Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 611/2003/T, de 1 de Março

Partilhar:

Texto do documento

Acórdão 611/2003/T. Const. - Processo 4/2003. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - O relatório

1 - Mário Filipe da Silva Mendes, com os sinais dos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante LTC), do Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de Novembro de 2002, que decidiu rejeitar-lhe o recurso que interpôs do despacho do juiz do 2.º Juízo Criminal de Lisboa de 17 de Abril de 2002.

2 - No presente processo comum com juiz singular, ao abrigo do artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (doravante CPP), o Ministério Público acusou o ora recorrente da autoria material de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea j), e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido, pelo artigo 347.º, todos do Código Penal (doravante CP).

A acusação foi recebida e designada audiência de julgamento por despacho judicial de 26 de Abril de 2001 (fl. 43), com a 1.ª data para 16 de Janeiro de 2002, pelas 14 horas, e a 2.ª data, em caso de adiamento, para 20 de Fevereiro de 2002, pelas 14 horas, nos termos dos artigos 333.º, n.os 1 a 3, e 313.º, n.º 2, do CPP.

O julgamento teve lugar nesta 2.ª data, nos termos daquele artigo 333.º, n.os 2, 3 e 5, do CPP (redacção do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro), com fundamento no facto de este ter sido devidamente notificado (pessoalmente e com as cominações legais - fls. 64 a 67) e a sua presença não se afigurar imprescindível para a descoberta da verdade (cf. acta de fls. 68-70), vindo o arguido a ser condenado, por sentença de 18 de Janeiro de 2002, na pena única de 1 ano de prisão e 90 dias de multa, esta à taxa diária de Euro 4, ou seja, Euro 360.

A sentença foi notificada, nesse dia 18 de Janeiro de 2002, a quem estava presente ao acto de leitura, mormente a defensora oficiosa do arguido (cf. acta de fl. 87), bem como pessoalmente a este arguido, que ali se apresentou (fl. 88), juntando, então, procuração a favor de outra advogada (fl. 89).

Em 6 de Março de 2002, veio então o arguido, através da sua defensora, requerer novo julgamento, arguindo como fundamento a nulidade da notificação da acusação que lhe fora efectuada a fl. 51 para os efeitos do artigo 287.º, n.os 1, alínea a), e 3, do CPP.

Este requerimento foi indeferido pelo referido despacho judicial de 17 de Abril de 2002, do seguinte teor:

"Foi realizada audiência de julgamento do arguido Mário Mendes, a que este faltou, sendo que prestou TIR (fl. 66) e foi devidamente notificado do despacho de recebimento da acusação e de designação de dia para julgamento.

Notificado (fl. 88) da sentença (de fl. 74 a fl. 86), veio o arguido (a fl. 90) requerer a realização de novo julgamento com o fundamento de que da certidão de notificação do despacho acusatório (de fls. 50 e 51), devidamente assinada pelo arguido e datada de 13 de Março de 2001, não consta a entrega ao arguido de cópia da acusação, de que teria 20 dias para requerer a abertura de instrução, de que lhe tinha sido nomeado defensor oficioso e de que este tinha sido notificado da acusação.

Defende o arguido que 'estamos em face de uma nulidade arguível nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal - omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade'.

Cumpre apreciar e decidir.

Vem o arguido invocar a existência de uma nulidade relativa, concretamente prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea c), do CPP. Estas 'nulidades dependentes de arguição devem ser arguidas pelos interessados nos prazos estabelecidos por lei. Não sendo arguidas dentro desses prazos, consideram-se sanadas'. (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, t. II, Verbo, 1993, p. 66.)

Quanto a prazos de arguição, aplica-se o geral, previsto no artigo 105.º, n.º 1, do CPP (10 dias), que se conta desde a data de notificação para qualquer termo posterior do processo ou de intervenção em qualquer acto processual (Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 68). Sendo caso disso, aplicar-se-ão os prazos especiais elencados no n.º 3 do referido artigo 120.º

Ora, no caso em apreciação, o acto em causa é a notificação do despacho acusatório, sendo que o arguido foi notificado (conforme fl. 51), isto é, assistiu ao acto, pelo que, nos termos do artigo 120.º, n.º 3.º, alínea a), deveria ter, no momento, arguido a nulidade.

De qualquer forma, sempre se dirá que, mesmo aplicando o prazo geral dos 10 dias, o arguido (face às notificações posteriores que recebeu e ao decurso do tempo) já não estaria em prazo para arguir tal nulidade.

Pelo exposto, a arguição de nulidade é extemporânea, pelo que - a existir se considera sanada, indeferindo-se o requerido pelo arguido".

3 - Inconformado com o aqui decidido, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

"1.ª O despacho recorrido não se refere expressamente ao requerimento formulado pelo ora recorrente, no sentido de haver uma nova audiência de julgamento, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 380.º-A do CPP, que fora introduzido pela Lei 59/98, de 25 de Agosto.

