado, a "contrapartida" do comportamento das instituições de crédito que não actuaram, como deviam, no sentido de, fornecendo módulos de cheques às entidades em tal situação, impedir o risco que advinha da possibilidade de as referidas entidades poderem continuar a emitir cheques com falta ou insuficiência de provisão, com os inerentes descrédito e desconfiança no meio de pagamento por via de cheque que resultam para o "meio económico".

E constitui também, por outro e inquestionavelmente, e não com menor importância, a consagração de uma "garantia", perante terceiros, do pagamento da quantia titulada pelo cheque sacado em tais condições, sendo certo que o banco que houver efectuado o pagamento da quantia ficará numa posição de sub-rogação, podendo exigir do sacador o quantitativo daquele pagamento.

Tais "contrapartida" e "garantia", obviamente, vão representar um encargo adicional para as instituições bancárias visadas e, de modo objectivo, vão beneficiar o portador do cheque. E se porventura se pode sustentar que elas, no rigor dos princípios, se não inscrevem nos riscos inerentes à actividade bancária, não deixam de representar quer a "face" "penalizadora" de uma actuação indevida das instituições bancárias que não procederam do modo prescrito na lei quer o asseguramento da confiança que o regime bancário deve merecer por banda dos intervenientes económicos e financeiros.

3.2 - Mas, se isto é assim, o que há que aquilatar é se, dado o modo como aquelas "face" e asseguramento foram desenhadas na norma em questão (pagamento da totalidade dos quantitativos inscritos nos módulos de cheques fornecidos nas indevidas condições) conduz, efectivamente, à prescrição de uma solução que se apresenta como algo de desproporcionado.

Neste particular, deverá notar-se que, no caso de onde emergiu o recurso de constitucionalidade de que ora curamos, nenhuns elementos se deparam e dos quais resulte que existiu "conluio" entre o empregado da instituição bancária e o sacador do cheque, um "conluio" entre o sacador e o portador do cheque no sentido de ser lesada a instituição bancária, ou, por último, que a relação subjacente à emissão de cheques em tais circunstâncias se revelava ilícita.

Na perspectiva do recorrente, mesmo admitindo estar-se perante uma "responsabilização" por facto ilícito consubstanciado na inobservância, por banda da instituição bancária, do seu dever legal de não fornecer à entidade integrada na listagem módulos de cheque que lhe permitissem o seu irrestrito uso, a obrigatoriedade do pagamento da totalidade dos montantes titulados pelo cheque postar-se-ia como desproporcionada em face do regime legal geral desenhado para uma tal espécie de responsabilidade, visto que aquilo que deste regime resulta é a imposição do pagamento dos danos efectivamente sofridos pelo lesado.

No já citado Acórdão 371/91, foi realçado que "nem todos os ónus ou encargos, mesmo com imediata projecção financeira, podem ser tidos, sem mais, como medidas de natureza sancionatória" e, no que tange à obrigação constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º ora em análise, referiu-se que ela "tem por fonte directa e imediata um acto ilícito da instituição pagadora, consubstanciado no incumprimento por parte dessa instituição de uma obrigação legalmente imposta" e que desse "acto ilícito, que se traduz na ausência ou ineficácia de reacção, por parte da instituição de crédito, à situação de perigosidade (que é do seu conhecimento) que representa o titular de módulos de cheques poder continuar a emitir cheques sem provisão, podem, de facto, resultar prejuízos directos para terceiros de boa fé, além de resultar diminuída a credibilidade do sistema, por desrespeito do dever de diligência que nos termos legais impende sobre as instituições de crédito".

De tal aresto parece, pois, resultar que este Tribunal assumiu a óptica segundo a qual a obrigação imposta naquela alínea se fundava na responsabilidade pela prática de acto ilícito imputável à instituição bancária.

Ora, numa tal óptica que, ao menos visualizando tão-só a já aludida "face" penalizadora, aliás, se acompanha, não se vislumbra agora que a obrigação de pagamento da totalidade do montante inscrito no cheque se apresente como sendo conflituante com os princípios da proporcionalidade e da justiça.

Na realidade, se é facto que decorre do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, isso não significa que, constitucionalmente, seja imposto ao legislador ordinário que o limite da obrigação que tem por base a responsabilidade por factos ilícitos se contenha necessariamente na medida do dano sofrido.

