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Acórdão 90/2004/T, de 16 de Março

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Texto do documento

Acórdão 90/2004/T. Const. - Processo 769/2003. - 1 - Tendo Amândio Mário Amado Pereira, Lia dos Anjos Pereira, Rui Álvaro Amado Pereira e Maria Elisa Amado Pereira deduzido embargos à execução para pagamento de quantia certa que contra si fora instaurada pelo Estado Português com base no n.º 4 do Decreto-Lei 96/87, de 4 de Março, e que corre seus termos pelo 9.º Juízo do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, o juiz daquele Juízo, por despacho de 15 de Julho de 2003, considerou o Tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo "os executados da instância executiva" e declarando "a mesma extinta".

Para tanto, recusou, por inconstitucionalidade orgânica, a aplicação da norma ínsita no artigo 18.º, n.º 5, do Decreto-Lei 96/87, "na parte em que atribui competência executiva, exclusiva, aos tribunais do 'foro da comarca de Lisboa'".

Em síntese, o juiz em causa entendeu:

Em face das disposições constantes do Decreto-Lei 96/87, que estabeleceu o "Programa Específico de Desenvolvimento à Agricultura Portuguesa", o contrato de onde emergiu a invocada dívida que deu origem à execução tem a natureza de contrato de natureza administrativa;

Sendo assim, a apreciação das matérias emergentes de tal tipo de contrato é da competência dos "tribunais da jurisdição administrativa", por força do estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro", não tendo "manifestamente" os tribunais judiciais competência para aquela apreciação;

Muito embora no contrato dos autos constasse uma cláusula que estabelecia que a resolução dos diferendos que surgissem entre os contraentes era da exclusiva competência do Tribunal da Comarca de Lisboa, com expressa renúncia de qualquer outro, essa cláusula consubstanciava um pacto de competência em razão da matéria, o que era vedado pelo n.º 1 do artigo 100.º do Código de Processo Civil;

Que o Decreto-Lei 96/87 foi emitido pelo Governo no uso da sua competência legislativa própria, regulando a norma vertida no n.º 5 do seu artigo 18.º matéria da exclusiva competência parlamentar.

Do despacho de 15 de Julho de 2003 recorreu para o Tribunal Constitucional e ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, o representante do Ministério Público junto do indicado Juízo, por seu intermédio pretendendo a apreciação do normativo que foi recusado aplicar.

2 - Determinada a feitura de alegações, rematou a entidade recorrente a por si apresentada com as seguintes conclusões:

"1.º Face ao quadro normativo vigente à data da edição do Decreto-Lei 96/87, de 4 de Março, as acções executivas, fundadas em certidão que constitua título executivo extrajudicial, apenas cabem no âmbito da competência da jurisdição administrativa e fiscal (exercida através dos tribunais tributários de 1.ª instância) quando houver lei especial que outorgue a tal jurisdição a cobrança coerciva do débito de que é credor determinada pessoa colectiva pública, independentemente da sua natureza material.

2.º Deste modo, a norma desaplicada na decisão recorrida - ao atribuir aos juízes cíveis de Lisboa a competência material para a cobrança coerciva dos créditos do Estado, originados por apoios financeiros concedidos ao abrigo do PEDAP - não se configura como inovatória em relação ao referido quadro normativo, não sendo, consequentemente organicamente inconstitucional.

3.º Termos em que deverá proceder o presente recurso."

Por seu turno, os recorridos não apresentaram alegação.

Cumpre decidir.

3 - Não relevará, em face dos contornos do vertente caso, a questão de saber se o contrato do qual alegadamente teria emergido a dívida cuja cobrança coerciva se intentou por intermédio da execução a que foram opostos os embargos assume, ou não, na realidade, a natureza de administrativa.

E isso, justamente, pela circunstância segundo a qual, como à frente se explicitará, ainda que se tratasse de um contrato com tal natureza, e do qual resultaram créditos cuja obtenção coerciva se pretendeu com a execução a que foram deduzidos os embargos, a solução a conferir quanto à questão de constitucionalidade seria a mesma que aquela que decorreria se nos postássemos perante um negócio jurídico de natureza não administrativa.

É que, como resulta do despacho impugnado, o mesmo, após ter entendido que o negócio em causa deveria ser perspectivado como um contrato de natureza administrativa, a apreciação jurisdicional dos diferendos dele emergentes incumbia à jurisdição administrativa, para tanto tendo invocado a disposição constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro.

Simplesmente, olvidou o despacho recorrido que aquela lei, ao tempo em que foi lavrado tal despacho, nem sequer ainda tinha entrado em vigor.

Efectivamente, como resulta do seu artigo 7.º (redacção conferida pela Lei 4-A/2003, de 19 de Fevereiro), a respectiva vigência só ocorreu em 1 de Janeiro de 2004.

3.1 - Neste contexto, importa analisar se o normativo cuja desaplicação se efectivou no despacho sub iudicio se configura como inovatório relativamente às regras da competência material dos tribunais, matéria essa que, indiscutivelmente, ao tempo da edição do diploma em que tal normativo se insere, constituía [como aliás constitui hoje - cf. alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da vigente versão da lei fundamental] reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, de harmonia com a alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, na versão decorrente da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro.

Estipulam, para o que ora releva, os n.os 2, 4 e 5 do referido artigo 18.º:

"Artigo 18.º

Reembolso

1 - ...

2 - No caso de incumprimento pelos beneficiários, o gestor do programa notificará os infractores para, no prazo de 30 dias, restituírem os montantes já recebidos a título de ajudas, acrescidos de juros à taxa legal desde a data em que estas importâncias foram colocadas à sua disposição, sem prejuízo da aplicações de outras sanções previstas na lei.

3 - ...