2.ª Pese embora o que se lê no artigo 3.º do Decreto-Lei 320-C/2000 (revogação do artigo 380.º-A do CPP), devia ser admitido o requerido a novo julgamento, face ao que se estatui na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do CPP, isto porque o arguido foi acusado ao abrigo do CPP, na redacção anterior à ora vigente.

3.ª A lei de autorização legislativa - Lei 27-A/2000, de 17 de Novembro - não conferiu ao Governo autorização para revogar o disposto no artigo 380.º-A do CPP, introduzido pela Lei 59/98, de 25 de Agosto. Excedido que está manifestamente o sentido e a extensão da lei de autorização legislativa, o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, é orgânica e materialmente inconstitucional, razão pela qual deve ser desaplicado.

Termos em que se deve revogar a douta decisão recorrida, por acórdão em que:

a) Se ordene a requerida repetição do julgamento, em obediência ao disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do CPP;

b) Se julgue inconstitucional o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, por manifesto desrespeito ao sentido e alcance da lei de autorização legislativa respectiva, razão pela qual deve tal artigo ser desaplicado (artigo 204.º da CRP)."

4 - O recurso foi rejeitado pelo tribunal de 2.ª instância, nos termos do artigo 420.º, n.º 1, do CPP (manifesta improcedência), com base nos seguintes fundamentos:

"C) Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, no seu douto parecer, concorda, em absoluto, com a resposta da sua colega da 1.ª instância, acrescentando que: '2 - O arguido não foi afectado em nada nos seus direitos de defesa e apenas recorre por recorrer', pelo que entende que o recurso é manifestamente improcedente e, por isso, deve ser rejeitado, em conferência, nos termos dos artigos 419.º, n.º 4, alínea a), e 420.º, n.º 1, ambos do CPP.

Cumprido o artigo 417.º, n.º 2, do CPP - não houve qualquer resposta.

O relator, no seu exame preliminar, também entende que o recurso deve ser rejeitado, por manifestamente improcedente - artigos 417.º, n.º 3, 419.º, n.º 4, alínea a), e 420.º, n.º 1, do CPP.

III - Colhidos os vistos, cumpre decidir.

O recurso é, na verdade, de rejeitar, por manifestamente improcedente, já que tanto a letra como o espírito da lei - mormente, atenta a celeridade processual operada pelo Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, que, como se viu, não belisca o direito de defesa do(s) arguido(s).

Não se verifica, desde logo, a invocada inconstitucionalidade.

Na verdade, não se verifica que tenha sido desrespeitado o sentido e o alcance da Lei 27-A/2000, de 17 de Novembro, que autorizou o Governo a alterar o Código de Processo Penal (mormente na redacção da Lei 59/98, de 25 de Agosto), mormente o seu artigo 6.º, que respeita à realização da audiência na ausência do arguido e que dispõe que:

'1 - Se o arguido, regularmente notificado, não estiver presente na hora do início da audiência:

a) O presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência de julgamento só será adiada se o tribunal considerar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência;

b) Se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material ou se a falta do arguido for justificada, ao abrigo dos n.os 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas as testemunhas e ouvidos o assistente, os peritos ou consultores técnicos ou as partes civis presentes;

c) O arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se esta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor pode requerer que seja ouvido na segunda data designada pelo juiz, nos termos do n.º 2 do artigo 312.º

2 - As declarações referidas no número anterior serão documentadas e ao caso nele previsto não se aplica o n.º 6 do artigo 328.º'

Em suma, tudo isto foi devidamente respeitado na redacção dada pelo Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, como se constata do supracitado artigo 196.º, n.º 3, especialmente da sua alínea c) (o alegado TIR) - 'De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e, bem assim, a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º'

Bem como se mostra conforme a tal lei a redacção do já aludido artigo 333.º do CPP.

E, obviamente, ali se compreende (mormente, no espírito daquela Lei 27-A/2000) a norma revogatória constante do artigo 3.º do Decreto-Lei 320-C/2000: que revogou o artigo 380.º-A do CPP (da redacção anterior, ou seja, da citada Lei 59/98, de 25 de Agosto).

Resta, assim, dizer que tem inteira razão o Ministério Público, mormente na resposta ao recurso, quando conclui que não foi cometida nenhuma nulidade e ou irregularidade [vigora aqui o princípio da legalidade, cf. artigo 118.º, n.º 2, do CPP], sendo certo que, manifestamente, não se verifica qualquer desses vícios na notificação pessoal ao arguido, constante de fl. 51 dos autos (not. da acusação de fls. 44-45), nem na notificação do despacho que recebeu a acusação e designou a audiência de julgamento (cf. fls. 53 e 64 a 67), sendo que aí se mostram cumpridos os formalismos e cominações dos artigos 196.º, n.º 3, alínea d), e 333.º do CPP (redacção do Decreto-Lei 320-C/2000), aliás devidamente comunicados ao arguido.