Mas, além disso, mesmo a entender-se que da alínea c) do n.º 1 do artigo 9.º resultaria uma presunção de harmonia com a qual a medida do dano, para a situação em presença, era consubstanciada no montante do cheque, uma presunção estatuída quanto à medida do dano não representa algo de novo no domínio do direito das obrigações (pense-se, verbi gratia, no que se dispõe no artigo 806.º do Código Civil quanto à indemnização pela mora nas obrigações pecuniárias).

Aliás, a medida do dano sofrido pelo lesado pode, inclusivamente e em dados casos, ser superior ao montante titulado pelo cheque. E, como também aqui está em causa a protecção comunitária da fiducia e credibilidade do meio de pagamento que constitui o cheque (fiducia e credibilidade essas que, pela indevida actuação da instituição bancária se vêm abaladas - e, quanto a este ponto, não se olvide que o "acto ilícito" não reside na directa emissão, feita pelo sacador, do cheque desprovido de fundos, mas sim no comportamento daquela instituição que proporcionou ao sacador a utilização de módulos que lhe permitira proceder à mencionada emissão), não se antevê que a exigência de pagamento daquele montante constitua uma "injusta medida", porquanto excessiva e não adequada, mesmo tendo em atenção uma proporção relativa à "culpa" assacável à instituição, sendo certo que o n.º 2 do artigo 9.º não deixa de consagrar a regra segundo a qual pode essa instituição provar, para excluir a sua responsabilidade, que satisfez as prescrições legais relativas à obrigação de rescisão da convenção do cheque e os requisitos fixados pelo Banco de Portugal.

E a isto, como se viu já, não se deixa de aditar que, de todo o modo, o banco pagador da quantia titulada pelo cheque, sempre poderá/deverá exigir ao sacador o quantitativo por aquele pago.

É evidente que outro poderia ser o caminho trilhado pelo legislador.

Porém, não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre qual o melhor direito. Cabe-lhe, isso sim, aquilatar se a solução legislativa adoptada é, ela mesma, contrária à lei fundamental. Em quanto a esse particular, viu-se que a regra legal em questão não era passível de um juízo de censura.

4 - Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.

Lisboa, 16 de Novembro de 2005. - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Vítor Gomes - Gil Galvão - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2365581.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1975-09-25 - Decreto-Lei 530/75 - Ministério das Finanças

    Estabelece medidas preventivas de carácter administrativo relativas ao uso de cheques.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-01-11 - Decreto-Lei 14/84 - Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano

    Altera o regime de julgamento e punição do crime de emissão de cheque sem provisão e institui a medida administrativa de restrição do uso de cheque pelos responsáveis pela emissão de cheques sem provisão.

  • Tem documento Em vigor 1989-07-08 - Lei Constitucional 1/89 - Assembleia da República

    Segunda revisão da Constituição.

  • Tem documento Em vigor 1989-09-07 - Lei 85/89 - Assembleia da República

    Introduz alterações à Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1991-12-04 - Decreto-Lei 451/91 - Presidência do Conselho de Ministros

    Aprova a Lei Orgânica do XII Governo Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1991-12-28 - Decreto-Lei 454/91 - Ministério da Justiça

    Estabelece normas relativas ao uso do cheque e fixa o regime penal e contra-ordenacional do cheque.

  • Tem documento Em vigor 1997-11-19 - Decreto-Lei 316/97 - Ministério da Justiça

    Altera o regime jurídico do cheque sem provisão, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, o qual é republicado em anexo com as alterações ora introduzidas.

  • Tem documento Em vigor 2001-12-17 - Decreto-Lei 323/2001 - Ministério da Justiça

    Procede à conversão de valores expressos em escudos para euros em legislação da área da justiça.

  • Tem documento Em vigor 2003-04-24 - Decreto-Lei 83/2003 - Ministério das Finanças

    Altera o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, que estabelece normas relativas ao uso do cheque, concedendo a todas as instituições de crédito o acesso à informação disponibilizada pelo Banco de Portugal relativa aos utilizadores de cheque que oferecem risco.

  • Tem documento Em vigor 2005-08-29 - Lei 48/2005 - Assembleia da República

    Procede à quarta alteração ao regime jurídico do cheque sem provisão, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro.

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