4 - Constituem títulos executivos as certidões de dívida emitidas pelo organismo encarregado da execução do programa ou subprograma ao abrigo do qual a ajuda foi concedida.

5 - As execuções instauradas pelo Ministério Público ao abrigo deste artigo, para as quais é sempre competente o foro da comarca de Lisboa, iniciam-se pela penhora."

Ora, do regime constante do então (ou seja, à data da prolação do despacho recorrido) vigente Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei 129/84, de 27 de Abril), não se pode concluir que a totalidade das acções executivas destinadas à obtenção de dívidas devidas ao Estado ou a outras pessoas colectivas públicas, fundadas em título executivo extrajudicial certidão de dívida emitida pelo Estado ou outras pessoas colectivas públicas -, seja da competência dos tribunais administrativos ou fiscais.

Na verdade, e talqualmente assinala a entidade recorrente na sua alegação, da conjugação das normas vertidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [na redacção anterior à conferida pelo Decreto-Lei 229/96, de 29 de Novembro, que é a que releva, atenta a data da edição do diploma que se incorpora a norma em apreço, sendo que, de todo o modo, mesmo depois daquela redacção é o mesmo o sentido da alínea o) do n.º 1 do citado artigo 62.º] e no artigo 144.º do Código de Processo das Contribuições e Impostos [que era o vigente à data anteriormente referida, mantendo-se regra de conteúdo idêntico na alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º do Código de Processo Tributário], resulta que a competência atribuída aos tribunais tributários de 1.ª instância para a cobrança coerciva de dívidas a pessoas de direito público está dependente da existência de uma lei que tal preveja, salvo quanto à cobrança das custas e multas aplicadas pelos tribunais administrativos e fiscais.

Sendo assim, e se não houver acto legislativo específico que preveja que a cobrança coerciva de determinados créditos detidos pelo Estado ou outras pessoas colectivas públicas é da competência dos tribunais fiscais (e isso independentemente da natureza material de onde emerge a obrigação que, por incumprida, deu origem ao crédito), resulta claro que essa competência incumbe aos tribunais judiciais, por força do artigo 14.º da então vigente Lei 38/87, de 23 de Dezembro - Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (e o mesmo se passa hoje com o n.º 1 do artigo 18.º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro; cf., na actual versão da Constituição, a parte final do n.º 1 do artigo 211.º) -, sendo certo que, em 1987 (data da edição do Decreto-Lei 96/87), não estavam os tribunais administrativos dotados, pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que então regia, de competência para a execução dos crédito titulados pelo Estado e outra pessoas colectivas públicas, fundadas no título executivo extrajudicial acima indicado, e ainda que decorrente de negócios jurídicos bilaterais de natureza administrativa.

Neste contexto, no particular da atribuição de competência aos tribunais da ordem dos tribunais judiciais, a norma em apreciação mais não faz do que, tautologicamente, reafirmar uma regra que já se surpreendia no ordenamento jurídico vigente à data da edição do Decreto-Lei 96/87, pelo que nada de inovatório foi por ela trazido (cf., por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.os 502/97 e 588/99, publicados no Diário da República, 2.ª série, de, respectivamente, 4 de Novembro de 1988 e 20 de Março de 2000, onde se concluiu que se uma norma atinente à competência material dos tribunais, norma essa emitida pelo Governo a descoberto de autorização parlamentar, não revestir carácter inovatório, não incorrerá ela no vício de inconstitucionalidade orgânica).

4 - Em face do exposto, concedendo-se provimento ao recurso, determina-se a reforma do despacho impugnado de harmonia com o ora decidido quanto à questão de constitucionalidade.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2004. - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Vítor Gomes - Gil Galvão - Luís Nunes de Almeida.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2199329.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-09-30 - Lei Constitucional 1/82 - Assembleia da República

    Aprova a primeira revisão Constitucional, determinando a sua entrada em vigor no trigésimo dia posterior ao da publicação no diário da república, bem como publicação conjunta da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, no seu novo texto.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-04-27 - Decreto-Lei 129/84 - Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano

    Aprova o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (no uso da autorização conferida ao Governo pela Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro).

  • Tem documento Em vigor 1987-03-04 - Decreto-Lei 96/87 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Aprova a regulamentação do Programa Específico de Desenvolvimento da Agricultura Portuguesa (PEDAP).

  • Tem documento Em vigor 1987-12-23 - Lei 38/87 - Assembleia da República

    Lei orgânica dos tribunais judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1996-11-29 - Decreto-Lei 229/96 - Ministério da Justiça

    Cria o Tribunal Central Administrativo definindo a sua organização, funcionamento e competências. Altera o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo Dec Lei 129/84 de 27 de Abril e a Lei de Processo nos Tribunais aprovada pelo Dec Lei 267/85 de 16 de Julho. O Tribunal Central Administrativo é um Tribunal Superior de jurisdição administrativa e fiscal tendo jurisdição em todo o território nacional e compreende duas secções, uma de contencioso administrativo (1ª secção) e outra de contenc (...)

  • Tem documento Em vigor 1999-01-13 - Lei 3/99 - Assembleia da República

    Aprova a lei de organização e funcionamento dos Tribunais Judiciais.

  • Tem documento Em vigor 2002-02-19 - Lei 13/2002 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, altera o regime jurídico das empreitadas de obras públicas, o Código de Processo Civil, o Código das Expropriações e a Lei de Bases do Ambiente.

  • Tem documento Em vigor 2003-02-19 - Lei 4-A/2003 - Assembleia da República

    Altera a Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; altera a Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro, que aprova o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e procede à sua republicação; e altera o Decreto-Lei nº 134/98, de 15 de Maio, que aprova o regime jurídico do recurso contencioso dos actos administrativos relativos à formação dos contratos de empreitada de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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