Apesar disso, o arguido faltou, e não justificou a sua falta, àquela primeira data de audiência de julgamento, sendo que, nos termos da lei, mormente dos n.os 2, 3 e 5 do artigo 333.º do CPP, a audiência prosseguiu na ausência do arguido, aliás, regularmente notificado e estando aí devidamente representado pela sua ilustre defensora, e tendo o M.mº Juiz a quo considerado, como vimos, não ser imprescindível para a descoberta da verdade material a sua presença.

Note-se, finalmente, que a defesa não requereu, na altura - e podia tê-lo feito - que o arguido fosse ouvido na segunda data designada para tal - cf. n.º 3 do artigo 333.º do CPP (redacção do Decreto-Lei 320-C/2000).

Em suma, o presente recurso é manifestamente improcedente, pelo que é de rejeitar - cf. artigo 420.º, n.º 1, do CPP."

5 - Inconformado mais uma vez, o arguido interpôs recurso, nos preditos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, para o Tribunal Constitucional, afirmando, na parte útil, o seguinte:

"9 - Na motivação e conclusões do recurso, sustentou, como continua a sustentar, o ora recorrente que a Lei 27-A/2000, de 17 de Novembro, não 'habilitou' o Governo a revogar o artigo 380.º-A do Código de Processo Penal, sendo certo que este preceito legal é perfeitamente compatível com as alterações introduzidas por aquele decreto-lei.

10 - Daí sustentou, como continua a sustentar, a inconstitucionalidade parcial do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 165.º da CRP.

11 - O acórdão recorrido contrapôs o disposto no artigo 6.º da lei de autorização legislativa.

12 - Acontece que tal preceito legal diz respeito, só e tão-só, à 'realização da audiência na ausência do arguido'. Ora,

13 - Não se demonstrando que as alterações legislativas que ao abrigo dessa 'norma habilitante' foram decretadas sejam incompatíveis com a subsistência do que se dispunha no artigo 380.º-A, estamos perante uma 'questão em aberto'.

14 - Mais sustentou o ora recorrente que no caso de se não considerar procedente aquela questão de inconstitucionalidade, se deveria interpretar a revogação do artigo 380.º-A, no sentido de que nos casos, como é o dos autos, em que o arguido adquiriu o 'estatuto de arguido' ao abrigo do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, se lhe não poderia negar o direito a requerer novo julgamento, nos termos do mesmo artigo 380.º-A, face ao que se dispõe na alínea a) do n.º 2 no artigo 5.º do Código de Processo Penal que, na opinião do recorrente, constitui uma das mediações semânticas do disposto no n.º 4 do artigo 29.º da CRP.

15 - Pretendendo justificar a 'questão' equacionada no precedente n.º 14, mais alegou o ora recorrente de que, no caso dos autos, foi, efectivamente retirada, ao recorrente, uma garantia de defesa, porquanto de nada lhe valeria o direito, agora, só ao recurso, se a sentença condenatória proferida fosse, como foi, correcta de um ponto de vista formal, face aos factos apurados em audiência de julgamento.

16 - O acórdão recorrido nem sequer se dignou a pronunciar-se sobre esta segunda questão.

17 - Entende o ora recorrente que se mostram violados, entre outros, os princípios constitucionais consagrados no n.º 2 do artigo 165.º, no n.º 4 do artigo 29.º e no n.º 1 do artigo 32.º, todos da CRP."

6 - Sintetizando os fundamentos expostos nas suas alegações de recurso para este Tribunal, formulou o recorrente as seguintes conclusões:

"1.ª O artigo 3.º do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 165.º da CRP, é inconstitucional.

2.ª No domínio do Código de Processo Penal, na sua redacção actual, de nada vale o direito ao recurso (n.º 5 do artigo 333.º). Na verdade,

3.ª Em nada aproveita o arguido se a sentença for formalmente correcta, isto é, não padecer das nulidades taxativamente previstas no artigo 379.º

4.ª O poder do juiz, que não é dever, de considerar, ou não, imprescindível a audiência do arguido, exerce-se no uso de um poder discricionário e, por isso mesmo, insindicável em sede de recurso (n.os 1 e 2 do artigo 333.º).

5.ª A aplicação, negada pelo acórdão recorrido, do disposto no citado artigo 380.º-A, verdadeira norma de direito processual, de carácter substantivo, impunha-se, por força do disposto no n.º 4 do artigo 29.º da CRP, tendo como referência o tempus delicti.

6.ª Face ao disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Penal, e quanto mais não seja por força do 'princípio da interpretação da lei conforme à Constituição' (artigo 204.º da CRP), impõe-se - estamos ainda no domínio das garantias de defesa do arguido - a subsistência do artigo 380.º-A do Código de Processo Penal.

7.ª O momento de referência da aplicação da lei mais favorável, ou de desaplicação da lei mais gravosa para o arguido, há-de ser o da formulação da acusação (artigo 283.º do Código de Processo Penal, por analogia com o disposto no artigo 267.º do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal), sendo certo que o ora recorrente foi acusado no domínio da redacção do Código de Processo Penal anterior à ora vigente.

8.ª Mostram-se violados, entre outros, os princípios constitucionais consagrados no n.º 2 do artigo 165.º, no n.º 4 do artigo 29.º e n.º 1 do artigo 32.º, todos da CRP."

7 - Por seu lado, o Ministério Público, recorrido, contra-alegou, concluindo pelo seguinte modo:

"1 - Ao revogar o artigo 380.º-A do Código de Processo Penal, o artigo 3.º do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, não desvirtua o sentido nem ultrapassa os limites fixados pela respectiva lei de autorização legislativa, pelo que não ocorre a inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 165.º, n.os 1, alínea c), e 2 da Constituição.

2 - Tendo o arguido prestado termo de identidade e residência e sido pessoalmente notificado da acusação e do despacho que designou dia para o julgamento, já na vigência do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, que introduziu alterações ao Código de Processo Penal, não configura violação dos princípios contidos nas normas dos artigos 29.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da Constituição, não beneficiar da faculdade de requerer novo julgamento, previsto na legislação revogada.

3 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso."

8 - Concluso o processo ao relator, suscitou este a questão prévia do não conhecimento da questão de inconstitucionalidade da norma revogatória do artigo 380.º-A do CPP, enquanto interpretada no sentido de não conceder ao arguido o direito a requerer novo julgamento, nos termos do seguinte despacho:

"2 - No seu requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente erige como objecto do mesmo duas questões: uma, traduzida na inconstitucionalidade da revogação do artigo 380.º-A do Código de Processo Penal (doravante CPP), por essa revogação não estar incluída na habilitação parlamentar concedida ao Governo pela Lei 27-A/2000, de 17 de Novembro, com o que sairá ofendido o artigo 165.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (de ora em diante CRP); uma outra, consubstanciada no facto da norma revogatória do artigo 380.º-A do CPP, enquanto interpretada no sentido de não conceder ao arguido o direito a requerer novo julgamento, como resultaria da aplicação ao caso do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código, ofender os comandos dos artigos 29.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da CRP.

3 - Ora, verifica-se que o acórdão recorrido não se pronunciou nem decidiu esta segunda questão. E, em boa verdade, poderá até dizer-se que ele nem poderia sequer dela conhecer, ou seja, enquanto questão de inconstitucionalidade. Como se verifica das suas alegações apresentadas no recurso para a Relação, o recorrente apenas coloca, relativamente à matéria da realização de um novo julgamento, uma questão de omissão de pronúncia por banda do tribunal a quo: segundo o seu arrazoado, bem expresso, nas conclusões 1.ª e 2.ª, o tribunal recorrido 'não se refere expressamente ao requerimento formulado pelo recorrente, no sentido de haver uma nova audiência de julgamento, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 380.º-A do CPP'.

Ora, a recorrente colocou essa questão da realização de um novo julgamento apenas no plano da lei infraconstitucional, defendendo a sua solução apenas com base na aplicação do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do mesmo CPP. Em ponto algum da sua motivação se vê questionada a validade da norma revogatória do artigo 380.º-A do CPP, corporizada pelo artigo 3.º do Decreto-Lei 320-C/2000, com base na violação de quaisquer parâmetros constitucionais. Temos, portanto, por evidente que o recorrente não problematizou a questão de constitucionalidade que agora veio a fazer no seu requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional.

4 - Assim sendo, não pode considerar-se que o recorrente tenha suscitado a segunda questão de inconstitucionalidade durante o processo e se ache assim cumprido o pressuposto específico estabelecido nas disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 75.º-A, n.os 1 e 2, da LTC.

5 - [...]

6 - Deste modo prefigura-se uma questão que obsta ao conhecimento do recurso da referida questão de inconstitucionalidade da norma revogatória do artigo 380.º-A do CPP. A circunstância de o recurso ter sido admitido não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC).

7 - Destarte decide-se ouvir as partes sobre a questão prévia, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, ex vi do artigo 69.º da LTC, pelo prazo de 10 dias."

9 - Notificado, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal respondeu dizendo conformar-se com o teor do despacho, no sentido da falta de requisitos para se conhecer do recurso, relativamente à questão suscitada.

10 - Ao contrário, o arguido defendeu, em síntese, que "tendo o tribunal recorrido desatendido a questão de inconstitucionalidade da norma revogatória do artigo 380.º-A do CPP, pronunciou-se implicitamente pela não aplicação desta revogada norma, ao caso em apreço (primeira parte do n.º 2 do artigo 600.º do CPC, ex vi do artigo 4.º do CP)"; que "quanto ao confronto da revogação do artigo 380.º-A do CPP com o n.º 4 do artigo 29.º, entende o recorrente que tal princípio está ínsito no disposto na expressamente invocada alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do CPP", cuja aplicação sustentou na motivação do recurso para a Relação, como "resulta dos artigos 10.º a 15.º" da mesma e que não poderá deixar de considerar-se verificado o requisito da exaustão dos recursos, em virtude da decisão recorrida ter a natureza de decisão final de que não cabe recurso e as nulidades apenas poderem ser arguidas ou conhecidas em recurso, conforme resulta - argumenta ele - do disposto nos artigos 379.º, n.º 2, 414.º, n.º 4, e 400.º, alínea e), todos do CPP.

B - Fundamentação

11 - Da delimitação do objecto do recurso: a questão prévia. - Não pode deixar de concluir-se pelo não conhecimento da questão de inconstitucionalidade material alegada no requerimento de interposição de recurso relativa à norma revogatória do artigo 380.º-A do CPP, enquanto interpretada no sentido de não conceder ao arguido o direito a requerer novo julgamento, como resultaria da aplicação ao caso do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código, por violação dos comandos dos artigos 29.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da CRP. Com efeito, a consistência da questão prévia suscitada pelo relator basta-se com a fundamentação desenvolvida sob o n.º 3 de tal despacho, acima reproduzida.

E é irrelevante argumentar, como faz o recorrente, que o tribunal recorrido, "tendo desatendido a questão de inconstitucionalidade da norma revogatória do artigo 380.º-A do CPP, pronunciou-se implicitamente pela não aplicação desta revogada norma ao caso em apreço".

E é irrelevante porque, por um lado, tal não implica que, a admitir-se um tal juízo implícito, se houvesse de, inelutavelmente, admitir, igualmente, que a decisão recorrida se teria pronunciado, também de modo implícito, quanto à constitucionalidade material da norma revogatória, e consequente não aplicação da norma revogada, já que questionada fora apenas a inconstitucionalidade orgânica da norma revogatória e, por outro, que o recorrente haja colocado ao Tribunal da Relação esta mesma questão de inconstitucionalidade, àquela outra dimensão normativa.

Como ali se disse, não tendo o recorrente problematizado tal questão de constitucionalidade nas conclusões do recurso para a 2.ª instância, não estava esse tribunal obrigado a conhecer dela enquanto questão suscitada. O tribunal só poderia conhecer dessa problemática, e estaria obrigado a fazê-lo a título oficioso, por força do disposto no artigo 204.º da CRP, caso tivesse prefigurado a possibilidade da verificação da inconstitucionalidade da norma.

Na verdade, no domínio dos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade de actos normativos, atendendo ao sistema difuso de controlo constitucionalmente estabelecido, admite-se recurso para o Tribunal Constitucional das decisões judiciais que "apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo" [artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC].

Como ensina Cardoso da Costa ("A jurisdição constitucional em Portugal", in "Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró", Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, I, 1984, pp. 210 e segs.), "quanto ao controlo concreto - ao controlo incidental da constitucionalidade [...], no decurso de um processo judicial, de uma norma nele aplicável - ,não cabe o mesmo, em primeira linha, ao Tribunal Constitucional mas ao tribunal do processo. Na verdade, não obstante a instituição de uma jurisdição constitucional autónoma, manteve-se na Constituição de 1976, mesmo depois de revista, o princípio, vindo das Constituições anteriores [...], segundo o qual todos os tribunais podem e devem não só verificar a conformidade constitucional das normas aplicáveis aos feitos em juízo como recusar a aplicação das que considerarem inconstitucionais [...] Este allgemeines richterliches Prüfungs-und Verwerfungsrecht encontra-se consagrado expressamente [...], e com o reconhecimento dele, a Constituição vigente permanece fiel ao princípio, tradicional e característico do direito constitucional português, do 'acesso' directo dos tribunais à Constituição [...] Quando, porém, se trate de recurso de decisão de aplicação de uma norma [...] é ainda necessário que a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, em consequência do que o juiz tomou posição sobre ela [...] Compreende-se, na verdade, que a invocação da inconstitucionalidade unicamente ex post factum (depois de proferida a decisão) não seja suficiente para abrir o recurso para o Tribunal Constitucional (sob pena, além do mais, de se converter num mero expediente processual dilatório)".

Constitui, assim, requisito deste tipo de recurso, como decorre daqueles preceitos, quando fala da aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, mas que encontra igualmente tradução no n.º 2 do artigo 75.º-A da LTC, que a questão de inconstitucionalidade da norma efectivamente aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida tenha sido suscitada durante o processo.

O alcance deste conceito tem sido esclarecido, por várias vezes, por este Tribunal. Assim, por exemplo, no Acórdão 352/94, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 6 de Setembro de 1994, disse-se que esse requisito deve ser entendido "não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)" mas "num sentido funcional", de tal modo que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão, "antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita".

Por seu lado, afirma-se, igualmente, no Acórdão 560/94, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Janeiro de 1995, que "a exigência de um cabal cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é [...] 'uma mera questão de forma secundária'. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão)".

Neste domínio, há que acentuar, na sequência do já dito, que, nos processos de fiscalização concreta, a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado. Ainda na mesma linha de pensamento, podem ver-se, entre outros, o Acórdão 155/95, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000).

É certo que tal doutrina sofre restrições, como se salientou naquele Acórdão 352/94, mas isso apenas acontece em situações excepcionais ou anómalas, nas quais o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes proferida ou não era exigível que o fizesse, designadamente por o tribunal a quo ter efectuado uma aplicação de todo insólita e imprevisível.

Usando os termos do recente Acórdão 192/2000, dir-se-á, ainda, que "quem pretenda recorrer para o Tribunal Constitucional com fundamento na aplicação de uma norma que reputa inconstitucional tem, porém, a oportunidade de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido antes de proferido o acórdão da conferência de que recorre".

E é claro que não poderá deixar de entender-se que o recorrente tem essa oportunidade quando a apreensão do sentido com que a norma é aplicada numa decisão posteriormente proferida poderá/deverá ser perscrutado no(s) articulado(s) processual(ais) funcionalmente previsto(s) para discretear juridicamente sobre as questões cuja resolução essa decisão tem de ditar, por antecedentemente colocadas, e em que aquele sentido, cuja constitucionalidade se poderá questionar, se apresenta como sendo um dos plausíveis a ser aplicados pelo juiz.

Ao encararem ou equacionarem, na defesa das suas posições, a aplicação das normas, as partes não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei fundamental.

Digamos que as partes têm um dever de prudência técnica na antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua conformidade constitucional. O dever de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo e pela forma adequada enquadra-se dentro destes parâmetros acabados de definir.

Assim sendo, não poderá considerar-se ter o acórdão recorrido aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Por outro lado, também não se verifica qualquer das referidas situações em que o recorrente se deve ter por dispensado do ónus de suscitação.

Consequentemente, não ocorre a hipótese contemplada na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, concretizadora, aliás, do regime constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP.

12 - Do mérito do recurso. - Há, pois, que conhecer apenas da questão de saber se a norma revogatória do artigo 380.º-A do CPP, ou seja, a norma constante do artigo 3.º do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, foi emitida a descoberto da autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei 27-A/2000, de 17 de Novembro, saindo, assim, violado o artigo 165.º, n.º 2, da CRP.

Segundo o recorrente, a lei de autorização legislativa - a Lei 27-A/2000, de 17 de Novembro - , sob cuja invocação foi emitido o Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, não conferiu ao Governo autorização, nem expressa nem implicitamente, para revogar o disposto no artigo 380.º-A do CPP, introduzido pela Lei 58/98, de 25 de Agosto, constante da norma do artigo 3.º daquele decreto-lei, pelo que foi excedido o seu sentido e extensão, sofrendo, por isso, de inconstitucionalidade orgânica, por violação do n.º 2 do artigo 165.º da CRP.

O acórdão recorrido entendeu que a alegação de inconstitucionalidade não procedia, em resumo, porque, tendo o artigo 6.º da lei de autorização, e que veio a converter-se na nova redacção dada pelo Decreto-Lei 320-C/2000 ao artigo 333.º do CPP, disposto, quanto à realização de audiência na ausência do arguido, por modo diverso do prescrito no artigo 380.º-A, se compreendia no seu espírito a norma revogatória deste último preceito.

Pelo seu artigo 1.º, a Lei 27-A/2000 concedeu autorização ao Governo para "rever o Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, alterado pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro, e pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, sendo o sentido e a extensão das alterações a introduzir, em matérias abrangidas pela reserva de competência da Assembleia da República, os constantes dos artigos subsequentes".

E, no seu artigo 6.º, a mesma lei dispôs pelo seguinte modo:

"Artigo 6.º

Realização da audiência na ausência do arguido

1 - Se o arguido, regularmente notificado, não estiver presente na hora do início da audiência:

a) O presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência de julgamento só será adiada se o tribunal considerar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência;

b) Se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material ou se a falta do arguido for justificada, ao abrigo dos n.os 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas as testemunhas e ouvidos o assistente ou consultores técnicos ou as partes civis presentes;

c) O arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se esta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor pode requerer que seja ouvido na segunda data designada pelo juiz, nos termos do n.º 2 do artigo 312.º

2 - As declarações referidas no número anterior serão documentadas e ao caso nele previsto não se aplica o n.º 6 do artigo 328.º"

Invocando o uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 1.º desta Lei 27-A/2000, o artigo 1.º do Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, alterou o artigo 333.º do CPP, nos termos seguintes:

"Artigo 333.º

[...]

1 - Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência de julgamento só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.

2 - Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.os 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º

3 - No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artigo 312.º, n.º 2.

4 - O disposto nos números anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido, com o seu consentimento, nos termos do artigo 334.º, n.º 2.

5 - No caso previsto nos n.os 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição do recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença."

Do mesmo diploma consta a norma do seguinte teor:

"Artigo 3.º

Norma revogatória

É revogado o artigo 380.º-A do Código de Processo Penal."

Este artigo 380.º-A do CPP havia sido aditado pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, e tinha a seguinte redacção:

"Artigo 380.º-A

Recurso e novo julgamento em caso de julgamento na ausência

1 - Sempre que a audiência se tiver realizado na ausência do arguido, nos termos do artigo 334.º, n.º 3, pode este, no prazo de 15 dias, no caso de ter sido condenado:

a) Interpor recurso da sentença ou requerer novo julgamento no caso de apresentar novos meios de prova, se ao crime corresponder pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos;

b) Interpor recurso da sentença ou requerer novo julgamento, se ao crime corresponder pena de prisão superior a 5 anos.

2 - No requerimento, o arguido apresenta, desde logo, as provas a produzir.

3 - Sendo requerido novo julgamento:

a) As declarações prestadas na anterior audiência têm o valor de declarações para memória futura, com as finalidades referidas no artigo 271.º;

b) Se o arguido não estiver presente na hora designada para o início da audiência e não for possível a sua comparência imediata, a audiência é adiada e o arguido notificado do novo dia designado;

c) Se o arguido não for encontrado e não puder ser notificado da data da audiência ou não comparecer nem for possível obter a sua comparência no novo dia e hora designados, entende-se que desiste do requerimento, não sendo possível, em caso algum, ser renovado o requerimento;

d) No caso previsto na alínea anterior, a sentença proferida na ausência do arguido considera-se transitada em julgado na data em que lhe tiver sido notificada;

e) É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 116.º, n.os 1 e 2, e 254.º"

O artigo 334.º, n.º 3, do CPP, referido no n.º 1 do preceito acabado de transcrever, dispunha do seguinte modo:

"3 - Se não for possível notificar o arguido sujeito a termo de identidade e residência do despacho que designa dia para a audiência, previsto nos artigos 313.º e 333.º, n.º 2, o arguido é notificado naquela data por editais, com a cominação de que será julgado na ausência caso não esteja presente. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 335.º, n.º 2."

O n.º 2 do artigo 165.º da CRP estabelece que "as leis de autorização devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada".

É vasta a jurisprudência do Tribunal sobre estes condicionamentos das leis de autorização legislativa (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 358/92, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Janeiro de 1993, 959/96, 257/97, 385/97 e 477/98, publicados no Diário da República, 2.ª série, respectivamente, de 19 de Dezembro de 1996, 2 de Outubro de 1998, 11 de Julho de 1997 e 24 de Novembro de 1999).

Escreveu-se no primeiro aresto, que se invoca pela profundidade da sua análise, até em termos de direito comparado:

"Quanto ao objecto da autorização, ele consiste na enunciação da matéria sobre a qual a autorização vai incidir, enunciação essa que, sem prejuízo das garantias de segurança do sistema jurídico, pode ser feita por remissão e abranger inclusive mais de um tema ou assunto. Como já se escreveu, 'a determinação do objecto definido pode ser feita de forma indirecta ou até implícita, quer por referência a actos legislativos preexistentes (que a delegação pretenda coordenar, refundir ou pôr em execução) quer por natural decorrência dos princípios e critérios directivos aplicados a uma matéria genericamente enunciada ou a matéria complexas' (cf. António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, ed. policopiada, Lisboa, 1985, p. 231)."

E continuando: "Por seu turno, a extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados."

E sobre o que deve ter-se pelo sentido da autorização, afirmou-se aí, por remissão para o autor citado: "O sentido da autorização legislativa, sendo algo mais do que a mera conjugação dos elementos objecto (matéria ou matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sobre que incidirão os poderes delegados) e extensão (aspectos da disciplina jurídica daquelas matérias que integram o objecto da autorização que vão ser modificados), não constitui, contudo, exigência especificada de princípios e critérios orientadores [...], mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito, que deve constituir essencialmente um pano de fundo orientador da acção do Governo numa tripla vertente:

Por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a expressão pelo Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na perspectiva dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem jurídica vigente (é o sentido na óptica do delegante);

Por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos fins que o Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando, assim, a lei delegada aos ditames do órgão delegante (é o sentido na óptica do delegado); e

Finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspectiva genérica das transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da outorga da autorização (é o sentido da óptica dos direitos dos particulares, numa zona revestida de especiais cuidados no texto constitucional - as matérias que incluem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República)]."

Como é evidente, a determinação da extensão e do sentido das leis de autorização não dispensa a utilização dos instrumentos de pesquisa do pensamento legislativo. Se existem casos em que eles serão patentes, outros haverá em que a sua determinação exigirá maior esforço heurístico.

No caso sub judicio, constata-se que a amplitude das leis autorizadas ou os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que incidiram as alterações introduzidas por força do exercício dos poderes legislativos delegados (extensão da autorização), bem como os princípios base, as directivas gerais ou os critérios a observar pelo legislador delegado (sentido da autorização) foram enunciados pela Lei 27-A/2000, por uma técnica de remissão para o disposto nos artigos subsequentes da mesma lei. As alterações de regime jurídico a introduzir na revisão do CPP são as que estão enunciadas nos artigos 2.º a 11.º Por seu lado, os critérios a seguir pelo legislador ordinário relativamente a cada parcela dessa extensão da autorização estão expostos, também, em cada um desses preceitos.

Assim, verifica-se do artigo 6.º da Lei 27-A/2000 que o legislador parlamentar autorizou o legislador delegado a alterar o regime jurídico da realização da audiência de julgamento na ausência do arguido que então constava do CPP, e que era o regime constante dos transcritos preceitos do n.º 3 do artigo 334.º e do artigo 380.º-A, por um novo regime jurídico construído com base nos critérios constantes desse preceito que se deixou reproduzido acima, definidos, aliás, em termos bem precisos.

Ora, confrontando o teor do artigo 333.º do CPP, saído do uso dessa autorização por parte do legislador do Decreto-Lei 320-C/2000, acima reproduzido, fácil é constatar que ele se sobrepõe ao programa legislativo enunciado no artigo 6.º da lei de autorização. Resulta deste preceito uma evidente intenção legislativa, na linha, de resto, do que, em termos bem claros, se afirma na exposição de motivos da proposta de lei 41/VII, publicada no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 15 de Julho de 2000, que deu lugar à lei de autorização, de afastar as causas de morosidade processual relativas à realização da audiência de julgamento na ausência do arguido, na medida em "que [segundo aquela exposição de motivos] comprometem a eficácia do direito penal e o direito de o arguido 'ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa', nos termos do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa".

Por isso, o legislador parlamentar autorizou o legislador delegado a regular em termos completamente diferentes dos que constavam da legislação processual penal então em vigor a realização da audiência na ausência do arguido.

Os termos em que foi autorizada essa alteração do regime da realização da audiência na ausência do arguido, a concretizarem-se, como efectivamente veio a acontecer pelas alterações introduzidas pelo legislador delegado no artigo 333.º do CPP, tornavam incompatível a manutenção do regime então constante daquele n.º 3 do artigo 334.º e do artigo 380.º-A do CPP.

Sendo assim, bem se compreende que o legislador parlamentar tenha deixado de incluir o preceito, que antes figurava sob o artigo 3.º da referida proposta de lei, no sentido de autorizar a revogação do artigo 380.º-A do CPP. A revogação deste artigo impunha-se por razões de compatibilidade lógico-jurídicas. Nesta perspectiva, ter-se-á considerado que a inclusão de um preceito com tal sentido na lei de autorização era absolutamente desnecessária, havendo o mesmo, inelutavelmente, de inferir-se da incompatibilidade de subsistência do novo regime autorizado com o constante do artigo 380.º-A do CPP.

No mesmo sentido vão, de resto, as intervenções que se produziram no Parlamento aquando da discussão, na generalidade, da citada proposta de autorização legislativa, conforme emerge do Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 10, de 13 de Outubro de 2000.

Temos, assim, de concluir que a autorização de emissão de um preceito com o sentido do constante do reproduzido artigo 3.º do Decreto-Lei 320-C/2000 estava necessariamente incluída na extensão e no sentido da referida lei parlamentar.

Deste modo, não padece esse preceito do vício de inconstitucionalidade orgânica que o recorrente lhe aponta.

C - Decisão

Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não conhecer da questão de inconstitucionalidade consubstanciada em a norma revogatória do artigo 380.º-A do CPP, enquanto interpretada no sentido de não conceder ao arguido o direito a requerer novo julgamento, ser de aplicação imediata aos processos em curso;

b) Negar provimento ao recurso na parte restante.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 15 UC, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que desfruta.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2003. - Benjamim Rodrigues - Paulo Mota Pinto [votei a decisão, embora com dúvidas quanto à alínea a), por não se me afigurar seguro que o recorrente não tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da dimensão normativa relativa à aplicação imediata da norma revogatória, embora apenas com fundamento num parâmetro constitucional diverso daquele que invocou no recurso de constitucionalidade] - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2195116.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-17 - Decreto-Lei 78/87 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 1987-12-29 - Decreto-Lei 387-E/87 - Ministério da Justiça

    Altera o processamento das transgressões e contravenções e dá nova redacção a alguns artigos do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (aprova o Código de Processo Penal).

  • Tem documento Em vigor 1989-06-30 - Decreto-Lei 212/89 - Ministério da Justiça

    Altera o Código das Custas Judiciais e a tabela anexa a que se refere o respectivo artigo 16º.

  • Tem documento Em vigor 1995-11-28 - Decreto-Lei 317/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-18 - Lei 58/98 - Assembleia da República

    Aprova a lei das Empresas Municipais, Intermunicipais e Regionais, regulando as condições em que os municípios, as associações de municípios e as regiões administrativas podem criar empresas dotadas de capitais próprios.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

  • Tem documento Em vigor 2000-11-17 - Lei 27-A/2000 - Assembleia da República

    Autoriza o Governo a alterar o Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho, 317/95, de 28 de Novembro, e pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto.

  • Tem documento Em vigor 2000-12-15 - Decreto-Lei 320-C/2000 - Ministério da Justiça

    Altera o Código de Processo Penal, estabelecendo medidas de simplificação e combate à morosidade processual.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda